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  • 8/8/2019 Por vozes nunca dantes ouvidas : a viragem ps-colonial nas cincias humanas

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    Jeroen DewulfUniversidade do Porto

    Por vozes nunca dantes ouvidas:

    A viragem ps-colonial nas cinciashumanas

    Talvez tenha sido uma das respostas mais geniais do ltimo sculo, aquela que deuMahatma Gandhi quando, no fim da sua visita Inglaterra e rodeado por dezenas dejornalistas nervosos, algum lhe perguntou o que tinha achado da civilizao britnica.As suas lendrias palavras: Creio que seja uma boa ideia, marcaram o incio de umprocesso ao qual hoje chamamos ps-colonialismo. Aqueles que durante sculostinham sido colonizados em nome de uma civilizao que de civilizado tinha muitopouco, de repente deixaram de ser sujeitos passivos e fizeram ouvir a sua voz. uma

    voz dura, uma voz que pe em causa valores e convices que h poucas dezenas deanos atrs ainda pareciam ser eternos, uma voz tambm que obriga o mundo ociden-tal a repensar e rescrever todo o seu passado.

    Antes de analisarmos as consequncias desta viragem ps-colonial na literatura, til verificar o que se passou na antropologia. J em 1950, o antroplogo suo AlfredMtraux sublinhou numa palestra perante uma reunio da UNESCO como eram racis-tas os pilares da cincia ocidental:

    Au moment o notre civilisation industrielle pntre sur tous les points de la terre, arra-chant les hommes de toutes couleurs leurs plus anciennes traditions, une doctrine, carac-tre faussement scientifique, est invoque pour refuser ces mmes hommes, privs de leur

    hritage culturel, une participation entire aux avantages de la civilisation qui leur est impo-se. (apudLeiris, 1960: 198)

    De facto, no de estranhar que os antroplogos tenham sido os primeiros a ante- ver uma inevitvel viragem ps-colonial, pois nenhuma cincia ocidental dependiatanto do sistema colonial como esta no por acaso que Claude Lvi-Strauss consi-derava a antropologia como sendo a criada do colonialismo.1 Com o fim da coloni-

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    * O presente artigo insere-se na Linha de Aco n 1, Estudos de Recepo e de Hermenutica Inter-cultural, do Centro Interuniversitrio de Estudos Germansticos (CIEG), Unidade de I&D financiada pelaFundao para a Cincia e a Tecnologia, no mbito do Programa POCTI.

    1 No seu ensaio Lethnographie devant le colonialisme (1950) a antroplogo francs Michel Leiris

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    zao, a antropologia consequentemente entrou numa crise profunda. Aqueles pasesque conseguiram conquistar a sua independncia acusavam os antroplogos ocidentais

    de um data-imperialism: como se no bastasse que os ocidentais lhes teriam roubadodurante sculos a sua populao e as suas matrias-primas, agora, estes, alegadamenteem nome da cincia, queriam fazer carreira custa da sua cultura. Acusavam tambmos antroplogos de terem adaptado a sua histria e a sua cultura a uma perspectivaeuropeia, quase como se as culturas no-ocidentais no tivessem existido antes da che-gada do primeiro antroplogo.

    A procura de uma resposta a estas crticas verificou-se fundamentalmente em univer-sidades norte-americanas. Com o fim do colonialismo, a maioria dos departamentos euro-peus de antropologia tinham sido fechados ou diminudos de tal forma que a antropo-logia deixou de ser uma das principais cincias em pases com uma longa tradio emestudos antropolgicos como a Frana, o Reino Unido, a Blgica, os Pases Baixos, a

    Itlia, a Espanha ou Portugal. O mesmo no ocorreu nos Estados Unidos. De facto, aenorme variedade tnica dos EUA fez com que no houvesse tanta dependncia de col-nias longnquas; as culturas exticas estavam literalmente porta da universidade. Paraalm disso, como nova potncia mundial, os EUA compreenderam a importncia estrat-gica em plena Guerra Fria de informaes culturais especficas de todos os cantos do mundo.

    A guerra no Vietname e o consequente debate poltico nas universidades norte--americanas no deixou de atingir tambm a antropologia. Ficou demonstrado comoesta cincia continuava a estar presa a estruturas globais de dominao e como ela eraabusada para satisfazer interesses polticos.2A discusso fortemente politizada que seseguiu na antropologia norte-americana s chegou Europa vrios anos mais tarde edeve ser enquadrada na emergncia de movimentos feministas, anti-racistas e ecolgi-

    cos nos EUA que puseram em questo os valores da tradicional educao e a hege-monia cultural dos WASPs (White Anglo-Saxon Protestants). Enquanto numa primeirafase apenas se criticavam as limitaes da cincia tradicional e se exigia uma aberturapara com as vises de feministas e de grupos minoritrios (afro-americanos, homosse-xuais, emigrantes, etc.), cada vez mais a viso ocidental do mundo em si, tal como tinhasido defendida nas cincias humanas tradicionais, passou a ser posta em causa.

    A expresso The Others speak back foi usada na antropologia para designar ofacto de aquelas pessoas, que desde o incio do colonialismo tinham sido condenadas passividade, tomarem a palavra. O que era sobretudo criticado por elas, era a con-vico arrogante por parte de muitos antroplogos de que apenas os ocidentais teriamcapacidade intelectual suficiente para interpretarem outras culturas. Michael M. J. Fis-

    cher considera, por isso, que a viragem ps-colonial na antropologia deu origem a umabifurcao da perspectiva, substituindo assim a tradicional perspectiva eurocntrica:

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    sublinhou que lethnographie apparat troitement lie au fait colonial, que les ethnographes le veuil-lent ou non (Leiris, 1969: 84).

    2 Cases that particularly raised the political consciousness of American anthropologists were ProjectCamelot (an abortive effort in the 1960s to tempt social scientists with grants in return for research use-ful in Latin American counterinsurgery); and the Thai Affair (charges, at the 1970 Asian Studies Meetings,and later investigated by a quickly constituted Ethics Committee within the American Anthropological

    Association, that ethnographic research in northern Thailand was employed in counterinsurgency effortsagainst groups associated with communist forces in Indochina) (Marcus/ Fischer, 1999: 35).

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    quase como se se tratasse de crianas que deveriam ser representadas pelos europeusj que, alegadamente, eles prprios no tinham capacidade para tal:

    (...) indeed it can be argued that the major component in European culture is preciselywhat made that culture hegemonic both in and outside Europe: the idea of European identityas a superior one in comparison with all the non-European peoples and cultures. There is inaddition the hegemony of European ideas about the Orient, themselves reiterating Europeansuperiority over Oriental backwardness, usually overriding the possibility that a more inde-pendent thinker (...) may have had different views on the matter. (Said, 1978: 7)

    Por isso, Said fala de uma aliana silenciosa entre textos culturais e imperialismoe apela a uma reviso completa das cincias literrias (Said, 1993: 45ss.). Esta revisoter de vir a partir da Literatura Comparada. Esta, porm, ter de sofrer fortes altera-es, pois durante dcadas, a Literatura Comparada, na opinio de Said, privilegiouapenas literaturas europeias e norte-americanas: Academic work in comparative lite-rature carried with it the notion that Europe and the United States together were thecentre of the world, not simply by virtue of their political positions, but also becausetheir literatures were the ones most worth studying (Said, 1993: 46s.).

    importante sublinhar que a viragem ps-colonial proposta por Said tem uma forteconotao poltica e apela ao abandono do distanciamento entre literatura e sociedade/poltica como era defendido pelos estruturalistas. A nova Literatura Comparada queassim nascer ser uma em que as fronteiras entre as culturas deixaram de existir, jque, segundo Said:

    (...) the notion that there are geographical spaces with indigenous, radically differentinhabitants who can be defined on the basis of some religion, culture or racial essence pro-

    per to that geographical space is equally a highly debatable idea. (apudClifford, 1988: 274)

    Neste ponto, Said muito radical. At critica o facto de o primeiro contacto decrianas com a literatura ser com a literatura da prpria cultura. A consequncia disto,segundo Said, que a literatura continua, para o resto da vida, a estar presa numenquadramento nacional ou at nacionalista. Deste modo, a literatura feita cmplicede uma educao xenfoba:

    Far from being a placid realm of Apollonian gentility, culture can even be a battlegroundon which causes expose themselves to the light of day and contend with one another, makingit apparent that, for instance, American, French, or Indian students who are taught to readtheirnational classics before they read others are expected to appreciate and belong loyally,

    often uncritically, to their nations and traditions while denigrating or fighting against others.(Said, 1993: xiii)

    Segundo Said, a preocupao dos crticos literrios no se deveria limitar ao aspectoesttico da obra. Uma pergunta-chave tambm deveria ser a circunstncia histrica esocial na qual a obra nasceu. Por isso, a literatura no deveria ser s vista como umconjunto de obras de arte, mas tambm como uma construo ideolgica (Said, 1978:30). Deste modo, Said pretende acabar com correntes neo-conservadoras dentro dascincias sociais que criticam o relativismo cultural na esteira de Nietzsche, Adorno, Der-rida e Foucault pelo facto de darem a mesma importncia a todas as culturas e teremum respeito fundamental por todas as diferenas culturais. Na sua opinio, este relati-

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    vismo impossibilita qualquer tipo de generalizao ou moralizao e no deixa espaopara um progresso cultural ou para a fixao de um cnone literrio. Deste modo, a

    questo do cnone tornou-se no pomo da discrdia entre crticos literrios ps-colo-niais como Edward Said, Homi Bhabha ou Gayatri Spivak por um lado e crticos neo--conservadores como Allan Bloom, Alvin Kernans ou Roger Kimball, por outro.4

    Facto que Said, Bhabha e Spivak so citados no mundo inteiro, enquanto os neo--conservadores praticamente no conseguem apoio fora dos Estados Unidos. O sucessodos Post-Colonial Studies tem muito a ver com o impacto internacional dos CulturalStudies. O que ambas as correntes tm em comum uma forte conotao poltica, nosentido de criticarem os poderes tradicionais (Critique of Power) e as consequentesdesigualdades no mundo. A diferena reside basicamente no facto de os Cultural Stu-dies implicarem uma crtica por dentro, enquanto os Post-Colonial Studies soantes uma crtica de fora, como uma espcie de descolonizao cultural.

    Nos Post-Colonial Studies, pretende-se realizar uma reviso total do cnone lite-rrio ocidental e eurocntrico. Crticos literrios ps-coloniais rejeitam por isso expres-ses tradicionais do tipo Commonwealth-Literature, j que, na sua opinio, isto suge-riria que a literatura britnica continua a estar no centro, enquanto as outras literaturascontinuariam a pertencer periferia.5 O ps-colonialismo insiste em dar uma atenoparticular s literaturas oriundas de ex-colnias, tanto de invaded colonies como aNigria, a ndia ou o Egipto, como de settler colonies como a Austrlia, os EUA ou oCanad. Uma vez que muitos escritores ps-coloniais (talvez at a maioria deles) residemou na Amrica do Norte ou na Europa, fala-se actualmente tambm em literaturas dadispora. Tal como acontece nos Cultural Studies, a influncia de correntes ps-estru-turalistas (Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze), neo-marxistas e ps-moder-

    nas (Stuart Hall, Frederic Jameson) considervel. Actualmente, distinguem-se quatrocorrentes diferentes nos Post-Colonial Studies. A primeira uma corrente nacional ouregional, na qual so estudadas obras literrias escritas em lnguas minoritrias, a segundadistingue segundo a raa ou o sexo, como acontece, por exemplo, com a literatura afro--americana; uma terceira corrente comparatista e compara aspectos lingusticos, his-tricos ou culturais em duas ou mais literaturas ps-coloniais. A quarta e ltima cor-rente, que tambm chamada de corrente ps-nativista ou nomadista, privilegia atransgresso de fronteiras, as situaes hbridas ou o sincretismo como elementos cons-titutivos de todas as literaturas ps-coloniais. As diferenas entre estas vrias correntes,que s vezes so considerveis, levam inevitavelmente a tenses dentro dos Post-Colo-nial Studies, sobretudo entre representantes da segunda e da quarta corrente. Tambm

    se constatam diferenas geogrficas: teorias que privilegiam ideologias hbridas tmmais sucesso em pases latino-americanos ou nas Carabas do que em frica ou na sia.Diferenas tambm existem no que diz respeito s teorias ps-modernas; de facto,muitos autores ps-coloniais pretendem contar a histria do seu povo ou da sua cul-tura e usam para isto com muita frequncia exactamente aquelas estratgias literriasque crticos ps-modernos rejeitam por alegadamente serem demasiado tradicionais.

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    4 Segundo Kimball, a questo no entre neo-conservadorismo e ps-colonialismo, mas betweenculture and barbarism (apudTaylor, 1994: 72).

    5 Foi por esta razo que Max Dorsinville sugeriu (sem sucesso) trocar a expresso ps-colonialismopor ps-europeismo.

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    Para dar uma ideia mais concreta sobre os objectivos e as perspectivas dos Post--Colonial Studies, pretendo concluir com uma anlise de duas obras-chave desta nova

    corrente: The Location of Culture (1994) de Homi Bhabha e Culture and Imperialism(1993) de Edward Said.Tal como fez Frantz Fanon, Homi Bhabha juntou a psicanlise ao anti-colonialismo.

    Bhabha, porm, recusa noes do tipo nao ou povo que considera ultrapassadas.Em vez de procurar na literatura uma confirmao de uma identidade cultural ou atnacional, Bhabha privilegia uma literatura com uma identidade hbrida, ambivalente,diferenciada e mltipla, j que, na sua opinio, uma identidade pura no passa de umafico:

    Cultural diversity is also the representation of a radical rhetoric of the separation of tota-lized cultures that live unsullied by the intertextuality of their historical locations, safe in theUtopianism of a mythic memory of a unique collective identity. (...) The need to think the limit

    of culture as a problem of the enunciation of cultural difference is disavowed. (Bhabha, 1994: 34)

    Com base numa tese que se baseia na dialctica metafrica de Freud relativamenteaos conceitos heimisch e unheimlich, Bhabha defende que o Outro no est forado Prprio, mas que o Outro faz parte do nosso prprio sistema cultural. Assim sendo,a diferena no fornece uma possibilidade de diviso ou de separao. Para Bhabha,diferena antes um caminho para se chegar a um auto-conhecimento. Da a impor-tncia do conceito location em vez da diferena constituir uma fronteira entre o Pr-prio e o Estrangeiro, entre a prpria cultura e outras culturas, ela deveria ter um lugarcentral dentro de todas as culturas. Outro conceito freudiano importante para Bhabha o do feiticismo. Enquanto Freud designa o medo de castrao e o medo de diferena

    sexual como sendo feitios, Bhabha aplica o mesmo conceito ao esteretipo:In this spirit I argue for the reading of the stereotype in terms of fetishism. The myth of

    historical origination racial purity, cultural priority produced in relation to the colonial ste-reotype functions to normalize the multiple beliefs and split subjects that constitute colonialdiscourse as a consequence of its process of disavowal. (Bhabha, 1994: 74)

    O objectivo final de Bhabha conseguir uma identidade, uma cultura e uma lite-ratura anti-imperialistas, sem qualquer tipo de preconceitos. Neste mbito, Bhabha usaas mais variadas expresses displacements, stairwells, interstitial passages, in--between spaces que so todas metforas para uma identidade cultural mista evariada, num mundo hbrido que por ele chamado de third space:

    What is theoretically innovative, and politically crucial, is the need to think beyond nar-ratives of originary and initial subjectivities and to focus on those moments or processes thatare produced in the articulation of cultural differences. These in-between-spaces provide theterrain for elaborating strategies of selfhood singular or communal that initiate new signsof identity, and innovative sites of collaboration, and contestation, in the act of defining theidea of society itself. (Bhabha, 1994: 1f.)

    No que diz respeito aos estudos literrios, Bhabha apela a um interesse acrescidopor textos que nasceram ao lado dos grandes centros culturais. Mesmo assim, os auto-res mais citados por ele, fazem claramente parte do cnone literrio actual. Trata-seaqui de autores como Salman Rushdie, John Coetzee, Bessie Head, Nadine Gordimer

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    ou Toni Morrison. Ao contrrio do pessimismo de Edward Said, que na sua obra Orien-talism lamenta o papel passivo dos habitantes de sociedades antigamente colonizadas,

    Bhahba exprime a viso bastante mais optimista de que autores oriundos de culturastradicionalmente marginalizadas acabaro por conseguir pr em questo o discursodominante da actualidade:

    The study of world literature might be the study of the way in which cultures recognizethemselves through their projections of otherness. Where, once, the transmission of nationaltraditions was the major theme of a world literature, perhaps we can now suggest that trans-national histories of migrants, the colonized, or political refugees these border and frontierconditions may be the terrains of literature. The centre of such a study would neither be thesovereignty of national cultures, nor the universalism of human culture, but a focus on thosefreak social and cultural displacements that Morrison and Gardimer represent in their unho-mely fictions. Which leads us to ask: can the perplexity of the unhomely, intrapersonal worldlead to an international theme? (Bhabha, 1994: 12)

    Por culturas marginalizadas, Bhabha no entende s as culturas de pases do cha-mado terceiro mundo, mas tambm aquela de mulheres e de minorias no Ocidente(negros, homossexuais, migrantes, ciganos, etc.), pessoas a quem Bhabha seguindoo exemplo do historiador Eric Wolf chama de peoples without a history, ou seja,pessoas que nunca tiveram direito sua prpria histria:

    Postcolonial criticism bears witness to the unequal and uneven forces of cultural repre-sentation involved in the contest for political and social authority within the modern worldorder. Postcolonial perspectives emerge from the colonial testimony of Third World countriesand the discourses of minorities within the geopolitical divisions of East and West, North andSouth. They intervene in those ideological discourses of modernity that attempt to give a hege-

    monic normality to the uneven development and the differential, often disadvantaged, histo-ries of nations, races, communities, peoples. They formulate their critical revisions around issuesof cultural difference, social authority, and political discrimination in order to reveal the antago-nistic and ambivalent moments within the rationalizations of modernity. (Bhabha, 1994: 171)

    Com a sua obra Culture and Imperialism (1993), Edward Said tentou alargar atemtica abordada em Orientalism para as relaes de poder entre o Ocidente em gerale as suas antigas colnias, embora limitando-se a textos de lngua inglesa e francesa.O seu argumento principal que, durante demasiado tempo, a literatura tem sido vistae analisada quase exclusivamente como um conjunto de obras autnomas com umvalor puramente esttico, sem se dar qualquer relevo situao poltica e social na qual

    nasceram. Said aceita a importncia esttica da literatura, mas insiste que uma anliseliterria sempre incompleta enquanto no for dada a devida ateno ao seu papeldentro do sistema de poder e de opresso:

    The novels and other books I consider here I analyze because first of all I find them esti-mable and admirable works of art and learning, in which I and many other readers take plea-sure and from which we derive profit. Second, the challenge is to connect them not only withthat pleasure and profit but also with the imperial process of which they were manifestly andunconcealedly a part. (Said, 1993: xiv)

    Como exemplo, Said cita o poeta ingls do sculo XVI Edmund Spenser. Said mos-tra que a crtica literria durante sculos se limitou ao estudo dos seus poemas, sem

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    dar o menor relevo aos seus escritos claramente racistas em relao populao daIrlanda que Spenser pretendia ver exterminada pelo exrcito ingls (Said, 1993: 7). Said

    nega que a incluso deste aspecto poltico pudesse fazer diminuir a importncia deobras literrias; ele at defende o contrrio, pois na sua opinio, ao estabelecer umaligao entre a obra de fico e o sistema de poder existente na poca, consegue-setorn-las ainda mais interessantes e valiosas (Said, 1993: 13). Este novo tipo de leitura,proposto por Said, chamado de contrapuntal reading, porque fixa a ateno naque-les pontos que tradicionalmente no receberam qualquer ateno. Por isso, as crticasde Said so s vezes surpreendentemente duras junto de autores e obras em relaoaos quais no se esperava tal atitude, como, por exemplo, no que diz respeito aoromanceNostromo de Joseph Conrad:

    Conrads novel embodies the same paternalistic arrogance of imperialism that it mocksin characters like Gould and Holroyd. Conrad seems to be saying, We Westerners will decide

    who is a good native or a bad, because all natives have sufficient existence by virtue of ourrecognition. We create them, we taught them to speak and think, and when they rebel theysimply confirm our views of them as silly children, duped by some of their Western masters.(Said, 1993: xviii)

    Said acusa os estudos literrios tradicionais de terem propositadamente desvalori-zado a importncia de literaturas no-ocidentais (Said, 1993: 43ss.). O resultado desteeclectismo imperialista que o Ocidente acabou por ter uma imagem muito egostae muito reduzida no que diz respeito literatura. Said considera que a literatura ps--colonial traz uma oportunidade nica para diversificar a imagem literria nos pasesocidentais. Da que Said insista no carcter revolucionrio da viragem ps-colonial naliteratura: To read Austen without also reading Fanon and Cabral is to disaffiliate

    modern culture from its engagements and attachments (Said, 1993: 60).Para ilustrar o seu mtodo de contrapuntal reading, Said analisa o tema da escra-

    vido emMansfield Park de Jane Austen e do racismo emKim de Rudyard Kipling (Said,1993: 80ss. e 132ss.). No se limita, porm, literatura; tambm demonstra como a pera

    Aida de Verdi est cheia de esteretipos ocidentais em relao ao Egipto, confirmandoassim, indirectamente, a superioridade ocidental face ao Oriente (Said, 1993: 111ss.).

    O captulo Resistance and Opposition trata daquela literatura que se ops ao impe-rialismo ocidental. Neste contexto surge tambm, algo surpreendente, o poeta irlandsWilliam Butler Yeats, cuja obra analisada por Said com um olhar ps-colonial noque diz respeito resistncia contra o imperialismo ingls (Said, 1993: 220ss.). Saidreconhece que tambm no Ocidente houve de facto crticas ao colonialismo e ao impe-rialismo, mas insiste que s houve uma condenao inequvoca do colonialismo depoisde os ex-colonizados terem conseguido libertar-se dos seus opressores. Por isso, Saidno se focaliza tanto em Las Casas, Multatuli, Wilfrid Scawen Blunt ou William Morris,mas antes em autores como Amlcar Cabral, Frantz Fanon ou Jos Mart, j que, na suaopinio, foram eles a iniciar de facto o processo ps-colonial, abrindo assim o cami-nho aos autores ps-coloniais como Gabriel Garca Mrquez, Salman Rushdie, CarlosFuentes, Chinua Achebe ou Faiz Ahmad Faiz.

    No ltimo captulo Freedom from Domination in the Future Said demostracomo o fim do colonialismo no significou o fim do imperialismo. A relao entre aliteratura ps-colonial e o imperialismo norte-americano para Said a questo central

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    da actualidade. Tal como Homi Bbabha, tambm Said acredita que a literatura dosculo XXI ser uma literatura caracterizada pelo seu aspecto hbrido. Neste mbito,

    Said cita Erich Auerbach, segundo o qual a Heimat do fillogo no deveria ser nema nao, nem o escritor, mas sim o mundo. Como metfora para o objectivo da filolo-gia do sculo XXI, escolhe uma expresso musical; segundo Said, a preocupao dafilologia no deveria ser a construo de uma sinfonia artificial, mas a celebrao daatonalidade (Said, 1993: 318). Na opinio de Said, j no vivemos num tempo em queo ser humano possa ser reduzido a um s aspecto; hoje, o facto de ser ndio, sermulher, ser muulmano ou ser ingls j no mais do que um ponto de partida parauma identidade hbrida num mundo global. S assim se poder, segundo Said, des-construir a pior realizao do imperialismo ocidental: o facto de expresses como raaou nacionalidade terem sido considerados durante sculos como uma exclusividade eat como um factor de superioridade:

    No one can deny the persisting continuities of long traditions, sustained habitations,national languages, and cultural geographies, but there seems no reason except fear and pre-judice to keep insisting on their separation and distinctiveness, as if that was all human lifewas about. (Said, 1993: 336)

    Said conclui com outra citao famosa que encontrou na obra de Erich Auerbach,mas cuja origem est no monge saxo Hugo von St. Viktor que j no sculo XII escre-veu algo que poderia ser o lema do sculo XXI: The person who finds his homelandsweet is still a tender beginner; he to whom every soil is as his native one is alreadystrong; but he is perfect to whom the entire world is as a foreign place (apudSaid,1993: 335).

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