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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ALEXANDRE CORONATO RODRIGUES LIVE CINEMA: NARRATIVAS DE AUTORIA COLETIVA EM TEMPO REAL Da fase poética subjetiva a produção de narrativas objetivas. MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

ALEXANDRE CORONATO RODRIGUES

LIVE CINEMA: NARRATIVAS DE AUTORIA COLETIVA EM TEMPO REAL

Da fase poética subjetiva a produção de narrativas objetivas.

MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL

SÃO PAULO

2015

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Pontifícia Universidade Católica De São Paulo

Secretaria Acadêmica – Processamento de Dissertações e Teses

Alexandre Coronato Rodrigues

LIVE CINEMA: NARRATIVAS DE AUTORIA COLETIVA EM TEMPO REAL

Da fase poética subjetiva a produção de narrativas objetivas.

MESTRADO EM TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de MESTRE

em Tecnologias da Inteligência e Design

Digital, sob a orientação do Prof. Doutor

Marcus Vinicius Fainer Bastos.

SÃO PAULO

2015

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BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

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SUMÁRIO

RESUMO............................................................................................................. 5 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 7 CAPÍTULO 1. CONCEITO DE NARRATIVA ....................................................... 9

1.1 Narratologia - a narrativa como ciência ............................................ 11

1.2 Narrativas como expressão da visão de mundo

e a perda do coletivo segundo Walter Benjamin .............................. 17

1.3 Narrativas e tecnologia: novos paradigmas ...................................... 20

1.3.1 Elementos estruturais da linguagem digital ......................... 22

1.3.2 Narrativa Digital ................................................................... 26

1.3.3 Narrativas objetivas e subjetivas ......................................... 31

1.3.4 Narrativas coletivas ............................................................. 36

1.3.5 Live cinema ......................................................................... 44

CAPÍTULO 2. A QUESTÃO DA AUTORIA ...................................................... 47

CAPÍTULO 3. EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS

DE NARRATIVAS COLETIVAS ................................................. 58

CAPÍTULO 4. ESPECIFICAÇÃO DE SISTEMA PARA PRODUÇÃO

DE FILMES E ROTEIROS EM TEMPO REAL........................... 73

4.1 Transmissão de arquivo x streaming ................................................ 75

4.2 Método para a criação de um filme e seu enredo em tempo real ..... 75

4.2.1 Atores x Equipes ................................................................. 75

4.2.2 Gatilho ................................................................................ 77

4.2.3 Equipes de produção de cenas ........................................... 78

4.2.4 Equipe de finalização .......................................................... 79

4.2.5 Método passo a passo ........................................................ 81

4.3 Tecnologia ......................................................................................... 82

4.3.1 Tipos de conexão sem fio e suas velocidades .................... 82

4.3.2 Tamanho arquivo x tempo de transmissão .......................... 83

4.3.3 Equipamentos: hardware e software ................................... 84

CONCLUSÃO ................................................................................................... 88

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 92

LISTA DE IMAGENS ......................................................................................... 95

APÊNDICE I - ENTREVISTA COM IAN SOFFREDINI ..................................... 97

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RESUMO

Este estudo busca compreender o estado atual dos processos de

produção de narrativas coletivas em tempo real e identificar uma forma

diferente, ainda não experimentada, de criação de Live Cinema. Para tanto,

parte-se da definição do conceito de narrativa apoiado nas teorias filosóficas de

Rolland Barthes e Walter Benjamin somada às teorias estéticas sobre a mídia

digital de Lev Manovich, da análise dos tipos de narrativas cinematográficas de

André Parente e da discussão do conceito de autoria segundo os

pesquisadores Lucia Santaella, Arlindo Machado e Antonio Miranda. A partir

destas definições identificou-se os parâmetros estruturais das narrativas digitais

contemporâneas, que permitiram a análise de quatro exemplos atuais da

produção coletiva de histórias em tempo real, diferenciando-os quanto ao tipo

de narrativa criada e a profundidade da participação coletiva em sua criação.

Como resultado, este trabalho apresenta a especificação de um sistema

coletivo de produção de narrativas em tempo real, que comprova a descoberta

revelada pela análise e aponta o universo de possibilidades surgidas com o

advento das tecnologias digitais de processamento da informação.

Palavras-chave: narrativa, coletiva, tempo real, Live cinema, interação.

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ABSTRACT

This study aims to understand the current state of the production processes of

collective narratives in real-time and identify a different way, not yet experienced,

to create Live Cinema pieces. Therefore, it starts from the narrative concept

definition supported by the philosophical theories of Rolland Barthes and Walter

Benjamin added to the aesthetic theories of digital media of Lev Manovich, the

analysis of the types of cinematographic narratives of André Parente and

authorship concept discussion according to researchers Lucia Santaella, Arlindo

Machado and Antonio Miranda. From these definitions we identified the

structural parameters of contemporary digital storytelling, which allowed the

analysis of four current examples of collective production of stories in real time,

distinguishing them as the kind of narrative created and the depth of the

collective participation in its creation. As a result, this paper presents the

specification of production real-time collective narratives system, which proves

the discovery revealed by analysis and points the universe of possibilities that

arise with the advent of digital technologies of information processing.

Keywords: narrative, collective, real-time, Live cinema, interaction.

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INTRODUÇÃO

Ao longo de nossa história as formas e processos de construção

narrativa sofrem alterações suscitadas pela expansão da compreensão da

realidade somada aos avanços tecnológicos.

Em minha vida, sempre estive envolvido profissionalmente com o

processo de criação de narrativas audiovisuais, mas nunca havia questionado

com mais profundidade o que exatamente é este processo e sua importância

para a humanidade. Através de uma especialização em cinema, entrei em

contato com um novo tipo de criação audiovisual proporcionada pelos avanços

das tecnologias digitais de processamento da informação. A criação audiovisual

coletiva e colaborativa em tempo real ou Live cinema. A possibilidade de

participar do processo de formação de uma nova linguagem me levou ao

presente estudo.

Nesta dissertação pretendo encontrar uma possível classificação dos

tipos de narrativas a partir de um recorte que permita especificar o que é

narrativa, se é possível uma classificação de tipos e aplicar este conceito para

entender que tipos de narrativa em tempo real existem e em que se diferem.

A partir da análise da concepção narrativa de quatro exemplos com

relação ao tempo de criação, produção, veiculação e quanto ao tipo de

narrativa produzido, procuramos encontrar uma forma diferente e talvez nova

para a produção coletiva de filmes em tempo real.

Proponho duas questões para a investigação nesta dissertação: a

primeira é definir o estado atual das produções de narrativas em tempo real

quanto a forma ou tipo de narrativas produzidas na busca de alternativas ainda

não experimentadas. A segunda é a proposição de um sistema que, utilizando

a tecnologia disponível, possibilite a construção de narrativas audiovisuais

coletivas e em tempo real com a nova alternativa.

Para a busca de tais respostas, divido esta dissertação em 4

capítulos. O primeiro, procura aprofundar a compreensão do conceito de

narrativa através de uma visão histórica. Estudarei autores como Roland

Barthes, Walter Benjamim, Lev Manovich, Janet Murray, Arlindo Machado e

Christine Mello e também alguns exemplos de produção coletiva de narrativas

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e de Live cinema que me ajudarão a contextualizar as narrativas

contemporâneas baseadas nas evoluções tecnológicas.

No segundo capítulo, discutirei o conceito de autoria nas artes de

modo geral, através exemplos conhecidos na literatura, artes visuais e na

música, bem como a influência da tecnologia na ampliação e condução dos

caminhos para a produção coletiva, as mudanças nos paradigmas e como os

novos modelos influem na estrutura das narrativas produzidas.

No terceiro capítulo procurarei descobrir qual ou quais variáveis

determinariam uma nova forma de produção coletiva em tempo real e também

identificar, a partir da análise de quatro exemplos onde a narrativa é criada em

tempo real e executada em diferentes suportes como filme, jogo ou teatro, os

elementos que possam ser adaptados e recombinados para a composição de

um método de criação de narrativas nessa nova forma se conseguirmos

identificá-la.

Os dois primeiros exemplos escolhidos são duas produções de Live cinema,

STORM de Luiz duVa e Ressaca de Bruno Vianna, onde a produção coletiva

resulta em dois tipos diferentes de narrativas audiovisuais em tempo real cujo

suporte é o cinema ou Live cinema.

O terceiro exemplo é o jogo online Can You See Me Now do grupo de artistas

multimídia Blast Theory, onde a produção colaborativa de narrativas na forma

de um jogo une o mundo real com o virtual colocando seus participantes num

ambiente lúdico que integra todos os participantes. Neste caso, nosso interesse

maior reside no método e tecnologias utilizadas que agregariam ao Live

cinema, visto nos exemplos anteriores, aspectos novos como mobilidade e

aumento no número de pessoas participantes ampliando as fronteiras do

coletivo.

Por fim, no quarto e ''ultimo exemplo, a análise do processo de

produção da peça Espontânea de Ian Soffredini, onde os atores constroem a

história da peça durante a encenação, me levou a um possível método para a

construção de um sistema capaz de produzir filmes e suas histórias em tempo

real.

O quarto capítulo apresenta a especificação metodológica e técnica

de um sistema para a produção de narrativas coletivas, em tempo real como

exercício de comprovação do resultado da análise.

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CAPÍTULO 1. CONCEITO DE NARRATIVA

A definição do conceito de narrativa é uma tarefa complexa. Ao

começar a procurar uma definição genérica, ou seja, que inclua todos os tipos

e modalidades possíveis de narrativa percebi a complexidade da tarefa.

Encontrei-me diante de um universo infinito de possibilidades. Infinito porque

indefinido e indefinido porque incompleto por definição. A definição tradicional

de narrativa como a descrição de uma sequência real ou imaginária de eventos

não serve como definição para diversas formas de narrativa que existem hoje

nas artes.

A arte da narrativa está presente em nossa história sendo mesmo a

ferramenta através da qual a construímos, pois é através de registros

narrativos que a perpetuamos e criamos o corpo de conhecimento registrado,

ou melhor de percepções da realidade registradas. Segundo Barthes, "a

narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as

sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há,

nunca houve em lugar nenhum povo algum sem narrativa." (2001: p.103).

Vários autores como Barthes, Walter Benjamin e Janet Murray,

destacam que as narrativas são a ferramenta com a qual a humanidade

entende e ao mesmo tempo constrói seu mundo ou aquilo que chamamos de

realidade. Portanto, posso dizer que as narrativas são a expressão de nosso

conceito do que é a realidade e ao mesmo tempo influenciam a construção

desse conceito. Construímos nossa concepção de realidade não apenas a

partir da própria realidade, ou do que captamos dela através de nossos

sentidos, mas também a partir de descrições transformadas em narrativas.

Söke Dinkla, em seu artigo "The Art of Narrative" publicado no livro

New Screen Media de 2002, identifica esta relação dialética entre as narrativas

e nosso conceito de realidade. Cada descrição de realidade é formada por

nossas próprias ideias sobre a realidade e cada narrativa que fazemos da

realidade, influencia essas ideias. As formas de construção narrativa podem,

portanto, ser a expressão de mudanças em nossa concepção (construção) da

realidade assim como podem ser as responsáveis por mudanças nessa

concepção. "Cada representação da realidade é formada por meio de nossas

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próprias idéias de realidade, e cada representação, por sua vez, influencia

essas idéias"1 (2002, p.27). Numa revisão histórica, sobre o surgimento de

novos métodos estéticos de construção narrativa, não será sempre possível

distinguir quando esses novos métodos ou formas narrativas são a expressão

de uma nova concepção ou visão da realidade, ou quando são os causadores

de uma nova percepção. " Ao longo dos séculos, a arte da narrativa, também

expressou esta mudança social através da mudança do significado da técnica,

sendo ao mesmo tempo uma expressão dessa mudança"2 (2002, p.27).

A própria etimologia da palavra narrativa tem sua origem na palavra

narrare do latim e significa contar, relatar, tornar conhecido, indicando a relação

direta das narrativas com a produção de conhecimento, tornando indiscutível a

relevância do estudo dos processos intelectuais e cognitivos envolvidos na

construção de histórias.

" todas as classes, todos os grupos humanos têm as suas narrativas,

muitas vezes essas narrativas são apreciadas em comum por

homens de culturas diferentes, até mesmo opostas: a narrativa

zomba da boa e da má literatura: internacional, trans-histórica,

transcultural, a narrativa está sempre presente, como a vida"

(BARTHES, 2001: p.103-104).

Assim como o filósofo Roland Barthes, a professora Janet H. Murray

coloca esta importância no prefácio da edição brasileira de seu livro Hamlet no

holodeck: o futuro da narrativa no ciberspaço, onde diz que "a narrativa é

um de nossos mecanismos cognitivos primários para a compreensão do

mundo. É também um dos modos fundamentais pelos quais construímos

comunidades" (2003: p.9).

Além disso, a cada surgimento de novas descobertas científicas e

tecnológicas produzimos novos suportes para o registro de nossa cultura, ou

melhor, para a produção de narrativas. Cada novo suporte traz consigo uma

nova forma de codificar a informação. Como consequência, diferentes formas

1 Traduzido pelo autor a partir do original: Every depiction of reality is formed through our own

ideas of reality, and every depiction, in turn, influence those ideas. 2 Traduzido pelo autor a partir do original: Throughout the centuries the art of narrative, ...has

also expressed this social change through changing technical means as well as being an expression of this change.

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para se construir narrativas, baseadas em uma lógica de encadeamento de

eventos própria, surgem e com elas a possibilidade de novas linguagens.

Desta forma, o conceito de narrativa não pode ser absoluto, pois o

surgimento de novos suportes traz novas possibilidades de construção

narrativas, espelhando novas concepções da realidade que, por sua vez,

modificam as formas narrativas que influenciam e modificam nossa concepção

da realidade e assim sucessivamente. Tal recursividade dialética também foi

percebida pelo filósofo Walter Benjamin, como veremos adiante.

A percepção da importância das narrativas no processo de criação de

nossa cultura e a velocidade com que os meios para se produzir narrativas

passaram a evoluir no início do século passado fizeram com que diversos

pensadores e filósofos se debruçassem sobre o tema, criando uma nova

disciplina para a ciência.

1.1 Narratologia - a narrativa como ciência

Em seu artigo "Narratology" (2013) publicado pelo Interdisciplinary

Center for Narratology, University of Hamburg, o Professor Jan Christoph

Meister, da Universidade de Hamburgo, nota que os estudos sobre as

narrativas se iniciam na antiguidade grega com Platão e Aristóteles que

identificaram os principais elementos na construção de narrativas. O primeiro

distinguiu dois principais modos de narrar: a mimesis, como a imitação direta

do discurso na forma de diálogos e monólogos dos personagens, e a diegese,

que compreende todos os enunciados atribuíveis ao autor.

No livro A Arte Poética, Aristóteles apresentou um segundo critério

que se manteve fundamental para a compreensão da narrativa: a distinção

entre a totalidade dos eventos que ocorrem em um mundo representado e o

enredo ou mythos do fato narrado, uma construção que apresenta um

subconjunto de eventos, escolhidos e organizados de acordo com

considerações estéticas.

No início da década de 1960 surge o estruturalismo francês,

movimento filosófico que reuniu pensadores de diversas áreas e que o

professor e pesquisador José Renato Salatiel define de forma resumida em seu

artigo "Estruturalismo: Quais as origens desse método de análise?":

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"Na verdade, o estruturalismo é mais um método de análise, que

consiste em construir modelos explicativos de realidade, chamados

estruturas. Por estrutura entende-se um sistema abstrato em que

seus elementos são interdependentes e que permite, observando-se

os fatos e relacionando diferenças, descrevê-los em sua ordenação e

dinamismo. É um método que contraria o empirismo, que vê a

realidade como sendo constituída de fatos isolados. Para o

estruturalismo, ao contrário, não existem fatos isolados, mas partes

de um todo maior" (SALATIEL, 2008).

Sob a influência destas ideias estudiosos e pensadores como Roland

Barthes, Eco, Genette, Greimas e Todorov publicaram artigos onde o estudo da

lógica, dos princípios e das práticas da produção narrativa se configurou como

uma ciência, com a estruturação de um corpo metodológico coerente para se

criar uma teoria sobre as narrativas.O objetivo era identificar e definir os

universais narrativos.

O termo narratologia foi usado pela primeira vez por Todorov em seu

livro Grammaire du Décaméron (1969), onde defende uma mudança de foco

no estudo das narrativas, do texto propriamente dito ou seja, do discurso que

se forma com as palavras, para as propriedades estruturais da narrativa como

instrumento criador de representações e significados na busca de uma

generalização teórica que pudesse ser aplicada a todos os domínios da

narrativa, uma ciência hipotética "que ainda não existe; vamos chamá-la

narratologia, ou ciência da narrativa." (1969, p.10).

Meister, define a narratologia hoje como "uma disciplina de

humanidades dedicada ao estudo da lógica, princípios e práticas de

representação narrativa" (2013) e identifica três caminhos na narratologia

contemporânea: o contextualista, que busca relacionar características da

narrativa a contextos culturais específicos com foco no conteúdo da narração; o

cognitivo, baseado na busca de modelos de compreensão humana de

narrativas, uma abordagem importante para o desenvolvimento da AI na busca

da simulação desta capacidade humana de narrar; e a transgenérica, que

busca aplicar os conceitos narratológicos no estudo de gêneros e outras mídias

indo além das narrativas baseadas em textos e palavras.

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O caminho cognitivo é importante por servir como campo de testes de

conceitos teóricos de construção de histórias.

"Sistemas de Storytelling podem ser usados para identificar

protótipos de conceitos narratológicos em uso atualmente para

apoiar decisões de construção história. Isso pode ser útil tanto no

que permitam a identificação de conceitos que possam estar sub-

definidos ou ambíguos em sua formulação atual, e na proposição de

conceitos adicionais relacionados com o processo de composição de

histórias que podem ser dignos de maior atenção"3 (GERVÁS, 2012).

É, também, especialmente interessante para esta pesquisa, por

procurar reproduzir o processamento da linguagem natural, na busca de

possíveis regras para que computadores produzam textos literários com uma

história ou enredo, automaticamente.

A produção automática de uma narrativa com uma história explícita e

um enredo facilmente identificável sinaliza a possibilidade de criação de um

método que produza esse tipo de narrativas coletivamente, pois se é possível

que um programa de computador realize tal tarefa, talvez seja possível que um

método, apoiado nas possibilidades comunicacionais advindas das tecnologias

digitais, coordene várias pessoas com esse mesmo fim.

Pablo Gervás, professor associado ao Departamento de Inteligência

Artificial e Engenharia de Software da Universidade Complutense de Madrid,

descreve em seu artigo "Story Generator Algorithms"4 (2013) alguns algoritmos

para a geração automática de histórias e ressalta que "o problema aqui

consiste em criar sistemas, ou seja, algoritmos capazes de executar uma tarefa

não definida" (2013). Entendendo-se algoritmo como um conjunto de instruções

determinados para, ao receber uma determinado input5, fornecer um resultado

definido como output6, a criação de um algoritmo sem o conhecimento prévio

3 Traduzido pelo autor a partir do original: Storytelling systems may be used to identify

prototypes of narratological concepts in actual use to support story building decisions. This may be helpful both in allowing identification of existing concepts that may be under-defined or ambiguous in their present formulation, and in putting forward additional concepts concerned with the process of composition of stories that may be worthy of further attention.

4 http://www.lhn.uni-hamburg.de/article/story-generator-algorithms

5 A palavra input do inglês significa em computação entrada de dados, alimentar o computador

com informação. 6 A palavra output do inglês significa em computação informação liberada e produzida por um

computador. vt produzir informação como resultado de um programa ou operação.

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dos inputs e de quais são as características do que se espera como output

parece uma tarefa impossível.

Esta indefinição é também percebida no processo humano de

construção de uma narrativa ou história, pois não conseguimos definir

claramente quais foram os dados dos quais o autor partiu para iniciar o seu

processo de criação, o que talvez explique porque sistemas computacionais

ainda não conseguem reproduzir a capacidade humana de criar e contar

histórias de maneira tão diversa como mostrado nos exemplos a seguir.

Novel foi um dos primeiros algoritmos desenvolvido para geração de

histórias na década de 1970. Este software gerava especificamente histórias de

assassinato em um ambiente dado como entrada juntamente com as

características das personagens da história, que incluíam suas ligações

emocionais, tendências à violência e predisposição ao sexo. Produzia um tipo

específico de história com variações muito pequenas.

" O conjunto de regras é altamente restritivo e permite a construção

de apenas um tipo muito específico de história. Apesar de que mais

de uma história poderia ser construída pelo programa, as diferenças

entre elas eram restritas a quem assassina quem com o quê e

porquê e quem os descobre"7 (GERVÁS, 2012).

Na mesma década surge um algoritmo chamado TaleSpin capaz de

produzir histórias com variações maiores no enredo, pela descrição dada por

Gervás, percebe-se que o aumento de parâmetros fornecidos como input para

o algoritmo, ou seja, a diminuição da indefinição, influi diretamente nas

variações de enredo produzido, neste caso mais relevantes que as do exemplo

anterior.

"TaleSpin foi um sistema que gerou histórias sobre a vida de criaturas

simples da floresta. Para criar uma história, um objetivo era dado ao

personagem e, em seguida, um plano desenvolvido para atingir a

meta ou objetivo definido. TaleSpin introduziu as metas dos

personagens como gatilhos para a ação. Também introduziu a

possibilidade de ter mais de um personagem resolvedor de

problemas na história, introduzindo listas de meta separadas para

7 Traduzido pelo autor a partir do original: The set of rules is highly constraining and allows for

the construction of only one very specific type of story. Though more than one story could be built by the program, differences between them were restricted to who murders whom with what and why and who discovers them.

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cada um deles. Relações complexas eram modeladas entre os

personagens (competição, dominância, familiaridade, afeição,

confiança, fraude e endividamento). Tais relações atuavam como pré-

condições para algumas ações e como conseqüências de outras,

constituindo, assim, um modelo simples de motivação dos

personagens. A personalidade dos personagens era modelada de

acordo com grau de bondade, vaidade, honestidade e inteligência

determinados para cada um deles"8 (GERVÁS, 2012).

Segue um trecho de uma história produzida pelo algoritmo TaleSpin

apresentada por Gervás onde percebe-se a grande simplicidade do texto

produzido encadeando ações perceptivelmente balizadas por parâmetros

embutidos na lógica do algoritmo, muito longe das narrativas produzidas por

seres humanos. Talvez porque as intenções do autor estão implícitas no

algoritmo através dos objetivos dos personagens que, após definidos, não

podem sofrer alterações.

"John Urso está com um pouco de fome. John Urso quer obter

algumas frutas. John Urso quer chegar perto dos mirtilos. John urso

caminha de uma entrada da caverna para o mato, passando por uma

passagem através de um vale através de um prado. John Urso pega

os mirtilos. John urso come os mirtilos. Os mirtilos acabaram. John

urso não está com muita"9 (GERVÁS, 2012).

Outra tentativa de produção de narrativas mais naturais a partir de

algoritmos foi experimentada no início da década de 1980 com o programa

Dehn's Autor. Em oposição à lógica usada no TaleSpin que recebia como input

vários sub-objetivos explicitamente declarados e abertos a manipulação pelo

8 Traduzido pelo autor a partir do original:was a system which generated stories about the lives

of simple woodland creatures. To create a story, a character was given a goal, and then the plan was developed to solve the goal. TALESPIN introduced character goals as triggers for action. It also introduced the possibility of having more than one problem-solving character in the story, introducing separate goal lists for each of them. Complex relations between characters were modeled (competition, dominance, familiarity, affection, trust, deceit and indebtedness). These relations acted as preconditions to some actions and as consequences of others, thus constituting a simple model of character motivation. The characters’ personalities were modeled according to degrees of kindness, vanity, honesty and intelligence.

9 Traduzido pelo autor a partir do original: John Bear is somewhat hungry. John Bear wants to

get some berries. John Bear wants to get near the blueberries. John Bear walks from a cave entrance to the bush by going through a pass through a valley through a meadow. John Bear takes the blueberries. John Bear eats the blueberries. The blueberries are gone. John Bear is not very hungry.

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programa que, desta forma, reformula continuamente a intenção do autor.

Segundo Gervás o programa "procurava simular a mente de um autor humano

baseado na suposição de que os mundos de uma história são desenvolvidos

pelos autores para justificar as ações já decididas para a construção da

história" (2012). A história é entendida como "a realização de uma teia

complexa de metas do autor." (2012).

Nota-se aqui uma barreira intransponível, ao menos até agora, para

que algoritmos sejam capazes de produzir histórias semelhantes as produzidas

por seres humanos. A criatividade, uma capacidade humana que não possui

estruturas reconhecíveis que possibilitem a criação de um modelo passível de

ser reproduzido como uma sequência de instruções de um algoritmo.

Os programas MEXICA e BRUTUS do final da década de 1990

caminharam nesta direção e revelam a incapacidade de programas de

computador serem realmente criativos. O programa MEXICA restringe as

histórias a um universo conhecido e determinado, mas acrescenta o aspecto

emocional dos personagens como parâmetro para a condução do enredo

somado a um método de avaliação da história produzida. O acréscimo destes

elementos, indiscutivelmente presentes no processo criativo humano, revela-se

incompleto quando vemos um texto produzido por este algoritmo.

"Cavaleiro Jaguar era um habitante da Grande Tenochtitlan. A

Princesa foi uma habitante da Grande Tenochtitlan. O cavaleiro

Jaguar estava andando quando Ehecatl (Deus do vento) soprou e

uma velha árvore desabou, ferindo gravemente O cavaleiro Jaguar. A

Princesa foi em busca de algumas plantas medicinais e curou o

cavaleiro Jaguar. Como resultado, o cavaleiro Jaguar ficou muito

grato a Princesa. O cavaleiro Jaguar recompensou a Princesa com

alguns cacauatl (grãos de cacau) e penas de Quetzalli (Quetzal)"10

(GERVÁS, 2012).

Avançando um pouco mais, Gervás destaca o interesse do programa

BRUTUS por "basear a sua capacidade de contar histórias em um modelo

10

Traduzido pelo autor a partir do original: Jaguar knight was an inhabitant of the Great Tenochtitlan. Princess was an inhabitant of the Great Tenochtitlan. Jaguar knight was walking when Ehecatl (god of the wind) blew and an old tree collapsed, injuring badly Jaguar knight. Princess went in search of some medical plants and cured Jaguar knight. As a result, Jaguar knight was very grateful to Princess. Jaguar knight rewarded Princess with some cacauatl (cacao beans) and quetzalli (quetzal) feathers.

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lógico de traição. A riqueza desse modelo e as deduções que podem ser

tiradas a partir dele permitiu-lhe produzir histórias muito ricas"11 (2012).

Deduções ou inferências são características encontradas na criatividade

humana e este programa era capaz de produzir histórias muito próximas das

produzidas por autores humanos, porém Gervás observou que o algoritmo não

é criativo por ser " o resultado da engenharia reversa de um programa de uma

história, a fim de ver se ele pode construir essa história particular."12 (2012).

Pode-se perceber que tais algoritmos variam quanto ao tipo de

histórias que produzem e quanto as quantidades e tipos de dados de entrada

que necessitam (input). Tais variações influenciam diretamente a qualidade dos

textos produzidos por cada programa já que quanto maior a quantidades de

dados de entrada e mais restritas as possibilidades de saídas (output), mais

definida está a tarefa a ser executada e, portanto, mais consistente é a saída

produzida pelo algoritmo, entendo-se como consistente, a proximidade da

narrativa produzida pelo algoritmo com as narrativas produzidas pela

criatividade humana.

No entanto, acredito que os programas ou algoritmos ainda estão

muito longe desta capacidade por ser esta diretamente ligada a capacidade de

lidar com a indefinição, um patamar inatingível por inferências programadas

que dependem de um objetivo definido. A capacidade humana de lidar com a

indefinição através da criatividade, permite que seja possível a criação de um

método coletivo de criação de histórias, onde o objetivo se crie ao mesmo

tempo em que a história é contada e se torne identificável apenas ao final.

1.2 Narrativas como expressão da visão de mundo e a perda do coletivo

segundo Walter Benjamin

Em busca de uma visão filosófica que abordasse o papel das

narrativas num contexto social, inerente a condição humana, e portanto ao

próprio contexto cultural, encontrei no livro O Narrador (1994) do filósofo

Walter Benjamin um estudo que demonstra, e de certa forma comprova e

11

Traduzido pelo autor a partir do original: it based its storytelling ability on a logical model of betrayal. The richness of this model and the inferences that can be drawn from it enabled it to produce very rich stories.

12 Traduzido pelo autor a partir do original: the result of reverse engineering a program out of a

story in order to see whether it can build that particular story.

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18

ratifica, o que vimos no início deste capítulo a respeito da importância dos

processos de expressão narrativas para a nossa cultura e identifica a

importância do fator coletivo presente nestas formas de expressão.

Através do estudo da obra do escritor Nikolai Leskov, Benjamin

analisa o papel social da narrativa enquanto expressão de um ponto de vista e,

ao mesmo tempo, determinante para este ponto de vista quando inserido num

momento histórico específico, refletindo sobre as contradições e paradoxos do

homem e da cultura demonstrando como a maneira de se contar histórias está

diretamente ligada a visão de mundo e consequentemente à maneira de se

relacionar socialmente.

Para Benjamin, as histórias produzidas através da tradição oral estão

mais próximas da realidade coletiva que procuram retratar, pois são histórias

inacabadas transformadas por cada narrador que a molda segundo suas

experiências e capacidade de compreender nossa realidade, obras coletivas

complementadas e alteradas constantemente por cada um que as conta.

Afastando-se de aspectos psicológicos dos protagonistas e

concentrando-se na memória sensorial e coletiva, esta somatória de diferentes

visões da realidade produz resultados mais naturais e de maior valor social.

Benjamin define essa história coletiva como Narração e a diferencia

do novo tipo, que conta uma história individual - com batalhas heroicas e

protagonistas, definindo como Romance. Esta mudança na maneira de narrar é

o resultado de uma alteração na forma do homem relacionar-se com o mundo e

com os outros homens.

Aqui, a diferença entre o receptor das narrativas - o ouvinte, e o

receptor dos romances - o leitor, denotam uma perda que o segundo sofre em

relação ao primeiro. A perda da participação para a passividade, da coletividade

para o individualismo.

O ouvinte se coloca ao lado do narrador e compartilha suas

experiências, inserido na história como participante. Em oposição, o leitor se

distancia da tradição oral e, portanto, não compartilha as experiências do

narrador, a história narrada é vista como algo externo e dissociado de sua vida,

um produto a ser consumido sem ligação com sua realidade.

Segundo Benjamin, o romance precisou de muito tempo até encontrar

num novo personagem social, a burguesia, um terreno fértil para sua

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consolidação como expressão de uma nova visão de mundo, inaugurando uma

nova forma de comunicação, a informação.

"O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de

centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os

elementos favoráveis a seu florescimento. Quando esses elementos

surgiram, a narrativa começou pouco a pouco a tornar-se arcaica;

sem dúvida, ela se apropriou de múltiplas formas do novo conteúdo,

mas não foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado,

verificamos que com a consolidação da burguesia - da qual a

imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais

importantes - destacou-se uma forma de comunicação que, por mais

antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado

decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é

tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e,

de resto, provoca uma crise no próprio romance. essa nova forma de

comunicação é a informação" (BENJAMIN, 1994: p202).

Com o surgimento desta nova forma de contar histórias, o homem ou

o receptor perde a perspectiva de uma realidade coletiva transmitida através

das narrativas. Agora, já não estão mais ao lado do narrador na construção da

história, ou na hora de receber seus conselhos, que não são mais relevantes

porque descolados de sua realidade, saindo do circuito que perpetua o

conhecimento e os costumes de seu próprio grupo.

A falta de interesse pelas questões coletivas subtrai do homem a

capacidade de sentir-se inserido num contexto maior que si mesmo, passando

portanto a construir uma visão do mundo individual, segundo suas próprias

experiências, exacerbando o valor do protagonista, indivíduo, com relação ao

meio, lugares, pessoas e circunstâncias em que está incorporado.

A narrativa está, então, influenciando a visão de mundo dos homens e

ao mesmo tempo sendo transformada pela nova visão de mundo que o homem

inserido no capitalismo desenvolveu.

Neste sentido, a tentativa de encontrar uma forma coletiva de

produção de narrativas adquire maior importância por indicar a mudança do

ponto de vista individual da existência para o coletivo, uma mudança no estado

da consciência humana, que inclui o todo, que enxerga a importância do meio

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20

para a existência individual e induz ao respeito e a valorização de nosso mundo

material e social.

1.3 Narrativas e tecnologia: novos paradigmas

Constatada a importância das narrativas para a humanidade,

passemos a analisar as mudanças que o processo narrativo sofreu ao longo da

história em função das descobertas científicas e dos avanços tecnológicos que

ocorreram em cada período.

As manifestações expressivas sempre estiveram ligadas ao meio ou

suporte disponível em cada momento. No princípio, as pinturas rupestres e a

tradição oral eram os suportes possíveis para a representação e significação

do mundo.

Novos suportes como a escrita, a música, a pintura, a fotografia, o

teatro, o rádio, o cinema, a televisão, foram surgindo e trazendo consigo outros

paradigmas para a construção de narrativas.

Murray (2003) cita o exemplo ocorrido após a invenção da prensa de

tipos móveis em 1455 por Gutenberg, quando livros passaram por um período

de aproximadamente cinquenta anos de experiências até que se

estabelecessem outras convenções, como fontes legíveis, numeração de

páginas, divisão do texto em parágrafos e do livro em capítulos. Os exemplares

impressos até 1501 eram chamados de incunábulos, termo derivado do latim

que se refere a faixa com as quais as crianças recém nascidas são envoltas,

numa alusão de que os livros ainda eram fruto de uma tecnologia recém

nascida. (2003: p41-42).

Após a invenção do cinema, passamos por um período semelhante de

experimentações até que com o uso desse novo meio construíssemos um novo

modelo para as narrativas que agora não eram construídas apenas com

palavras, mas incluíam imagens e posteriormente sons.

"Como ocorreu com a imprensa escrita, a invenção da câmera

cinematográfica conduziu a um período de incunábulos, de "filmes

berçários". Nas três primeiras décadas do século XX, os cineastas

inventaram coletivamente o meio através da criação de todos os

principais elementos da narração fílmica... A chave para esse

desenvolvimento foi agarrar-se às propriedades físicas exclusivas do

filme: os modos como a câmera poderia ser movida, como as lentes

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poderiam se abrir, fechar e mudar o foco...o modo como as fitas

podiam ser cortadas e montadas. Investigando e explorando com

afinco essas propriedades físicas, os produtores de filmes

transformaram uma mera tecnologia de gravação em um meio

expressivo" (MURRAY, 2003: p73).

Neste início do século XXI, vivemos um momento histórico

semelhante ao vivenciado no início do século XX. Na época, a revolução

industrial imprimiu uma enorme mudança na forma de vermos e interagirmos

com o mundo. As máquinas e a eletricidade, aliados as descobertas científicas,

trouxeram outros suportes ou meios de expressão e inauguraram mais

linguagens e maneiras de nos comunicarmos.

Porém seria ingênuo dizer que vivemos hoje um estágio incunabular

das linguagens digitais, principalmente se pensamos nas mídias digitais

audiovisuais, pois este é bem anterior as mídias digitais e possui uma

linguagem definida que pôde apenas migrar de suporte. Fatores como

velocidade, interatividade e participação se incorporam a estas linguagens

antecedentes inaugurando formas de expressão através delas com uma nova

estética.

A compreensão das narrativas digitais passa obrigatoriamente pela

compreensão dos fatores estruturais que determinam sua forma e, como

consequência, suas possibilidades. Tal compreensão é fundamental para esta

pesquisa na medida em que permite a identificação dos parâmetros que

tipificam as narrativas digitais contemporâneas o que abre a possibilidade do

encontro de formas de construção ainda não exploradas com o uso da

tecnologia atual e das linguagens já estabelecidas.

Em seu livro The Language of New Media (2001) Lev Manovich

decompõe os elementos constituintes das linguagens digitais, estes, somados

as evoluções da tecnologia, são a base estrutural que permite a manipulação

de informação em velocidades cada vez maiores e determinam o surgimento

de possibilidades diferentes para o uso da informação na construção de

narrativas.

Parece-me claro que o aumento das velocidades de acesso,

manipulação e exibição de informação seja a condição necessária para uma

construção em tempo real, que desta forma pode ser vista como uma

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decorrência direta da maneira como a informação é codificada e dos avanços

tecnológicos.

Sob este prisma, as linguagens das produções audiovisuais ao vivo

não diferem de outras a não ser pelas possibilidades que a velocidade com que

se acessa e apresenta a informação inauguram. Elas se apropriam das

linguagens audiovisuais existentes e incorporam os fatores tempo e espaço em

sua constituição. Ao fundir o tempo de produção com o da exibição, trazendo-

os para o mesmo tempo/espaço, abrem as portas para possibilidades

expressivas mais intuitivas e ligadas ao inconsciente do autor ou dos autores.

Portanto, esta pesquisa não busca a invenção de uma nova sintaxe

que configure uma nova linguagem, mas sim, buscamos uma nova forma de

utilizar as linguagens existentes apoiados na tecnologia.

Quais são então, os elementos ligados aos avanços tecnológicos que

estruturam e determinam estes novos modelos?

1.3.1 Elementos estruturais da linguagem digital

O formato digital possui como característica importante, o fato de

englobar praticamente todos os outros formatos de codificação da informação

existentes até agora.

Manovich coloca as mídias digitais como a convergência de duas

trajetórias históricas distintas:

A computação, utilizada a principio apenas para realizar

cálculos.

As tecnologias midiáticas, que permitiam o arquivamento de

informações na forma de imagens, sons e textos.

"A tradução de todos os meios existentes para dados numéricos

acessíveis para computadores. O resultado é a nova mídia: gráficos,

imagens em movimento, sons, formas, espaços e texto que se

tornam computável, ou seja, simplesmente um outro conjunto de

dados de computador" 13

(MANOVICH, 2001: p44).

13 Traduzido pelo autor a partir do original: The translation of all existing media into numerical

data accessible for computers. The result is new media: graphics, moving images, sounds, shapes, spaces and text which become computable, i.e. simply another set of computer data.

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Em meados do século XX, a chegada da computação digital, a

possibilidade de codificação de qualquer tipo de informação através de

números, inaugura a síntese entre estas duas trajetórias: imagens, sons e

textos passam a ser computáveis e, portanto, o computador passa a ser a

mídia para onde todas as formas de comunicação convergem e se misturam

em novas possibilidades de construção e expressão da cultura.

É possível perceber que nas mídias analógicas não havia um padrão

para a codificação das informações, cada formato se baseava num suporte

diferente e, consequentemente, num padrão de codificação específico, que

pressupunha uma tecnologia específica para decodificação.

Os textos eram compostos e impressos em papel ou manuscritos, no

caso da fotografia necessitava-se do negativo e do processo de ampliação. No

vídeo a informação era gravada numa fita magnética e dependia de um

aparelho que as decodificasse.

A mídia digital unificou os formatos, codificando as informações

através de Bits, ou dígito binário, definido como uma entidade que pode

assumir apenas dois estados, certo ou errado, ligado ou desligado, 0 ou 1, etc.

O Bit é, portanto, a menor unidade de informação, ou seja, é o átomo

da informação, e através da concatenação destas pequenas partes traduzimos

todas as propriedades e características de um objeto para o computador.

Textos, imagens e sons são agora codificados no mesmo suporte, codificados

no mesmo padrão e decodificados pela mesma tecnologia. Todas as

tecnologias para a representação e a comunicação de informações passam a

existir num único suporte após o avanço da computação ocorrido no século XX.

―O computador ligado em rede atua como um telefone, ao oferecer

comunicação pessoa-a-pessoa em tempo real; como uma televisão,

ao transmitir filmes; um auditório, ao reunir grupos para palestras e

discussões; uma biblioteca, ao oferecer grande número de textos de

referência; um museu, em sua ordenada apresentação de

informações visuais; como um quadro de avisos, um aparelho de

rádio, um tabuleiro de jogos e, até mesmo, como um manuscrito, ao

reinventar os rolos de textos dos pergaminhos. Todas as principais

formas de representação dos primeiros cinco mil anos da história

humana já foram traduzidas para o formato digital‖ (MURRAY, 2003:

p.41).

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Em resumo, pode-se afirmar que a convergência é o fator estrutural

da linguagem digital e pode ser explicada a partir dos princípios intrínsecos que

a constituem. Lev Manovich identifica cinco princípios que, devido a sua fluidez,

não se configuram como regras e sim como tendências:

I. Representação numérica.

Para que qualquer informação seja manipulada por computadores, esta

deve estar codificada numericamente para que, através do modo

procedimental da programação, possam ser manipulados por algoritmos.

―Todos os novos objetos de mídia, sejam eles criados diretamente

em computadores ou convertidos a partir de fontes de mídia

analógicas, são compostos de código digital; eles são

representações numéricas‖ 14

(MANOVICH, 2001: p. 49).

II. Modularidade.

Todos os textos, imagens e sons são codificados por amostras que,

analogamente, podem ser entendidos como átomos ou módulos,

estruturas menores que compõe um objeto maior preservando sua

identidade individual.

―Este princípio pode ser chamado de estrutura fractal de novas

mídias. Assim como um fractal tem a mesma estrutura em diferentes

escalas, um novo objeto de mídia tem a mesma estrutura modular

por toda parte. Elementos de mídia, seja imagens, sons, formas, ou

comportamentos, são representados como conjuntos de amostras

discretas (pixels, polígonos, voxels15

, personagens, roteiros). Esses

elementos são montados em objetos de maior escala, mas eles

continuam a manter a sua identidade separada‖ 16

(MANOVICH,

2001: p51).

14

Traduzido pelo autor a partir do original: All new media objects, whether they are created from scratch on computers or converted from analog media sources, are composed of digital code; they are numerical representations.

15 Abreviatura de "elemento de volume" ou "célula volume." Cada voxel é um quantum de uma

unidade de volume e tem um valor numérico (ou valores) a ele associado que representa algumas propriedades mensuráveis ou variáveis independentes de um objeto real ou fenómeno. O voxel é a contrapartida conceitual 3D do pixel 2D.

16 Traduzido pelo autor a partir do original:This principle can be called "fractal structure of new

media.‖ Just as a fractal has the same structure on different scales, a new media object has the same modular structure throughout. Media elements, be it images, sounds, shapes, or behaviors, are represented as collections of discrete samples (pixels, polygons, voxels, characters, scripts). These elements are assembled into larger-scale objects but they continue to maintain their separate identity.

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III. Automação.

Um princípio decorrente da representação numérica e da modularidade

da mídia digital.

―Codificação numérica de mídia (princípio 1) e uma estrutura modular

de um objeto de mídia (princípio 2) permitem automatizar muitas

operações envolvidas na criação de meios de comunicação,

manipulação e acesso‖ 17

(MANOVICH, 2001: p53).

IV. Variabilidade.

Outro princípio que a representação numérica e a modularidade

conferem a mídia digital. Cada objeto possui uma estrutura virtual e

portanto passível de ser recodificada e atualizada, não se estabelecendo

como uma estrutura fixa.

―Um novo objeto de mídia não é algo fixo de uma vez por todas, mas

pode existir em diferentes, potencialmente infinitas, versões. Esta é

uma outra consequência da codificação numérica de mídia (princípio

1) e uma estrutura modular de um objeto de mídia (princípio 2).

Outros termos que são usados frequentemente em relação a novas

mídias e que seria apropriado, em vez de "variável" é "mutável" e

"líquido""18

(MANOVICH, 2001: p56).

V. Transcodificação.

A possibilidade de tradução de um formato para outro, que, para

Manovich, envolve tanto aspectos culturais quanto computacionais,

conferindo à mídia digital a capacidade de traduzir cultura e atualizar sua

própria estrutura procedimental.

―Começando com o básico, o princípio "material" das novas mídias -

codificação numérica e organização modular - partimos para

questões mais "profundas" e de grande alcance - automação e

variabilidade. O último, o quinto princípio, o da transcodificação

cultural, tem como objetivo descrever o que, na minha opinião é a

17

Traduzido pelo autor a partir do original: Numerical coding of media (principle 1) and modular structure of a media object (principle 2) allow to automate many operations involved in media creation, manipulation and access.

18Traduzido pelo autor a partir do original: A new media object is not something fixed once and

for all but can exist in different, potentially infinite, versions.This is another consequence of numerical coding of media (principle 1) and modular structure of a media object (principle 2). Other terms which are often used in relation to new media and which would be appropriate instead of ―variable‖ is ―mutable‖ and ―liquid.‖

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consequência mais substancial da informatização dos meios de

comunicação‖ 19

(MANOVICH, 2001: p63).

Tais princípios são fundadores das narrativas digitais e determinam seu formato

e suas possibilidades, como veremos a seguir. Porém, pode-se dizer que,

somados ao aumento da capacidade computacional das máquinas e da

velocidade de transmissão de informações, criam um campo propício às

construções narrativas coletivas e em tempo real devido a sua característica

modular e a automação respectivamente. As histórias ou narrativas podem ser

construídas e apreciadas ao mesmo tempo, a criação pode acontecer em

tempo real com a exibição.

1.3.2 Narrativa Digital

Segundo Manovich, as narrativas digitais se baseiam em dois

aspectos principais, o primeiro é o aspecto procedimental e o segundo a lógica

da base de dados.

O autor identifica ainda três estágios procedimentais na linguagem

digital:

a. A codificação digital da informação em Bits ou zeros e uns.

b. A programação, entendida aqui como a forma de traduzir ao computador

o que queremos que seja feito. O programa é uma sequência de

instruções que o computador deve executar para resolver um problema,

manipular informações, executar uma tarefa.

c. O programa pronto e a disposição dos usuários para realizar tarefas.

O aspecto procedimental pode ser verificado facilmente quando

analisamos as narrativas dos games de computador. A narrativa de um game,

que é um programa, esconde uma lógica codificada em seu algoritmo, que é a

chave para sua narrativa e a tarefa do jogador é aprender sua lógica enquanto

joga, construindo a narrativa a partir desta. É curioso notar que os elementos

de uma narrativa, como dados, objetivos, descrições, problemas e possíveis

soluções, sejam encontrados nas bases da programação computacional.

19

Traduzido pelo autor a partir do original: Beginning with the basic, ―material‖ principles of new media — numeric coding and modular organization — we moved to more ―deep‖ and far reaching ones — automation and variability. The last, fifth principle of cultural transcoding aims to describe what in my view is the most substantial consequence of media’s computerization.

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Outro fator importante é a lógica da base de dados inserida neste

processo. Definida como uma coleção estruturada de dados organizados para

busca e recuperação rápidas através de um computador, a base de dados é

uma nova estrutura para a codificação de experiências, que espelha as novas

formas de relacionamento entre o homem e seu mundo. A base de dados em si

não é narrativa, é uma coleção de informações que se tornam narrativas

através dos caminhos e relações que as interfaces (programas) criam a partir

dela.

De maneira simples, podemos entender que criar narrativas nas

mídias digitais, é o processo de construção de interfaces para uma base de

dados e esta passa a ser o centro do processo de criação.

A ruptura entre o conteúdo e a interface redefine a narrativa como um

caminho através desta coleção de dados organizados, definido pelo criador,

através dos links entre as informações existentes. Diferentes caminhos são

possíveis através da mesma base de dados com a criação de diferentes

interfaces (princípio da variabilidade). A narrativa interativa, ou hipernarrativa,

como a que encontramos em jogos, por exemplo, se compõe através da soma

das trajetórias possíveis, sendo, então, a narrativa tradicional um caso

particular da hipernarrativa.

Para Manovich, a mídia digital reverte a relação entre sintagma e

paradigma definida nos estudos semióticos anteriores a ela.

De acordo com o modelo formulado por Ferdinand de Saussure, em

sua teoria semiótica para o estudo e descrição de línguas naturais e depois

expandido por Roland Barthes para outros sistemas simbólicos (narrativas,

moda, etc), os elementos de um sistema simbólico podem ser relacionados a

duas dimensões:

A dimensão sintagmática, definida por Barthes como a

combinação de sinais que têm o espaço como suporte e

portanto suas relações ocorrem presencialmente ou

materialmente.

A dimensão paradigmática, que, segundo o próprio Barthes,

ocorre pela associação das unidades ou símbolos de um

sistema que possuem algo em comum e formam grupos onde

vários relacionamentos podem ser encontrados, portanto suas

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relações não são presenciais ou materiais, ocorrem no

pensamento ou na imaginação de quem decodifica a narrativa.

Na mídia digital o paradigma, ou seja, a base de dados passa a existir

materialmente e a narrativa, ou seja, o sintagma, perde sua dimensão material.

Há, portanto, uma inversão: o paradigma é real e o sintagma é virtual.

"Os elementos em uma dimensão sintagmática estão relacionados in

presentia, enquanto os elementos em uma dimensão paradigmática

estão relacionadas in absentia. Por exemplo, no caso de uma frase

escrita, as palavras que a compõem materialmente existem em um

pedaço de papel, enquanto os conjuntos paradigmáticos a que estas

palavras pertencem só existem na mente do escritor e do leitor. Da

mesma forma, no caso de uma roupa da moda, os elementos que a

compõe, como uma saia, uma blusa e um casaco, estão presentes

na realidade, enquanto possibilidades diferentemente de outras

alternativas - saia diferente, blusa diferente, jaqueta diferente - que

só existem na imaginação do espectador. Assim, o sintagma é

explícito e paradigma é implícito; um é real e o outro é imaginado" 20

(MANOVICH, 2001: p203).

Esta inversão não representa uma quebra radical com as formas de

narrar do passado, pois apesar da grande quantidade de novas possibilidades

de experimentações possíveis neste novo suporte, ainda insistimos na

linguagem sequencial dominante no século XX trazida pelo surgimento do

cinema.

Manovich nos dá uma pista do caminho a seguir, pois já que o

software determina os caminhos pelos quais navegamos através da base de

dados, devemos buscar alternativas onde, através dos softwares, a base de

dados e a narrativa trabalhem juntos, com o mesmo grau de importância.

20

Traduzido pelo autor a partir do original: "The elements on a syntagmatic dimension are related in praesentia, whilethe elements on a paradigmatic dimension are related in absentia. For instance, in the case of a written sentence, the words which comprise it materially exist on a piece of paper, while the paradigmatic sets to which these words belong only exist in writer's and reader's minds. Similarly, in the case of a fashion outfit, the elements which make it, such as a skirt, a blouse, and a jacket, are present in reality, while pieces of clothing which could have been present instead — different skirt, different blouse, different jacket — only exist in the viewer'simagination. Thus, syntagm is explicit and paradigm is implicit; one is real andthe other is imagined."

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Nunca em nossa história a chegada de uma nova tecnologia trouxe

consigo tantos novos paradigmas como a tecnologia digital de processamento

da informação.

Manovich cita Dziga Vertov21 como um precursor do uso da lógica da

base de dados no cinema e aponta seu filme Man with a movie camera de

1929 como um exemplo desta experiência.

O filme é feito sem um script definido, as imagens são captadas com

uma intenção definida, no caso pretende revelar a estrutura social de uma

cidade, e o processo de montagem do filme busca significados que espelhem a

ordem do mundo, experimentando diversas possibilidades de ordenação e

reordenação das imagens até que a sequência obtida, revele ou espelhe as

estruturas sociais da vida moderna.

O método criado por Vertov é, portanto, um passeio através de uma

base de dados. Pode-se dizer que o cineasta realiza a inversão entre sintágma

e paradígma, que Manovich atribui á mídia digital, antes da chegada desta,

quando coloca a coleção de cenas filmadas como a base de dados a ser

percorrida pelo diretor/montador que analogamente se equivale a interface pela

qual se cria tal percurso. A base de dados se torna dinâmica e objetiva,

indicando o caminho que integre base de dados e narrativa e inaugure uma

nova linguagem para o audiovisual.

A linguagem criada pelo diretor russo adquire uma nova forma a partir

dos surgimento da mídia digital que se apropria desta e a adapta para a

velocidade com que é possível consultar e usar a base de dados, que no caso

de Vertov dependia do tempo de produção e captação das cenas e da

montagem para que o filme pudesse ser visto. A mídia digital acelerou o

processo e permitiu que a montagem acontecesse durante a projeção. O tempo

real entre a criação e a exibição inaugura uma nova forma para a linguagem

existente.

Um exemplo, possibilitado pelo advento da mídia digital, da

metodologia de Vertov para a construção de narrativas audiovisuais, é o

surgimento na década de 1990 dos VJs (videojokey).

21

Dziga Vertov (1896 - 1954) Cineasta russo inventor do cine-olho ou cinema verdade.

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30

Conforme descrito por Christine Mello no livro Os Vjs e as imagens

ao vivo, inacabadas, imersivas: o corpo em partilha com a obra (2004),

este tipo de vídeo performance diz respeito à manipulação e edição de

imagens em tempo real de forma sincronizada com a música eletrônica, sob a

lógica do improviso. (2004: p154-155). As imagens escolhidas pelos VJs,

muitas vezes não possuíam relações umas com as outras, sendo compostas

por trechos ou clipes de vídeo, animações e imagens abstratas. Porém, apesar

da produção de uma narrativa não linear - sem ligação com o tempo

cronológico - e subjetiva - sem um sentido explicito ou uma história coerente e

definida - não determinava que houvesse a falta total de significados ou de

mensagens.

Sabemos que para algumas vertentes da semiótica (por exemplo, nos

percursos de sentido Greimasianos, ou na semiose Peirceana), mesmos os

encadeamentos sígnicos abstratos produzem sentidos: ritmos, reiterações,

variações, contraste, etc. Isto implica em afirmar que mesmo as construções

que não tem um enredo explícito ―narram‖ algo; não há um vazio de sentido

nestas narrativas mais fluidas e abertas.

Os VJs utilizavam a mesma linguagem audiovisual criada por Vertov,

a produção dos significados surgia através da analogia gerada pela

concatenação das imagens. Porém, tais significados podem não ser os

mesmos para todos os que assistem a projeção, pois há ―a necessidade de

elaboração de um processo de analogia entre uma e outra imagem, deixando a

cargo do público a construção final dos sentidos do trabalho‖ (2004: p64).

Mello nos dá um ponto importante para a distinção de dois grandes

tipos de narrativas possíveis:

A primeira, como citado acima no exemplo dos VJs, é não linear e

subjetiva e seus significados implícitos e extremamente ligados a interpretação

do espectador, não há uma história com personagens e diálogos.

A segunda pode ser linear - compatível com o tempo cronológico - ou

não, porém possui uma história, um enredo.

Esta história é muitas vezes identificável e até previsível pelos

espectadores, estamos falando das narrativas encontradas no cinema

comercial para o grande público.

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31

1.3.3 Narrativas objetivas e subjetivas

Tal distinção no entanto não é simples de ser estabelecida quando se

trata do cinema contemporâneo. André Parente, em seu livro Narrativa e

Modernidade (2000), faz um estudo profundo sobre o assunto. Seu objetivo é

caracterizar o audiovisual narrativo e não narrativo e apresentar os parâmetros

que ajudem a esclarecer esta questão sobre tipos de narrativas.

A partir das ideias do filósofo francês Gilles Deleuze, que escreveu

dois livros sobre o cinema e seus processos narrativos (Cinema-1: A Imagem-

movimento (1983) e Cinema-2: A Imagem-tempo (1985)) onde estabelece a

distinção entre imagem-movimento e imagem-tempo e com isso determina a

separação entre o cinema clássico e o moderno, quanto as diferentes formas

de representar o tempo, somadas as ideias de Blanchot sobre a existência de

um devir verídico, e um devir falsificante, que determinariam respectivamente

uma narrativa verídica ligada aos processos conhecidos da realidade e uma

narrativa não verídica onde o mundo conhecido se desmonta e abre espaço

para múltiplas visões de um mundo desconhecido.

"Em outras palavras, os processos narrativos/imagéticos são as

condições que explicam por que as imagens-movimento compõem a

narrativa verídica que exprime um devir único do mundo, e por que

as imagens tempo compõem a narrativa não-verídica a qual exprime

um devir múltiplo do mundo" (PARENTE, 2005: 269).

Parente mostra que as narrativas audiovisuais contemporâneas

mesclam estas duas formas de abordar o tempo e construir histórias e

demonstra a falsidade da oposição entre narrativo e não-narrativo que culmina

na generalização de cinema experimental como não narrativo, ou sem história,

e um cinema clássico ou convencional como narrativo, com história.

Parente nota que a oposição que generaliza o cinema experimental

como não narrativo e o cinema clássico como narrativo é falsa por três razões:

"o cinema, qualquer que seja ele, não tem natureza linguística,

mas propriamente imagética" (PARENTE, 2000: p. 14).

"a maioria dos processos que servem para distinguir as

imagens são, a um só tempo, imagéticos e narrativos"

(PARENTE, 2000: p. 14).

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"para compreender melhor o cinema experimental, o cinema

direto e o cinema disnarrativo, devemos abandonar as falsas

oposições. Tais oposições não são pertinentes para pensar

as várias tendências que habitam o cinema dito moderno"

(PARENTE, 2000: p. 14).

O autor demonstra, ao longo de seu livro, que na composição do que

se denomina experimental, apenas o "cine-olho", ou "cinema-matéria" de

Vertov pode ser considerado não-narrativo, ou realmente sem uma história.

"o "cinema-matéria" é o único cinema que merece ser

qualificado de não-narrativo. A razão disso é evidente: no "cinema-

matéria", o olho não é distinto das coisas e o mundo é uma matéria

quente anterior aos homens. Para que haja história e narração, é

preciso que haja imagens privilegiadas, ou seja, centros sensório-

motores (intervalo de movimento, centro de indeterminação, cérebro,

organismo vivo, homem). Se não há intervalo de movimento, não se

pode passar de imagem a outra, seja para diferenciá-las ou integrá-

las" (PARENTE, 2000: p 97).

Portanto o universo do que denominamos narrativas é amplo e

contém a maior parte do que chama-se de cinema experimental e

erroneamente entende-se como não narrativo.

As narrativas estão presentes e permeiam nossa existência e as

histórias se constroem internamente especialmente nos processos imagéticos.

Parente afirma que "as imagens são acontecimentos" (2000: p14) e estabelece

três regimes para os acontecimentos imagéticos:

I. Imagens-matérias ou imagens não narrativas: "abordadas do

ponto de vista gasoso de variação universal" (2000: p14), não

têm ligação com nossa realidade por serem anteriores a nossa

existência. Acredito que talvez esta seja a razão pela qual não

suscitam a criação de narrativas em nosso processo de

cognição.

"As imagens-matéria são acontecimentos que antecedem o homem e

sua relação sensório motora com o mundo" (PARENTE, 2000: p. 14).

II. Imagens-substantivas: que expressam uma ligação direta com

nossa realidade, ou como Parente define, "são acontecimentos

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que expressam as relações sensório motoras do homem e o

mundo" (2000: p. 14).

III. Imagens-tempo: que se formam no tempo, ou no caso do cinema,

ou dos processos narrativos imagéticos, na montagem, na

troca de uma imagem a outra. A quebra espaço-temporal que

desperta um significado ou um devir como explica Parente no

trecho abaixo:

"No regime de imagem-tempo, passar de uma imagem a outra não é

passar de um antes a um depois, é reunir o antes e o depois para

expressar um devir" (PARENTE, 2000: p. 14).

Estes dois primeiros regimes são o que Deleuze chamou de imagens-

movimentos que podem ser não-narrativas por não possuírem ligação direta

com nosso repertório sensório motor e, portanto, não despertarem o processo

mental que nos faz criar histórias. Ou podem ser imagens-movimentos

narrativas que por expressarem nossa relação sensório-motora com o mundo

despertam o processo mental que estabelece relações e constrói as histórias,

ou em resumo narrativas

Independentemente do regime ao qual o acontecimento, ou podemos

dizer a imagem, esteja vinculada - esta sempre será a expressão de um devir,

que se configurará como narrativa se houver relação com a realidade interna

ou externa, em outras palavras, a realidade percebida e a realidade pensada.

Parente conclui:

"Em cada regime de acontecimento imagético, o acontecimento é um

devir que a imagem expressa: devir coisa para as imagens-matérias,

pois passar de uma imagem a outra é pôr os olhos na matéria; devir

verdadeiro para as imagens-substantivas, pois passar de uma

imagem a outra equivale a reconhecer, julgar, universalizar, explicar,

etc.;devir falso para as imagens-tempo, pois passar de uma imagem

a outra é mostrar o que elas têm de incomensurável, de inexplicável,

de comum, de insignificante etc" (PARENTE, 2000: p. 15).

De qualquer forma, no universo do que denominamos narrativas

podemos identificar uma divisão clara entre dois tipos de narrativas possíveis.

Uma que Parente identifica como a narrativa dos "filmes veiculares", ou de

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cinema convencional, que ao longo do tempo se apropriaram de sintaxes

criadas por filmes considerados não-narrativos ou não-diegéticos, mas

possuem um sentido imediato ligado diretamente a montagem e a diegese.

Acredito que esta característica esteja diretamente ligada à relação

entre cada plano quanto a complementação de seus sentidos. Tal

complementação possui um caráter explicito, uma relação de continuidade de

forma direta ou indireta, "verdadeira" ou "falsa", ou seja, com imagens-

movimento ou imagens-tempo, que conduza a um enredo específico que conte

uma história específica que pode ser reproduzida a partir do encadeamento

dos fatos que a compõe.

Em oposição a este tipo de narrativa, Parente utiliza o termo "filmes

artísticos", ou de cinema experimental, para identificar os filmes onde as

experiências com a linguagem ou a gramática do cinema, são levadas ao seu

limite; o que não significa que os filmes produzidos não desenvolvam narrativas

porém, nestes casos, as narrativas são fluidas, gasosas, subjetivas, onde "o

sentido não adere imediatamente aos acontecimentos representados" (2000:

p26).

Aqui a relação entre os planos não é evidente, não há continuidade

explícita dos sentidos intrínsecos a cada plano que conduzam a uma história

específica, com fatos específicos encadeados. Não possuem um sentido

imediato diretamente ligado a montagem e a diegese.

Procurei sintetizar, no diagrama abaixo, a relação do cinema

convencional e do cinema experimental com os universos das narrativas e das

não narrativas:

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figura 1 - diagrama da relação do cinema com tipos de narrativas.

Esta distinção é fundamental para esta pesquisa, por permitir a

identificação de dois tipos distintos de narrativas que permitem a análise das

produções narrativas coletivas e em tempo real atuais e a identificação de uma

forma diferente das experimentadas até agora.

Conforme as considerações expostas acima, considera-se à partir de

então neste trabalho, as seguintes nomenclaturas:

Narrativas objetivas - referem-se ao cinema comercial com um enredo

ou história que se desenvolve a partir das ações e diálogos dos personagens

nas cenas que devem possuir uma ligação direta, coerente e inteligível entre si.

Narrativas subjetivas - aquelas onde o sentido, a história ou enredo

não é direto e explícito, quando a ligação entre uma cena e outra não é direta e

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óbvia como no cinema comercial e, muitas vezes, onde não há uma história

definida.

Outra possibilidade importante, que torna as narrativas produzidas na

mídia digital diferentes das do cinema analógico, é aquela onde acontece a

criação coletiva.

1.3.4 Narrativas coletivas

A produção coletiva de narrativas, direta ou indiretamente, aliadas à

possibilidade de utilização de diversas mídias em tempo real, aparece como

um caminho dos mais instigantes e inovadores por nos levar de volta, ao que

Benjamin chamou de narrativas mais naturais e com maior valor social por

englobarem as visões e experiências de várias pessoas.

É no mínimo curioso pensar que a tecnologia seja o motor que nos

leve de volta a uma visão coletiva do mundo, quando muitas vezes pensamos o

contrário.

Este retorno a valorização do coletivo pode ser identificado nas

práticas trazidas pelo Dadaísmo para a produção de arte. A estética criada pelo

movimento no início do século passado baseava-se na experimentação de

técnicas que envolviam o acaso e o "reaproveitamento" para a produção de

arte, com colagens de imagens e associação de objetos fabricados para outros

usos, criando novos significados. Nota-se um fator coletivo, mesmo que

indireto, no processo de criação, se pensarmos numa colagem de imagens

produzidas por várias pessoas diferentes que são utilizadas em conjunto para a

criação de novos significados.

Pode-se concluir, portanto, que a cultura remix é muito anterior ao

surgimento deste termo. Na verdade, é o dadaismo que inaugura a estética da

recombinação e do reaproveitamento com as produções de poemas aleatórios

e o readymade, nome dado a obras feitas pelo reaproveitamento de objetos.

Um exemplo famoso do readymade é a obra de Marcel Duchamp

intitulada "A fonte" de 1917.

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figura 2 - Obra "A fonte" de Marcel Duchamp, 191722

Tal estética vem de encontro às possibilidades surgidas na mídia

digital, possibilidades estas diretamente ligadas a forma de codificação das

informações, como descrito por Manovich, que desemboca na existência das

bases de dados e sua lógica de acesso e uso.

O surgimento da base de dados digital que contém as informações de

diversas mídias no mesmo suporte, convida ao reaproveitamento e a colagem

que, somados a facilidade e a velocidade com que a mídia digital permite que

se realize tais operações de recombinação, criaram uma nova estética, não

apenas para o audiovisual, mas para muitas formas de produção de narrativas,

entendida aqui como o conceito amplo de produção da cultura.

22

Disponível em https://egonturci.files.wordpress.com/2012/09/duchamp-fonte.jpg&imgrefurl=https://egonturci.wordpress.com/2012/09/10/a-fonte/&h=258&w=196&tbnid=2pW2OaDM5msrCM:&zoom=1&tbnh=186&tbnw=141&usg=__1TFW3Jyvv1lQN3cdqO5IqQZuZOs=&docid=3vtOLSAZBTi09M&itg=1&ved=0CMEBEMo3&ei=mEfKVM7oHqTbsATBwICIDQ, acesso em 15/01/2015.

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38

Esta passa a ser a forma de produção para muitas áreas artísticas e

criativas no final do século passado. O design em todas as suas vertentes, a

música, a gastronomia passam a utilizar a releitura como processo de criação e

as facilidades do meio digital de produção intensificaram esta tendência que

passou a ser chamada de estética remix, numa alusão a reutilização e

recombinação de elementos.

Manovich nota em seu artigo "What comes after remix?":

‖Atualmente, várias formas de estilo de vida e culturais – música,

moda, design, arte, aplicações web, mídia criada pelos usuários,

comida – estão cheias de remixagens, fusões, colagens e ―mash-

ups‖. Se o pós-modernismo definia os anos 1980, o remix

definitivamente domina os anos 2000 e irá provavelmente continuar a

dominar na próxima década" (MANOVICH, 2007).23

O autor também assinala em seu artigo que o processo de produção

remix surge primeiramente na música com as possibilidades que a tecnologia

dos mixers multipista inauguraram, passando a ser usado para todas as

formas de produção cultural com a chegada da mídia digital:

"O Remixing possuia originalmente um sentido preciso e estreito que

gradualmente tornou-se difuso. Embora precedentes da remixagem

possam ser encontrados mais cedo, foi a introdução de mixers multi-

track que fizeram da remixagem uma prática padrão. Com cada

elemento de uma canção - vocais, bateria, etc. - disponíveis

separadamente para manipulação, tornou-se possível o "re-mix" de

uma canção: alterar o volume de algumas faixas ou faixas novas

alternativas para as antigas. Aos poucos, o termo tornou-se cada vez

mais amplo, referindo-se hoje a qualquer reformulação dos trabalhos

culturais já existentes" (MANOVICH, 2007).

A estética (remix) pode ser entendida como uma forma coletiva

indireta de produção artística, já que podemos nos apropriar de conteúdos

produzidos por outros, para compor um novo objeto artístico, ou uma nova

aplicação de software com novas utilidades e significados.

23

Traduzido pelo autor a partir do original: Today, many of cultural and lifestyle arenas - music, fashion, design, art, web applications, user created media, food - are governed by remixes, fusions, collages, or mash-ups. If postmodernism defined 1980s, remix definitely dominates 2000s, and it will probably continue to rule the next decade as well.

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O VJing, citado acima como um exemplo da aplicação da lógica da

base de dados, associado as técnicas de montagem criadas por Vertov,

também é um exemplo da cultura remix e de produção coletiva indireta, pois

suas criações são montadas a partir de uma coleção de clipes, imagens e

softwares para a geração do animações, ou seja uma base de dados utilizada

para compor seu filme em tempo real.

Chamamos de produção coletiva indireta porque parte do conteúdo

que compõe a base de dados, foi produzido por outras pessoas que não

participam da criação da narrativa, muitas vezes nem sabem que suas imagens

estão sendo utilizadas para aquele fim.

Alguns VJs criam métodos de criação colaborativos mais diretos,

dando ao público a possibilidade de intervir no filme através de dispositivos

móveis como celular, tornando o filme produzido - uma criação coletiva - aonde

várias pessoas conduzem a narrativa criada e projetada na tela, o que

podemos chamar de uma narrativa coletiva direta.

O VJ Tyler Freeman produziu um aplicativo, que chamou de Layer

Synthesis Device, para a produção colaborativa de vídeo performances ao

vivo em concertos e shows. O aplicativo permite que a audiência manipule a

projeção na tela a partir de smartphones, permitindo a qualquer pessoa se

logar numa das telas ou na tela, no caso de haver apenas uma, e mudar os

vídeo clipes, animações e mesmo misturar diferentes camadas de vídeo juntas.

As modificações feitas são vistas em tempo real na tela para todo o público e

nas telas dos smartphones de quem estiver logado ao sistema.24

24

Outsourcing The VJ: Collaborative Visuals Using The Audience’s Smartphones disponível em

http://www.leoalmanac.org/vol19-no3-outsourcing-the-vj/ em 14/04/2014.

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figura 3 - apresentação do Layer Synthesis Device25

A ampliação do fator coletivo, presente na narrativa produzida no

exemplo acima, contudo não define um limite do coletivo nas produções

culturais contemporâneas, pois a base de dados (os clipes de vídeo e imagens

utilizadas na produção) tem ainda uma produção coletiva indireta, mas o

acréscimo da intervenção em tempo real no resultado revela caminhos

possíveis para a produção coletiva direta, onde a base de dados também seja

criada coletivamente.

A instauração de ambientes colaborativos para a produção de textos,

imagens, filmes, etc, encontrados na Rede Mundial de Computadores (WEB)

na forma de blogs, vídeo blogs e redes sociais, abre o caminho para a

produção de narrativas coletivas em todas as áreas, de forma não-linear e

subjetiva, na maioria dos casos.

O trabalho Webpaisagem 0 de Giselle Beiguelman, Marcus Bastos e

Raphael Marchetti. explora a estética da recombinação, remix, utilizando a

lógica da base de dados de maneira coletiva direta, recebendo o conteúdo,

composto por sons, imagens, vídeos e textos, enviados por email. Os

25

Disponível em http://www.leoalmanac.org/vol19-no3-outsourcing-the-vj/, acesso em

14/04/2014.

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41

conteúdos recebidos são inseridos na base de dados onde uma "máquina de

samplear" mixa os conteúdos. Esta "máquina de samplear" é um software que

assume aqui o papel da interface que constrói a narrativa.

A narrativa resultante é específica, porque restrita a uma região e com

uma intenção definida, porém, subjetiva; não-linear. As cenas e imagens que

compõe a base de dados podem ser vistas em diversas ordenações sem

prejuízo de sua intenção.

O objetivo é construir visões do nordeste brasileiro a partir de imagens

multimídia, num processo infinito de recombinações que produzem uma

narrativa instável e mutante. Não há uma história definida, a narrativa é

subjetiva e seus significados abertos apesar de haver um objetivo que a

conduz.

O resultado é uma criação coletiva de imagens multimídia tratada

como princípio de uma cultura de reciclagem, um remix de muitas pessoas.

É perceptível a ligação direta que estas formas narrativas têm com as

bases estruturais da mídia digital identificadas por Manovich.

Conteúdos de diversas mídias (sons, textos, imagens e vídeo) são

usados para compor a narrativa evidenciando o processo de convergência

possibilitado pela base numérica comum - a modularidade que permite a

montagem aleatória, a lógica da base de dados e a interface que escolhe o

caminho a ser percorrido.

A mídia digital trouxe o suporte com características que facilitam a

convergência e parece ser a causa de seu aparecimento, mas acredito que ela

apenas crie o cenário propício para que a convergência latente no processo de

criação do conhecimento emirja com mais força e velocidade, por ser um

instrumento midiático que possibilita a interação profunda entre as pessoas e

também com a base de dados de informações que sofre uma ampliação de

conteúdos exponencial.

Henry Jenkins diz em seu livro Cultura da Convergência (2009) que

"a convergência não ocorre por meio de aparelhos" mas "dentro dos cérebros

de consumidores individuais e em suas interações sociais com os outros".

Pode-se portanto entender a causa da convergência como uma tendência

natural implícita na forma como construímos e compreendemos nossa

realidade, porém a mídia digital e seus aparelhos são os meios pelos quais

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essa tendência se expressa de maneira mais direta, onde as interações sociais

se intensificam através da conexão constante que permite a interação ou o

diálogo e a troca de informações em tempo real.

Outro exemplo é o do projeto Telepatia de Daniel Sêda onde sobre

um argumento pré-definido, várias pessoas escrevem e produzem clipes de

filmes que aos poucos formarão um filme completo.

figura 4 - frame de um clipe do projeto Telepatia.26

A narrativa ocorre em duas frentes, uma audiovisual e outra escrita.

Nota-se que a narrativa audiovisual é subjetiva e poética. Ao se assistir os

clipes ou o filme que está se formando não é possível a compreensão da

história e de seu argumento, porém a narrativa escrita se mostra mais definida

sobre este aspecto. Parece-me que os filmes funcionam como ilustração da

narrativa, que após compreendida através dos textos se torna identificável nas

imagens.

Neste caso, há um argumento definido e personagens podem surgir.

Apesar disso, o objetivo final não é a produção de uma narrativa com uma

história definida, identificável e mesmo previsível pelos espectadores. A

proposta é de uma narrativa não-linear e subjetiva, ou mesmo nas palavras do

grupo: uma narrativa de "atos orquestrados de terrorismo poético"27. "Este é

26

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Q2SNzO3R4Qk, acesso em 17/05/2014. 27

Disponível em http://telepatia.blogspot.com.br, acesso em 17/05/2014.

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um projeto lítero-audio-visual que esta lentamente produzindo um longa-

metragem não-linear experimental... "28

É interessante notar que o argumento inicial para o filme seja o

desenvolvimento de capacidades telepáticas de um grupo de pessoas que

iniciam uma sociedade paralela. Tal argumento vem de encontro às ideias de

Jenkins sobre a convergência como tendência natural da cultura humana e não

necessariamente ligada aos avanços da tecnologia.

Se tivéssemos essa capacidade a interação e conexão constantes

entre as pessoas também nos levariam a convergência que assistimos ocorrer

hoje.

Um exemplo diferente de narrativas coletivas possíveis com a

evolução da tecnologia, é o aparecimento do Mídia Ninja.

O Mídia Ninja é um grupo independente que se propõe a produzir

narrativas jornalísticas fora do circuito da grande mídia e, que por não

possuírem vínculos com grupos econômicos, produziriam um jornalismo mais

transparente.

A palavra NINJA é uma sigla que significa Narrativas Independentes

Jornalismo e Ação. Possuem um canal de TV na Web onde transmitem e

publicam as reportagens gravadas e transmitidas por celulares de fatos e

ocorrências das cidades.

Neste caso as narrativas produzidas são coletivas e objetivas, pois

narram um fato real, com a intenção informativa. A história a ser contada não é

criada pelos participantes. A narrativa se constrói a partir do registro de uma

história em tempo real como uma somatória das visões de quem as está

registrando, trata-se do registro coletivo de uma história ou acontecimento real

e não da criação coletiva dela.

Por ser nossa realidade construída a partir da interpretação que cada

indivíduo faz do mundo, baseado em seu próprio repertório, ou pode-se dizer,

de sua própria base de dados, esta pluralidade de visões, aliada a falta de um

vínculo institucional, teoricamente ligado a interesses econômicos, é que

permite um jornalismo mais transparente e mais próximo da realidade coletiva.

28

Disponível em http://telepatia.blogspot.com.br em 17/05/2014.

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A seguir veremos uma forma de construção coletiva de narrativas

audiovisuais em tempo real que surge com a mídia digital: o Live cinema.

1.3.5 Live cinema

Uma das formas narrativas surgidas sob evidente influência das

tecnologias digitais foi o Live cinema. Esta forma de narrativa audiovisual é de

difícil definição, pois abarca vários estilos onde o remix é uma característica

comum, mas diferentemente do VJing, o Live cinema parece ser mais autoral e

artístico, principalmente na produção da base de dados, ou seja, do material

que será usado na composição do filme.

O remix é apenas uma das possibilidades exploradas pelo Live

cinema, pois em muitos casos as imagens são produzidas pelos autores que

usam, portanto, imagens inéditas pré-gravadas ou captadas ao vivo e até

mesmo imagens produzidas automaticamente pelo computador ou arte

generativa29.

Mia Makela evidencia esta diferença em sua dissertação de mestrado

Live Cinema: Language and Elements:

"O termo LIVE CINEMA é usado para descrever um trabalho que é artístico em essência, para distingui-lo do VJing, que é basicamente DJing visual. DJs não produzem seu próprio material, eles misturam música, da mesma forma como VJs misturam material já existente. Isto não significa que VJs não podem criar seus video-clips, mas muitos consideram que não é necessário, para um VJ, produzir seu próprio material já que apresenta principalmente as correntes visuais contemporâneas de nossa cultura. Também existe um mercado para compra e venda de vídeo -clips. Isto significa que muitos VJs podem usar os mesmos clipes, nestes casos, o conteúdo não é tão importante quanto a sua usabilidade em uma mistura. O ato de mixar e selecionar torna-se o trabalho de um VJ. DJs fazem o mesmo, eles escolhem certo tipo de música e amostras, batida e estilo, como techno, house ou drum'n'bass. Criadores de Live Cinema parecem ser mais pessoais e artísticos do que os VJs" (MAKELA, 2006: p.23).

30

29

Arte generativa: termo usado para se referir a arte gerada a partir de algoritmos de computador.

30 Traduzido pelo autor a partir do original: "LIVE CINEMA describes work in which is in

essence artistic, to make a separation from VJng, which is basically visual DJing. DJs don’t produce their own material, they mix music, the same way as VJs mix already existing material. This does not mean that VJs would not also create their video-clips, but there are many who consider that producing material it not necessary for a VJ, who mainly presents the contemporary visual currents of our culture. There also exists a market for selling and buying video-clips. This means that many VJs can use the same clips. In these cases, content is not as important as its usability in a mix. The act of mixing and selecting becomes the work of a VJ. DJ’s do the same, they choose certain type of music and samples, beat and style, like techno, house or drum'n'bass. Live cinema creators' goals appear to be more personal and artistic than VJs"

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Outra diferença do Live cinema para o Vjing se encontra na variação

de formas das performances que se distinguem quanto ao:

Espaço das projeções: podem ocorrer em salas fechadas ou

espaços abertos e públicos.

Suporte das projeções: podem ocorrer sobre telas, prédios,

esculturas.

Técnica de projeção: com o uso de um ou mais projetores,

imagemapping, etc.

Imersão e participação do público.

Tipo de mídias e misturas de linguagens artísticas entre outros

fatores.

Analisando definições de Live cinema, dadas por autores e

produtores, nota-se que, por mais abrangente que sejam, não incluem todas as

possibilidades que as combinações de tantas variáveis proporcionam.

Talvez este seja um dos motivos da dificuldade de construção de uma

linguagem baseada nas características específicas do meio, pois não há

especificidade de características, mas a multiplicidade e a metamorfose que

produzem novas formas constantemente.

Em coluna publicada na revista do cinema brasileiro, Luiz duVa31

define o Live cinema da seguinte maneira:

"O termo "LIVE CINEMA‖ ou ―Cinema ao Vivo" foi usado

originalmente para classificar uma sessão de cinema silencioso que

tinha a execução de música ao vivo durante a sua apresentação.

Mas isso foi no início do século passado, hoje o termo "LIVE

CINEMA" diz respeito à execução simultânea de imagens, sons e

dados por artistas visuais, sonoros ou performáticos que apresentam

suas obras ao vivo diante da platéia. São apresentações onde a

improvisação e o acaso fazem parte de um processo que resulta na

possibilidade de criação e vivência, por parte do público, de uma

31

Luiz Duva é um artista experimental no campo da videoarte, performance e novas mídias que

desenvolve desde o início dos anos 1990. Narrativas pessoais em vídeo, bem como uma série de experiências com videoinstalações. Do ano de 2000 para cá vem se dedicando ao Live Images, termo por ele cunhado para designar a manipulação de imagens e sons em tempo real em ambientes imersivos, à criação e apresentação de composições audiovisuais, de projetos de Live Cinema e ao desenvolvimento de conteúdo para diferentes mídias: TV, internet e celular. Duva também é um dos criadores e o diretor artístico da Mostra Live Cinema, mostra de performances audiovisuais que acontece anualmente no Brasil desde 2007

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experiência audiovisual expandida, agora mais do que nunca,

também entendida como sensorial e imersiva" (DUVA, 2014).

O professor e artista experimental Marcus Bastos deixa claro que a

construção narrativa ocorre em tempo real .

" O termo é amplo, e se refere à vertentes do audiovisual

contemporâneo em que a construção da narrativa é sincrônica aos

acontecimentos que nela se desenrolam, seja de forma roteirizada ou

a partir de improvisos" (Marcus Bastos, disponível em

http://contradiccoes.net/post/live_cinema/ em 16/05/2014).

Assim como o cinema convencional, o Live cinema também é uma

arte cuja produção é coletiva.

No cinema convencional, um diretor não produz o filme sozinho

porém, coordena a equipe com a intenção de produzir uma narrativa

específica, geralmente objetiva apesar de não necessariamente linear, com

uma história construída a partir de diálogos e personagens. A equipe produz o

filme e não a narrativa.

No Live cinema, as performances podem ser individuais, mas na

grande maioria dos filmes a narrativa é feita por vários artistas produzindo

imagens, sons, atuando com o corpo, etc. A produção coletiva inclui a produção

da narrativa do filme que, ao contrário do cinema convencional, geralmente é

subjetiva.

Talvez porque o Live cinema seja uma arte experimental e siga a

tradição do audiovisual experimental com suas origens no surrealismo e nas

experiências com o vídeo de Nam June Paik32 onde não há vazios de

significados, porém apesar de existir uma narrativa, não existem personagens

nem diálogos que construam uma história com começo, meio e fim. A narrativa

é diferente para cada espectador, pois é decodificada por cada um com seu

próprio repertório de experiências e conhecimento, em conjunto com a

composição de seus sentimentos sobre a vida e o mundo.

Contudo no cinema experimental o mesmo filme é repetido a cada

exibição, sem a possibilidade de re-significação por parte do autor ou autores,

o que o difere profundamente do Live cinema onde a cada exibição um novo

32

Artista coreano considerado um dos fundadores da vídeo arte.

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47

filme se cria com a nova montagem, a partir de uma base de dados pré-

construída para esse fim, com um argumento pré-definido na forma de um

roteiro aberto a mudanças ou uma história já criada e apresentada de forma

diferente a cada exibição.

Vale lembrar que a sintaxe da narrativa cinematográfica vem sendo

construída desde o surgimento das tecnologias que permitiram produzir

imagens em movimento e, portanto, estruturas narrativas criadas no cinema

experimental são incorporadas ao filme, porém sem prejuízo da condução da

história ou enredo que em filmes veiculares tem um sentido direto e objetivo.

Reforça-se então a definição proposta no ítem 1.3.3 deste capítulo, onde

colocamos as narrativas objetivas, ou de cinema convencional, como o tipo de

narrativa que o cinema comercial utiliza, onde o espectador vivencia uma

história de ficção com um enredo de fácil entendimento com uma história que

possua começo, meio e fim definidos.

A pergunta que fazemos é: será possível fazer Live Cinema com uma

narrativa objetiva, como a do cinema convencional a partir de uma base de

dados inexistente? É importante deixar claro que estamos nos referindo a uma

história nos moldes do cinema convencional, com personagens que interagem

e vivem um enredo com objetivos e conflitos, que componham uma história

objetiva que seja compreendida de forma parecida por todos que a assistam.

Que tipo de história se produziria? Uma história com vários autores.

Uma autoria diluída, somatória de intenções e visões diferentes. Talvez, mais

uma ramificação ou estilo e mais uma forma ou linguagem a se criar e definir.

CAPÍTULO 2. A QUESTÃO DA AUTORIA

O conceito de autoria existe para qualquer produção ou criação

humana seja ela artística, científica, técnica, etc. A construção de nosso corpo

cultural e de conhecimento está estruturada na recombinação de

conhecimentos acumulados, como tijolos que constituem uma parede - a

evolução de nossa cultura é alicerçada pelos tijolos e teorias anteriores que,

recombinadas e agregadas a novos conhecimentos, produzem novos conceitos

e teorias realimentando essa evolução.

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48

A autoria individual é, portanto, um conceito discutível nos colocando

dentro de uma discussão longa e inacabada porque navega por limites

desfocados. Como determinar a importância da contribuição de ideias ou

conceitos anteriores para a nova construção a ponto de configurarem uma

participação autoral?

Percebe-se que este é um questionamento antigo iniciado com

Mallarmé e presente na obra de filósofos como Barthes e Foucault. Estes

questionamentos se intensificam com a chegada da mídia digital e suas

infinitas possibilidades de interação.

Os pesquisadores e professores Lucia Santaella e Arlindo Machado

apresentam parâmetros fundamentais para a amplitude dessa discussão com

relação as novas mídias, e o pesquisador e professor Antônio Miranda

apresenta uma visão focada nos parâmetros práticos para a determinação da

autoria ligada a questão de direitos autorais sobre a obra.

Isaac Newton, o famoso cientista em sua célebre frase "se vi mais

longe, foi por estar de pé sobre os ombros de gigantes", alude à importância da

contribuição de seus antecessores e suas teorias para que chegasse a suas

próprias formulações.

Estas reflexões têm uma variedade imensa de ramificações que

podemos levar para o âmbito da multidisciplinaridade ou da

interdisciplinaridade da autoria.

A influência das ciências sobre as artes já é uma questão discutida há

muito tempo. Evoluções tecnológicas revelam novos aspectos da realidade e

provocam novos pontos de vista que se refletem na produção artística, já que o

artista é um indivíduo inserido numa sociedade e influenciado por sua cultura

(narrativas que influenciam narrativas). Santaella afirma:

"Antes da revolução digital, também já existia uma repercussão, em

maior ou menor intensidade, das descobertas científicas sobre as

artes. Basta lembrar a influência sobre a pintura expressionista das

pesquisas científicas relativas ao funcionamento da visão humana"

(SANTAELLA, 2007: p.78).

Arlindo Machado ressalta que as pesquisas do fisiologista francês

Etienne-Jules Marey, com seus aparelhos para registro de imagens sucessivas

denominados cronofotógrafo e o fuzil-fotográfico, em conjunto com as

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experiências do fotógrafo Eadweard J. Muybridge com multiplas câmeras, para

o registro e o estudo da anatomia do movimento dos animais, conduziram à

criação do cinema ou da imagem em movimento na tela.

A intenção de Marey e Muybridge, ao registrar imagens sucessivas,

era congelar o movimento para poder estudá-lo a partir de uma visão

decomposta de cada etapa corporal que o compunha. O fotógrafo inglês

registrou o galope de um cavalo em fotogramas sucessivos permitindo a visão

do momento em que as quatro patas ficam no ar durante um galope.

figuras 5 - The horse in motion de Eadweard J. Muybridge.33

Tais pesquisas possibilitaram, através da técnica de fotos sucessivas,

uma nova visão do mundo e, muito mais do que inspirar o cinema ou o

movimento natural na tela, influenciaram as artes como um todo.

Na medida em que muda o contexto onde se inserem os artistas, a

arte produzida passa a refletir a mudança. No caso, através da tecnologia,

33

Disponível em

http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/73/The_Horse_in_Motion.jpg, acesso em

29/01/2015.

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50

amplia-se a compreensão do mundo; e a compreensão ampliada inspira novas

visões, concretizadas em obras ou movimentos estéticos. Machado afirma:

"Ao mesmo tempo, esses mesmos homens vão também inspirar

menos o espetáculo cinematográfico do que a arte moderna: os

futuristas, como se sabe, utilizaram a cronofotografia para cantar as

belezas do movimento e da velocidade, ao passo que um dadaísta

como Marcel Duchamp - cujo Nu descendantl'escalier é uma criação

explícita do método de Marey - travou contato direto com as

experiências cronofotográficas por meio de seu irmão Raymond,

aluno de Londe na Salpêtrière" (MACHADO, 1997: p.18).

figuras 6 e 7 - cronofotografia de Étienne Jules Marey 1952

e reprodução de pintura de Marcel Duchamp de 1912.34

É claro que estas influências estão longe de serem consideradas co-

autorias, mas demonstram o caráter coletivo de qualquer criação da era

34

Disponível em

http://www.gianluigigargiulo.it/ricerca/cronofotografia/index_cronofotografia.htm,

acesso em 20/06/2014.

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51

moderna, na medida em que as ideias se constroem ou fundamentam-se a

partir de ações e conceitos anteriores somados a influências do presente.

Lucia Santaella contextualiza o autor individual a partir das reflexões

de Foucault sobre a autoria. Partindo da pergunta: "o que é um autor?",

Foucault lembrou "a necessidade de localizar, como lugar vazio, os espaços

em que se exerce a função de autor, as funções livres que seu

desaparecimento faz aparecer" (apud SANTAELLA, 2007: p72), ao invés de se

ater ao debate dominante no contexto intelectual da época, cujo foco estava no

desaparecimento do autor como estabelecido até então.

Para Foucault o fundamental para a caracterização da função de

autor, é a distinção entre o nome próprio e o nome do autor que têm em

comum a função descritiva e designadora da origem de um conteúdo, porém se

distinguem pela existência de um "nexo claro entre o nome próprio e o

indivíduo nomeado, ao passo que não há isomorfia e um funcionamento similar

entre o nome do autor e aquilo que se nomeia, funciona para caracterizar um

modo de ser do discurso" (apud SANTAELLA ,2007: p73).

O autor tem a função classificatória que determina a importância do

texto dentro de um contexto social e o diferencia de textos cujo conteúdo seja

cotidiano e transitório.

Para Foucault a noção de autor "constitui um momento forte de

individuação na história das ideias, dos conhecimentos, das literaturas, também

na história das filosofias e das ciências" (apud SANTAELLA ,2007: p71). Tal

individuação se faz necessária num primeiro momento para a identificação da

fonte das ideias principalmente quando transgressivas e, portanto, perigosas

para o equilíbrio da ordem vigente. Santaella afirma:

"Historicamente, os textos, os livros, os discursos só tinham autores

quando eram transgressivos, e, então o autor era objeto de castigo.

Na nossa e em muitas culturas o discurso não era originalmente um

produto, uma coisa, um bem, mas, sim, um ato entre o sagrado e o

profano, entre o lícito e o ilícito, portanto um ato carregado de riscos"

(SANTAELLA, 2007: p.73).

A individualidade da autoria parece-me mais importante, hoje em dia,

quando se considera o aspecto econômico, capitalista, onde a determinação de

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um autor identifica o proprietário de um conceito ou ideia e, portanto, determina

o destino dos possíveis ganhos econômicos proporcionados por esta.

A autoria individual tem suas bases na difusão e exacerbação do

individualismo, somado a questões econômicas relacionadas ao direito autoral.

O professor Antonio Miranda aborda esta questão:

"A autoria é uma instituição em crise. Analisando-a em perspectiva, é

possível afirmar que está sujeita a interpretações diversas e até

divergentes em níveis de conceito e de práxis, em uma abordagem

multidisciplinar. Sempre esteve atrelada às noções de cultura e

ciência em que se desenvolveu, mas é na civilização ocidental,

sobretudo com o advento do liberalismo, do capitalismo e do

individualismo triunfantes, que a autoria ganhou foros de direito e as

áureas da sociedade. O estatuto do direito autoral configura-se como

reconhecimento máximo legal e social do indivíduo autor como

detentor de propriedade intelectual de valor econômico e de caráter

hereditário. Várias pesquisas européias sobre economia da cultura

demonstram que os benefícios do copyright em termos econômicos,

no entanto, conforme aponta Canclini(2008), vão satisfazer muito

mais os investidores que propriamente os criadores dos produtos

culturais" (MIRANDA, 2006: p.1).

Roland Barthes constata em seu texto "A morte do autor", que a

autoria pode ser contestada desde a antiguidade clássica, quando o texto já

era construído de forma ambígua e aberta a interpretação do leitor ou ouvinte,

que nesse sentido passa a ter participação "autoral" na medida em que insere

significados pessoais ao sentido do texto.

"Um exemplo, bastante preciso, pode fazê-lo a compreender:

investigações recentes (J.-P. Vernant) trouxeram à luz a natureza

constitutivamente ambígua da tragédia grega; o texto é nela tecido

com palavras de duplo sentido, que cada personagem compreende

unilateralmente (este perpétuo mal-entendido é precisamente o

«trágico»); há contudo alguém que entende cada palavra na sua

duplicidade, e entende, além disso, se assim podemos dizer, a

própria surdez das personagens que falam diante dele: esse alguém

é precisamente o leitor (ou, aqui, o ouvinte)" (BARTHES, 2004: p.70).

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Acredito que as ideias de Barthes sobre a autoria com relação aos

textos, podem seguramente ser transportadas para as questões de autoria

relativas ao audiovisual e as novas mídias.

"Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas

múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as

outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em

que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como

se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se

inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que

uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem,

mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o

leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é

apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os

traços que constituem o escrito" (BARTHES, 2004: p.70).

A incorporação da interatividade amplifica a participação do espectador

na composição da narrativa tornando sua participação diretamente ligada aos

resultados. Barthes já havia sinalizado a morte do autor individual, gerada pela

intertextualidade da relação dialética entre o leitor e o texto, onde os

significados dependem da interpretação do leitor ao conteúdo escrito.

"Começamos hoje a deixar de nos iludir com essa espécie de

antifrases pelas quais a boa sociedade recrimina soberbamente em

favor daquilo que precisamente põe de parte, ignora, sufoca ou

destrói; sabemos que, para devolver à escrita o seu devir, é preciso

inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a

morte do Autor" (BARTHES, 2004: p.70).

Porém, não se trata da morte do autor, mas do nascimento de um novo

tipo de autoria, onde o leitor/espectador preenche os espaços deixados,

conforme sinalizado por Foucault, pela constatação de que, o que chamamos

de autor até hoje, é o instrumento pelo qual convergem as ideias.

Barthes, assim como Foucault, identifica o início da crise da autoria

em Mallarmé quando este percebe que a linguagem, ou seja, o meio através do

qual se constroem as narrativas, é o verdadeiro autor; como se pode notar no

trecho abaixo:

"sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a

necessidade de pôr a própria linguagem no lugar daquele que até

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então se supunha ser o seu proprietário; para ele, como para nós, é

a linguagem que fala, não é o autor; escrever é, através de uma

impessoalidade prévia - impossível de alguma vez ser confundida

com a objetividade castradora do romancista realista -, atingir aquele

ponto em que só a linguagem atua, «performa»,. e não «eu»: toda a

poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da

escrita" (BARTHES, 2004: p.66).

A impessoalidade colocada como meta na arte moderna, a partir das

ideias de Mallarmé, não representa necessariamente uma renúncia a autoria,

mas sim um "recurso de sustentação da autoridade autoral quando a unidade

da autoria individual se deteriora" (BUCH-JEPSEN, 2002: p.78).

Tais questões relativas à autoria, apesar de concentradas na figura do

autor literário e anteriores ao surgimento das mídias eletrônicas, anteciparam

questões relativas a autoria, que o advento da interatividade, inerente as

mídias digitais, levanta com mais veemência. Aqui o leitor, ou o consumidor da

narrativa, participa da criação de forma direta e influencia sua condução até o

desfecho.

A multiplicidade de formas de interação que vão dos games até a

produção de conteúdos de forma colaborativa, ou mesmo a facilidade que o

uso da base de dados coletiva proporciona para a busca e construção de

novos conceitos, teorias ou obras, exigem um novo olhar sobre a ideia de

autor. O autor se dilui e passa a ser um condutor que instiga a produção de

uma narrativa numa certa direção, sem que com isso determine um desfecho

ou conclusão. De certa forma podemos dizer que as narrativas passam a ter

vida própria e, o autor, como o maestro de uma orquestra, o fio condutor

através do qual se cria uma narrativa com caráter impessoal.

Experiências feitas durante o surrealismo, como as narrativas

aleatórias de Tristan Tzara já indicavam um caminho onde a figura do autor,

como detentor do poder sobre a mensagem de uma narrativa ou de sua própria

constituição, se diluía através da concatenação aleatória de fragmentos de

outros autores. Miranda expõe este pensamento:

"Fernando Pessoa dizia que não se escreve com ideias, mas com

palavras, pretendendo dizer que as palavras é que moldam as ideias.

Tristan Tzara, o revolucionário dadaísta, deu um exemplo curioso da

inversão no processo criativo. Ordinariamente o criador parte de sua

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experiência para construir seu discurso com as palavras e outros

signos que considera válidos para a representação das ideias. Tzara

recortava palavras de textos alheios, jogava os pedaços de papel em

um balde e depois, aleatoriamente, ia construindo novos e inusitados

textos..." (MIRANDA, 2006: p.6).

Tais exemplos nos permitem uma analogia direta com as formas

modernas de produção de conhecimento, inclusive no que tange a produção de

interfaces programadas para acesso a base de dados das mídias digitais.

A princípio, formatar um conteúdo e publicá-lo na rede mundial de

computadores era uma tarefa que exigia conhecimento profundo de

programação, funcionamento dos computadores e de redes. Apenas

programadores ou técnicos conseguiam produzir programas que executassem

tarefas ou gerassem interfaces para acesso aos dados de maneira lógica e

formatada.

Hoje em dia, é possível escrever um programa aplicativo, ou construir

um website com animações em HTML 5 disparadas através da interação com o

usuário, sem que haja a necessidade desses conhecimentos.

O programa MUSE da Adobe Systems é um exemplo claro desta

evolução, pois com ele é possível construir um site, como o citado acima, sem

conhecimentos de programação html, css e javascript. Pode-se também notar

tal relação também na construção de artes finais para a mídia impressa, onde o

usuário trabalha sem o mínimo conhecimento do postScript, que é a linguagem

de codificação das páginas no final.

Nestes exemplos, a autoria da página ou do site é atribuída a quem o

construiu, porém os códigos que permitiram sua construção foram escritos por

um número, às vezes, incalculável de pessoas e a função do autor foi a de

escolher e aplicar o código segundo sua intenção pessoal.

Um exemplo semelhante é o do website www.wolfram.com que se

apresenta como uma linguagem de programação baseada numa biblioteca de

códigos pré-programados e possíveis de serem combinados para produzirem

novos programas aplicativos.

Através de uma interface que permite de forma interativa e fácil a

composição de novos programas, os usuários não precisam possuir o

conhecimento de programação ou de uma linguagem específica para produzir

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o aplicativo, que se compõe através dos conhecimentos codificados por outras

pessoas e concatenados, ou agrupados, de maneira diferente pelo usuário

autor. Trata-se, portanto, de uma linguagem de programação onde a autoria do

programa passa a ser coletiva num outro sentido, já que a pessoa que elabora

o programa através das concatenações de programas pré-criados, terá a

sensação de ser um autor único, mas o desenvolvimento do software contou

com uma legião de programadores/autores.

A diferença está no fato de que um software é geralmente escrito em

equipe e tem sua autoria reconhecida como tal, a codificação do conhecimento

na forma de programas de computador vela a participação de quem codificou

tal conhecimento que passa a ser percebido como próprio de quem o utiliza.

O processo de autoria necessita, então, de uma revisão, onde o

processo de produção e a capacidade de geração de novos conhecimentos, à

partir de novas relações entre os conhecimentos já produzidos, sejam levados

em consideração para sua determinação. Miranda afirma:

"Numa etapa final, a autoria seria mais ―inteligente‖ no sentido de sua

construção e projeção social mediadas pelas novas tecnologias da

informação. Exemplificando, os novos autores não partiriam apenas

das próprias experiências e reflexões pessoais, mas ampliariam isso

valendo-se dos recursos informacionais disponíveis em rede assim

também, e sobretudo, pela capacidade de gerar conhecimentos

novos pelas relações desenvolvidas no processo produtivo com as

ferramentas de autoria.

Na prática significa aliar a autoria do texto com o processo de

pesquisa de fontes de informação durante o processo de redação e

produção com a ajuda da ontologia" (MIRANDA, 2006: p.7).

Percebemos que o modo remix de produção cultural, como definida

por Manovich, é o eixo central, a forma básica de produção de conteúdo de

nossos tempos, evidenciada pelo advento das mídias digitais que explicitam o

processo remix de criar, iniciado com as experiências das produções

surrealistas do início do século.

O autor se torna uma figura de difícil definição e análise, mas em sua

resposta a esta questão, Manovich nos dá uma pista sobre os possíveis

critérios para a determinação do conceito, diante desta nova realidade:

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"Existem tantas e diferentes formas de remix, fusões, mash-ups e

assim por diante, que eu penso que tentar fazer algumas afirmações

gerais sobre autoria em relação ao remix seria uma ilusão. Mas, em

um nível geral e abstrato, posso afirmar que um bom remix é um

diálogo entre o autor do remix e os autores dos trabalhos que estão

sendo remixados. E, já que muito frequentemente os próprios

músicos remixam suas músicas e letras antigas, o remix pode ser

também um diálogo com o meu próprio eu antigo" (MANOVICH apud

SILVA, 2012).

Entendo, portanto, que a autoria de uma história, ou uma narrativa

objetiva de maneira coletiva, representa um passo adiante nesta discussão,

porque coloca o autor individual de forma diluída num contexto coletivo de

produção.

A construção e o desenvolvimento de uma história, com enredo,

coletivamente, desfoca ainda mais a figura do autor individual, mas mantém a

função aglutinadora de ideias e indicativa de um estilo ou talento, que o

conceito de autoria encerra, porém agora, de um grupo e não de um indivíduo.

Como exemplo deste tipo de autoria, podemos citar o coletivo de

artistas Chelpa Ferro do Rio de Janeiro, composto em 1995 pelos artistas Luiz

Zerbini, Barão e Sérgio Mekler. O grupo se auto define como um coletivo

multimídia que realiza trabalhos onde se mesclam experiências com música

eletrônica, artes plásticas e tecnologia, com apresentações ao vivo

(performances) e exposições (instalações).

figuras 8 - Shelpa Ferro - 100m Rasos, Haus der Kulturen der Welt, Berlim, 2006.35

35

Frame extraído do DVD que acompanha o livro Chelpa Ferro editado pela Imprensa Oficial

do Estado de São Paulo.

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Diferentemente da autoria coletiva de um remix, a autoria das obras

do Chelpa Ferro é efetivamente coletiva, desde o nascimento da ideia até sua

execução. A intenção é coletiva e a obra não é construída a partir de uma base

de dados pré-existente, portanto se trata da mistura de habilidades,

conhecimentos e intenções que se personificam como um produto multimídia,

seja ele uma performance ou uma instalação.

O resultado final é fruto da integração dos conhecimentos de física,

artes plásticas, música, etc, de cada um.

É a somatória das habilidades e interesses dos artistas, em

permanente diálogo, que determina os caminhos da peça que está sendo

construída e esta, independente do formato, é uma narrativa. Neste caso, não

uma narrativa objetiva, porém com "um" autor coletivo batizado com o nome de

Chelpa Ferro. O autor não desaparece, mas não é possível, aqui, atribuir-se a

autoria a um indivíduo.

CAPÍTULO 3. EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DE

NARRATIVAS COLETIVAS

Ao longo de nossa história podemos colher diversos exemplos de

narrativas produzidas de forma coletiva. Desde os estudos promovidos pelos

surrealistas com textos e imagens até o momento presente, onde as novas

tecnologias abrem as portas para produções coletivas em todos os níveis.

Este capítulo apresenta a descrição e análise, de quatro exemplos de

narrativas produzidas coletivamente, com relação ao tipo e as técnicas

empregadas em sua construção.

Para esta análise foram escolhidos dois exemplos específicos de Live

cinema extremamente baseados na lógica da base de dados e outros dois que

envolvem a interatividade e multiplicidade de participantes e a realização pura

de uma história em tempo real sem o auxílio de novas tecnologias

respectivamente. Considera-se a escolha destes exemplos significativa para a

identificação de características específicas do meio digital e da produção

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coletiva em tempo real, que possam nos conduzir á proposição de um novo

método.

STORM de Luiz duVa36

figura 9 - apresentação de storm.37

Storm é uma composição audiovisual sobre a relação do ser humano

com o desconhecido; coloca-nos frente a frente com os medos e as angústias

que sentimos quando experimentamos a incerteza e a imponderabilidade e as

maneiras que encontramos para superar ou transpor esses obstáculos,

apresentada em um espetáculo de improvisação multimídia.

O público é acomodado na sala de projeções, preferivelmente, não

em cadeiras, mas em almofadas e colchonetes espalhados pelo chão bem

próximo e abaixo da tela. Desta forma imagens, sons e público se misturam

num espaço comum que transcende a tela de projeção e ocupa todo o espaço

físico em torno colocando o público como protagonista.

Luiz duVa compõe o filme ao vivo a partir de centenas de pequenos

arquivos de vídeo captados por ele com paisagens da Mata Atlântica brasileira

e da costa das praias do sul da Inglaterra, que são concatenados de forma

36

Composição audiovisual de luiz duVa; Nas imagens: Benito Karmonah e luiz duVa;

Composição sonora de Manuel Pessôa; Direção de Fotografia: Azul Serra; Assistência de

direção: Cecília Engels: Agradecimentos: Clélia e Líbero Malavoglia.

37 Disponível em http://liveimages.com.br/www.liveimages.com.br/Storm_Ok.html, acesso em

22/12/2014.

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frenética na tela, com sobreposições e efeitos aplicados sobre as imagens,

produzindo um forte impacto visual e emocional.

O áudio também é processado ao vivo pelo compositor Manuel

Pessôa, a partir de samplers previamente produzidos, que são usados para

compor uma nova trilha a cada apresentação do espetáculo.

Como não há um roteiro concreto a ser seguido, a interação entre as

imagens e sons, nem sempre sincronizada, cria espaço para que o jogo, entre

o que se vê e o que se ouve, revele as sensações específicas que cada um de

nós sente frente ao desconhecido.

Neste sentido a imersão adquire um papel fundamental na

composição da obra como forma de intensificar e complementar as sensações

provocadas pelas imagens.

"Em STORM vemos aos poucos uma tempestade se formar e

explodir sensorialmente para fora da tela. Quando ela passa estamos

diante de um homem que aos poucos é conduzido ao interior de uma

floresta, rumo à escuridão. Adentrar a selva em STORM é mergulhar

num misterioso mundo interior e aqui, a despeito de toda

fragmentação apresentada pelo ritmo e encadeamento das imagens,

e de toda a força da natureza que se manifesta, surge um traço

narrativo: o percurso mítico do Herói – das trevas à superação"

(DUVA, 2012) .

Este é um exemplo de Live cinema com uma narrativa subjetiva, um

tipo de cinema que podemos chamar de experimental, como definido acima

através dos estudos de André Parente. Não há uma história definida com

personagens e acontecimentos como as narrativas objetivas do cinema

convencional, o artista constrói uma narrativa da sensação.

Pode-se prever neste exemplo que, ao final de cada apresentação,

várias narrativas foram desenvolvidas individualmente por cada pessoa que

assistiu ao espetáculo. Cada um percorre seus próprios caminhos a partir do

"gatilho" inicial: O medo do desconhecido.

Quando o filme se inicia e imagens e sons começam a se suceder na

tela, as sensações são particulares, determinadas pela experiência acumulada

por cada um em sua relação pessoal com a imponderabilidade da vida. Existe,

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portanto, um enredo comum, mas este se bifurca em várias histórias diferentes

definidas não por palavras, mas por sensações.

Nota-se aqui, a ligação do Live cinema com as ideias do cineasta

Dziga Vertov e sua teoria sobre o "cinema das sensações" onde as imagens

colhidas pela câmera seriam expressões mais claras e precisas da realidade

em comparação com o olho humano.

"Eu posso forçar o espectador a ver esse ou aquele fenômeno visual

do modo como me é mais vantajoso mostrá-lo. O olho submete-se à

vontade da câmera e deixa-se guiar por ela até esses momentos

sucessivos da ação que conduzem a cine-frase para o ápice ou o

fundo da ação, pelo caminho mais curto e claro" (PERNISA, 2010: p.

98).

O cinema convencional, com suas narrativas objetivas, também utiliza

esta linguagem subjetiva e, a rigor, todos os tipos de narrativas sejam elas

subjetivas ou objetivas, têm esta característica, os sentidos e significados

compreendidos ao final são diferentes para cada espectador porque cada um a

decodifica com base em sua experiência e conhecimentos acumulados.

Porém, pode-se dizer que a narrativa subjetiva abre um espaço maior

para as interpretações pessoais que a narrativa convencional, pois os sentidos

são mais abertos, a história contada pela narrativa não é conduzida através de

uma relação de causa e efeito explícita entre as cenas. A maior parte da

relação entre as cenas é feita por quem assiste ao contrário da narrativa

objetiva onde esta relação é mais explícita e conduzida a um sentido

específico.

No caso de Storm, não há uma história com começo meio e fim, a

intenção é colocar cada um em contato com o medo do desconhecido e não

contar uma história que fale do desconhecido a partir da visão de seus

personagens. Não há personagens, ou melhor, todos os espectadores são

personagens que vivenciarão tal medo a partir de suas experiências pessoais

unicamente. O filme é a porta de entrada para sua própria história.

Nota-se neste exemplo a ligação direta da linguagem do LIve cinema

com as características básicas da linguagem digital proposta por Manovich. A

codificação numérica, a modularidade, a automação, a variabilidade, a

transcodificação, o uso de uma base de dados, o artista ou autor como a

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interface que escolhe e determina os caminhos que serão percorridos através

da base de dados, etc.

Vejo este tipo de trabalho como a evolução do Vjing, o passo

seguinte. Suas estruturas e lógica de construção são as mesmas, porém no

LIve cinema, como o deste exemplo, a diferença dos trabalhos dos Vjs está na

construção da base de dados, que é produzida pelo autor, ou seja, o conteúdo

da base de dados é produzido pelo autor e não apenas escolhido e

selecionado por este.

O trabalho dos Vjs pode ser definido como um remix de imagens

coletadas por muitas pessoas com suas próprias intenções, que são re-

significadas através do improviso do artista, o que dá à história um caráter

coletivo muito maior e a narrativa construída uma abertura maior de

significados, já que a base de dados não é criada com uma intenção

específica, a intenção, ou o que se deseja comunicar com as imagens, também

é improvisado em tempo-real.

Em seu trabalho Luiz duVa define um objetivo - o medo do

desconhecido - e constrói uma base de dados com imagens colhidas com esta

intenção - a de comunicar o medo do desconhecido. O autor procura colocar o

público em contato com o medo a partir de suas visões pessoais sobre este

assunto, utilizando uma base de dados individual e pensada para este fim.

Percebe-se aqui o aspecto autoral mais profundo do que nas apresentações

dos Vjs, como colocado por Mia Makela ao comparar estes dois tipos de

cinema ao vivo no capítulo 1.

Nos dois casos - o dos Vjs e do Live cinema - os artistas são as

interfaces pelas quais se percorre a base de dados existente, criando insights

de relações entre ideias que são finalizadas numa segunda interface, o público.

Este relaciona as informações do filme com sua base de dados pessoal

acumulada até então. Assim, não temos uma única história sendo assistida por

várias pessoas, mas sim, diversas histórias que versam sobre o mesmo

assunto e que são conhecidas apenas por cada individuo.

Como vimos acima, na descrição de sistemas de geração automática

de histórias feitas por Gervás, quanto mais definida a intenção ou o objetivo,

melhor é a qualidade do texto produzido pelo programa e talvez a mesma

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lógica se aplique neste caso e neste sentido as narrativas produzidas por este

tipo de Live cinema se aproximam mais das narrativas objetivas que as dos Vjs

figura 10 - captura de tela de vídeo com trecho de uma apresentação de storm.38

Ressaca - filme de Bruno Vianna39

O filme conta a história de um rapaz que passa pela puberdade e

adolescência nos anos 80, período em que o país também atravessava seu

período de adolescência política e econômica com o início das eleições diretas

e acertos econômicos para combater a inflação na forma de planos

econômicos que geraram consequências nas vidas de todas as famílias.

38

Disponível em http://liveimages.com.br/www.liveimages.com.br/Storm_Ok.html, acesso em

22/12/2014. 39

Direção: Bruno Vianna; Roteiro: Bruno Vianna, Paola Leblanc, Haroldo Mourão; Produção:

Daniel Scatena; Fotografia: Andrea Capella; Som: Pedro Moreira; Edição: Bruno Vianna; Trilha Sonora: Rodrigo Marçal, Lucas Marcier; Arte: André Weller; Figurinos: Rô Nascimento; Assistente de direção: Clara Linhart; Elenco: João Pedro Zappa, André Santinho, Babu Santana, Bruno Garcia, Carol Pacu, César Augusto, Cinthia Mendonça, Denise Milfont, Isabela Meirelles, J. Farias, João Dabul, Julia Bernat, Keli Freitas, Oscar Saraiva, Sara de Azevedo, Stephanie Serrat, Yasmin Gomlevski

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figura 11 - captura cena do filme Ressaca.40

O filme foi todo concebido para ser composto por cenas que se

completam em si, como explica Bruno Vianna, ―As cenas são pensadas

individualmente e dentro do conjunto. A partir do momento em que o roteiro

passou a ser escrito pensando-se nessa estrutura, passamos a desenvolver

cenas que tivessem relação com outras cenas, porém mantendo certa

independência.‖. (apud COUTINHO: 2011)

Tal estrutura permite ao diretor montar o filme em tempo real diante

da platéia, escolhendo uma nova ordem para as cenas a cada apresentação,

espelhando a cada montagem o quebra cabeça social vivido na época.

Ao todo foram registradas 129 cenas com aproximadamente três

horas de material filmado que resultava num filme de uma hora e vinte minutos.

Uma interface batizada de "Engrenagem" foi desenvolvida para que o diretor

fizesse a montagem diante da platéia. Tal interface era composta por uma tela

de acrílico sensível ao toque e um programa que permitiam ao diretor/montador

visualizar as seqüências dentro círculos, que podiam ser manipulados e

organizados em qualquer ordem há qualquer momento, acrescentando-se

transições e cortes de uma seqüência para outra.

40

Disponível em http://www.ressaca.net/tudo.htm, acesso em 22/12/2014.

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A trilha musical foi originalmente produzida em tempo real, na forma

de uma performance de música eletrônica do artista Rodrigo Marçal,

juntamente com a montagem, assim como no exemplo anterior.

figura 12 - a Interface ou Engrenagem de montagem do filme Ressaca.41

Neste projeto Bruno Vianna encontra um caminho intermediário entre

o Live cinema e o cinema convencional.

A narrativa é pré-definida, porém a cada exibição esta é modificada

pela ordem em que as cenas se sucedem. Bruno afirma que não seguia

nenhuma guia ou roteiro específico e que a escolha das cenas se dava pelo

diálogo do diretor com a platéia e com a própria obra. O resultado é sempre

uma história não linear, por não seguir uma ordem cronológica de fatos

narrados, mas objetiva por produzir uma história coerente e definida, como

apontado por Mello no texto acima; e, por ser construída ao vivo, se formaliza

como filme por diferentes caminhos, porém com um enredo constante.

A base de dados usada por Bruno é produzida pelo autor, como no

exemplo anterior, com a diferença de os clipes de vídeo que a compõe

possuírem intenção mais definida. Cada clipe é parte de uma história

específica, resumida no início desta análise, não de uma ideia ou sensação.

41

Disponível em http://www.ressaca.net/tudo.htm, acesso em 22/12/2014.

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A relação entre as cenas é, neste caso, mais explícita e definida, o

que reduz as possibilidades de interpretação do espectador.

O diretor/montador é também uma interface que escolhe o caminho

percorrido através da base de dados, mas o espaço para que o público seja

também interface, através do acréscimo de sua própria base de dados pessoal,

é reduzido. O aspecto imersivo e sensorial influi menos na construção da

narrativa final dentro de cada pessoa, já que as cenas contêm diálogos que

conduzem a um significado específico não abstrato.

Esta é a proximidade com o cinema convencional que Bruno cria com

este projeto - um Live cinema com narrativa objetiva.

Comparando-se, ainda, com o exemplo anterior, nota-se a redução do

aspecto coletivo no que tange à participação do público, já que as

possibilidades de inferências e interpretações que influam no enredo são bem

menores do que em Storm.

Nos dois casos a história ou o enredo não são criados em tempo real,

Luiz duVa cria o que ele chama de "partitura" para designar o roteiro aberto ao

improviso e a interpretação que conduzem a novos significados como na

música. Sua partitura é em ultima instância um roteiro, uma definição narrativa.

O filme Ressaca possui um roteiro de cenas, ou melhor, cada cena possui um

roteiro que se encerra em si mesmo e o conjunto dos roteiros de cenas compõe

o roteiro do filme, porém um roteiro que não determina sua montagem.

Can You See Me Now - Blast Theory

Nesta obra executada na forma de um game, o grupo de artistas

multimedia Blast Theory, liderados por Matt Adams, Ju Row Farr e Nick

Tandavanitj, cria um sistema para a produção de narrativas coletivas em tempo

real com um alto nível de interação entre os participantes.

Baseado em localização GPS42, o sistema é um jogo de perseguição,

jogado online, nas ruas. Um mundo virtual é criado sobre o mapa da cidade

real permitindo ao jogador habitar os dois mundos simultaneamente,

explorando conceitos de ausência e presença. A correspondência entre o real

42

GPS - Global Positioning System - Sistema de Posicionamento Global.

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e o virtual às vezes é exata e outras vezes não, numa relação elástica que

permite o encontro de jogadores geograficamente distantes.

A comunicação de áudio e imagens também são fatores importantes.

Os jogadores podem conversar entre si através do "walkie talk chat" e

fotografar a paisagem real onde "encontram" um fugitivo no mundo virtual. As

imagens ficam armazenadas no site como um registro dos acontecimentos de

cada partida.

figura 13 - sobreposição dos mapas do jogo e da cidade.43

Três jogadores perseguidores, equipados com um computador

portátil, um receptor GPS e ligados a uma rede sem fio, que os mantém

conectados uns com os outros e com o mundo virtual do jogo - andam pela

cidade real atrás de jogadores de qualquer lugar do mundo, transportados ao

mundo virtual do jogo, conectando-se ao site. Lá, devem evitar os

perseguidores, pois se forem vistos, terão o local de seu encontro no mundo

real, correspondente ao local de seu encontro no mundo virtual, fotografado e

assim, estarão fora do jogo.

43

Disponível em http://www.blasttheory.co.uk/projects/can-you-see-me-now/, acesso em

22/12/2014.

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figura 14 - jogador perseguidor em ação.44

As imagens produzidas e a comunicação verbal feita pelo "walkie talk

chat", armazenadas no site do projeto constroem a narrativa de cada partida,

com sua história e lugares específicos.

Tal interatividade somada ao registro audiovisual em tempo real das

ocorrências de cada jogo produz um filme.

O tipo de narrativa resultante é não linear e sem uma história

específica, porém, com um enredo de perseguição bem claro e perceptível ao

espectador.

Comparando-se este exemplo com os dois exemplos anteriores nota-

se muitas semelhanças quanto a sua lógica de construção pois esta é baseada

nos mesmos paradigmas tecnológicos, porém aqui não há pré-definição da

história ou enredo que que irá compor a narrativa. Apenas o tipo de história ou

enredo é definido - uma história de perseguição - pela interface utilizada para

sua criação, um jogo de perseguição. A história ou enredo acontece em tempo

real através das ações dos participantes. Tais ações compõem uma base de

44

Disponível em http://www.blasttheory.co.uk/projects/can-you-see-me-now/, acesso em

22/12/2014.

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dados em tempo real. Não há base de dados pré-definida, a única pré-definição

é o tipo de história. Não há um autor para o roteiro, não há roteiro para as

ações ou diálogos.

Neste exemplo, o aspecto coletivo se amplia e a figura do autor

individual desaparece totalmente. Todos os participantes são autores. A história

que se cria como resíduo das ações dos participantes do jogo é única e

indefinida até que o jogo termine e nenhum dos participantes poderia saber a

priori seu sentidos, seus significados, ou seu desfecho. Por outro lado a pré-

definição embutida na interface conduz a narrativa criada sempre para o

mesmo tipo de história, mas com enredos distintos.

A pergunta que nos resta é: de que forma seria possível produzir

qualquer tipo de história objetiva, coletivamente em tempo real?

Espontânea - peça teatral de Ian Soffredini45

Neste exemplo encontra-se a resposta a essa pergunta. Espontânea

é uma peça teatral cuja história é construída em tempo real pelos atores.

Idealizada por Ian Soffredini, neto de Carlos Alberto Soffedini46, que deu

continuidade as pesquisas de estética teatral iniciadas pelo avô, definindo para

si o seguinte objetivo de pesquisa em entrevista concedida ao autor:

"A minha pesquisa vai ser não escolher um texto pronto e montá-lo,

eu vou desenvolver uma linguagem onde qualquer história possa ser

contada. ".(SOFFREDINI, 2014: apêndice I).

Para isso criou um método onde a interação dos atores no palco

constrói um texto e o encena em tempo real.

Para a criação do método, dividiu a pesquisa em quatro frentes:

I. Improvisação: pesquisou técnicas de improvisação específicas

que envolvem conceitos da aceitação, generosidade e da

construção colaborativa. Com estas ferramentas torna-se

45

Diretor da Pesquisa: Ian Soffredini; Elenco: Ana Paula Dias, Ian Soffredini, Leandro Allves,

Michelle Gallindo, Pedro Monticelli, Silvia Lhullier. 46

Pesquisador, ator, autor, dramaturgo e diretor brasileiro, Carlos Alberto Soffredini nasceu em Santos (SP), em 6 de outubro de 1939. Trabalhou com grupos teatrais nas décadas de 70, 80 e 90. Seu trabalho como dramaturgo foi voltado à pesquisa da cultura popular brasileira.

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possível colocar atores no mesmo lugar e conseguir que eles

construam a cena, juntos.

II. Estética: Ian escolheu a estética teatral com a qual já tinha maior

afinidade e utilizou seus signos como meio de comunicação

entre os atores, que permaneciam no palco o tempo todo,

mesmo que ao fundo ou sem participar da cena,

impossibilitados, portanto, de se comunicarem com palavras,

como ele explica no trecho da entrevista abaixo:

"...escolhi a estética teatral popular brasileira e ela já dá um grande

embasamento no sentido se exercer função dramatúrgica porque

quando você ganha o meio do palco é porque você esta sendo o pivô

daquela cena, como eu não sei que cena estou fazendo ainda, se

alguém toma o centro do palco eu sei que essa pessoa está

querendo ser o pivô daquela cena e todos sabem que têm que apoiar

ele. Então eu peguei os signos que a gente usa geralmente pra

explicar pro público o que está acontecendo pra gente explicar um

para o outro o que está acontecendo também" (SOFFREDINI, 2014:

apêndice I).

III. Dramaturgia: Junto com o dramaturgo paulistano Fabio Brand

Torres, Ian criou um mapa dividindo o espetáculo em três

partes ou, no caso atos. O primeiro ato apresenta os

personagens e o conflito, no segundo o desenvolvimento do

conflito e a crise e no terceiro a conclusão da história.

IV. Dramaturgia corporal: Como o espetáculo não possuía cenário, a

expressão corporal dos atores torna-se fundamental para a

composição da cena.

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figura 15 - cena da peça Espontânea.47

Nota-se que não há comunicação verbal entre os atores, porém há a

necessidade de alguns códigos para que os atores se comuniquem. Por

exemplo, a tomada física do centro do palco por algum ator, significando o

pedido da palavra. Outros poucos códigos já eram suficientes para que os

atores se coordenassem no palco.

"então havia alguns sinais que indicavam para o outro ator o fim da

fala. Por exemplo, a gente piscava com o olho que não estava virado

para a platéia e o outro ator sabia que eu já havia falado tudo que eu

queria e não tinha mais nada para acrescentar à cena. Um outro

código era mandar um beijo que significava "estou te dando esse

poema de mão beijada", que o que eu estava fazendo era um

encaminhamento pra você ler o poema e pra gente ter certeza de

que o outro viu o sinal do beijo havia um sinal de resposta que era o

movimento de fechar a mão significando se estava com ele na mão,

que você sabia o que estava fazendo. A comunicação se baseava

praticamente a estes três códigos, uma comunicação que a platéia

não compartilhava" (SOFFREDINI, 2014: apêndice I).

47

Disponível em http://www.conteudoteatral.com.br/teatroamil/index.php?option=com_content&view=article&id=94:espontanea&catid=27:pecas-anteriores&Itemid=5, acesso em 22/12/2014.

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O público também participa da construção da narrativa, escolhendo

poemas e escrevendo frases que servem de "gatilho" para a história que irá se

criar no decorrer da peça e falas obrigatórias de personagens em outros

momentos. A escolha dos poemas e a escrita das frases são feitas antes do

início do espetáculo que, depois de iniciado, deve contar uma história com

começo meio e fim, enredo, personagens e falas, sem interrupção.

Neste exercício de improviso e adaptação constante, os atores vão

construindo uma história em tempo real. A adaptação e o desapego das

próprias ideias são fundamentais para que a história seja orgânica e fique

interessante para o público. Cada ator tem que adaptar sua atuação com base

no que está acontecendo no palco, ou seja, com base no que está sendo

encenado pelos outros atores.

A música e a iluminação também são improvisadas de acordo com o

desenrolar da trama e por muitas vezes influindo na condução desta,

determinando o estado de espírito de um personagem com o clima criado pela

música da cena, por exemplo.

figura 16 - cena da peça Espontânea.48

48

disponível em http://www.conteudoteatral.com.br/teatroamil/index.php?option=com_content&view=article&id=94:espontanea&catid=27:pecas-anteriores&Itemid=5, acesso em 22/12/2014.

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A narrativa criada é sempre diferente a cada espetáculo, não apenas

com histórias diferentes mas, também com gêneros diferentes, como romance,

aventura ou terror, porém sempre objetiva, com enredo, trama, personagens e

falas coerentemente ligadas umas as outras.

Esta característica é a chave para atingir-se o objetivo final desta

pesquisa. Apesar de ser criado para o teatro e não necessitar a utilização de

mídias digitais para sua execução nota-se grandes semelhanças com as

narrativas digitais contemporâneas. As cenas criadas e encenadas pelos atores

compõem em tempo real uma base de dados que constrói a história, como no

exemplo do jogo The Blast Theory visto anteriormente, porém sem limitações

impostas pela interface ou pré-definições de enredo e significados de uma base

de dados criada a priori . Tais semelhanças permitem a transposição direta

deste método, criado para o teatro, para as mídias digitais.

O aspecto coletivo é ainda maior que a dos exemplos anteriores por

abranger os espectadores de maneira direta, nas poucas definições que

inspiraram a criação da narrativa, quando os convida a criar o "gatilho". Aqui

tudo é coletivo, a história criada é de todos e de ninguém ao mesmo tempo.

Aqui temos um método de criação coletiva de uma história objetiva

em tempo real. Uma maneira de várias cabeças trabalharem ao mesmo tempo

no mesmo enredo. Um enredo desconhecido de todos, mutante, que a cada

momento aponta para novas direções compondo uma história da mesma forma

que se fabrica um tecido, onde um fio só fica estável se encostado aos fios já

existentes na trama.

CAPÍTULO 4. ESPECIFICAÇÃO DE SISTEMA PARA PRODUÇÃO

DE FILMES E ROTEIROS EM TEMPO REAL

Nesta etapa da pesquisa apresento uma proposta de sistema para a

produção coletiva de um filme e seu roteiro em tempo real, cuja a narrativa seja

objetiva , unindo características encontradas nos exemplos analisados no

capítulo 3.

Dos exemplos de Live cinema a montagem ao vivo e a base de dados

pré-construída. De um jogo online a mobilidade, a interatividade dos

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participantes e um site que sirva para a comunicação com os espectadores,

apresentação e depósito das narrativas produzidas. E de uma peça teatral, um

método coletivo para a produção de narrativas objetivas em tempo real.

A junção destas características permite a sistematização de um

método coletivo de criação de uma história que se concretize como narrativa,

na forma de um filme montado ao vivo; não apenas o filme acontecerá em

tempo real, mas a criação da história e do roteiro também.

Pode-se dizer que este método seja Live cinema com a diferença de

que a maior parte da base de dados, com as cenas que irão compor o filme,

será criada durante a montagem.

O método proposto a seguir, não possui um objeto de filmagem

definido. Não se trata apenas de registrar o que acontece, mas, além disso,

trata-se de produzir o acontecimento, na medida em que a história e a cena

são criadas em função das anteriores por todos os participantes. A história,

objeto do filme que se constrói em tempo real, é uma total incógnita para todos.

O grau de indefinição e incerteza é ampliado e a necessidade de comunicação

constante entre os participantes mais crítica.

Num sistema capaz de conduzir e sincronizar a criação de uma

história, a produção e registro das cenas e a montagem de um filme em tempo

real, parte do trabalho é criar, produzir e filmar as cenas; e outra parte é

transmitir as informações para o montador.

Na primeira parte há uma dependência da tecnologia para se cumprir,

mas podemos assumir que essa dependência não é significativa. Não há

dependência de terceiros para que a tarefa seja executada e qualquer falha

pode ser resolvida com um equipamento backup. Trata-se de uma tecnologia

de fácil acesso, qualquer dispositivo móvel ou câmera filma e produz arquivos

em diversos formatos e dimensões.

Já a segunda parte, a transmissão e a manutenção da comunicação

entre todos os participantes durante todo o processo de construção do filme, é

totalmente dependente da tecnologia disponível para conexão com a rede, sua

estabilidade e velocidade.

Como a conexão constante com a internet é um requisito para que o

sistema funcione, a opção pela mobilidade - a possibilidade do filme ser

construído tendo uma região da cidade como "palco" - nos força a criar

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mecanismos de emergência para cobrir eventuais falhas nesta conexão. Como

tais falhas técnicas não podem ser previstas, o improviso rápido por parte dos

componentes da equipe de produção será necessário, com o intuito de evitar a

perda da continuidade da ação e, mais criticamente, da projeção do filme.

4.1 Transmissão de arquivo x streaming

Antes de definir um método, é necessário que se defina de que forma

o filme será transmitido. As duas opções disponíveis são:

a. Transmissão ao vivo: a cena é transmitida por streaming de

vídeo enquanto é criada e filmada.

b. Transmissão de um arquivo gravado com a cena completa.

Têm-se, então, dois caminhos que implicam diferenças significativas:

Pode-se privilegiar a relação com um filme ao vivo, levando ao limite

esta questão, o que nos obrigaria a criar um método que tornasse possível a

transmissão ao vivo da gravação de cada cena e cobrisse todos os eventuais

problemas que podem ocorrer durante o processo. Considerando-se esta

opção, torna-se muito mais crítico o problema da instabilidade das conexões.

Ou optar-se pela criação de um método onde cada cena é produzida

e registrada integralmente e posteriormente transmitida ao editor do filme.

Reduzindo-se os problemas relacionados à conexão e suas instabilidades, cria-

se maior espaço para a mobilidade das equipes, facilita-se a criação de um

método que coordene o número de pessoas necessárias para a produção de

um filme o que garante a continuidade da montagem e da projeção.

4.2 Método para a criação de um filme e seu enredo em tempo real

4.2.1 Atores x Equipes

O método proposto neste trabalho é inspirado no exemplo da peça

Espontânea de Ian Soffredini, porém com as adaptações necessárias para

suprir as diferenças envolvidas na encenação de uma peça teatral, onde a

imaginação do público aliada a interpretação do ator nos leva a cenários e

climas diferentes; e na construção de um filme, onde outros fatores agregam

expressão e significado: o enquadramento, efeitos, etc criando novas

dinâmicas para construção da narrativa reduzindo o espaço para as inferências

advindas da imaginação do espectador.

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Quando se trata da criação de uma história de forma coletiva e ao

mesmo tempo em que se produz a cena, as diferenças são ainda maiores, pois

no teatro cada ator é uma célula de criação da história, tomando as decisões

para a condução da trama e as executando no palco. Num filme, cada célula de

criação é formada por um grupo de pessoas e as decisões de condução da

trama podem ser tomadas em grupo, tornando o processo de criação da

história ainda mais coletivo e complexo.

Nossa proposta é transformar os atores em equipes de criação e

produção de cenas. As equipes decidem como será cada cena para dar

continuidade ao filme e as produzem enviando o arquivo para o editor.

Esta situação resolve o problema da produção porém, uma outra

diferença do método aplicado ao teatro para o método aplicado na produção de

um filme, pode ser notada.

No teatro, a criação do enredo e a execução da cena podem ser

simultâneos; no cinema precisamos de um tempo para que a equipe decida em

conjunto o que será filmado e produza a cena que depois de pronta, ainda

precisará ser transmitida na forma de um arquivo de vídeo para que seja

projetada.

Para resolver este problema, incorpora-se uma defasagem de tempo

entre o início da produção das cenas e o início da projeção do filme, de forma

que enquanto uma cena é projetada as próximas cenas já estejam produzidas

e sendo transmitidas.

A defasagem necessária depende da qualidade da conexão

disponível no momento da produção e do número de equipes envolvidas na

produção, pois quanto maior o número de equipes, mais rápida poderá ser a

criação e a transmissão das cenas por poderem ser produzidas

simultaneamente.

Neste método pode-se trabalhar com qualquer número de equipes,

desde uma até um número infinito, portanto, a defasagem deverá ser calculada

no momento da produção levando-se em conta as condições técnicas do

momento e o número de equipes de produção de cenas envolvidas.

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4.2.2 Gatilho

No capítulo 1 desta dissertação, viu-se pelos estudos de Gervás,

sobre algoritmos para a geração de histórias, que quanto maior a quantidade

de dados de entrada (input), maior é a consistência da saída (output) produzida

pelo algoritmo - no caso a qualidade do texto e da história produzida.

No exemplo da peça Espontânea visto no capítulo 3 deste trabalho,

são usados poemas e frases escolhidos e criados pelo público antes da

encenação da peça começar, como tema de inspiração e objetivo para a

condução da criação da história.

Parece-me claro que, para que seja mais fácil a coordenação da

criação do enredo feita pelos integrantes das equipes de produção e de

finalização, deve haver uma fonte comum determinando o caminho para a

criação da trama - um input que sirva de parâmetro para o início do

funcionamento do sistema.

As pessoa que compõem as equipes e cada equipe em si, criará

caminhos diferentes para a história, no entanto, a cada cena que for ocorrendo,

as ideias de cada um serão mais claras aos outros participantes. Os caminhos

escolhidos, pelas equipes de criação para a condução da trama, serão mais

facilmente compreendidos por todos, e terão que agir rapidamente na

adaptação de suas próprias ideias, de forma a garantir a continuidade do

enredo e do filme.

Esse mote inicial para o despertar da narrativa em cada um é o que

Ian chamou de "gatilho", numa alusão ao mecanismo que dispara um processo.

O gatilho deve ser decidido antes do início do filme na forma de um

título, uma frase ou um texto, como um dado de entrada para o sistema.

As formas de produzir um gatilho para a história, ou para o filme em

si, podem ser variadas e formas diferentes, que incluam interações maiores

com o público, desenvolvidas.

Para definição deste método, decidimos que o envio deve ser feito

pelo público através de um site do projeto, que garanta a identificação da

pessoa que enviou para a exibição nos créditos finais e também garanta

juridicamente a disposição em participar do projeto e a concordância com suas

regras. Para o envio de frases cada participante deve se cadastrar e concordar

com os termos e condições desta participação.

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No dia e hora marcados para a execução do filme o gatilho é

escolhido por sorteio em tempo real no site.

4.2.3 Equipes de produção de cenas

As equipes deverão funcionar como um ator, as decisões devem ser

tomadas em conjunto e rapidamente. Necessita-se, então, que um componente

da equipe seja o responsável pela palavra final nas decisões. Um diretor local

que coordene os integrantes da equipe e conduza a criação da trama/enredo

da história. Este integrante será chamado de "Condutor de Enredo" e deverá

manter contato constante com os condutores das outras equipes de produção e

com a equipe de finalização. Tal contato pode ser feito por vídeo e áudio via

Skype ou apenas por áudio através de skype, whatsapp ou conferência

telefônica, ou ainda por texto através de um chat.

A composição das equipes de produção de cenas será a seguinte:

a. Operador de câmera: responsável pela operação da câmera na

captação das imagens e do áudio.

b. Produtor: executa rapidamente a produção da cena sendo,

portanto, responsável pela captação das imagens e do áudio

da cena, juntamente com o operador de câmera, ajudando e

dirigindo os atores durante a encenação.

c. Condutor de enredo: responsável pela condução da história

juntamente com os outros condutores de enredo e da equipe

de finalização. Como a criação do enredo da história terá que

estar alguns passos a frente da projeção do filme, os

condutores tem, através do canal estabelecido para a

comunicação, uma forma de criar o enredo em tempo real à

frente do filme que aparece na tela, O tempo necessário para

discutir com a equipe e decidir o que deve ser feito

comunicando as decisões à todas as outras equipes. Com um

computador ou tablet ligado à câmera recebendo o arquivo do

filme, o condutor monitora o áudio durante a captação da cena

e converte o arquivo, transmitindo-o ao final do processo de

captação.

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d. Atores: As equipes poderão ser formadas com um ou mais

atores que farão a encenação para a câmera após as decisões

tomadas com toda a equipe e o diretor.

Esta é a configuração considerada mínima, porém pode-se criar

equipes maiores com funções mais definidas ou mais pessoas para apoio na

produção. Por exemplo, imagine que uma cena exija a participação de

figurantes, podemos ter vários produtores e um diretor de cena para formar um

grupo entre pessoas que estejam no local na hora da filmagem e dirigir a

atuação da figuração respectivamente.

4.2.4 Equipe de finalização

A equipe de finalização gerencia todo o processo e é responsável

pela montagem e exibição do filme. Utilizando a base de dados, formada pelos

clipes enviados pelas equipes de produção de cenas, somada a uma base de

dados pré construída com clipes e imagens diversas o filme é montado em

tempo real.

A composição das equipes de finalização será a seguinte:

a. Diretor de enredo e assistente de edição: coordena a criação

do enredo que está sendo elaborado pelas equipes de

produção, recebe os clipes das cenas e disponibilizá-los ao

editor na ordem correta.

b. Produtor de trilha sonora: cria os temas e efeitos sonoros

usados durante a composição do filme.

c. Editor: monta o filme com os clipes recebidos, juntamente com

o som, aplicando efeitos e transições enviando ao canal de

stream do site o resultado que é projetado na tela.

O Diretor de enredo, o editor e o sonorizador devem estar numa sala

de projeção aos moldes de uma projeção de Live cinema, diante do público,

que assiste ao vivo a montagem.

O filme também é transmitido por stream através do site do projeto. O

que o público assiste na sala de projeção é o filme que pode ser visto ao vivo

em casa através de um computador ligado a internet. Desta forma as equipes

também podem assistir ao filme durante sua composição, o que é fundamental

para a condução da trama que será criada.

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Outra característica é que o site servirá como ponto de aglutinação

entre os produtores do filme e o público. As ideias e frases para o gatilho inicial

podem ser transmitidas ao site pelos usuários conectados, onde também

ocorrerá o sorteio que definirá qual é o gatilho da história. Todo o processo,

deste modo, torna-se transparente e passível de interação com todos os que

compõe o público, presentes a sala de projeção ou não.

Os filmes ficam disponíveis em versão integral no site, armazenados

numa base de dados, podendo ser acessados e assistidos a qualquer

momento após sua realização.

O diretor de enredo coordena a criação da história determinando,

através de um código pré-combinado, qual será a equipe a produzir a próxima

cena, ou seja, qual é a equipe que tem a palavra naquele momento. A cena

deve ser criada rapidamente pela equipe e enquanto é filmada, também é

descrita às outras equipes pelo condutor de enredo. Se existir um diálogo ou

fala acontecendo, este deve ser descrito pelo condutor para permitir a criação

de falas coerentes para a próxima cena por parte de outra equipe.

Assim, enquanto uma cena está sendo produzida, as cenas

subsequentes podem ser criadas pelas outras equipes e sua produção iniciada

antes do início da projeção da cena anterior. O tempo de duração do filme

também é pré-determinado e deve ser cumprido, o diretor de enredo deve

coordenar e administrar a criação da história de forma que tenha começo, meio

e fim no tempo previamente definido.

Outra função do diretor de enredo é a assistência ao editor. Ele deve

gerenciar e informar constantemente ao editor o andamento do fluxo de

arquivos, informando qualquer atraso na recepção das cenas, fornecendo se

possível ideias para o preenchimento do tempo que será necessário esperar

até a completa recepção do arquivo da cena que deverá ser exibida na

sequência, dando tempo para que o editor acrescente uma cena feita de

improviso a partir da base de dados pré existente de imagens e filmes.

O editor vai recebendo e improvisando cenas e montando o filme

com transições, sobreposições e efeitos junto com o sonorizador que compõe a

trilha sonora.

A descrição das cenas, feita pelos diretores de enredo de cada

equipe, é o ponto crítico da criação da história. Deve, portanto ser

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suficientemente detalhada para garantir a continuidade dos diálogos e da

trama.

4.2.5 Método passo a passo

I. Publicação no site da duração do filme, data, hora, local em que o filme

será composto e projetado.

II. Solicitação para o envio de frases ou textos para sorteio do gatilho. As

frases e textos podem ser enviados ao site até o momento do sorteio.

III. Sorteio da frase/texto gatilho para a criação da trama na sala de

projeção no início da sessão.

IV. Tem início o trabalho das equipes de produção e do diretor de enredo,

que dá a palavra a primeira equipe que solicitar, e esta envia a a todos a

descrição da cena que será filmada.

V. Enquanto a cena é filmada e transmitida, o trabalho das equipes e do

diretor de enredo continua e cada equipe filma e transmite suas cenas.

A fim de facilitar a administração do fluxo de arquivos de cenas, o nome

de cada arquivo transmitido deve seguir o seguinte padrão:

Os quatro primeiros dígitos devem ser numéricos e indicam o número da

cena, seguidos de três dígitos numéricos que indicam a equipe que o

produziu e transmitiu.

Ex. 0001001.mov - cena 1 produzida pela equipe 1.

Desta forma os arquivos estarão sempre organizados na sequência em

que serão exibidos.

VI. Após o recebimento das duas primeiras cenas, inicia-se a projeção do

filme para o público. Durante o tempo de espera para a produção destas

duas cenas, o editor e o sonorizador executam um improviso de abertura

do filme com imagens sons e textos, baseados no gatilho escolhido e

nas descrições das cenas enviadas pelos condutores de cena das

equipes que já as estarão produzindo.

VII. A criação e o envio das cenas vão se sucedendo e o filme e seu roteiro

que conta uma história se construindo até o final. Onde os créditos,

acrescidos do nome da pessoa que teve sua frase sorteada para servir

de gatilho, terminam a projeção.

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VIII. O filme fica armazenado, sem modificações, no site e disponível para o

público.

4.3 Tecnologia

Segue a descrição técnica e definição de equipamentos, programas e

serviços necessários para o funcionamento do sistema.

Um ponto crucial para que o sistema funcione é a definição do tempo

de defasagem entre o início das gravações e transmissão das cenas e o início

do filme. Esta defasagem deve ser calculada de forma a permitir um fluxo

constante entre a produção das cenas e a projeção do filme, pois a defasagem

depende do tamanho dos arquivos de dados a serem transmitidos e da

velocidade de envio de dados da conexão utilizada.

4.3.1 Tipos de conexão sem fio e suas velocidades

Atualmente tem-se dois tipos de conexão de banda larga móvel, 3G e

4G. A opção por este tipo de conexão se justifica pela facilidade de

implementação com baixo custo.

Para a implementação de uma rede sem fio de alto desempenho, com

relação à velocidade e estabilidade, envolveria um grande investimento em

equipamento e infra-estrutura e restringiria a mobilidade das equipes a área de

alcance da rede. As conexões 3G e 4G já possuem a infra-estrutura instalada e

seu alcance abrange todo o país.

As taxas de transferência de dados máximas para o recebimento de

informações, que chamaremos a partir de agora de velocidade da conexão,

download, e para o envio de informações, upload, consultado nas quatro

maiores empresas de telefonia móvel que operam na cidade de São Paulo, são

de: 1000Kbps de download e 100Kbps de upload para as conexões 3G e

5000Kbps de download e 512 Kbps de upload para as conexões 4G.

Fazendo-se a conversão dos valores de kilo bits por segundo para

mega bytes por segundo encontramos os seguintes valores: 0,12 MBytes/s de

velocidade de download e 0,0122 MBytes/s de velocidade de upload para

conexões 3G, e 0,610351563 MBytes/s de velocidade de download e 0,061035

MBytes/s de velocidade de upload para conexões 4G.

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Como a velocidade com que os dados serão transmitidos tem impacto

direto no tempo de transmissão e este na defasagem necessária entre a

produção das cenas e o início do filme, pode-se definir a conexão 4G como a

mais indicada para que o sistema funcione com a menor defasagem possível,

porém, para a determinação do tempo exato da defasagem, é necessária a

determinação do tamanho médio dos arquivos que serão transmitidos.

4.3.2 Tamanho arquivo x tempo de transmissão

O tamanho dos arquivos de dados com os clipes das cenas gravadas

dependerá da dimensão utilizada para a captação das imagens. Sendo a

dimensão a quantidade de pixels que formam cada frame do vídeo. O tamanho

dos arquivos também será dependente do CODEC utilizado para codificação

das imagens e o formato do arquivo.

A maioria das câmeras digitais existentes hoje em dia, que produzem

filmes com a dimensão de 1920 x 1080 pixels (fullHD) ou 1280 x 720 pixels

(HD), utilizam o formato de arquivo Quicktime identificados com a extensão

".mov" no final do nome do arquivo em câmeras DSLR, com o codec H264. Ou

no formato de arquivo mp4 identificados com a extensão ".mp4", com o codec

H264, em celulares.

Esta opção se deve ao fato de serem estas as combinações, entre

formato de arquivo/codec, que produzem o melhor equilíbrio entre qualidade da

imagem e tamanho do arquivo produzido.

Após alguns testes com uma câmera DSLR e com um aparelho de

celular com capacidades de filmagem na dimensão HD, obtivemos os

seguintes tamanhos de arquivos de dados para cada 1 minuto de filme com

áudio:

equipamento Dimensão

(pixels)

Tempo de

duração do filme

Tamanho do

arquivo

(MBytes)

Câmera DSLR 1920 x 1080 1 min. 330

Câmera celular 1280 x 720 1 min. 88

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Portanto, o tempo de transmissão de 1 minuto de filme com áudio na

dimensão de 1280 x 720 pixels (HD) será de 7213,115 segundos, ou 120,2186

minutos. Percebe-se a impossibilidade de implementação do sistema com esta

configuração, pois cada minuto de filme, usando-se a menor dimensão, levaria

aproximadamente duas horas para ser transmitido das equipes de produção

para a equipe de finalização.

Com a utilização do software freeware FormatFactory de conversão

de formatos de vídeo, áudio e imagens, os arquivos podem ser convertidos, ou

melhor transcodificados, para o formato quicktime, com o codec H264 e

dimensões de 720 x 480, primeiro padrão considerado de alta definição para a

TV digital. A redução da taxa de transferência de dados do arquivo (bitrate)

para 1200 KB/s também será necessária.

Esta conversão leva em torno de 23 segundos para cada minuto de

filme fullHD e cai para 15 segundos para a conversão de cada minuto de filme

HD resultando em um arquivo de 10 MBytes para cada minuto de filme. O

tempo de transmissão de um minuto de filme com uma conexão 4G passa a

ser de 163,8404194 segundos, ou 2,730674 minutos.

A partir destes números estima-se que será necessária uma

defasagem de 20 minutos entre o início da produção e transmissão das cenas

e o início do filme, para que o filme se inicie com seis minutos de cenas já

disponíveis a equipe de finalização.

Como o método proposto permite que cenas estejam sendo

produzidas e transmitidas ao mesmo tempo, acreditamos que este seja o

tempo suficiente, porém, este cálculo deve ser refinado após a implementação

e testes realizados com o sistema.

4.3.3 Equipamentos: hardware e software

As equipes de produção serão formadas conforme o descrito no

método acima e equipadas com:

I. Câmera digital DSLR Canon dos modelos 7D, 60D, T3i ou T5i, por

permitirem a gravação, do arquivo de vídeo gerado,

diretamente no disco rígido do computador.

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II. Dois celulares smartphone com câmera HD, que servirão de

câmeras reserva, ou câmeras backup, bem como alternativas

de comunicação entre as equipes.

III. Computador (Laptop) com configuração mínima de 8Gb de RAM,

Placa de vídeo dedicada NVIDIA com 1Gb de VRAM, disco

SSD 120 Gb para o sistema e aplicativos e disco SSD 250 Gb

para dados.

IV. Modem 4G USB.

V. Cabo USB de 5 metros.

Programas: Sistema operacional Android, Sistema operacional

Windowns 8, EOS utility, Core FTP LE, FormatFactory, Skype, Whatsapp.

Para a equipe de finalização será necessário que todos os

computadores tenham acesso a uma rede local de no mínimo 10.000 kbps,

mas preferivelmente de 30.000 Kbps e infra-estrutura de som e projeção na

sala. Para que a transmissão do filme pela internet seja realizada com

qualidade será necessária a contratação de um serviço de transmissão

streaming.

O diretor de enredo e o editor estarão equipados com:

I. Computador com configuração mínima de 16Gb de RAM, Placa

de vídeo dedicada NVIDIA com 2Gb de VRAM, disco SSD 120

Gb para o sistema e aplicativos, disco SSD 250 Gb para

receber e servir arquivos para o editor e disco HD 2 Tb para

dados.

II. Computador com configuração mínima de 8Gb de RAM, disco

SSD 120 Gb para o sistema e aplicativos e disco HD 2 Tb para

dados.

III. Computador com configuração mínima de 16Gb de RAM, Placa

de vídeo dedicada NVIDIA com 2Gb de VRAM, disco SSD 120

Gb para o sistema e aplicativos e disco HD 2 Tb para dados.

IV. Celular smartphone.

Programas: Sistema operacional Android , sistema operacional

Windowns 8, Core FTP LE, Skype, Whatsapp, Isadora, Adobe Flash Media Live

Encoder.

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Os equipamentos utilizados para a criação da trilha sonora podem

variar de acordo com o artista convidado a participar do projeto porém deverá

possuir o equipamento necessário para receber o som dos clipes produzidos

pelas equipes de produção de cenas, mixá-los com a trilha sonora.

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Segue um diagrama geral do sistema:

figura 17- diagrama geral do sistema

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88

CONCLUSÃO

Iniciei esta pesquisa com dois objetivos: 1 definir o conceito de

narrativa para permitir a análise das formas de narrar contemporâneas

coletivas em tempo real - tentando identificar uma forma diferente ainda não

experimentada e, 2 especificar um sistema que possibilite a construção coletiva

nesta forma - como um exercício de comprovação da análise.

Unindo conceitos de Gervás usados para fazer algoritmos geradores

de histórias e as definições encontradas em estudos sobre a autoria de vários

pesquisadores, definiu-se neste trabalho como narrativa objetiva - aquela que

contém uma história clara e específica; e, como subjetiva - as que não

possuem história ou enredo facilmente identificável.

Numa abordagem mais filosófica do conceito, identificou-se o enorme

papel social das narrativas e sua importância para a criação de nossa cultura e,

indo mais longe, de nossa realidade.

Percebeu-se que tais processos são a matéria-prima de nossa

evolução cultural e que permeiam ou amarram a cultura. São o fator

estruturante que a mantém em pé. Visto por esse ângulo, pode-se dizer, talvez,

que as narrativas sejam o meio pelo qual construímos a cultura. Barthes chega

a dizer que " a narrativa está sempre presente, como a vida" (2001: p104) se

referindo a esta simbiose com a cultura.

Com o estudo sobre questões relativas a autoria, percebi que a

criação individual é extremamente discutível, quando distancia-se o olhar e

enxerga-se um cenário mais amplo, que permite perceber o quão impregnada

de conceitos e ideias anteriores, estão todas as narrativas. O próprio processo

de construção de nossa cultura e nosso corpo de conhecimento se faz sobre

esta lógica.

Penso que é a possibilidade de partir de um patamar já estudado e

conhecido, que permite a evolução do conhecimento. Nesse sentido, não

existiria narrativa individual - toda e qualquer tipo, é coletiva por definição, por

estar apoiada no corpo de conhecimento comum.

Segundo Santaella e MIranda, os motivos que nos levaram a definir

historicamente a figura do autor individual - um autor único e identificável - são

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a determinação da responsabilidade sobre o que foi dito e o direito a eventuais

lucros econômicos que a obra possa vir a gerar. Por outro lado, nota-se que

existem formas de narrativas coletivas onde o aspecto grupal é imediato,

concomitante com sua construção, onde várias pessoas participam da

construção no mesmo tempo/espaço. A meu ver, tal fato amplifica a discussão

sobre a autoria dos conteúdos produzidos desta forma e podemos dizer que

esta será uma discussão importante neste século que se inicia sob a

perspectiva de evoluções tecnológicas cada vez mais rápidas, que trazem

consigo formas coletivas mais complexas, não incluídas nas determinações

realizadas até o presente. O sistema especificado no capítulo 4 serve como

exemplo claro desta realidade, pois nesta proposta a figura do autor individual é

diluída com maior profundidade ao colocar no âmbito coletivo a criação da

história e a construção da narrativa.

A análise de duas experiências com Live cinema, revelaram-me que

este formato pode produzir narrativas coletivas - subjetivas ou objetivas, na

construção do filme; mas, não com relação ao enredo. A história no caso de

uma narrativa objetiva ou o conceito, no caso de uma narrativa subjetiva - são

pré definidos, fruto das idéias de um indivíduo e não de um grupo. A construção

da narrativa na forma de uma peça audiovisual possui mais de um autor, porém

a história, o enredo, a ideia ou o argumento possuem identificação individual.

Storm é uma obra de Luiz duVa, construída em tempo real como um filme em

conjunto com Manuel Pessôa. O filme possui dois autores a cada exibição, mas

a idéia que motivou sua criação, seu argumento, pertence a uma única pessoa.

Além disso, o aspecto do tempo real, se restringe mais a montagem

do filme, que é feita a partir de uma base de dados pré concebida e criada para

este fim por um indivíduo, o que o qualifica como autor desta, o que demonstra

haver possibilidades coletivas mais significativas e determinantes de tal

qualidade. Já a análise do jogo online The Blast Theory, revelou-me que a

base de dados pode ser construída por várias pessoas em tempo real porém, o

argumento único programado no algoritmo do jogo, restringe o enredo criado a

um único tipo, tornando o que será dito pré definido. Por fim, o espetáculo

teatral estudado, apresentou-me uma forma livre para construção coletiva de

uma história, à partir de um gatilho inicial, que pode ser uma frase, uma ideia,

que sirva de argumento. Neste caso, a criação da história e a construção da

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narrativa são absolutamente coletivas. O autor individual desaparece e se

personifica como um grupo onde cada componente recebe individualmente a

responsabilidade sobre a autoria dos significados produzidos, porém não

unicamente, porque não há controle individual sobre o resultado final do enredo

e da forma como foi construída a narrativa.

Os avanços tecnológicos e o surgimento das mídias digitais

modificaram as formas de narrar e continuam a fazê-lo, aproximando-as da

forma coletiva inerente a tradição oral. Este fato indica a existência de um

processo de retorno de uma visão de nossa existência como grupo, em

detrimento da visão individual - tão propícia ao capitalismo emergente do início

do século passado. Estas observações, propiciaram-me a percepção ampliada

do significado e importância do segundo objetivo desta pesquisa: a proposta de

elaboração de um sistema, revelando sua inserção num processo amplo de

retorno ao coletivo.

Se a realidade é uma construção coletiva, na medida em que

entendemos como real - aquilo que é possível ser identificado de forma

parecida por muitas ou várias pessoas; os processos narrativos coletivos

destituem as visões individuais como expressões da realidade.

Pode-se dizer que uma narrativa coletiva possui maior autoridade do

que a individual, pois é o resultado da somatória de várias visões do mundo e

por esse motivo, mais próxima do que podemos chamar de real. A redução da

autoridade das visões individuais também nos aproxima cada vez mais de uma

verdadeira democracia, onde as ideias produzidas e difundidas são coletivas,

expressando a visão ou interesses de um grupo e não de um indivíduo.

O exemplo do coletivo Mídia Ninja citado no capítulo 1 é uma tentativa

clara nesta direção. Sua intenção é fazer um jornalismo isento de interesses

políticos ou econômicos. Para isso o grupo criou uma forma coletiva de registro

e difusão de acontecimentos jornalísticos. O fato de várias pessoas produzirem

o conteúdo, é o que torna a matéria isenta, apresentando uma multiplicidade de

visões do mesmo acontecimento, impedindo o direcionamento individual dos

significados. Neste sentido qualquer processo que crie e evolua procedimentos

de produção coletiva de qualquer conteúdo, tem imensa relevância por estar

ligado à mudança de visão da realidade - uma visão mais ampla e distanciada

do corpo que a humanidade forma, à partir de suas individualidades,

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valorizando o grupo e nos levando a uma sociedade onde as ações individuais

tenham uma ligação mais próxima com os objetivos coletivos, e quem sabe,

mais justa - por enxergarmos os outros como partes de nós mesmos, na

medida em que somos pedaços de um mesmo corpo.

Os quatro casos estudados, no capítulo 3 deste trabalho, levaram-me

a conclusões e caminhos operacionais para a especificação do sistema a que

me propus. A especificação de um método, que possibilite a criação de um

sistema coletivo de produção de histórias, na forma de um filme em tempo real,

ratifica a percepção de que navegamos em um universo infinito de

possibilidades em constante evolução quando se trata de narrativas e,

independentemente do resultado da implementação do sistema ser funcional

ou não, o exercício da especificação aponta a existência de caminhos para a

experimentação que comprovam ou descartam possibilidades e, portanto,

contribui para a evolução e o aparecimento de outras formas de expressão.

Acredito que esta maneira de criar histórias revele anseios, visões, e

morais, ligadas ao inconsciente coletivo, formado pela soma dos individuais.

Digo ligados ao inconsciente, principalmente por serem criadas em tempo real

e, portanto, sem o intervalo necessário para gerar relações conscientes

oriundas do raciocínio lógico. Ao reduzir o tempo para reflexões racionais,

pode-se entrar em contato com as ideias mais puras, menos trabalhadas pela

razão.

Esta pesquisa é um pequeno passo nesta direção, e aponta caminhos

para pesquisas futuras sobre o assunto, na medida em que procura uma forma

diferente de produção de conhecimento e cultura, que vejo como espelho - no

sentido em que as narrativas refletem mudanças culturais; e motor - no sentido

em que estas motivam mudanças de visões de mundo - de um passado

individual para um futuro coletivo.

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1 - diagrama da relação do cinema com tipos de narrativas. – Pg. 35

Figura 2 - Obra "A fonte" de Marcel Duchamp, 1917. Disponível em

<https://egonturci.files.wordpress.com/2012/09/duchamp-

fonte.jpg&imgrefurl=https://egonturci.wordpress.com/2012/09/10/a-

fonte/&h=258&w=196&tbnid=2pW2OaDM5msrCM:&zoom=1&tbnh=186&tbnw=

141&usg=__1TFW3Jyvv1lQN3cdqO5IqQZuZOs=&docid=3vtOLSAZBTi09M&itg

=1&ved=0CMEBEMo3&ei=mEfKVM7oHqTbsATBwICIDQ>. Acesso em 15 jan.

2015.– Pg. 37

Figura 3 - apresentação do Layer Synthesis Device. Disponível em

<http://www.leoalmanac.org/vol19-no3-outsourcing-the-vj/>. Acesso em 14

abr.2014. – Pg. 40

Figura 4 - frame de um clipe do projeto Telepatia. Disponível em

<https://www.youtube.com/watch?v=Q2SNzO3R4Qk>. Acesso em 17 mai.

2014. – Pg. 42

Figura 5 - The horse in motion de Eadweard J. Muybridge. Disponível em

<http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/73/The_Horse_in_Motion.jp

g>. Acesso em 29 jan. 2015. – Pg. 49

Figuras 6 e 7 - cronofotografia de Étienne Jules Marey 1952 e reprodução de

pintura de Marcel Duchamp de 1912. Disponível em

<http://www.gianluigigargiulo.it/ricerca/cronofotografia/index_cronofotografia.ht

m>. Aacesso em 20 jun. 2014. – Pg. 50

Figura 8 - Shelpa Ferro - 100m Rasos, Haus der Kulturen der Welt, Berlim,

2006. Frame extraído do DVD que acompanha o livro Chelpa Ferro editado

pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. – Pg. 57

Figura 9 - apresentação de storm. disponível em

<http://liveimages.com.br/www.liveimages.com.br/Storm_Ok.html>. Acesso em

22 dez. 2014. – Pg. 59

Figura 10 - captura de tela de vídeo com trecho de uma apresentação de

storm. Disponível em

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<http://liveimages.com.br/www.liveimages.com.br/Storm_Ok.html>. Acesso em

22 dez. 2014. – Pg. 63

Figura 11 - captura cena do filme Ressaca. Disponível em

<http://www.ressaca.net/tudo.htm>. Acesso em 22 dez. 2014. – Pg. 64

Figura 12 - a Interface ou Engrenagem de montagem do filme Ressaca.

Disponível em <http://www.ressaca.net/tudo.htm>. Acesso em 22 dez. 2014. –

Pg. 65

Figura 13 - sobreposição dos mapas do jogo e da cidade. Disponível em

<http://www.blasttheory.co.uk/projects/can-you-see-me-now/>. Acesso em 22

dez. 2014– Pg. 67

Figura 14 - jogador perseguidor em ação. Disponível em <http://www.blasttheory.co.uk/projects/can-you-see-me-now/>. Acesso em 22 dez. 2014. – Pg. 68

Figura 15 - cena da peça Espontânea. Disponível em

<http://www.conteudoteatral.com.br/teatroamil/index.php?option=com_content&

view=article&id=94:espontanea&catid=27:pecas-anteriores&Itemid=5>. Acesso

em 22 dez. 2014. – Pg. 71

Figura 16 - cena da peça Espontânea. Disponível em

<http://www.conteudoteatral.com.br/teatroamil/index.php?option=com_content&

view=article&id=94:espontanea&catid=27:pecas-anteriores&Itemid=5>. Acesso

em 22 dez. 2014. – Pg. 72

Figura 17- diagrama geral do sistema. – Pg. 87

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APÊNDICE I - ENTREVISTA COM IAN SOFFREDINI

Segue a entrevista com Ian Soffredini, realizada em 10 de junho de

2014, onde ele nos explica o método usado por ele na concepção do

espetáculo Espontânea, desde sua definição até a aplicação em ensaios e o

treino dos atores.

P: De onde surgiu a ideia do ―Espontânea‖? Você teve a ideia

sozinho? Você buscou uma ideia que já existia?

R: É, têm várias gêneses pro ―Espontânea‖. Tem uma mais poética

que eu gosto bastante, que é... Eu tinha um sonho recorrente de um espetáculo

que eu entrava e não sabia que peça que era. Acho que todo ator tem esse

sonho. Tive esse pesadelo e resolvi realizar esse pesadelo. E tem outro

caminho que, na verdade é a verdade, que é... A minha família... Eu sou neto

do Carlos Alberto Soffredini. E ele desenvolveu um método chamado ―Estética

Teatral Popular Brasileira‖, que é uma releitura da estética teatral usada no

circo teatro para o palco italiano. Ele fez uma pesquisa muito profunda com as

famílias do teatro, entendendo exatamente como é que era a estética, como é

que era a linguagem, como é que se faz a arte de contar história

tradicionalmente brasileira, e readaptou ela para o palco italiano, e esta foi

minha formação, ou seja, quando parti a procura de novas fontes de pesquisa,

já possuía um forte entendimento sobre o que é contar uma história. Fui para a

Inglaterra estudar teatro e conheci várias linhas de dramaturgia, desde

Shakespeare até os modernos, pensei: Se eu já tenho uma linguagem forte de

como contar, eu vou desenvolver uma linguagem para resolver o que contar. A

minha pesquisa vai ser não escolher um texto pronto e montá-lo, eu vou

desenvolver uma linguagem onde qualquer história possa ser contada.

Encontrei objetivos semelhantes na Commedia Dell'arte, que naquela época

era o oposto do que se considera hoje. Hoje em dia, o teatro pago, o teatro

profissional, as pessoas decoram o texto e tem muitas formas de teatro amador

onde as pessoas vão improvisar e fazem qualquer coisa. Na época era o

oposto. Os amadores decoravam o texto e os profissionais experimentavam,

em cada espetáculo se fazia algo diferente. Uma diferença muito grande da

Commedia Dell'arte para o que a Espontânea acabou se tornando é que a

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estrutura dramatúrgica da Commedia Dell'arte já estava estabelecida. A atriz

que fazia a ingênua, fazia sempre a ingênua. Às vezes o drama era porque ela

queria casar, às vezes era porque o marido dela tava com fome, mas ela

sempre fazia o mesmo arquétipo. Vamos quebrar com isso também. O mesmo

ator vai ter que ser capaz de fazer arquétipos diferentes. Para isso, ele precisa

entender não só quais são os muitos arquétipos, mas como é que eles

contribuem para uma dramaturgia. Porque que existem esses arquétipos?

Porque que sempre tem o ingênuo? Porque que sempre tem o vilão? Nessa

pesquisa você precisa de atores que não são só capazes de improvisar muito

bem, mas de improvisar o trabalho do ator e do diretor, porque ninguém vai

estar lá na hora pra falar ―olha, se posiciona aqui, se posiciona ali, fala assim,

assado‖, a pessoa vai ter que perceber qual a função dramatúrgica do seu

personagem dentro de um contexto. Para fazer o Espontânea, o ator tem que

entender muito bem o que é uma estrutura dramatúrgica. Iniciamos uma

pesquisa, mas quando você começa a falar de teoria da dramaturgia, tem

muitas pesquisas diferentes. Nosso trabalho foi levantar quais são os mapas

que esses teóricos levantaram e quais são os pontos em comum entre eles. No

Espontânea você começa uma história, só que você não sabe qual história

você está começando, você está dentro de uma dramaturgia, sendo ela linear

ou não, linear no sentido cronológico, Toda cena ela vem pra contribuir com a

história, ela nunca pode estar solta, ela sempre tem que ter relação com as

outras cenas. Quando você faz isso sem saber quais são as cenas que vêm

pra frente, é um puta tiro no escuro, então no Espontânea você tem

constantemente a sensação de corda bamba. E a única defesa que você tem

no palco é você, os outros atores e o público, então você precisa abraçar a

ideia dos outros como se fossem suas. Tudo que for proposto no Espontânea

você tem que aceitar. Se você está querendo contar uma história sobre uma

princesa que quer se casar com o príncipe e alguém faz uma piada, sem

querer, que ela é sapatão, então mudou a história, a princesa é sapatão e você

tem que improvisar...

P: A partir desse start, como você criou a dinâmica de construção da

história? Como você conseguiu explicar para os atores como eles deviam agir?

Como eram os ensaios? De que maneira você estruturou para que tudo

funcionasse na hora?

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R: Eu dividi a pesquisa em quatro frentes. Então, duas frentes eu

fiquei responsável que é a de improvisação, onde a gente se baseou muito nas

técnicas do Keith Johnstone e Del Close que são teóricos do improviso, nem é

improviso teatral em geral é uma técnica específica de improviso que se chama

"Impro Improf" que envolve os conceitos da aceitação, generosidade, da

construção colaborativa. Em geral se usa essa técnica pra montagem de

espetáculos em cenas que não tem relação entre elas. Os atores têm que criar

uma cena que seja interessante para o público e que se complete em si

mesma. Foi aí que busquei as ferramentas pra conseguir colocar dois atores,

que não sabem que cena estão fazendo, no mesmo lugar e conseguir que eles

construam juntos uma cena. E a outra que eu fiz a frente foi a estética, na

pesquisa teatral ao longo dos séculos se desenvolveram muitas estéticas e eu

precisava que os atores estivessem afinados com uma única estética. Eu

escolhi, é claro, a que eu tinha mais afinidade, que é a estética teatral popular

brasileira e ela já dá um grande embasamento no sentido se exercer função

dramatúrgica porque quando você ganha o meio do palco é porque você esta

sendo o pivô daquela cena, como eu não sei que cena estou fazendo ainda, se

alguém toma o centro do palco eu sei que essa pessoa está querendo ser o

pivô daquela cena e todos sabem que têm que apoiar ele. Então eu pequei os

sígnos que a gente usa geralmente pra explicar pro público o que está

acontecendo pra gente explicar um para o outro o que está acontecendo

também. As outras frentes são a dramaturgia, onde me juntei a um grande

parceiro meu o Fabio Brand Torres que é um dramaturgo paulistano muito

premiado e parceiro em outros projetos e juntos desenvolvemos um mapa onde

a gente dividiu o espetáculo em três atos: o primeiro ato tem a função de

apresentar os personagens e o conflito. Existem muitas formas de se

apresentar os personagens, existe uma que chamamos de dramaturgia pobre

onde apresentação é feita diretamente. O cara chega e fala "eu sou o Carlos e

sou o vilão desta história e quero matar o fulano". Quando você faz uma cena

onde o conteúdo do que o personagem fala e a forma como ela fala e age

permitem a leitura de quem ele é, você tem um tipo de dramaturgia muito mais

rico e então a gente acabou pegando esse caminho onde o enredo acaba

contando para o público que personagem ele é, isso aumenta muito mais a

qualidade e o tesão de assistir o espetáculo, mas dificulta para o ator explicar

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qual a ideia dele, então muitas vezes eu entrei pra ser o vilão e acabei sendo o

mocinho porque os outros atores assim entenderam e propuseram falas que

me levaram para esse caminho.

P. Não dá pra contestar os caminhos propostos quando se está em

cena é um exercício de aceitação...

R. Não tem não. Até porque um não acrescenta, se eu como

personagem falo não pra alguma coisa, eu estou dando para a platéia um sim

das minhas qualidades, das minhas características, você nunca tira uma

informação, você só acrescenta coisas novas.

O segundo ato é onde ocorre o desenvolvimento do conflito e a crise.

Toda história tem uma crise. Tem um momento em que você percebe que o

personagem não vai alcançar o objetivo dele, ou que a história não vai vingar,

tem que alguma coisa que não vai dar certo. Em geral quando a gente percebia

qual era o conflito da história a gente ainda estava bem longe do conflito, mas

era o momento em que os atores respiravam fundo e falavam para si mesmos:

Ahh entendi que história é essa.

E finalmente o terceiro ato que era a conclusão da história. Como a

gente se baseava em três poemas para a inspiração do espetáculo, a gente

tinha a responsabilidade interna, uma coisa que dificilmente a gente

compartilhava com o público, de usar o poema, que no primeiro ato foi usado

para a apresentação dos personagens, neste momento do espetáculo, ou seja,

o segundo ato é necessariamente a crise então se é um poema que fala sobre

o patinho que sabe voar a gente tem que inventar um jeito do patinho que sabe

voar ser a cagada da peça, ser a crise do espetáculo. E o grande desafio era

usar o terceiro poema, construído colaborativamente pela platéia antes do

espetáculo começar, uma platéia que não sabia para que aquele poema seria

usado, e a gente tinha que usar esse poema para concluir a nossa história.

Então acho que esse era o maior desafio do Espontânea, usar o terceiro

poema para a conclusão da história.

A quarta e última linha de pesquisa foi a dramaturgia corporal, onde

fui ajudado por outro grande parceiro que acompanha a pesquisa da família

desde meu avô, que é o Eduardo Coutinho que é professor da ECA de

dramaturgia corporal. A dramaturgia corporal é por exemplo quando seu

personagem está num momento difícil todo seu corpo "falar" como ele está se

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sentindo. A gente não tinha cenário, então quando a gente estava num espaço

aberto, quando estava chovendo, subindo uma montanha, com frio, quem

contava isso para a platéia era o nosso corpo, isso não era falado com palavras

e todos os atores tinham que comprar a ideia mesmo que esta não estivesse

diretamente ligada a dramaturgia, para não quebrar a magia do espetáculo.

P. Durante a construção da história como era a comunicação entre os

atores? Havia comunicação? Vocês se falavam no "back stage" pra combinar o

que ia acontecer ou era tudo absolutamente decidido em cena?

R. Para ficar bem clara a opção pelo improviso, os atores nunca

saiam de cena, ou melhor do palco. Quando um ator não estava participando

da cena ele ainda ficava no palco como observador, então nunca havia um

momento onde os atores pudessem conversar e combinar antecipadamente o

encadeamento dos acontecimentos.

P. Mas quando eu assisti o espetáculo notei que os atores que não

estavam em cena conversavam ao pé do ouvido.

R. Como via de regra a gente era proibido de se falar, mas sempre

aconteciam exceções. O que a gente tinha eram códigos internos que

explicavam o que estava sendo proposto. No Espontânea cada cena acabava

com os dois atores saindo do personagem ao mesmo tempo e indo para o ator

neutro olhando diretamente para a platéia sem nenhuma comunicação prévia,

então haviam alguns sinais que indicavam para o outro ator o fim da fala. Por

exemplo a gente piscava com o olho que não estava virado para a platéia e o

outro ator sabia que eu já havia falado tudo que eu queria e não tinha mais

nada para acrescentar à cena. Um outro código era mandar um beijo que

significava "estou te dando esse poema de mão beijada", que o que eu estava

fazendo era um encaminhamento pra você ler o poema e pra gente ter certeza

de que o outro viu o sinal do beijo havia um sinal de resposta que era o

movimento de fechar a mão significando se estava com ele na mão, que você

sabia o que estava fazendo. A comunicação se baseava praticamente a estes

três códigos, uma comunicação que a platéia não compartilhava. Algumas

outras representações estéticas, por exemplo se o ator saia do personagem e

estendia a mão para o céu, significava que ele estava pedindo o poema. Este

era um código aberto, pois a platéia também percebia. Era a hora de algum

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outro ator pegar o poema e dar na mão do cara porque ele já sabia o que fazer

com aquilo.

Comunicação verbal direta entre os atores era muito rara, mesmo

porquê a gente experimentou e percebeu que isso acabava atrapalhando a

construção da história porque a gente trabalhava com elementos que ainda não

tinham sido expostos ao público. Como a gente ficava sempre no palco e

sempre havia alguém em cena, agindo e falando, cada segundo tinha muita

informação, a gente já estava no jogo e não tinha como escapar, se a gente

colocasse ainda uma informação que não estava no jogo, pra trabalhar

mentalmente a forma de encaixá-la acabava-se perdendo o que estava

acontecendo na cena. Chegamos então a conclusão de que não era bom que a

gente tivesse alguma informação que o público também não tivesse.

P. E as frases que vocês pediam para o público escrever era usadas

em que momento?

R. A inspiração do Espontânea era baseada em quatro elementos:

são três poemas, dois escolhidos de autores já publicados que poderiam ser

escolhidos nos livros que a gente tinha ali ou trazidos pelo público, o terceiro

poema era construído colaborativamente. Cada um escrevia uma frase

sabendo apenas a frase anterior...

P. Como nos exercícios surrealistas de desenho...

R. Exatamente, então a gente lia o poema uma vez, antes de começar

a peça e a gente tinha que dar uma solução pra ele. E o quarto elemento que

eram frases, escritas pelo público quando entravam na platéia. Os papéis com

as frases eram colocadas numa "urna" e sorteávamos três frases, líamos para

o público que votava qual delas seria a frase tema para a última cena do

espetáculo. A frase era lida e nós improvisávamos a última cena do espetáculo

só aí o espetáculo começava e tínhamos uma hora e meia para passar pelos

três poemas e chegarmos a cena final.

Era um trabalho de desapego infinito porque cada um dos seis atores

que estavam lá faziam um espetáculo inteiro em suas cabeças quando a gente

lia os tres poemas e a frase final, mas quando o primeiro ator entrava em cena

e falava a primeira palavra, os seis espetáculos que estavam construídos na

cabeça dos outros caiam e todos formavam um novo espetáculo, que

desabava com a próxima fala. Cada um de nós construía várias histórias

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durante o espetáculo. Então a gente desenvolveu uma regra: não sou eu que

vou escolher que peça é essa, não sou eu que vou escolher ser o protagonista

ou o antagonista, vou começar com a proposta que me vier e a peça é que

decide. Algumas vezes, quando conversamos depois do espetáculo,

percebemos que quase todos tinham uma ideia parecida para a história no

início, mas quando as pessoas iam realizar essa ideia ela ganhava vida

própria. Fica muito feio se você não segue o desejo do espetáculo. Fica

inorgânico e gritante para a platéia que a condução do enredo para contar uma

história que o ator já tem na cabeça dele.

P. Havia um questionamento com relação a autoria, vocês

conversavam sobre a quem conduziu mais ou menos a construção da história?

R. Uma coisa que acontecia era o oposto disso. Por exemplo: o ator,

hoje você puxou demais, forçou demais pra impor suas ideias. Seis cabeças

pensam melhor que uma, realmente, se a gente deixa a coisa rolar e a

construção se dá de forma igualitária, os espetáculos ficam muito mais ricos.

Se alguém puxa demais para sua ideia acaba "brochando o espetáculo" porque

tira a relação dos atores com o aqui e agora, a relação não acontece com o

que o outro está dizendo e sim com suas próprias ideias e não é esse o

caminho. Tem que ouvir o que o outro está dizendo e se relacionar com isso.

Essa relação acontece em outras camadas também. Essa é uma

pesquisa que realizo há muito tempo e também tive que me desapegar de

conceitos pré definidos para aceitar as soluções que apareciam no processo,

as ideias vinham para resolver problemas que estávamos vivenciando e não

problemas previstos ou premeditados. Então até na estruturação do projeto

aprendemos que estar no presente é o melhor caminho. Chegou um momento

durante o trabalho que nós já nos conhecíamos tão bem que podíamos

prescindir das palavras. Havia uma percepção do que o outro estava propondo

e estávamos ali para tirar o melhor um do outro.

P. Nos ensaios vocês faziam apenas exercícios ou vocês construíam

histórias?

R. A gente teve quatro períodos de ensaios: o primeiro foi puramente

treino para que as pessoas adquirissem as ferramentas para concluir esse

desafio, depois começamos a desenvolver o método. A partir de um poema

desenvolvíamos o primeiro ato de um espetáculo, as vezes à partir do mesmo

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poema fazíamos vários primeiros atos, ou à partir de vários poemas fazíamos

vários primeiros atos diferentes e fomos estendendo para o segundo e terceiro

ato. De vez em quando fazíamos o primeiro ato e pulávamos direto para o

terceiro para que tivéssemos a dramaturgia muito na mão. Depois voltamos

para o teórico fazendo uma peça inteira em dez minutos, ou um primeiro ato

em uma hora, então chegamos num momento que sentimos a necessidade de

fazer oficinas de leitura e ficávamos lendo livros de poesia que cada um trazia,

explorando as possibilidades de criação de cada um.