Por Ocasião Descoberta Do Brasil

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    Por ocasio da descoberta doBrasil: trs modernistas paulistas e

    um poeta francs no pas do ouroLuciano Cortez | PUC Minas

    Resumo: O texto busca reconstituir a viagem de Blaise Cendrars e dosmodernistas Mrio, Tarsila e Oswald a Minas Gerais em abril de 1924.Essa viagem, por um lado, consolidou tendncia do modernismo, no Brasil,de enraizamento das proposies das vanguardas europias na materialidadeda existncia brasileira. Do ngulo de Cendrars, por sua vez, forneceutestemunhos da experincia humana nos trpicos, principalmente no exemplodo Aleijadinho e sua obra. O rosrio de relatos que compe a histria dessaviagem a Minas Gerais ressalta a dvida essencial da arte moderna para coma diversidade cultural das periferias do capitalismo..Palavras-chave: Blaise Cendrars, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade.

    O muito conhecido prefcio de Paulo Prado a Pau-Brasil, emnotao contida logo em seu incio, traz aquilo que se fixou em nossas mentes

    como o momento inaugural desse conjunto de poemas: Oswald de Andrade,

    numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy umbigo do mundo

    descobriu, deslumbrado, a sua prpria terra. A volta ptria confirmou, no

    encantamento das descobertas manuelinas, a revelao surpreendente de que o

    Brasil existia.

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    O leitor saboreia a cena enquanto acontecimento nico, possivelmente

    tomado pelo efeito espetacular da imagem paradoxal. Contudo, um pouco mais

    atento aos detalhes da figura, poder vir a reconhecer nessas duas pequenas frases

    uma smula de nossa histria cultural, que, pelo menos at a Segunda Guerra

    Mundial, adotou a Europa como ponto de vista privilegiado para nossas prprias

    percepes do pas. O texto muito explcito nesse sentido. A Place Clichy, isto

    , Paris, aqui o umbigo do mundo. A descoberta do pas tropical, a partir desse

    ngulo, parece romper com o que Mrio de Andrade denominou molstia de

    Nabuco, que acometeria principalmente os intelectuais brasileiros: certa angstia

    de aqui no encontrar na paisagem, na arquitetura e em tudo o mais uma densidade

    humana (europia, lgico) e, em contrapartida, quando na Europa, faltar-lhes o

    Brasil, a forma em que cada um de ns foi vazado ao nascer.1 No entanto, o

    deslumbramento com a prpria terra a partir de um ateli na Place Clichy

    reafirmao da condio dependente, pois implica, ainda nesse caso, a necessidade

    da chancela europeia para existir como sentimento. Paris, em incios dos anos 20,

    estava aberta ao exotismo dos povos perifricos, ali consumido em altas doses.

    Quanto segunda frase, refere-se ao retorno ptria, que permitiria

    transformar em evidncia a observao distante. A viagem de Blaise Cendrars ao

    Brasil, sob os auspcios de Paulo Prado, conferiu autoridade ao grupo modernista e

    a seu projeto de mesclar linguagem europia de vanguarda e matria brasileira. A

    excurso desse poeta ao Rio de Janeiro, no carnaval, e a viagem a Minas Gerais, na

    Semana Santa de 1924, acompanhado por Oswald, Mrio de Andrade e Tarsila do

    Amaral, foram momentos de redimensionamento dessa matria, importantes para

    a descompresso de um sentimento nacionalista reprimido sob grossas camadas

    de vergonha caipira.

    Ao que tudo indica, dada a inexistncia de qualquer referncia ao

    universo colonial mineiro no Manifesto da poesia pau-brasil, de maro de 1924,

    as andanas de Cendrars limitar-se-iam originalmente a So Paulo e ao carnaval do

    Rio de Janeiro, para testemunhar Wagner submergindo ante os cordes de Botafogo.

    Entretanto, em algum momento entre a publicao desse manifesto e a Semana

    Santa daquele ano, decidiu-se por estender esse percurso a Minas Gerais, o que

    veio a impactar significativamente a perspectiva de Brasil tomada do ateli da

    Place Clichy, a ela oferecendo amplitude, se pensarmos principalmente em Tarsila

    1. NABUCO. Minha formao, p. 40.

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    e Oswald. No entanto, essa excurso produzir seus efeitos mesmo em Mrio de

    Andrade, visivelmente desconfortvel diante do reforo importado pelo casal para

    o confronto intelectual que lhes propusera ao final do ano anterior. No tardar

    para que Mrio, como resposta, realize viagem ainda mais completa, pelo Amazonas

    at o Peru, pelo Madeira at a Bolvia, por Maraj at dizer chega, base do pico

    s avessas de Macunama.

    Participaram do passeio a Minas Gerais, alm de Cendrars, Oswald,

    Tarsila e Mrio, Non, filho do primeiro casamento de Oswald, Ren Thiollier, intelectual

    da elite paulistana, responsvel pelo aluguel do Teatro Municipal de So Paulo

    para a Semana de Arte Moderna de 22, e D. Olvia Guedes Penteado, acompanhada

    pelo genro, Gofredo da Silva Telles, amiga e incentivadora dos modernistas. De

    famlia rica e influente, D. Olvia, chamada de Nossa Senhora do Brasil, por Mrio

    de Andrade, conferiu aventura um carter quase oficial. Foi devido a sua presena

    que a caravana paulista, depois de descoberta pelo governo de Minas, recebeu

    todo tipo de ateno e apoio.

    De So Paulo a So Joo del-Rei e Tiradentes

    Decidi fazer um passeio velha regio do ouro. Parti com um amigo.

    A regio era bela e me agradava muito. Atravessamos de um flego

    colinas e montanhas de uma Auvergne subtropical.

    Imensos rebanhos de bois pastavam sombra de palmeiras.2

    Blaise Cendrars

    No amanhecer de 16 de abril de 1924, Quarta-feira Santa, a caravana

    paulista achava-se em Barra do Pira, espera da composio vinda do Rio de

    Janeiro em direo a Minas Gerais. Como rememora Ren Thiollier, rompia uma

    linda manh. Uma manh lustrosa e ensolarada, o cu azul a descerrar-se num

    afago divino. Embora mal dormidos e estremunhados, sentamos ecoar,

    amorosamente, dentro de ns, o cantar dos pssaros, o cucuritar dos galos.3 Esse

    testemunho, exemplo daquilo que Paulo Prado denominou o mal da eloquncia

    2. Traduzido de CENDRARS. Les pauvres honteaux. In: EULLIO. A aventurabrasileira de Blaise Cendrars, p. 573-575.

    3. THIOLLIER. Ns, em So Joo del-Rei.

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    balofa e roagante,4 muitas vezes, no entanto, recupera cenas inesperadas e quase

    pau-brasil, como a de um Blaise Cendrars com fome pantagrulica, mastigando e

    representando quadros para divertir as senhoras: Fazia como se estivesse a cavalgar.

    Ora, a passo lento, ora a trote; depois a galope, e a toda a brida; imitava assim os

    cavaleiros a passear no Bois de Boulogne.

    Un officier! dizia, e punha-se teso. Une amazone! La comtesse de

    Pourtals!, e cruzava as pernas de lado com o chapu batido a testa,

    numa elegncia Gainsborough. Ns nos ramos. Por fim ouvimos

    insinuar um pequeno:

    Este deve ser o palhao do circo!

    E foi assim, com efeito, que passamos, na Barra do Pira, por artistas

    de uma companhia de cavalinhos.

    A essas lembranas de Thiollier, publicadas em Terra roxa e outras

    terras dois anos depois, somam-se os desenhos de Tarsila,5 produzidos em grande

    quantidade ao longo da viagem. So anotaes grficas, com reduo dos elementos

    figurados a um mnimo necessrio ao reconhecimento da cena, quase ideogramas

    da paisagem. Essa formulao, no apenas funcional para as condies da viagem,

    conquistou ao longo daquele ano e no ano seguinte a posio de base de composio

    das pinturas de sua fase pau-brasil. A tnica em torno da linha solta e gil dessas

    anotaes cede lugar, ento, a composies mais densamente articuladas; e as

    sugestes de volume, disseminadas igualmente por todo o desenho, so substitudas

    pela oposio de planos e volumes, pictoricamente construda. Esse carter de

    sntese encontra-se proposto no Manifesto da poesia pau-brasil, como reao ao

    detalhe naturalista e morbidez romntica, e tem origem nas lies do cubismo,

    assimiladas por Tarsila e Oswald em 1923.

    Para os poemas de Roteiro das minas6 (caderno contido em Pau-

    Brasil, reproduzindo a viagem de 1924), no so conhecidos, infelizmente, nenhum

    4. PRADO. Poesia Pau-Brasil. In: ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil, p. 10.

    5. Esses desenhos encontram-se reproduzidos no Catlogo raisonn daartista, recentemente publicado pela Base 7. Acham-se tambm disponveis

    no endereo eletrnico .

    6. Para uma viso pormenorizada desse caderno de Pau-Brasil, consultarCORTEZ. Roteiro das minas: paisagem e poesia em Oswald de Andrade.Para as relaes entre poesia e visualidade em Pau-Brasil, CORTEZ.Quase pintura: poesia e visualidade em Pau-Brasil, de Oswald de Andrade.

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    de seus registros iniciais. Entretanto, poderemos reconhecer nesses poemas a

    inteno de reproduzir a notao rpida da paisagem, caracterstica daqueles

    desenhos de Tarsila:

    traituba

    O sobrado parecia uma igreja

    Currais

    E uma e outra rvore

    Para amarrar os bois

    O pomar de toda fruta

    E a passarinhada

    Jo na roa de milho

    Carros de fumo puxados por 12 bois

    Codorna tucano perdiz araponga

    Jacu nhambu juriti7

    Os poemas desse caderno de Pau-Brasil reconstituem a paisagem

    de Minas, mas dispersando-a em estruturas que no se encontram perfeitamente

    articuladas, semelhana dos desenhos de Tarsila relativos viagem da Semana

    Santa, muitas vezes dispersos e acumulados na folha branca do papel,

    despreocupados em garantir unidade figurativa de obra acabada. No caso particular

    de traituba, essa desarticulao acentuadamente realizada em seus dois ltimos

    versos, aglomerao desencontrada de aves soltas.

    H, contudo, diferena importante entre os poemas de Roteiro das

    minas e a srie de desenhos de Tarsila produzidos durante a viagem a Minas

    Gerais. Esses poemas de Oswald buscam certamente essa aparncia de notas de

    viagem; no entanto, a srie se articula a outras sries de poemas contidas no livro,

    principalmente na sua inteno de documentar uma descoberta do Brasil iniciada

    desde a Place Clichy. O poema traituba, em especial, tem papel relevante nesse

    sentido. Refere-se, antes de tudo, a localidade fora do trajeto da viagem de 1924.

    Traituba, nome de uma serra mais a sudoeste do percurso realizado pelos

    modernistas, foi no perodo colonial ponto de bifurcao dos caminhos que

    7. ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil, p. 88. Todos os poemas de Oswaldde Andrade, referidos nesse artigo, encontram-se nesse volume, no

    caderno Roteiro das minas.

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    inicialmente levaram os paulistas a So Joo del-Rei e Tiradentes, ou, mais ao

    norte, s minas do Sabarabuu. H nesse poema, por essa escolha, o ntido interesse

    em associar dois planos histricos, o dos bandeirantes e o dos modernistas, vontade,

    alis, tambm presente no primeiro poema do caderno, quando em seus versos

    finais convida os leitores a descobrir a Minas histrica: Ide a So Joo del Rei / De

    trem / Como os paulistas foram / A p de ferro. Por outro lado, o poema traituba

    associa duas outras isotopias: na paisagem interiorana apresentada encontram-se

    embutidas referncias religiosas associadas natividade e Semana Santa de 1924.

    A primeira parcela do poema parece confirmar essa perspectiva, com seu sobrado

    que parecia uma igreja (possivelmente a sede da fazenda Traituba) e o ambiente

    circundante humilde, com uma e outra rvore / Para amarrar os bois / O pomar de

    toda fruta / E a passarinhada / Jo na roa de milho. H tambm Carros de fumo

    puxados por 12 bois, possvel aluso aos apstolos. A isso se acrescentem os dois

    versos finais, com seu aglomerado de aves e dos sons de seus nomes, formando

    uma bela coleo de oclusivas e nasais, entremeadas por sons voclicos agudos e

    graves misturados, a reproduzir a multido de sinos que tocam simultaneamente

    em certas ocasies da Semana Santa em So Joo del-Rei. Esses dois ltimos versos,

    rompendo a calma pachorrenta dos versos iniciais, realizam em sentido inverso as

    referncias sonoras do poema do Domingo de Pscoa daquele ano:

    ressurreio

    Um atropelo de sinos processionais

    No silncio

    L fora tudo volta

    espetaculosa tranquilidade de Minas

    Dessa forma, traituba, para constituir uma mitologia da descoberta

    do Brasil pelos modernistas, associando-os aos bandeirantes paulistas, necessita

    romper com os dados da crnica da viagem realmente ocorrida, que levou a caravana

    por Juiz de Fora a Barbacena, e dali a So Joo del-Rei, numa nova composio de

    bitola estreita e desconfortvel.

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    A Semana Santa em So Joo del-Rei e Tiradentes

    Que do Godofredo? No vi. Que do Godofredo! Decerto j subiu

    a ladeira.

    Mas ele no sabe quem tem a chave da igreja! Fui-lhe atrs. Passou

    por aqui um moo de So Paulo?

    Um moo bem vestido, olhando muito srio? . Passou, sim senhor.

    Subiu.

    Tambm: em So Joo del-Rei, moos bem vestidos s quasi que ns.8

    Mrio de Andrade

    Ao final do dia 16 de abril, Quarta-feira Santa, a caravana paulista j

    se encontrava devidamente alojada no Hotel Macedo, com direito a colches

    dobrados ao meio sobre as camas, a certificar o asseio de fronhas e lenis.9

    No dia seguinte, repousados, espalharam-se pela cidade.

    possivelmente dessa data o desenho de Tarsila So Joo del-Rei: rua com igreja

    ao fundo, tomado da esquina do Hotel Macedo, com a igreja do Carmo emergindo

    por trs do casario. Nesse gozo de descobertas devem ter gasto todo o dia.

    noite quase certo que visitaram os passinhos. Em So Joo del-

    Rei, durante a Semana Santa, quase todas as igrejas esvaziam suas naves dos bancos

    de madeira. Apenas ramos de arnica adornam cada interior desnudado. Sobre o

    piso do amplo salo que assim se produz, folhas de rosmaninho envolvem o

    ambiente com seu aroma. Essas ervas (a primeira, medicinal, a segunda, aromtica)

    associam-se a Jos de Arimatia e Nicodemos, que embalsamaram o corpo de

    Cristo para o sepultamento. Na posio do altar, cenas bblicas estariam representadas

    por figuras montadas especialmente para a ocasio. Ao adentrar esses templos, os

    participantes da caravana paulista encontrariam meninos com grandes matracas

    nas portadas, recolhendo esmolas para as velas do Santssimo Sacramento. Com

    olhar maroto e movimentos fortes nas matracas, gritariam: para a cera do Santo

    Sepulcro!, assustando os incautos.

    Ramos de rosmaninho tambm seriam encontrados por toda a cidade,

    cados no cho das mos dos vendedores. Seu perfume estaria espalhado por todo

    lado, imantando So Joo del-Rei com o sentimento piedoso solicitado pelo

    momento.

    8. ANDRADE, Mrio de. Crnica de Malazarte VIII.

    9. Cf. THIOLLIER. Ns, em So Joo del-Rei.

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    Para a Sexta-feira da Paixo de Cristo, 18 de abril, no h dados que

    indiquem a presena dos paulistas, pela manh, no mais belo oficio de trevas da

    Semana Santa, o da Sexta-feira Maior, na igreja Matriz, com mais de duas horas de

    durao. Mas se a ele assistiram, possvel que o canto dos salmos nessa cerimnia

    tenha sido a origem do comentrio de Cendrars de ser a msica cantada em So

    Joo del-Rei o mais belo cantocho que j ouvira.10 Ao final desse ofcio, momento

    de expectativa pela sorte de Cristo, gradativamente se apagam as velas do altar e

    do candelabro, exceto a que se encontra em seu vrtice, apenas ocultada. A igreja

    toda escurido. Nesse momento os fiis batem vigorosamente os ps no assoalho

    de madeira, em grande estrondo, at que as luzes se acendam e retorne ao

    candelabro a vela representando Cristo ressuscitado.

    Em Tiradentes, mais noite, participaram da majestosa procisso do

    Enterro do Senhor, que continuao da cena do Descendimento da Cruz.

    Um padre sobe ao plpito. medida que desenvolve seu comentrio

    sobre o ato do descendimento, outros dois sacerdotes com tnicas brancas,

    representando Nicodemos e Jos de Arimatia, cuidadosa e lentamente desprendem

    da cruz o corpo morto de Jesus, colocando-o no esquife. A pouca distncia, as diversas

    figuras bblicas que participaro da procisso aguardam seu incio, tal como registrado

    por Tarsila, em Procisso em Tiradentes com Vernica. Ao centro do desenho,

    entre a multido de figurantes, h um portugus baixo e de largos bigodes, talvez

    o Abrao do poema simbologia, de Oswald de Andrade: Abrao tem bigodes

    pretos / E sabia que Deus colocava o Anjo atrs dele / Isaac inocente pequeno

    e nuzinho; O homens que carregam o caixo / Esto todos de branco / E descalos;

    O soldado romano / zangadssimo / E tem cabelo na cara; O padre saiu para

    a rua / De dentro de um quadro antigo. Comeava a procisso do Enterro.

    Cidade pequena a percorrer, logo o cortejo chegava praa da igreja

    de Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos, em frente cadeia. Os participantes eram

    quase todos negros; algumas centenas, diria Cendrars.

    10. Depoimento de Tarsila. In: AMARAL. Blaise Cendrars e os modernistas,p. 59.

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    Eles estavam todos vestidos de tnicas e tinham velas acesas nas mos.

    As velhas mulheres e as crianas pequenas usavam mscaras. Um grupo

    de jovens vaqueiros conduzia um jumento sobre o qual estava preso um

    boneco recheado de plvora, de fogos de artifcio, de foguetes e de

    bombas. Era uma figura de Judas Iscariotes, conduzida para fora da pequena

    cidade para ser queimada e faz-la explodir. De p, sobre um pdio

    recoberto de pelcia, uma jovem corcunda cantava o lamento da Vernica.

    sua voz pura, cristalina, flauteada, emocionada, se misturava a voz grave

    de uma alta mulher, macilenta, anmica, grvida. Um pequeno portugus

    barrigudo e um gigantesco evangelista negro acompanhavam essas duas

    mulheres em falso-bordo. Aps cada estrofe a corcunda apresentava

    multido o linho branco que traz impresso o sofrido rosto de Nosso Senhor.11

    A Vernica estende os braos / E canta / O plio parou / Todos

    escutam / A voz na noite / Cheia de ladeiras acesas, acrescentaria Oswald em

    procisso do enterro.

    No dia seguinte, Sbado de Aleluia, ocorreu o conhecido encontro

    dos paulistas com o prisioneiro do crime do corao devorado. O caso produziu

    em Cendrars grande admirao, a ponto de ser transformado em passagem de

    loge de la vie dangereuse. Mrio de Andrade tambm tentou umas endechas do

    preso, que no foram adiante. De qualquer forma, o certo que as manifestaes

    populares que corriam paralelas Semana Santa, e, muitas vezes a ela se mesclando,

    tiveram tanta ou maior importncia para os participantes da caravana. Sabemos,

    por exemplo, por meio do poema sbado de aleluia, de Oswald de Andrade, e de

    crnica de Mrio, que os viajantes no se encontravam no interior da matriz de So

    Joo del-Rei nas Matinas da Ressurreio,12 iniciada s 19 horas, mas na praa

    Severiano de Rezende,13 ou arredores, para assistir malhao do Judas, o Judas de

    Jos Ferreira Gomes, escultor, sacristo e pirotcnico.14

    11. CENDRARS. loge de la vie dangereuse. Traduzido de fragmento dessevolume, reproduzido em AMARAL. Blaise Cendrars e os modernistas, p. 63.

    12. Cf. GAIO SOBRINHO. Visita colonial cidade de So Joo del-Rei, p.106. Mesmo celebrada antes da meia-noite, a missa da Viglia Pascal a

    verdadeira missa do Domingo de Pscoa.

    13. A TRIBUNA. Diverso do Judas, p. 2.

    14. ANDRADE, Mrio de. Crnica de Malazarte VIII.

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    sbado de aleluia

    Serpentes de fogo procuram morder o cu

    E estouram

    A praa pblica est cheia

    E a execuo espera o arcebispo

    Sair da histria colonial

    Longe vai tempo soltaram a lua

    Como um balo de dentro da serra

    Judas balana cado numa rvore

    Do cu doirado e altssimo

    Jardins

    Palmeiras

    Negros

    Nessa mesma noite os paulistas assistiram tambm ao desfile dos

    blocos carnavalescos vencedores do carnaval de So Joo del-Rei. Um deles vem

    a ser o bumba-meu-boi de Oswald de Andrade, que, Descolocado / Arrebentado,

    dana Na msica noturna. Era o bloco do Boi, uma extraordinria reunio de

    belos travestis, que divertiram imensamente o povo com as suas inigualveis

    touradas.15 Alm dele tambm desfilaram o Custa, mas vai..., rancho admirvel

    (...), com as suas ricas fantasias, afinada banda de msica e bem feitas grinaldas de

    flores, e os Egipcianos, puxado por entusistica banda de clarins, que agradou

    bastante o pblico com a dana das fitas, ao som de harmoniosas canes.

    Depois dos desfiles dos ranchos, os paulistas compareceram

    cerimnia de premiao dos vencedores, sendo uma taa entregue ao primeiro

    lugar, o rancho Custa, mas vai.... Dirigiram-se, logo a seguir, a animadssimo

    festival danante, que s foi terminar aps as 4 horas da madrugada. Foram

    servidos vinhos finos e cerveja aos representantes da imprensa e das sociedades

    carnavalescas, bem como misso artstica que visitava a cidade. Pronunciaram-

    se vrios oradores, os quais foram grandemente aplaudidos.

    15. A TRIBUNA. Mi-Carme, p. 2.

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    No difcil imaginar que Mrio de Andrade foi um deles,

    possivelmente ali ressaltando a importncia das festividades da Semana Santa,

    religiosas ou profanas, para a construo da cultura brasileira, de nossa personalidade

    como nao. Em Noturno de Belo Horizonte, rememorando esse evento, prope

    que a humanidade seria na Terra o grande milagre do amor!, mas O amor que

    no uma paz, bem mais bonito que ela, / Porque um complementamento!....

    Ns somos na Terra o grande milagre do amor!

    E embora to diversa a nossa vida

    Danamos juntos no carnaval das gentes,

    Bloco pachola do Custa mas vai!16

    Em Crnicas de Malazarte VIII, por sua vez, o bloco reaparece para ajudar a

    caracterizar a figura de D. Olvia Guedes Penteado. Ao contrrio dos burgueses

    paulistas, em sua maior parte conformados prpria riqueza, rastaqueras,

    desinformados e reacionrios, D. Olvia sorri deslumbrada, sempre ativa, incansvel;

    com a mesma graa e imperturbvel perfeio sabe pisar sales nobres e sentar-

    se ao lado dos danadores do Bloco Agenta, mas vai!.

    Logo aps o baile, sob os efeitos dessa noitada de Brasil, vinhos

    finos e cerveja, Mrio e Oswald protagonizaram, no Hotel Macedo, acalorada

    discusso sobre o Aleijadinho. Mrio defendia no escultor sua tcnica segura,

    perfeita, e a riqueza das suas deformaes, que lembrariam os artistas modernos

    da atualidade. Ora, deixe-se disso, Mrio, discordou Oswald, dando uma risada

    [de] deboche. Reserve seu cabotinismo para mais tarde. Voc no est sendo

    sincero nem para consigo mesmo. E provocou: H, no h dvida, grandes

    qualidades na obra do Aleijadinho, mas a mais importante delas a ignorncia

    crassa que ele revela em toda a sua estaturia. sabido que ele no tinha a mnima

    noo de anatomia. O Afonso Celso tratava-o de artista inculto e genial. Mrio

    explodiu: No me fale nesse homem, pelo amor de Deus!.17 que Mrio defendia,

    em 1924, proposio bastante distinta da que sustentara em 1920, aps sua primeira

    viagem a Minas. Naquela ocasio, considerara Aleijadinho genial, mas, sem meios

    para uma viagem de estudos ao Rio ou Bahia, faltava-lhe instruo,18

    16. ANDRADE, Mrio de. Poesias completas, p. 165-166.

    17. THIOLLIER. Blaise Cendrars no Brasil.

    18. ANDRADE, Mrio de. Arte religiosa no Brasil, p. 105-106.

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    aproximando-se, de fato, das proposies do conde Afonso Celso, autor de Por

    que me ufano do meu pas, livro de defesa ingnua e acrtica do Brasil.

    Depois desse entrevero, a procisso do Santssimo Sacramento veio

    a ser a ltima manifestao religiosa presenciada pelos excursionistas. Ainda nesse

    domingo, entre outros stios, visitaram a antiga igreja de Bom Jesus de Matosinhos.

    O poema chagas dria, de Oswald de Andrade, talvez seja a nica memria do

    interior desse edifcio, demolido em 1970: Picassos na parede branca / E mais

    nada / Sob o teto de caixes / Mas na sacristia / Uma imagem barbuda / Arregalada

    de santidade / Me espera como uma criana de colo. Parte da fachada dessa igreja

    foi comercializada; sua portada encontrava-se quele mesmo ano em uma fazenda

    de So Paulo. A arte colonial mineira espalhava-se pelo Brasil.

    De So Joo del-Rei a Belo Horizonte

    U! Msica na estao... Que ser? Vai embarcar. Embarcou. Estas mas

    sero daqui? O Godofredo, fazendeirssimo, se irrita: Isto no de Juiz

    de Fora ou Belo Horizonte. Ento a gente desse lado capaz de plantar

    mais do que come? Modorra. Pasmaceira. Que pobreza! O trem engasga.

    D um arranco todos sobem. Vai. Que negros mais diversos! Cabindas,

    monjolos, minas... Da Beleza hediondez. Espero o Quelle merveille.

    Onde estar Cendrars?19

    Mrio de Andrade

    Na segunda-feira, 21 de abril, os paulistas se despediam de So Joo

    del-Rei. Mas no voltaram a Barbacena para da se dirigirem a Belo Horizonte em

    composies confortveis. Antes, tomaram o trem de bitola estreita da Oeste de

    Minas por um caminho mais dificultoso e longo, talvez para seguir o percurso dos

    primeiros bandeirantes que chegaram a Minas Gerais. S Ren Thiollier no

    prosseguiu viagem, porque Cendrars e Oswald teriam caoado tanto dele que

    preferiu voltar sozinho a So Paulo.20

    19. ANDRADE, Mrio de. Crnica de Malazarte VIII.

    20. Cf. MORAES. Recordaes de Blaise Cendrars. In: EULLIO. A aventurabrasileira de Blaise Cendrars, p. 484.

  • Belo Horizonte, p. 1-167

    27

    Em Crnicas de Malazarte VIII, Mrio de Andrade descreve essa

    parcela da viagem. O caminho exposto medida que o cronista desenvolve um

    texto laudatrio figura de D. Olvia Guedes Penteado, Muito digna, intrpida

    paulista da boa tmpera, sorridente sempre, grande dama. As intromisses da

    paisagem circundante, natural ou humana, na estrutura do texto-base tornam o

    conjunto fragmentrio, moderno.

    O arraial antigo aparece, que lindo! a igreja sempre no alto... O casario

    branco, de teto levemente chins, desvia as lgrimas do Senna.21 A

    paisagem comea a interessar outra vez. Olhe que ponte! como na ndia.

    Viaja-se pela sia inteira.

    Os paulistas percorriam um trecho tortuoso da estrada aps Ibituruna.

    Ali o vale do rio das Mortes se torna especialmente estreito e acidentado. H

    grande quantidade de curvas, o que talvez explique a aparncia oriental que Mrio

    v no percurso. J prximo a Aureliano Mouro o trem ultrapassa os 74 metros da

    ponte do Inferno, lanando-se para a margem direita do rio. Da segue um longo

    trecho muito pedregoso e encachoeirado.22

    Transpostas para o Noturno de Belo Horizonte, as anotaes ligeiras

    da crnica tomam a dimenso potica pretendida:

    Minas Gerais de assombros e anedotas...

    Os mineiros pintam diariamente o cu de azul

    Com os pincis das macabas folhudas.

    Olhe a cascata l!

    Sbita bombarda.

    Talvez folha de arbusto,

    Ninho de tenenm que cai pesado,

    Talvez o trem, talvez ningum...

    As guas se assustaram

    E o estouro dos rios comeou.

    21. Seu Senna era o chefe do trem. ntimo dos paulistas, chorava ao contaro caso de amor de sua vida.

    22. Cf. VAZ. Estrada de Ferro Oeste de Minas, p. 66.

  • 28

    O eixo e a roda: v. 19, n. 1, 2010

    Ao final da tarde, a caravana chega a Divinpolis, onde pernoita. No

    dia seguinte, 22 de abril, gasta toda a manh at Belo Horizonte. H em Roteiro

    das minas um belo poema, paisagem, do incio desse trecho, com a manh ainda

    recoberta por nvoa: Na atmosfera violeta / A madrugada desbota / Uma pirmide

    quebra o horizonte / Torres espirram do cho ainda escuro / Pontes trazem nos

    pulsos rios bramindo / Entre fogos / Tudo novo se desencapotando.

    O poema seguinte, por sua vez, vai sintetizar nos seus seis versos a

    paisagem com o sol prximo ao meio-dia. A nvoa da manh, responsvel pela

    atmosfera impressionista do primeiro poema, dissipou-se. Agora h nitidez e absoluta

    preciso. Os coqueiros erguem-se verticais, numa linearidade que os aproxima das

    palmeiras de Tarsila. Ao mesmo tempo, sua sucesso sugere a mobilidade do cinema:

    longo da linha

    Coqueiros

    Aos dois

    Aos trs

    Aos grupos

    Altos

    Baixos

    Por fim, surgem os ndices da proximidade de Belo Horizonte,

    recuperados por Oswald em aproximao da capital: Trazem-nos poemas no

    trem / Azuis e vermelhos / Como a terra e o horizonte / um hotel rigorosamente

    familiar / Que oferece vantagens reais / Aos dignos forasteiros / Havendo o mximo

    de escrpulo na direo da cozinha // Casas defendem o vosso prprio interesse

    / Proporcionando-vos uma economia / De 2$000, de 3$000 // Impermeveis /

    Borzeguins / Pijamas.

    Belo Horizonte e cidades prximas

    Maravilha de milhares de brilhos vidrilhos,

    Calma do noturno de Belo Horizonte...

    O silncio fresco desfolha das rvores

    E orvalha o jardim s.

    Larguezas.

    Mrio de Andrade

  • Belo Horizonte, p. 1-167

    29

    Os paulistas chegaram a Belo Horizonte prximo hora do almoo

    daquela tera-feira. Como j eram esperados, visto que a excurso fora divulgada

    em 18 de abril pelo Minas Gerais, no de se estranhar que, logo aps o almoo

    em um restaurante da cidade, fossem abordados pelo Secretrio de Agricultura

    mineiro, Daniel de Carvalho, que lhes colocou disposio automvel e vages

    especiais para onde desejassem ir.

    Por outro lado, Oswald de Andrade naquela tarde visitou a redao

    do Dirio de Minas, divulgando a presena paulista na cidade. provvel que

    nessa visita tenha deixado aos poetas mineiros, colaboradores daquele jornal, o

    convite para encontro no dia seguinte, no Grande Hotel.

    Em 1924, Belo Horizonte possua largas avenidas, ajardinadas por

    renques gmeos de fcus. Seguindo pela principal delas, a Afonso Pena, podia-se

    chegar esquina com a rua da Bahia, e ao do Bar do Ponto, centro de onde se

    irradiava todo um pequeno bairro no oficial, pelo qual passava Belo Horizonte

    inteira.23 Dali, subindo a Bahia, chegava-se, dois quarteires depois, ao Grande

    Hotel, pouso da caravana paulista.

    Pela manh do dia seguinte, acompanhados por Daniel de Carvalho,

    saram cedo para excurso a Santa Luzia, Lagoa Santa, Sete Lagoas e serra do

    Cip. Em Santa Luzia descobriram Marcolino, pintor autodidata, exemplo vivo dos

    primitivos autnticos celebrados por Mrio em So Joo del-Rei e Tiradentes.

    Despropores das figuras em sua pintura parecem ter sido o motivo

    do entusiasmo de Oswald de Andrade para com esse artista popular:

    viveiro

    Bananeiras monumentais

    Mas no primeiro plano

    O cachorro maior que a menina

    Cor de ouro fosco

    As casas do vale

    So habitadas pela passarada matinal

    Que grita de longe

    23. Cf. NAVA. Beira-mar, p.4.

  • 30

    O eixo e a roda: v. 19, n. 1, 2010

    Junto Capela

    H um pintor

    Marcolino de Santa Luzia

    Da passagem da caravana por Lagoa Santa resultou, entre outras

    produes dos excursionistas, uma admirvel pintura de Tarsila, de 1925, construda

    a partir de desenho produzido na viagem. Esse trabalho, destoando da agenda

    pau-brasil que a artista veio a adotar, possui tenso lrica algo distinta, decorrente

    de dois fatores fundamentais. O cu azul-turquesa das pinturas de Tarsila, geralmente

    lmpido e quase plano, conferindo paisagem pau-brasil certa inocncia,

    desempenha em Lagoa Santa outro papel: contorna, dramtico, os elementos de

    fundo da pintura, a bananeira, o casario, as torres da igreja, mas tambm duas das

    pontas dos troncos retorcidos do cerrado, utilizados na cerca da parte inferior da

    tela. Essa cerca, em tons mais frios e baixos, em um primeiro plano muito prximo,

    nico entre as pinturas do perodo, parcialmente obstrui e tensiona a paisagem ao

    fundo, dando ao conjunto uma dimenso mais subjetiva, em contraste com a

    aparncia, entre singela e tcnica, de outros trabalhos da artista desse mesmo ano.

    Retornando a Belo Horizonte, os bandeirantes modernistas, como

    previsto, encontraram-se noite com Pedro Nava, Drummond, Martins de Almeida

    e Emlio Moura. A conversa fez-se de imediato muito animada. Logo a roda formou

    sub-rodas, rememora Pedro Nava, e num canto do salo ouvimos de Oswald

    detalhes sobre Dona Olvia. No, ela no tomara parte na Semana, pois nessa

    ocasio estava na Europa. S se convertera ao Modernismo inda agora, depois de

    sua viagem Europa de 1919 a 1923, de quando datava seu convvio com ele,

    Oswald, com Tarsila, Paulo Prado, Picasso, Lger, o romeno Brancusi, a turma da

    Academia Lhote. Para receber seus novos amigos na casa tradicional, reformara

    parte do imvel, decorado ao estilo moderno. L se encontrava o Lger que comprara.

    Era senhora de vastssimos cabedais (e a mo de Oswald parecia fazer rolar

    pilhas de esterlinos enquanto nos confiava as possibilidades da rica dona).24

    Para a quinta-feira, 24 de abril, Daniel de Carvalho programou visita

    fazenda Gameleira e fazenda Barreiro. Oswald de Andrade, em barreiro, faz

    delas uma s entidade: Estradas de rodagem / E o canto dos meninos azuis da

    Gameleira / A paisagem nos abraa / Pontes / Alvenaria / Ninhos / Passarinhos / A

    escola e a fazenda de duzentos anos.

    24. NAVA. Beira-mar, p.183-184.

  • Belo Horizonte, p. 1-167

    31

    A fazenda Gameleira, parte de um programa de capacitao de mo-

    de-obra para a agricultura, destinava-se educao de crianas desvalidas, os

    meninos azuis, assim chamados por Oswald devido cor de seus uniformes.

    Alm desses cuidados, desenvolvia pesquisas e novas tcnicas agrcolas, que

    procurava disseminar, objetivando o aumento da produtividade do setor.25 A segunda

    fazenda, a do Barreiro, abrangia o bairro que hoje recebe esse nome, situado a

    sudoeste de Belo Horizonte. O governo mineiro a comprara dos herdeiros do

    Major Cndido Brochado, devido s nascentes da regio, que poderiam proporcionar

    gua para a cidade quando o nmero de seus habitantes aumentasse. Ali fundou

    colnias de imigrantes para a produo de alimentos que contribusse para o

    abastecimento da nova capital.26 A fazenda recebia visitas de convidados do governo

    estadual, como foi o caso dos paulistas. Mrio, no Noturno de Belo Horizonte, comenta:

    Na fazenda do Barreiro recebem opulentamente.

    Os pratos nativos so ndices de nacionalidade.

    Mas no Grande Hotel de Belo Horizonte servem francesa.

    Et bien! Je vous demande un toutou!

    Venha a batata-doce e o torresmo fondant!

    Carne-de-porco no!

    O mdico russo afirma que na carne-de-porco andam micrbios de loucura...

    O ltimo dia em Belo Horizonte reservou aos nossos viajantes passeio

    a Sabar e a Caet. Em Sabar os paulistas encontraram a igreja inacabada do

    Rosrio, a das Mercs, a de Santo Antnio, a matriz de Nossa Senhora da Conceio

    (a mais rica da cidade) e a Igrejinha do .

    Alm dos desenhos de Tarsila, temos o poema sabar, de Oswald,

    que rememora o tempo de opulncia da cidade, quando havia negros a cada

    metro da margem / Para revirar o rio metlico, o rio das Velhas, Que ia no dorso

    dos burros / E das caravelas.

    No sbado, 26 de abril, a caravana partia para Ouro Preto, mas sem

    as presenas de Mrio de Andrade e Gofredo da Silva Telles, que retornaram

    direto para So Paulo.

    25. Cf. FARIA FILHO. Repblica, trabalho e educao.

    26. Cf. SOUZA. Barreiro: 130 anos de histria.

  • 32

    O eixo e a roda: v. 19, n. 1, 2010

    Retorno: Ouro Preto, Mariana e Congonhas

    Vamos visitar So Francisco de Assis

    Igreja feita pela gente de Minas

    O sacristo que vizinho da Maria Cana-Verde

    Abre e mostra o abandono

    Os plpitos de Aleijadinho

    O teto de Atade

    Oswald de Andrade

    A caravana paulista chegou a Ouro Preto ainda no sbado noite. Da

    cidade, no poderiam ver mais que o vulto dos telhados e das igrejas. Mas, no dia

    seguinte, surgia luminosa sob a nvoa da manh, qual imenso cobertor pontuado

    por igrejas e capelas. Assim no cessaram de manifestar o interesse e o encanto

    mais vivos, repassados de mgoa, porm, ante os estragos profundos causados

    pela ao deletria do tempo e pela ao ainda mais deletria de mos sacrlegas

    que violaram relquias to belas e raras.27

    O testemunho dos primeiros versos de ouro preto, citados acima

    como epgrafe, refora essa duplicidade. de se imaginar o estado de conservao

    da igreja de So Francisco e das obras de Aleijadinho e Atade aps um sculo sem

    aes significativas que as preservassem. Ao mesmo tempo a indiscutvel qualidade

    desses trabalhos, mas principalmente sua distncia dos modelos acadmicos e

    italianizantes, criticados pelos modernistas, conferiam aos dois artistas a condio

    paradoxal de modernos. A Nossa Senhora mulata de Atade, no centro do teto

    dessa igreja, longe de expressar aspirao erudita de pintar com modelo vivo,28

    deve ter parecido, aos olhos dos viajantes, o embrio de um projeto nacional para

    a cultura brasileira.

    Alm da igreja de So Francisco, visitaram, nesse e no dia seguinte, a

    igreja do Carmo, a de Antnio Dias, a Matriz do Pilar e a capelinha do Padre Faria.

    Foram tambm a Mariana e na volta conheceram as minas da Passagem, da Anglo-

    Brazilian Gold Company.

    Destinaram o dia 29 de abril ao Santurio do Bom Jesus de Matosinhos,

    em Congonhas do Campo, de cujo projeto original constava apenas a igreja e seu

    adro. apenas em 1794 que aparece uma primeira meno aos Passos, divididos

    27. DIRIO DE MINAS. Excurso artstica.

    28. MACHADO. Barroco mineiro, p. 252.

  • Belo Horizonte, p. 1-167

    33

    em duas partes, uma primeira, disposta frente da igreja, os Passos da Paixo, e

    uma segunda aos fundos, os Passos da Ressurreio.29 No entanto apenas a primeira

    parte foi concluda. Nos Passos da Paixo, talvez pela falta de recursos, a Coroao

    de Espinhos e a cena da Flagelao ocupam a mesma capela.

    Em 1799, trs anos e cinco meses depois de iniciados os trabalhos, o

    Aleijadinho e seu ateli haviam terminado todas as esculturas dos Passos. Contudo,

    apenas em 1808 teve incio a policromia das peas, por Manoel da Costa Atade,

    que ali trabalhou, at 1819, no grupo da Ceia, do Horto e da Priso. Interrompidos

    os trabalhos, s em 1864 todas as capelas encontravam-se concludas, com as

    imagens em seus lugares, as esculturas do segundo grupo recobertas por outro

    artista menos capaz que Atade.

    O resultado final foram seis capelas, representando a Ceia, o Horto,

    a Priso, a Flagelao e a Coroao dos Espinhos, a Cruz-s-Costas, a Crucificao.

    Logo que o Aleijadinho terminou as esculturas dos Passos, iniciou em

    pedra-sabo a srie dos doze Profetas. Aps cinco anos (em realidade dois anos e

    meio de trabalho, no computadas as paralisaes), os Profetas j estavam dispostos

    como os conhecemos.

    Cada um deles sustm um pergaminho com passagem de texto

    bblico a identific-los. Esses textos, somados ao conjunto de atitudes, ou gestos, e

    caracterizao de cada personagem suas feies e vesturio , produzem o

    forte sentido de unidade dessas figuras, que, surgindo de um passado remoto,

    testemunham o crime descrito nos Passos e contra ele se insurgem.

    Oswald de Andrade percebeu claramente o sentido dramtico da presena

    desses profetas no adro da igreja de Bom Jesus de Matosinhos; os trs primeiros

    versos do ltimo poema de Roteiro das minas evidenciam essa conscincia.

    ocaso

    No anfiteatro de montanhas

    Os profetas do Aleijadinho

    Monumentalizam a paisagem

    As cpulas brancas dos Passos

    E os cocares revirados das palmeiras

    So degraus da arte de meu pas

    Onde ningum mais subiu

    29. Cf. OLIVEIRA. Aleijadinho: passos e profetas.

  • 34

    O eixo e a roda: v. 19, n. 1, 2010

    Bblia de pedra-sabo

    Banhada no ouro das minas

    Os profetas, no anfiteatro de montanhas, reapresentam

    continuamente seu testemunho frente agonia do Cristo, afirmando, assim, a

    possibilidade da transmutao essencial da palavra divina na matria bruta, atravs

    do gesto do entalhe de uma Bblia de pedra sabo. As folhas de ouro que recobriam

    a talha do Aleijadinho encontram-se agora transmutadas nos raios de sol do ocaso.

    Finalmente o poeta faz-se ele prprio profeta, ao denunciar o esquecimento por

    que passavam as igrejas de Minas, degraus da arte do meu do pas / Onde ningum

    mais subiu.

    No momento brasileiro de 1924, a interpretao da arte de vanguarda

    europia passava, assim, curiosamente pela recuperao da arte colonial brasileira

    e de seu exemplo mximo, o Aleijadinho. Aspectos da obra desse artista,

    tradicionalmente vistos como desastrosos a fatura deformada, a ausncia de

    perspectiva, a juno irregular das pernas nos troncos dos anjos , passaram a ser

    valorizados sob a rubrica do primitivismo ou do expressionismo. Defeitos virtuosos,

    segundo a conhecida frmula oswaldiana, contida no Manifesto da poesia pau-

    brasil, que propunha a substituio da perspectiva visual e naturalista por uma

    perspectiva de outra ordem: sentimental, intelectual, irnica, ingnua; ou ainda

    expressividade e arrebatamento, do ponto de vista de Mrio de Andrade.

    Todavia poderemos observar tambm o percurso inverso, o da arte

    europeia que se enriquece no contato com a experincia brasileira: a viagem a

    Minas, mas principalmente a vida e a obra de Aleijadinho, produziram em Cendrars

    impacto significativo. Essa matria impressionante inicialmente deveria ser

    aproveitada, junto com o Carnaval do Rio, numa terceira parte do livro de poemas

    Feuilles de route, publicado em 1924, o que sabemos no ter ocorrido. Depois se

    tornou um sempre anunciado, mas nunca publicado volume, nomeado Aleijadinho

    ou LHistoire dun sanctuaire brsilien, que abrangeria um perodo de dois sculos,

    de 1726 a 1926, e descreveria a vida do santurio como se tratasse da vida de

    um homem.30 Finalmente vamos encontrar Aleijadinho na figura do escultor negro

    Manolo Secca e sua bomba de gasolina nos confins do Brasil, em Lhomme foudroy,

    publicado em 1945. Manolo Secca um negro espanhol, originrio da ilha de

    30. Depoimento de Cendrars a Srgio Buarque de Holanda. EULALIO. Aventura brasileira de Blaise Cendrars, p. 418.

  • Belo Horizonte, p. 1-167

    35

    Cuba, onde lutou contra os Estados Unidos e ali deixou uma perna, a perna

    esquerda.31 Possui a primeira bomba de gasolina que se encontra quando se sai

    do serto do Brasil. Uma bomba de gasolina nica, porque a nica bomba de

    gasolina encimada por uma cruz. Ali entalha esttuas fabulosas em tamanho natural.

    Ele trabalha em doze obras ao mesmo tempo, dispersas em crculo em torno da

    bomba de gasolina. So exatamente 308 personagens, alguns terminados e outros

    apenas esboados ou comeados, compondo as doze estaes da Via Sacra. A

    cena da priso de Cristo no Jardim das Oliveiras, s ela, comportava 40 figuras,

    cada uma de p no seu pequeno automvel.

    Essa regra geral da apresentao desses personagens rompia-se

    apenas em duas cenas: de p, em uniforme de almirante, sobre um couraado de

    bandeira americana, Pncio Pilatos no lavava as mos em bacia alguma, mas

    mergulhando-as diretamente no mar. Outra exceo ocorria na cena da entrada

    de Cristo em Jerusalm: Nosso Senhor, como tradicionalmente representado,

    chegava sobre um asno, mas todos os outros personagens, os discpulos logo aps

    e o povo que vinha ao seu encontro, estavam cada qual no seu pequeno automvel,

    e sobre a porta de Jerusalm achava-se canhestramente gravada a faca uma palavra:

    XAXAZE, que se poderia talvez decifrar, segundo a chave oswaldiana da

    contribuio milionria de todos os erros, como uma tentativa de transcrio da

    palavra francesa GARAGE.

    On the occasion of the discovery of Brazil: three modernistsfrom So Paulo and a French poet in the land of gold

    Abstract: The essay is an attempt to reconstruct the journey of Blaise Cendrarsand of the modernists Mrio, Tarsila and Oswald to Minas Gerais in April1924. On the one hand, the journey confirms the trend of Brazilian modernismof inserting the proposals of European avant-gardes in the materiality ofBrazilian experience. From the point of view of Cendrars, on the other hand,the journey expresses manifestations of human experience in the tropics, especiallyin the case of Aleijadinho and his work. The chain of narratives that isamounts to the history of this journey to Minas Gerais emphasizes the crucialcommitment of modern art to the cultural diversity of the periphery of capitalism.Keywords: Blaise Cendrars, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade..

    31. CENDRARS. Lhomme foudroy, p. 334.

  • 36

    O eixo e a roda: v. 19, n. 1, 2010

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