PORTELA_V_F_Agricultura Familiar Urbana Em Boa Vista

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE CINCIAS ECONMICAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ECONOMIA

    VALDINEI FORTUNATO PORTELA

    AGRICULTURA FAMILIAR NO ESPAO URBANO DA CIDADE DE BOA VISTA -

    RORAIMA

    Porto Alegre

    2011

  • 1

    VALDINEI FORTUNATO PORTELA

    AGRICULTURA FAMILIAR NO ESPAO URBANO DA CIDADE DE BOA VISTA -

    RORAIMA

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-

    Graduao em Economia da Faculdade de

    Cincias Econmicas da UFRGS, como

    quesito parcial para obteno do grau de

    Mestre em Economia, modalidade

    Profissional, do curso de Mestrado

    Interinstitucional UFRGS/UFRR.

    Orientador: Prof. Dr. Eduardo Ernesto Filippi

    Porto Alegre

    2011

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    DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)

    Responsvel: Biblioteca Gldis Wiebbelling do Amaral, Faculdade de Cincias Econmicas da UFRGS

    P843a Portela, Valdinei Fortunato

    Agricultura familiar no espao urbano da cidade de Boa Vista -

    Roraima / Valdinei Fortunato Portela. Porto Alegre, 2011. 111 f. : il.

    Orientador: Eduardo Ernesto Filippi.

    Dissertao (Mestrado profissional interinstitucional em Economia) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Cincias

    Econmicas, Programa de Ps-Graduao em Economia, Porto Alegre,

    2011.

    1. Agricultura familiar. 2. Espao urbano. 3. Espao rural. I. Filippi,

    Eduardo Ernesto. II. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    Faculdade de Cincias Econmicas. Programa de Ps-Graduao em

    Economia. III. Ttulo.

    CDU 631.115

  • 3

    VALDINEI FORTUNATO PORTELA

    AGRICULTURA FAMILIAR NO ESPAO URBANO DA CIDADE DE BOA VISTA -

    RORAIMA

    Dissertao submetida ao Programa de

    Ps-Graduao em Economia da Faculdade

    de Cincias Econmicas da UFRGS, como

    quesito parcial para obteno do grau de

    Mestre em Economia, modalidade

    Profissional, do curso de Mestrado

    Interinstitucional UFRGS/UFRR.

    Aprovada em: Porto Alegre, 17 de janeiro de 2012.

    BANCA EXAMINADORA:

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Orientador: Eduardo Ernesto Filippi UFRGS

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Francilene dos Santos Rodrigues UFRR

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Leonardo Xavier da Silva UFRGS

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Ana Monteiro Costa UNIPAMPA

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    Para meu filho, Filipe Cau Lima Portela

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    A realizao desta dissertao, somente foi possvel com a ajuda e apoio de muitas

    pessoas e instituies, e chegado o momento de agradecer publicamente a todos.

    Ao Ncleo de Estudos Comparados da Amaznia e do Caribe NECAR/UFRR, que a

    partir do convnio com o Programa de Ps-Graduao em Economia PPGE/UFRGS

    permitiu a realizao desse Mestrado, em especial aos professores Haroldo Amoras,

    coordenador do NECAR, Mauro Schmitz, Alberto Martinez, Gilberto Hissa, Ana Zuleide

    Barroso, Romanul Bispo, Jaime de Agostinho, Edson Damas e a todos os servidores que

    sempre estiveram presentes nessa caminhada, fazendo um link com a coordenao geral no

    PPGE e tentando resolver nossos problemas.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Economia - PPGE, que cruzaram

    o Pas e fizeram com que tudo isso pudesse acontecer no estado mais ao Norte do Brasil, em

    especial ao professor Ronald Otto, coordenador geral do Minter.

    Ao meu Orientador Eduardo Filippi, pela pacincia e dedicao, pelas sugestes de

    textos, enfim, por ter abraado o meu problema pesquisa. Muito obrigado.

    Agradeo aos meus amigos e colegas de mestrado, especialmente ao Allex Jardim que

    me doou entre outras coisas a passagem de ida e volta a Porto Alegre, ao Jos Rogrio, que

    dividiu o quarto do hotel comigo e organizou uma arrecadao (vaquinha) entre os demais

    mestrandos, ao Andr Paulo, Kelvim, Jarbas Ernani e Natalino que sempre me incentivaram e

    custearam de certa forma, parte da minha estadia em Porto Alegre. Enfim, a todos os demais

    colegas do mestrado, Alberto Jorge, Ariosmar Barbosa, Daniely de Souza, Elialdo Oliveira,

    Emerson Ba, George Amaro, Herundino Ribeiro, Joo Augusto Monteiro, Joo Flix, Joo

    Henrique, Jofre Luis, Jos Edival Braga, Leonardo Frota, Maria Aparecida de Oliveira

    (Cidinha), Oridete Ramalho (Detinha), Osvair Mussato, Raimundo Keler, Marcos Mendona,

    Cludia Regina, ngela Patrcia, Frederico Jnior e Camila de Albuquerque, pelos momentos

    compartilhados, pela ajuda financeira e pessoal, pela convivncia harmoniosa e de

    aprendizagem.

    A professora Ana Zuleide que doou as passagens areas para que eu pudesse retornar a

    Porto Alegre para cumprir a segunda e ltima fase do estgio obrigatrio.

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    Aos professores do Centro de Cincias Humanas da Universidade Federal de Roraima

    em especial as professoras France Rodrigues e Ana Lcia do Departamento de Cincias

    Sociais, que encabearam uma arrecadao (vaquinha) entre os amigos e professores de

    diversos departamentos da UFRR para que eu pudesse viajar e me manter em Porto Alegre,

    por conta do estgio obrigatrio.

    Da mesma forma agradeo ao Centro Acadmico de Cincias Sociais, da UFRR e a

    todos os alunos do Departamento em especial a ex aluna, agora Sociloga e ex presidente do

    Centro Acadmico, Mariana que foi uma das idealizadoras da referida vaquinha.

    A Comunidade catlica Nossa Senhora Auxiliadora, que realizou um bingo e

    arrecadou dinheiro para que eu pudesse ter condies de pagar a estadia em Porto Alegre.

    A Luzileide Correia que fez o abstract da dissertao e a Wanessia Noronha que fez

    correes gramaticais, ambos gratuitamente.

    Agradeo igualmente aos agricultores familiares urbanos de Boa Vista que deram vida

    a esse trabalho, que mais que ceder um pouco do seu tempo, expuseram e socializaram

    momentos de suas vidas alm de no se negaram a responder aos meus questionamentos.

    Ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE/RR), na pessoa de chefe da

    diviso estadual, Vicente de Paula Joaquim, ao Instituto de Terras de Roraima (ITERAIMA)

    na pessoa de Jos Maria ou como conhecido, Tio Z do Departamento Fundirio, a

    Secretaria Municipal de Gesto Participativa e Cidadania (SEMGEP), atravs do Programa

    Braos Abertos da Prefeitura Municipal de Boa Vista, em especial aos funcionrios do

    Departamento de Gesto Documental e a Superintendncia Municipal de Agricultura

    Familiar, Economia e Agronegcio, que disponibilizaram sem entraves os documentos e

    informaes solicitados.

    Finalmente, quero agradecer a meu pai, Noel Gomes Portela, a minha me, Gilda

    Fortunato Portela, a minha tia Irac Portela e meus primos e primas, irmos e irms, sobrinhos

    e sobrinhas e, finalmente a minha esposa, Maria Gilmar Lima Pereira e ao meu filho, Filipe

    Cau Lima Portela que souberam compreender os meus momentos de ausncia.

    Muito Obrigado.

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    ... Eu no quero mais falar da violncia na cidade

    Eu no quero nem saber qual a grande novidade

    Eu no tenho pacincia para poltica e o poder

    Eu no vou dizer mais nada se eu no sei o que

    dizer

    muita informao e pouco contedo (muita

    informao)

    muito grave, muito mdio, muito agudo (muito

    grave)

    muita pretenso e muito pouco estudo (muita

    pretenso)

    muita festa, muita coisa, muito tudo (muito tudo)

    E eu queria mudar o mundo... O mundo pra voc!

    Mas s vezes, sinto que o mundo me muda

    Eu no tenho saco pra gente que s pensa em

    dinheiro

    Que no se d conta de que tudo isso passageiro

    Essa euforia, essa angstia, esse desespero

    De emergente, de pr-sal, de emprego e o sonho

    brasileiro...

    Paulo Ricardo, Luiz Schiavon RPM (2011).

  • 8

    RESUMO

    Essa dissertao trata da agricultura familiar em espao urbano, mais especificamente na

    cidade de Boa Vista, capital do Estado de Roraima. A apario do Programa Nacional de

    Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) marca um momento singular na trajetria

    do processo de interveno estatal na agricultura e no mundo rural do Brasil. As

    transformaes na agricultura brasileira e a falta de estruturas mnimas de sobrevivncia dos

    agricultores nas reas de assentamentos agrcolas na Amaznia e, em especial no Estado de

    Roraima, fez com que esses trabalhadores buscassem alternativas, principalmente a migrao

    para as reas urbanas. As discusses sobre as transformaes no espao rural e a agricultura

    no espao urbano longe de mostrarem-se consensuais encontram-se em fase de acirrado

    debate. Desse modo, este trabalho visa contribuir para o atual debate em torno das diferentes

    leituras que vem sendo efetuadas sobre a dinmica da agricultura no Brasil, dando nfase

    agricultura nas reas urbanas em especial na cidade de Boa Vista, estado de Roraima.

    Palavras-chave: Agricultura familiar. Espao urbano. Espao Rural. Boa Vista. Roraima.

  • 9

    ABSTRACT

    This dissertation deals with the family farming in urban space, specifically in the city of Boa

    Vista, Roraima state capital. The appearance of the National Program for Strengthening

    Family Farming (PRONAF) marks a unique moment in the trajectory of the process of state

    intervention in agriculture and in rural areas of Brazil. The transformations in Brazilian

    agriculture structures and lack of minimum survival of farmers in the areas of agricultural

    settlements in the Amazon, and in particular, the state of Roraima, meant that these workers

    seek alternatives, particularly migration to urban areas. Discussions on the changes in rural

    areas and agriculture in the urban space is far from consensual show are being heated debate.

    Thus, this paper aims to contribute to the current debate about the different readings that have

    been made about the dynamics of agriculture in Brazil, with emphasis on agriculture in urban

    areas especially in the city of Boa Vista, Roraima state.

    Keywords: Family farming. Urban space. Rural Areas. Boa Vista. Roraima.

  • 10

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 - Volume das imigraes em Roraima: 1975-1980, 1986-1991 e 1995-2000............36

    Figura 2: Propriedade com vrias estufas doada pela prefeitura e estufas abandonadas e/ou

    sem manuteno........................................................................................................................65

    Figura 3: Estufas com produo e sem manuteno.................................................................66

    Figura 4: Cidade de Boa Vista..................................................................................................70

    Figura 5: Localizao das hortas amostradas nos bairros de Boa Vista...................................71

    Figura 6: Populao por faixa etria.........................................................................................72

    Figura 7: Escolaridades das pessoas maiores de 15 anos..........................................................73

    Figura 8: Escolaridade do (a) chefe de famlia.........................................................................74

    Figura 9: Chefe de famlia por sexo..........................................................................................74

    Figura 10: Profisso do(a) chefe de famlia..............................................................................75

    Figura 11: Estado de naturalidade do (a) chefe de famlia.......................................................76

    Figura 12: ltimo estado que morou antes de vir para Roraima..............................................77

    Figura 13: Tempo de residncia em Roraima...........................................................................78

    Figura 14: Tempo de residncia em Boa Vista.........................................................................79

    Figura 15: Residiu anteriormente em rea rural?......................................................................79

    Figura 16: Hortas com imagem ao fundo de residncia dos agricultores.................................80

    Figura 17: Quem trabalha na propriedade?...............................................................................81

    Figura 18: Processos de produo.............................................................................................82

    Figura 19: Variedades de produo..........................................................................................83

    Figura 20: Aspectos da comercializao...................................................................................87

    Figura 21: O trabalho com a agricultura a nica fonte de renda da famlia?.........................89

    Figura 22: Fontes de renda externa a propriedade....................................................................90

    Figura 23: Renda bruta familiar mensal obtido com a agricultura (em R$).............................92

    Figura 24: Renda familiar mensal somando todas as fontes de renda (em R$)........................93

  • 11

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Principais movimentos migratrios para Roraima: 1975/2000...............................39

    Tabela 2- Principais fluxos migratrios internos/RR - 1975/2000...........................................40

    Tabela 3 Populao Residente. Roraima - 1950/2010...........................................................43

    Tabela 4 Populao residente por municpio/ Roraima.........................................................45

    Tabela 5: Culturas cultivadas nas propriedades........................................................................84

    Tabela 6: Razes para praticar a agricultura na rea urbana.....................................................86

  • 12

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CEVAE Centro de Vivncia Agroecolgica

    CF Constituio Federal

    COOPHORTA Cooperativa Hortifruti do Projeto Estufa de Boa Vista

    CTN Cdigo Tributrio Nacional

    EUA Estados Unidos da Amrica

    FAO Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao

    HORTIVIDA Associao dos Hortifrutigranjeiros de Boa Vista

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano

    ITERAIMA Instituto de Terras de Roraima

    ITR Imposto sobre Propriedade Territorial Rural

    MDS Ministrio do Desenvolvimento Social

    PEA Populao economicamente ativa

    PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

    RR Roraima

    SAN Segurana Alimentar e Nutricional

    SEBRAE Servio Brasileiro de Apoio as Micros e pequenas Empresas

    SEMGEP Secretaria Municipal de Gesto Participativa e Cidadania

    UNESCO - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura

  • 13

    SUMRIO

    1 INTRODUO....................................................................................................................15

    CAPTULO II - TRANSFORMAES NA AGRICULTURA BRASILEIRA: UMA

    REVISO................................................................................................................................19

    2.1 A transformao do campons em agricultor familiar....................................................28

    2.2 Fronteira agrcola amaznica..............................................................................................32

    CAPTULO III OCUPAO E POVOAMENTO DE RORAIMA...............................35

    3.1 Deslocamentos inter e intra-estadual..................................................................................36

    3.2 Fronteira agrcola ou fronteira urbana? A transio urbana em Roraima...........................41

    3.3 A rede urbana em Roraima.................................................................................................47

    CAPTULO IV ESPAO AGRCOLA NA PAISAGEM URBANA.............................50

    4.1 Espao urbano X espao agrcola no Brasil........................................................................53

    4.2 A dificuldade de definir o espao urbano e os problemas para a anlise do fenmeno

    rural...........................................................................................................................................57

    4.2.1 Regra-matriz de incidncia do Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU .................59

    4.2.2 Regra-Matriz de incidncia do Imposto sobre propriedade Territorial Rural - ITR........60

    4.2.3 Conflito entre o IPTU e o ITR.........................................................................................61

    CAPTULO V - ESPAOS AGRCOLAS NA CIDADE DE BOA VISTA......................63

    5.1 Polticas pblicas voltadas para a agricultura urbana em Boa Vista Roraima.................64

    5.2 O desafio da agricultura orgnica.......................................................................................67

    5.3 A pesquisa de campo...........................................................................................................68

    5.4 Resultados e Discusses......................................................................................................68

    5.4.1 Os agricultores urbanos de Boa Vista..............................................................................69

    5.4.2 Populao.........................................................................................................................72

    5.4.3 Dinmica populacional....................................................................................................76

    5.4.4 Processo de trabalho e aspectos da produo .................................................................81

    5.4.5 Aspectos scio-econmicos e associativos......................................................................85

  • 14

    5.5 A pluriatividade na agricultura urbana de Boa Vista..........................................................88

    5.6 As narrativas dos agricultores.............................................................................................93

    6 CONSIDERAES FINAIS..............................................................................................96

    REFERNCIAS.....................................................................................................................99

    ANEXOS................................................................................................................................103

  • 15

    AGRICULTURA FAMILIAR NO ESPAO URBANO DA CIDADE DE BOA VISTA -

    RORAIMA

    1 INTRODUO

    Este estudo resultado da inquietao a cerca da dinmica populacional no estado de

    Roraima, juntamente com a transio urbana e conseqentemente, a produo agrcola na rea

    urbana de Boa Vista. Em Roraima, mais especificamente na sua capital, o debate sobre esse

    novo modelo de agricultura ainda est numa fase de iniciao.

    O tema agricultura familiar muito difundido nos meios de comunicao, nos

    programas de governos, nos meios acadmicos, no dia-dia da populao em geral. No entanto,

    em Boa Vista, quando se fala em agricultura urbana, as pessoas tendem a se espantar, como se

    no houvesse agricultura na rea urbana, ou como se agricultura fosse para ser praticado

    somente na rea rural do Estado.

    Ento procuramos nesse trabalho analisar os agricultores familiares que produzem na

    rea urbana de Boa Vista. Para tanto, uma reviso da literatura sobre a agricultura familiar no

    Brasil de grande importncia para que se perceba a dinmica nas nomenclaturas e polticas

    pblicas na agricultura brasileira.

    A discusso sobre a agricultura familiar est freqentemente presente nos discursos

    dos movimentos sociais rurais, dos rgos governamentais, dos segmentos acadmicos e,

    especialmente, dos estudiosos que se ocupam do tema agricultura e mundo rural. O espao

    conquistado tanto social, poltico, como acadmico pelo debate sobre a agricultura familiar

    evidente.

    Embora tardiamente, se comparada tradio dos estudos sobre esse tema nos pases

    desenvolvidos, a expresso agricultura familiar emergiu no contexto brasileiro a partir de

    meados da dcada de 1990, quando o Estado criou o Programa Nacional de Fortalecimento da

    Agricultura Familiar - PRONAF. A centralidade da agricultura familiar no debate da reforma

    agrria responde ao impacto de dois grandes vetores: de um lado, a presso dos movimentos

    sociais em favor de transformaes estruturais e da democratizao das polticas pblicas, e,

  • 16

    de outro, o reconhecimento do seu status cientfico enquanto categoria analtica por parte da

    intelectualidade brasileira.

    As transformaes ocorridas no meio rural brasileiro em virtude do processo de

    industrializao e urbanizao suscitaram inquietaes a respeito dessas mudanas e

    complexidades, tendo como eixo principal a relao cidade-campo.

    Nessa perspectiva, temas at ento pouco presentes nos debates acadmicos ressurgem

    com novas configuraes, como o caso da agricultura familiar em espaos urbanos. O objeto

    deste trabalho justamente, a agricultura familiar no espao urbano da cidade de Boa Vista.

    Com o enorme crescimento da pobreza urbana, do desemprego e da insegurana

    alimentar, a autoproduo de alimentos tornou-se uma das alternativas para uma populao de

    excludos, desempregados e com pouco ou nenhum grau de instruo. Dessa forma,

    compreender o processo de estruturao do rural no urbano torna-se fundamental, medida

    que esse entendimento possibilitar a elaborao de polticas pblicas.

    Ademais, o trabalho com a agricultura urbana permite uma importante abordagem dos

    hbitos culturais e de alimentao, oferece nova alternativa alimentares, trabalha a questo de

    mudana de hbitos, de um maior consumo de verduras, hortalias e legumes, assim como

    recupera hbitos alimentares saudveis.

    A hiptese que subsidiou esse trabalho que os agricultores urbanos de Boa Vista

    seriam remanescentes dos assentamentos rurais, e/ou com forte tradio na agricultura que os

    mesmos migraram para a cidade, por no terem as mnimas condies de sobrevivncia na

    rea rural, o que foi comprovado no decorrer do trabalho de campo.

    O objetivo deste estudo fazer uma anlise do perfil socioeconmico e da trajetria

    migratria dos agricultores familiares que vivem em Boa Vista, buscando mostrar como a

    agricultura familiar se estruturou no espao urbano da capital de Roraima, analisando o

    processo de estruturao e organizao social do espao urbano, o processo de trabalho, de

    produo e comercializao.

    Para tanto, foi necessrio fazer uma reviso da literatura sobre a agricultura familiar no

    Brasil, passando pelos conceitos de pequeno agricultor, campons, entre outros, analisando

    parte da histria agrria brasileira. Mostrou-se necessrio tambm, falarmos da abertura da

  • 17

    fronteira agrcola na Amaznia e a ocupao do que hoje o estado de Roraima, juntamente

    com o aumento demogrfico e a transio urbana, e conseqentemente a atividade agrcola na

    cidade de Boa Vista.

    Para desenvolver este estudo, foi empregado a tcnica da entrevista semi-dirigida, o

    que permite um mnimo de liberdade e aprofundamento. As entrevistas foram realizadas de

    duas formas: uma apenas com anotaes e, outras gravadas, como forma de reter a narrativa

    textual dos entrevistados. Recorri tambm aos dados estatsticos, na perspectiva de

    complementaridade do entendimento sobre o fenmeno da agricultura em espao urbano.

    Como tcnica de pesquisa utilizei da observao participante, como forma de entender essas

    famlias em seu ambiente de trabalho e moradia. As conversas iniciais serviram como forma

    de estabelecer laos e conquistar a confiana.

    Foram coletados tambm, dados nos arquivos do Instituto Brasileiro de Geografia e

    Estatstica (IBGE/RR), Instituto de Terras de Roraima (ITERAIMA), programa Braos

    Abertos da Secretaria Municipal de Gesto Participativa e Cidadania (SEMGEP) e

    Superintendncia de Agricultura familiar, Economia e Agronegcio da Prefeitura Municipal

    de Boa Vista.

    Aps essa introduo, o captulo dois trata da reviso da literatura sobre a agricultura

    familiar, mostrando as origens da agricultura familiar dando nfase s transformaes

    ocorridas na agricultura brasileira e a ocupao da Amaznia, atravs da chamada fronteira

    agrcola.

    O captulo trs procura apresentar um apanhado histrico da formao da sociedade

    roraimense a partir dos movimentos migratrios. O primeiro movimento d-se a partir da

    explorao da atividade de minerao nos anos de 1930, o segundo a partir da instalao do

    Territrio do Rio Branco nos anos 1940, a abertura das rodovias e implantao dos projetos

    de colonizao nos anos 1970 e o terceiro com a descoberta de ouro e diamantes na poro

    setentrional de Roraima, em meados dos anos 1980. Esse movimento trouxe centenas de

    migrantes ao estado. Vale destacar que esse movimento migratrio, dos anos 1980, conciliou

    os atrativos da fronteira agrcola com a frente garimpeira. Este captulo mostra, ainda, a

    mudana na distribuio populacional cuja maior parte concentrava-se na rea rural para,

    depois, tornar-se uma populao de maioria urbana, os deslocamentos inter e intra-estadual,

    os principais movimentos migratrios e a formao da rede urbana de Roraima.

  • 18

    O captulo quatro apresenta um pouco dessa transio urbana no Brasil e a utilizao

    do espao urbano para a produo agrcola, onde o espao agrcola se confunde com o espao

    urbano e vice-versa, mostrando que essa dificuldade de definio do espao urbano e do

    espao rural pode trazer problemas de cunho socioeconmico, uma vez que a tributao

    desses espaos passa a ser conflituosa, pois no se percebe de forma clara onde rural e onde

    urbano e a incidncia de uma tributao como o Imposto Predial e Territorial Urbano -

    IPTU numa propriedade agrcola pode levar esse agricultor a abandonar as prticas agrcolas.

    No quinto captulo sero apresentados os resultados da pesquisa de campo, mostrando

    onde esses agricultores esto localizados dentro da cidade de Boa Vista, o que produzem,

    como vivem, como se estabelece o processo de trabalho, juntamente com os aspectos da

    produo, os aspectos econmicos e sociais, a pluriatividade como forma de

    complementaridade da renda agrcola na agricultura urbana de Boa Vista e, por ltimo, s

    narrativas dos agricultores onde os mesmos falam sobre as diferenas da agricultura na rea

    urbana e na rea rural, entre outras.

    E por fim, apresentarei as consideraes finais, trazendo uma sntese das abordagens

    desenvolvidas neste estudo.

  • 19

    CAPTULO II

    TRANSFORMAES NA AGRICULTURA BRASILEIRA: UMA REVISO

    Evidentemente, impossvel apresentar aqui uma anlise completa da histria agrria

    brasileira. Minha inteno, bem mais modesta, a de indicar elementos que a caracterizam, a

    fim de situar as anlises, tendo como lcus de investigao o espao urbano da cidade de Boa

    Vista, estado de Roraima.

    A agricultura familiar no Brasil foi profundamente marcada pelas origens coloniais da

    economia e da sociedade brasileira, caracterizada pelas grandes propriedades, pelas

    monoculturas de exportao e pela escravatura. Na esteira das monoculturas, situam-se os

    ciclos econmicos sucessivos que correspondem evoluo do mercado internacional. A

    fragilidade e a dependncia social e poltica dos produtores do campo so reforadas, em toda

    parte, por mentalidades forjadas pelas antigas relaes do tipo senhor/escravo. (LAMARCHE,

    1993)

    De acordo com Altafin (2010), os nossos livros de Histria pouco registram sobre o

    papel dos produtores de alimentos na construo do pas, sendo o passado contado apenas sob

    a perspectiva da grande agricultura escravista, monocultora e de exportao o ciclo do

    acar, o ciclo da borracha e o ciclo do caf exemplificam essa tendncia. No entanto, a

    recente historiografia brasileira tem buscado resgatar o papel do campons como ator social

    atuante, identificando suas especificidades e diferentes configuraes.

    O incio da colonizao do territrio brasileiro se fez com a doao de grandes

    extenses de terra a particulares, denominadas sesmarias. Surgiram, assim, os latifndios

    escravistas: a necessidade de exportar em grande escala e a escassez de mo-de-obra na

    colnia uniu-se existncia de um rentvel mercado de trfico de escravos.

    Segundo Graziano da Silva (1990), todas as atividades produtivas no Brasil colnia

    giravam em torno da agricultura e do comrcio, praticamente no havendo indstria. A

    finalidade bsica do latifndio escravista, era a produo para o mercado externo. A produo

  • 20

    mudava de acordo com os interesses da metrpole, ou seja, primeiro foi o acar, e no final da

    escravido, o caf.

    ... o latifndio escravista era o eixo de atividade econmica da colnia,

    definindo as duas classes sociais bsicas: os senhores e os escravos. Mas em

    torno deles, havia uma massa heterognea de brancos que no eram senhores,

    de negros libertos que no eram escravos, de ndios e de mestios que

    desempenhavam uma srie de atividades, entre elas a agricultura. Esses

    agricultores ocupavam certos pedaos de terra, onde produziam sua

    subsistncia e vendiam parte da produo nas feiras das cidades. A est a

    origem da pequena produo no Brasil e sua estreita ligao com a produo

    de alimentos. (GRAZIANO DA SILVA, 1990, p. 23).

    Os latifndios do perodo colonial tambm produziam gneros alimentcios. Na

    maioria das vezes essa produo era feita por pequenos agricultores, que pagavam uma renda

    pela utilizao de suas terras, alm da obrigatoriedade de prestar diversos servios ao

    proprietrio. Outras vezes, a produo de alimentos era feita pelos prprios escravos nos seus

    tempos livres, como os domingos, feriados e aps a rotina de trabalho dirio.

    A produo de alimentos do latifndio variava muito em funo do preo do seu

    produto principal destinado exportao. Quando o preo do acar, por exemplo e, mais

    tarde, do caf subia no mercado internacional, todas as terras e os escravos eram utilizados

    para expandir essa produo, diminuindo assim a produo de alimentos. Nesses perodos

    havia fome na colnia e as autoridades estimulavam os camponeses a expandirem sua

    produo para abastecer, no s as vilas e cidades como, s vezes, o prprio latifndio.

    No incio do sculo XIX, a extino do regime de sesmarias, aliada a outra legislao,

    que regulava a posse das terras devolutas, provoca uma rpida expanso das pequenas

    propriedades rural. Em meados desse mesmo sculo, comea a declinar o regime

    escravocrata. Em 1850, o Brasil probe o trfico negreiro e, nesse mesmo ano, criada uma

    nova legislao a Lei de Terras, que definia o acesso propriedade, preconizando que todas

    as terras devolutas s poderiam ser apropriadas mediante a compra e venda e que o governo

    destinaria os rendimentos obtidos nessas transaes para financiar a vinda de colonos da

    Europa. (GRAZIANO DA SILVA, 1990, p. 25).

    O perodo compreendido entre a proibio do trfico negreiro e da Lei de Terras at a

    abolio, entre 1850 1888, marca a decadncia do sistema latifundirio-escravista. Aps

    1888, comea a se consolidar no pas um segmento formado por pequenas indstrias de

    chapus, louas, fiao e tecelagem. A pequena propriedade agrcola camponesa, alm da

  • 21

    produo de alimentos, produz matrias-primas para as indstrias nascentes, como por

    exemplo, o algodo e o tabaco, entre outros. No entanto, o latifndio persiste e monopoliza a

    produo destinada exportao: o caf.

    As alteraes de preos do caf no mercado internacional provocam crises peridicas,

    desde o incio do sculo XX, atingindo o pice em 1932, como reflexos da crise de 1929 sobre

    o setor cafeeiro. Entre 1931 e 1938 o governo brasileiro passou a comprar grande parte dos

    estoques de caf para, imediatamente, destru-los. Alm disso, muito caf colhido foi

    queimado ao longo das estradas e muitos cafezais mais velhos foram igualmente devastados.

    Nesse perodo foram destrudos cerca de 70 milhes de sacas de caf. (TEIXEIRA; TOTINI,

    1989, p. 171)

    O perodo que se estende de 1933 a 1955, marca uma nova fase de transio da

    economia brasileira. Nesse perodo, o setor industrial vai se consolidando paulatinamente e o

    centro das atividades econmicas comea, vagarosamente, a se deslocar do setor cafeeiro

    exportador. A indstria, gradativamente, vai assumindo o comando do processo de

    acumulao de capital e o pas vai deixando de ser eminentemente agrcola.

    Segundo Graziano da Silva (1990), o desenvolvimentismo, entendido como o processo

    de modernizao promovido por meio de pesados investimentos no setor industrial e, que

    buscou modificar a tradicional base econmica, fundamentalmente agrcola, das economias

    nacionais latino-americanas, comeou nos anos de 1930 com a poltica de substituio das

    importaes e atingiu seu auge entre 1955 e 1960.

    O poder poltico da oligarquia latifundiria diminui gradativamente devido estratgia

    governamental de transferir recursos da agricultura para o setor industrial como forma de

    desenvolver o pas. Essa estratgia, por um lado acelerou a industrializao, provocou um

    enfraquecimento do poder oligrquico, e por outro, fez crescer a pobreza e o xodo do meio

    rural, abrindo espaos para mobilizaes e reivindicaes camponesas por terra e melhores

    condies de vida.

    Para viabilizar o processo de substituio das importaes,1 cujo objetivo era favorecer

    a produo interna, tornava-se fundamental a implementao da indstria pesada no pas, ou

    1 Um determinado produto que era comprado no exterior, passa a ter sua produo estimulada no pas atravs de

    barreiras alfandegrias, que incluam desde impostos elevados at a prpria proibio da importao.

  • 22

    seja, siderurgia, petroqumica, material eltrico, entre outros, concretizada no perodo de 1955

    a 1961.

    No incio da dcada de 1960, que corresponde ao final da fase de industrializao

    pesada no Brasil, instalam-se no pas as fbricas de mquinas e insumos agrcolas e se

    estabelece s indstrias de tratores e equipamentos agrcolas, fertilizantes qumico, raes,

    medicamentos veterinrios, entre outros. Para garantir a ampliao desse mercado, o Estado

    criou um conjunto de polticas agrcolas destinadas a incentivar aquisio, pelos produtores

    rurais, de produtos desses novos ramos da indstria. (GRAZIANO DA SILVA, 1990).

    No perodo da crise econmica, entre os anos de 1961 a 1967, ocorre um aumento

    generalizado dos tamanhos das propriedades. A organizao dos trabalhadores rurais, atravs

    das Ligas Camponesas, dos partidos polticos de esquerda e do movimento sindical, nos anos

    de 1961 a 1964, passou a exercer presso social para que o governo levasse adiante a idia de

    reforma agrria. Em 1964, o governo assinou um decreto que desapropriava terras s margens

    das grandes rodovias. Duas semanas aps, o presidente estava deposto e o pas entrava para a

    fase do regime militar (1964 1988).

    Com o golpe militar de 1964 e a perseguio aos partidos de esquerda, os movimentos

    organizados no campo so fortemente afetados, especialmente a partir da desarticulao das

    Ligas Camponesas. Isso resulta, necessariamente, na reduo do espao social para insero

    do conceito de campesinato.

    Por outro lado, dentro da lgica do modelo de desenvolvimento adotado para o campo,

    voltado modernizao tecnolgica em produtos agrcolas de exportao, o conjunto de

    agricultores passa a ser classificado quanto ao tamanho de suas reas e de sua produo,

    dividido em pequenos, mdios e grandes. Interessava assim escamotear desigualdades como o

    acesso a terra, por exemplo, e estabelecer categorias operacionais, visando aplicao

    diferenciada das polticas pblicas como o crdito rural, a pesquisa e a extenso rural. Os

    camponeses passam ento a ser tratados como pequenos produtores. De acordo com Porto

    (1997):

    [...] pode-se afirmar que o conceito de pequena produo contribuiu para uma

    relativa despolitizao do tema. [...] ao conceito de campesinato associava-se,

    sobretudo um contedo poltico e ideolgico que se torna profundamente

    nuanado no conceito de pequena produo. (PORTO, 1997, p. 29).

  • 23

    A poltica dos governos militares persistia na linha do desenvolvimentismo, que

    tornou ainda mais grave e dramtica a questo agrria. A concentrao da propriedade da

    terra, aprofundada pela modernizao e o conseqente xodo rural ampliaram os antigos e

    gerou novos conflitos no meio rural, que o governo tentou resolver por meio da criao de

    uma lei agrria, da instituio da represso poltica e da criao de projetos de colonizao.

    O governo militar, pressionado por interesses internacionais para eliminar os conflitos

    e pela possibilidade do agravamento de tais confrontos, foi forado a encontrar formas de

    controlar as agitaes que se espalhavam pelo pas. A ao do governo ocorreu em duas

    direes, aparentemente contraditrias. De um lado, o Congresso foi obrigado a aprovar o

    Estatuto da Terra, em 1964 e, de outro, todos os movimentos agrrios e suas lideranas

    passaram a ser violentamente perseguidos e reprimidos at o fim do regime em 1988.

    De acordo com Sauer (1998, p. 33), a inteno dos militares ao editar o Estatuto da

    Terra no era promover a reforma agrria. O intuito do governo era, simplesmente, criar um

    instrumento legal capaz de controlar as demandas camponesas. O Estatuto foi criado com a

    finalidade militar estratgica de assegurar que as lutas populares no campo seriam mantidas

    num mbito politicamente administrvel, ainda que os grandes latifundirios pudessem

    encar-lo como uma ameaa s suas propriedades e ao seu poder poltico.

    J no perodo seguinte, 1967 a 1972, que corresponde ao perodo de crescimento e

    auge do que ficou conhecido como milagre brasileiro, aumentou o nmero de grandes

    propriedades.

    No perodo de 1972 a 1976, que coincide com uma forte expanso da fronteira

    agrcola na Amaznia, h novamente uma multiplicao das pequenas propriedades, embora

    haja, tambm, um crescimento ainda maior das grandes propriedades, especialmente as

    ligadas as empresa multinacionais. Isso significa basicamente que a possibilidade de

    multiplicao da pequena propriedade s se materializaria por ocasio da expanso da

    fronteira agrcola, sendo posteriormente engolida, quando da consolidao da estrutura agrria

    nessas regies em funo do movimento de ascenso cclica da economia.

    Graziano da Silva (1990) v a dinmica da recriao/destruio da pequena

    propriedade nas dcadas de 1960 e 1970 no Brasil da seguinte forma:

  • 24

    Na fase da subida do ciclo econmico, as pequenas propriedades so

    engolidas naquelas regies de maior desenvolvimento capitalista no campo e

    empurradas para a fronteira, na maioria das vezes na forma de pequenos

    parceiros. Na fase de descenso do ciclo, as pequenas propriedades se

    expandem mesmo em certas regies de maior desenvolvimento capitalista

    e/ou de estrutura agrria consolidada. (GRAZIANO DA SILVA, 1990, p. 32)

    As transformaes que estavam ocorrendo na agricultura brasileira nos anos 1970 a

    1980 eram analisadas como similares quelas ocorridas nos pases capitalistas avanados,

    tanto em seus aspectos positivos como nos negativos. Na dcada de 1970, sustentava-se que a

    chamada "questo agrcola" havia sido superada pelo processo de modernizao, baseada na

    mecanizao e na utilizao de variedades selecionadas de sementes e de insumos qumicos.

    Nos anos 1980, sustentava-se que este processo de modernizao aprofundara a integrao da

    agricultura com os capitais industriais, comerciais e financeiros que a envolviam, formando o

    que foi chamado de "complexos agroindustriais. (BUAINAIN; ROMEIRO; GUANZIROLI,

    2003).

    Dentro deste quadro analtico, a reforma agrria vista como anacrnica,

    desnecessria e insustentvel.

    Para ser competitivo e sobreviver, preciso adotar um "pacote" tecnolgico

    que exige elevados investimentos, bem como possuir uma rea mnima

    relativamente grande ou ocupar um nicho de mercado, sobretudo pela

    integrao ao complexo agroalimentar. O movimento de concentrao da

    produo agropecuria em um nmero cada vez menor de estabelecimentos

    cada vez maiores era considerado parte de uma tendncia "natural" e

    necessria que j ocorrera nos pases capitalistas desenvolvidos e que,

    portanto, no poderia ser freada, sob pena de provocar um atraso tecnolgico

    no setor agropecurio, com impactos negativos no prprio processo de

    desenvolvimento econmico. (BUAINAIN; ROMEIRO; GUANZIROLI,

    2003, p. 313-314).

    Na dcada de 1990 a reduo relativa do crescimento do emprego rural, estritamente

    agrcola em contraposio ao aumento do emprego rural no-agrcola, apresentada como

    mais uma evidncia de que [...] a criao de empregos no-agrcolas nas zonas rurais ,

    portanto, a nica estratgia possvel capaz de, simultaneamente, reter essa populao rural

    pobre nos seus atuais locais de moradia e ao mesmo tempo, elevar o seu nvel de renda.

    (GRAZIANO DA SILVA, 1999, p. 26).

    Esse fenmeno interpretado como resultado de um processo histrico. Seriam

    evidncias de que a estrutura produtiva do setor agrcola brasileiro se aproxima daquela dos

    pases capitalistas desenvolvidos, tornando desnecessrias uma reforma agrria que no fosse

    apenas de cunho social.

  • 25

    Nesse sentido, tal como ocorreu nos anos de 1970 e 1980, esta viso do novo rural2,

    presta-se como justificativa intelectual para polticas que, em ltima instncia, mantm o

    status quo agropecurio do pas, caracterizado por forte desigualdade econmica, social e

    elevados nveis de pobreza.

    Com efeito, nos ltimos anos, o argumento do novo rural vem sendo utilizado para

    justificar a necessidade de abandonar polticas agrrias e agrcolas voltadas para os setores

    mais fragilizados da produo agrcola familiar, em benefcio de polticas de gerao de

    empregos rurais no-agrcolas.

    Dessa forma, limita-se o apoio s atividades propriamente agrcolas das famlias

    rurais, em contraposio quelas consideradas competitivas, por ocuparem nichos de mercado

    de produtos especiais de alto valor agregado, cuja produo requer o uso intensivo de mo-de-

    obra.

    Como no passado, essas anlises no levam em conta as especificidades que

    distinguem a situao do Brasil daquela dos pases capitalistas desenvolvidos. No Brasil a

    proporo da populao economicamente ativa (PEA) vive em reas rurais, ou seja, pouco

    menos de um quarto do total da populao economicamente ativa similar quela observada

    nos EUA e nos pases europeus, mas um abismo separa suas condies de insero no

    mercado de trabalho daquelas observadas nesses pases, fruto de processos histricos distintos

    de desenvolvimento rural. Para comear, cerca de 65% dessa populao trabalha em

    atividades estritamente agrcolas contra, por exemplo, cerca de 10% nos EUA. (BUAINAIN;

    ROMEIRO; GUAZIROLI, 2003, p. 315).

    preciso considerar ainda que, nos EUA, o decrscimo da populao

    ocupada na agropecuria foi fruto de um processo relativamente equilibrado

    de xodo rural. Equilibrado, na medida em que impulsionado principalmente

    pela expanso das oportunidades de emprego urbano-industrial. Durante um

    longo perodo, uma fronteira agrcola aberta garantiu s ondas de imigrantes

    que l aportavam a possibilidade de acesso a terra. O esgotamento da

    fronteira agrcola, por sua vez, coincide com o arrefecimento do ritmo da

    imigrao. A elevao do custo de oportunidade do trabalho, por sua vez,

    constituiu-se no fator decisivo no apenas para moldar o processo de

    modernizao (principalmente da mecanizao) da agricultura americana

    como para elevar os salrios urbanos e toda a conformao da economia

    americana. O fato que o xodo rural nos EUA se explica principalmente

    pela atrao exercida pelo setor urbano-industrial e no pela repulso da falta

    2 Jos Graziano da Silva coordenou um projeto cujo objetivo consistia em analisar o que denominou de "novo rural

    brasileiro", em aluso emergncia expressiva das atividades rurais no-agrcolas e da pluriatividade no meio rural

    brasileiro. (GRAZIANO DA SILVA, 1999).

  • 26

    de alternativas de sobrevivncia minimamente condigna no campo.

    (BUAINAIN; ROMEIRO; GUAZIROLI, ibidem).

    Com relao evoluo do emprego rural no-agrcola nos EUA, inicialmente seu

    crescimento decorreu da modernizao, associada expanso de atividades industriais e de

    servios, a montante e a jusante das atividades estritamente agrcolas. Com o tempo,

    indstrias de outros setores comearam, tambm, a buscar distritos rurais para expandir suas

    instalaes.

    Paralelamente, o emprego rural no-agrcola se expande com o aumento da afluncia

    de pessoas, tendo por base um processo de redistribuio dinmica da renda como, por

    exemplo, servios gerados pela expanso das residncias secundrias campestres e com a

    busca de reas rurais por citadinos fugindo do stress das grandes cidades e/ou devido s novas

    possibilidades de trabalho a domiclio, oferecidas pela expanso dos sistemas de comunicao

    informatizados.

    Como resultado desse processo, a grande massa de residentes rurais composta de

    populaes de origem urbana, com nveis de escolaridade e/ou formao profissional mdio e

    alta, exercendo todo tipo de atividades industriais e, principalmente, comerciais e de servios.

    (SCHNEIDER, 2003).

    Comparando esse quadro com o ocorrido no Brasil, a situao inversa, o acesso s

    terras livres pelas massas de imigrantes e libertos foi bloqueado e, como resultado, as massas

    rurais permaneceram cativas da insegurana da posse da terra, como reserva de trabalho

    barato de uma classe de latifundirios, com algumas excees no Sul do pas onde, por razes

    estratgicas de segurana das fronteiras criou-se uma forte base de produtores agrcolas

    familiares.

    A forte concentrao da renda no campo, decorrente dessas condies e o tipo de

    insero do pas na diviso internacional do trabalho, limitando a expanso do setor urbano-

    industrial, constitui elementos que esto na raiz dos fortes desequilbrios distributivos

    observados no processo de urbanizao no Brasil. Cada vez mais, o xodo rural configurou-se

    como um xodo de refugiados do campo, ao contrrio do que ocorreu nos EUA e na Europa,

    onde os fatores de atrao predominaram sobre os fatores de expulso.

  • 27

    Segundo Buainain, Romeiro e Guanziroli (2003, p. 317), as conseqncias

    socioeconmicas desse processo so conhecidas. Os que permaneceram no campo

    continuaram em situao precria, sem acesso ou com acesso limitado a terra, educao e

    demais servios de infra-estrutura social e aos benefcios da poltica agrcola.

    Estudos realizados (FAO/INCRA, 2000) mostram que, para a maior parte da grande

    massa da PEA rural no Brasil, ou seja, cerca de 65%, que se encontra ocupada em atividades

    agrcolas, expanso a partir dos anos de 1980, dos empregos rurais no-agrcolas, representa

    no uma ampliao das oportunidades de trabalho para os membros da famlia, mas sim uma

    chance de sobrevivncia, em geral precria, para produtores sem acesso ao progresso tcnico,

    terra suficiente, ao crdito, etc.

    Em outras palavras, o produtor familiar3, quando recebe apoio suficiente, capaz de

    produzir uma renda total, incluindo a de autoconsumo, superior ao que ele ganharia

    trabalhando como empregado. Neste sentido, no so corretas as analogias com a situao nos

    pases desenvolvidos, onde as remuneraes obtidas com atividades no-agrcolas elevam a

    renda mdia do setor rural. No Brasil, o potencial de gerao de renda do setor agrcola

    familiar est longe de ser plenamente utilizado.

    Os fatos e a histria mostram claramente que, apesar de todas as mudanas ocorridas e

    das oportunidades perdidas, ainda se faz necessrio no pas, como condio para a eliminao

    da pobreza e de suporte essencial a um processo de redistribuio dinmica da renda, um

    projeto de desenvolvimento rural apoiado na produo familiar. Produo familiar

    predominantemente descapitalizada ou pouco capitalizada, mas que nenhum bice

    tecnolgico impede que inicie um processo de modernizao e se torne, progressivamente,

    mdia e grande.

    No entanto, h que se ter cuidado na definio dos critrios de corte do que ou no

    agricultura familiar, sob pena de excluir um contingente importante de produtores, hoje

    marginalizados no por uma inviabilidade estrutural, mas precisamente pela ausncia de

    polticas pblica de apoio.

    3 Segundo Lamarche (1993, p. 218), a identidade dos agricultores no Brasil, exprime-se em duas categorias centrais: a

    de produtor rural e a de trabalhador rural. Portanto, toda vez que aparecer produtor familiar, considere como sinnimo de agricultor familiar.

  • 28

    2.1 A transformao do campons em agricultor familiar4

    Primeiramente vamos resgatar algumas caractersticas bsicas do conceito clssico de

    campons. Cardoso (1986, apud Altafin, 2010) destaca quatro:

    a) Acesso estvel a terra, seja em forma de propriedade, seja mediante algum

    tipo de usufruto; b) Trabalho predominantemente familiar, o que no exclui o

    uso de fora de trabalho externa, de forma adicional; c) Auto-subsistncia

    combinada a uma vinculao ao mercado, eventual ou permanente; d) Certo

    grau de autonomia na gesto das atividades agrcolas, ou seja, nas decises

    sobre o que e quando plantar, como dispor dos excedentes, entre outros. (CARDOSO, 1987 p. 56, apud ALTAFIN, 2010 p. 2).

    Portanto, produo camponesa aquela em que a famlia ao mesmo tempo detm a

    posse dos meios de produo e realiza o trabalho na unidade produtiva, podendo produzir

    tanto para sua subsistncia como para o mercado.

    De acordo com Altafin (2010), um aspecto importante na compreenso do campons

    tradicional, o seu sistema produtivo diversificado que adotado pela famlia camponesa.

    Essa diversificao de culturas configura-se como parte da estratgia, que tem na combinao

    com a criao de animais sua alternativa de fertilizao dos solos e melhoria na produtividade

    dos cultivos. Nesse aspecto, vale ressaltar que, diferente da situao clssica,

    [...] o campons no Brasil sempre ocupou espaos deixados pela grande

    agricultura. Devido a esse carter marginal, encontra dificuldades para

    implantar sistema produtivo do tipo policultura-pecuria. A ausncia de

    criaes ou a pouca rea para as mesmas sempre afetou a possibilidade de

    fertilizao natural, o que o campons compensava (e ainda compensa) com

    constantes deslocamentos em busca de reas de cultivos. (ALTAFIN, 2010,

    p. 3).

    A mobilidade espacial sempre foi sua forma de assegurar o projeto para o futuro. O

    compromisso com a reproduo da famlia se dava pela prtica de uma agricultura itinerante e

    pelo sistema de posse precria da terra. De certa forma, o patrimnio transmitido era o prprio

    modo de vida. (WANDERLEY, 1999, p. 38).

    4 Segundo Wanderley (1999), a agricultura camponesa tradicional uma das formas sociais de agricultura

    familiar, uma vez que agricultura camponesa se funda no trip propriedade, trabalho e famlia. Dessa forma, as

    transformaes na agricultura brasileira so muito mais conceituais do que prticas.

  • 29

    Segundo Silva (2010) a expresso agricultura familiar comea a ser utilizada, a

    partir dos anos 1980 para caracterizar a produo assentada no trabalho da famlia: ao mesmo

    tempo moderna e integrada aos circuitos comerciais e industriais.

    A afirmao da agricultura familiar no cenrio social e poltico brasileiro esto

    relacionados legitimao que o Estado lhe emprestou ao criar, em 1996, o PRONAF. Esse

    programa, formulado como respostas s presses do movimento sindical rural desde o incio

    dos anos de 1990, nasceu com a finalidade de prover crdito agrcola e apoio institucional a

    categoria de pequenos produtores rurais que vinham sendo alijados das polticas pblicas ao

    longo da dcada de 1980 e encontravam srias dificuldades em manter-se em atividade.

    (SCHNEIDER, 2003).

    A partir do surgimento do PRONAF, o sindicalismo rural brasileiro, sobretudo aqueles

    localizados nas regies Sul e Nordeste, passaram a reforar a defesa de propostas que

    vislumbrassem o compromisso cada vez mais slido do Estado com uma categoria social

    considerada especfica e que necessitava de polticas pblicas diferenciadas, tais como juros

    menores, apoio institucional entre outros.

    Segundo Lamarche (1993), a explorao familiar5 corresponde a uma unidade de

    produo agrcola em que propriedade, trabalho e famlia esto intimamente ligados. A

    interdependncia desses trs fatores no funcionamento da explorao agrcola engendra,

    necessariamente, noes mais abstratas e complexas, tais como a transmisso do patrimnio e

    a reproduo da explorao.

    O PRONAF, ao estabelecer critrios e requisitos para os produtores beneficirios do

    programa, define agricultor familiar da seguinte forma:

    Os beneficirios do referido programa so aqueles que exploram parcela da

    terra na condio de proprietrios, assentados, posseiros, arrendatrios ou

    parceiros e atendem, simultaneamente, aos seguintes quesitos: utilizam o

    trabalho direto seu e de sua famlia, podendo ter, em carter complementar,

    at dois empregados permanentes e contar com a ajuda de terceiros, quando a

    natureza sazonal da atividade agropecuria assim o exigir; no detenham, a

    qualquer ttulo, rea superior a quatro mdulos fiscais6, quantificados

    segundo a legislao em vigor; tenham, no mnimo, 80% da renda familiar

    5 Lamarche usa a expresso explorao familiar como equivalente agricultura familiar.

    6 Mdulo fiscal uma unidade de medida expressa em hectares, fixada para cada municpio, e que estabelece a

    rea mnima necessria subsistncia do produtor e sua famlia. Como um mdulo fiscal corresponde, em mdia

    25ha, ser considerada agricultura familiar aquela cuja propriedade tenha no mximo 100ha.

  • 30

    bruta anual originada da explorao agropecuria, pesqueira e/ou extrativa; e

    residam na propriedade ou aglomerado rural urbano prximo (PRONAF).

    Disponvel em: http://www.bcb.gov.br/?PRONAFFAQ Acesso em:

    18/02/2011.

    As diretrizes do PRONAF tm como referncia s experincias europias,

    principalmente a da Frana, que elegeram a agricultura familiar como a forma de produo

    sobre a qual se implementou, no ps-guerra, a modernizao da produo agrcola e da

    sociedade rural.

    Assim como na Europa, o padro de organizao da produo privilegiado pelo

    PRONAF e a sua funo social, no desenvolvimento econmico do pas, esto sustentados,

    implicitamente, nas noes de produtividade e na rentabilidade crescentes, o que resultaria,

    segundo os formuladores desse programa, em uma contribuio do setor para a

    competitividade da economia nacional e, em conseqncia, na melhoria da qualidade de vida

    da populao rural. Na Frana, a revoluo agrcola se realizou com o esforo de vrios

    setores da sociedade interessados em transformar o campesinato a base social histrica da

    agricultura francesa em um setor produtivo dinmico, ao mesmo tempo produtor e

    consumidor. (LAMARCHE, 1993, p. 98).

    Ao contrrio do que ocorreu no Brasil, em que a modernizao da agricultura se

    sustentou nas grandes empresas e no benefcio da acumulao do capital privado, na Frana a

    agricultura repousa historicamente na produo familiar, seja na gerao de valores, seja em

    relaes sociais de produo, o que justifica a deciso poltica de se processar a chamada

    industrializao da agricultura sobre as bases de uma fora de trabalho e de um capital

    essencialmente familiar e de mdio porte. (LAMARCHE, 1993, p. 99).

    Para Sauer (1998), o termo agricultura familiar tem trazido dificuldades conceituais e

    o seu uso, apesar de muito freqente na literatura sobre o setor agro brasileiro, est longe de

    um consenso. O universo da agricultura familiar tem sido freqentemente definido a partir do

    regime de trabalho e do modo de gesto da unidade produtiva. Para o autor, as caractersticas

    centrais de agricultura familiar so:

    A gesto da unidade produtiva e os investimentos nela realizados so feitos

    por indivduos que mantm laos de consanginidade e casamento; a maior

    parte do trabalho realizada pelos prprios membros da famlia; e, a

    propriedade dos meios de produo (nem sempre da terra) pertence famlia.

    (SAUER, 1998, p. 89).

  • 31

    Cumpre destacar que as opinies se dividem em torno dos avanos obtidos pelo

    PRONAF, desde sua legitimao em 1996. De um lado, h os que apostam na idia de que o

    mesmo est conseguindo produzir o ambiente institucional necessrio ampliao da base

    social da poltica nacional de crdito e de desenvolvimento rurais (ABRAMOVAY; VEIGA,

    1999, p. 45-46), ao passo que outros, criticam-no, com base no carter contraditrio de uma

    poltica que aposta no desenvolvimento local e na potencializao das atividades diversificada

    via industrializao, como turismo ou lazer, mas que, paradoxalmente, insiste na nfase

    profissionalizao e ao apoio ao "verdadeiro agricultor" (CARNEIRO, 2000, p. 124),

    entendido como aquele produtor cujos rendimentos originam-se essencialmente da

    agricultura.

    Ao buscarmos na literatura as contribuies para a delimitao conceitual da

    agricultura familiar, encontramos diversas vertentes, dentre as quais destacamos duas: uma

    que considera que a moderna agricultura familiar uma nova categoria, gerada no bojo das

    transformaes experimentadas pelas sociedades capitalistas desenvolvidas. E outra que

    defende ser a agricultura familiar brasileira um conceito em evoluo, com significativas

    razes histricas.

    Tendo como foco o caso europeu, a primeira corrente citada considera que no h

    significado em buscar as origens histricas do conceito, como, por exemplo, estabelecendo

    uma relao com a agricultura camponesa. [...] uma agricultura familiar altamente integrada

    ao mercado, capaz de incorporar os principais avanos tcnicos e de responder s polticas

    governamentais no pode ser nem de longe caracterizada como camponesa.

    (ABRAMOVAY, 1992, p. 22).

    Apesar do carter familiar, esse autor considera que h uma distino conceitual, cuja

    origem estaria nos diferentes ambientes sociais, econmicos e culturais que caracterizam cada

    uma. A prpria racionalidade de organizao familiar no depende... da famlia em si

    mesma, mas, ao contrrio, da capacidade que esta tem de se adaptar e montar um

    comportamento adequado ao meio social e econmico em que se desenvolve.

    (ABRAMOVAY, 1992, p. 23).

    Nesse mesmo sentido, Claude Servolin considera a predominncia de agricultores

    familiares modernos como um fenmeno recente, sem qualquer vnculo ou herana do

    passado. O que ele denomina agricultura individual moderna considerada um novo

  • 32

    personagem, diferente do campons, e gestado a partir dos interesses e das iniciativas do

    Estado (SERVOLIN apud WANDERLEY, 1999, p. 34).

    Para a segunda corrente de pensamento, a qual ser adotada neste trabalho, as

    transformaes vividas pelo agricultor familiar moderno no representam ruptura definitiva

    com formas anteriores, mas, pelo contrrio, mantm uma tradio camponesa que fortalece

    sua capacidade de adaptao s novas exigncias da sociedade. Nessa linha, argumentos

    reunidos por Huges Lamarche (1993) e Nazareth Wanderley (1999) explicam a agricultura

    familiar como um conceito genrico, que incorpora mltiplas situaes especficas, sendo o

    campesinato uma dessas formas particulares.

    Para o caso brasileiro, Wanderley considera que o agricultor familiar, mesmo que

    moderno inserido ao mercado, [...] guarda ainda muitos de seus traos camponeses, tanto

    porque ainda tem que enfrentar os velhos problemas, nunca resolvidos, como porque,

    fragilizado, nas condies da modernizao brasileira, continua a contar, na maioria dos

    casos, com suas prprias foras. (WANDERLEY, 1999, p. 52).

    Na seo a seguir, procuraremos dar visibilidade para a ocupao da Amaznia com a

    chamada fronteira agrcola, fazendo uma aproximao com a ocupao e povoamento do

    Estado de Roraima.

    2.2 Fronteira agrcola amaznica

    O debate sobre a fronteira se desenvolve em torno do significado da participao de

    pequenos produtores e grandes empreendimentos capitalistas e das conseqncias dessa

    participao. De acordo com Becker (1998, p. 9-10), a tese dos campesenistas a do

    fechamento das terras da Amaznia, antes livres, paras os camponeses, devido

    implantao macia dos grandes projetos, envolvendo um confronto entre duas lgicas

    opostas e incompatveis de pensar e utilizar a terra: o modo campons, em que o direito de

    posse gerado pelo trabalho, e o modo capitalista, baseado na propriedade da terra.

  • 33

    Num outro ngulo, situa-se o mito da imagem oficial difundida sobre a fronteira como

    espao vazio, noo que estrategicamente serve tanto como vlvula de escape para os

    conflitos sociais em reas densamente povoadas como tambm como campo aberto para

    investimento.

    Segundo Becker (1998, p. 11-12), o povoamento da Amaznia, a partir de projetos de

    ocupao e colonizao, se fez sempre em surtos devassadores vinculados expanso

    capitalista mundial. O primeiro devassamento foi o da floresta tropical de vrzea, ao longo

    dos rios, em busca das drogas do serto, utilizadas como condimento e na farmcia

    europia.

    Outro devassamento significativo foi o ciclo da borracha, demandada pela

    industrializao dos EUA e da Europa. A partir do perodo compreendido entre 1920 e 1930,

    tm incio as frentes pioneiras7 agropecurias e minerais espontneas oriundas do nordeste,

    intensificadas nas dcadas de 1950 e 1960. As novas reas ou fronteiras agrcolas foram

    criadas para receber posseiros e camponeses sem-terras, pois ao desloc-los para as novas

    reas diminuam a presso social nas regies mais populosas, deixando as terras abertas para o

    processo de modernizao e aumentando a concentrao da propriedade.

    Para Graziano da Silva (1982, p. 118), a fronteira, no plano social, representa uma

    orientao dos fluxos migratrios, especialmente das populaes rurais. Ela o lcus da

    recriao da produo camponesa, expulsa das regies mais desenvolvidas. A fronteira o

    destino dos pequenos produtores expropriados e dos excedentes populacionais, especialmente

    do nordeste, do sul e do sudeste do Brasil.

    No plano econmico, a fronteira uma espcie de armazm regulador dos preos de

    gneros alimentcios de primeira necessidade consumidos pela populao urbana,

    especialmente a de mais baixa renda; e, no plano poltico, tem sido a vlvula de escape das

    tenses sociais no campo.

    Os projetos de colonizao foram criados pelos militares, baseados em dois grandes

    pressupostos ideolgicos: a existncia de terras vazias e baratas nas regies norte e centro-

    oeste; e a ocupao espacial como caminho natural para resguardar as fronteiras contra

    possveis invases, baseada na doutrina de segurana nacional. (SAUER, 1998, p. 38).

    7 Conforme definio de Martins (1975, p.45) a frente pioneira exprime um movimento social cujo resultado imediato

    a incorporao de novas regies pela economia de mercado. Ela apresenta-se como fronteira econmica.

  • 34

    Por um lado, as reas de colonizao se tornaram cenrios de violncia, porque os

    antigos posseiros eram expulsos e as populaes indgenas, freqentemente dizimadas. Por

    outro lado, as famlias que conseguiram terra foram abandonadas no meio de um ambiente

    hostil, isolado e sem infra-estrutura. Tal populao era afetada por doenas tropicais como a

    malria e, aps muito trabalho para abrir a mata e preparar o solo, no tinha condies de

    comercializar a produo. Muitos foram forados a abandonar suas reas, deslocando-se

    novamente para as cidades ou de volta para suas regies de origem, deixando as terras prontas

    para a criao extensiva de gado de corte. (SAUER, 1998, p. 40).

    Esses agricultores, na maioria das vezes, destitudos de bens materiais, esquecidos

    pelo poder pblico e excludos social e economicamente, contam apenas uns com os outros

    para a sobrevivncia e adaptao na fronteira.

    Em Roraima, o processo de ocupao da fronteira teve seu auge na dcada de 1980

    com a abertura dos projetos de colonizao, principalmente na regio sul, e a descoberta de

    novos garimpos, como ser observado no prximo captulo.

  • 35

    CAPTULO III

    OCUPAO E POVOAMENTO DE RORAIMA

    Em virtude da distncia do centro do poder econmico, Roraima manteve-se

    esparsamente povoada por sculos. Mesmo durante o auge da extrao da borracha (1850-

    1911), a ocupao econmica e demogrfica da regio foi irrelevante, sendo que sua

    populao mal chegava a 10.000 habitantes em 1900. A derrocada da economia da borracha,

    fomentada pela concorrncia das plantaes do sudeste asitico, engendrou um pronunciado

    refluxo populacional e muitos indivduos retornaram aos seus estados de origem. Com isso, a

    populao tornou-se ainda menor, chegando a 7.424 indivduos em 1920. (SILVEIRA;

    GATTI, 1988).

    Com o fim do ciclo da borracha, a minerao tornou-se a principal atividade

    econmica. A descoberta de minas de ouro e diamantes no norte de Roraima fomentou a

    chegada de garimpeiros de toda a regio Amaznica. Ao longo da dcada de 1930, outras

    minas de diamante foram encontradas, revitalizando a economia local, fazendo com que a

    populao chegasse a 10.509, em 1940. (RODRIGUES, 1996).

    A implementao do Territrio Federal do Rio Branco no ano de 1943, desencadeou

    as primeiras tentativas em promover a ocupao mais efetiva da regio, impulsionada pelo

    sentimento de segurana nacional a fim de resguardar o territrio contra possveis invasores

    em especial onde o Brasil, teve no sculo XIX, problemas de fronteira (Frana/ Amap;

    Inglaterra/ Rio Branco; Bolvia/ Acre e Rondnia). (FREITAS, 1997)

    Os movimentos migratrios desencadeados pela atividade de minerao8 nos anos de

    1930, a instalao do Territrio do Rio Branco nos anos 1940 e a abertura das rodovias e a

    implantao dos projetos de colonizao nos anos 1970 no tiveram a mesma intensidade que

    o movimento migratrio dos anos 1980 que conciliou os atrativos da fronteira agrcola com

    a frente garimpeira.

    8 Incorpora a concepo de minerao partir de Rodrigues (1996, p. 92), para quem a palavra minerao funciona

    como sinnimo de garimpagem, medida que no Estado de Roraima no h atividade de minerao industrial.

  • 36

    3.1 Deslocamentos inter e intra-estadual

    Para melhor compreender a recente histria de Roraima, faz-se necessrio analisar os

    movimentos de deslocamentos inter e intra-estaduais a partir do final das dcadas de 1970,

    1980 e 1990. Para a identificao dos imigrantes inter e intra-estaduais, trabalhamos com os

    dados sobre migrao disponveis nos censos de 1980, 1991 e 2000, empregando-se uma

    periodizao qinqenal, nos seguintes termos: 1975-1980, 1986-1991 e 1995-2000.

    Dessa forma, trabalhou-se com informaes do tipo data fixa disponveis nos censos

    de 1991 e 2000. Mas, como o censo de 1980 no concede dados de migrao do tipo data-

    fixa, buscou-se uma alternativa compatvel, aplicando-se um filtro no qual foram

    selecionados aqueles indivduos que tinham em 1980 tempo de residncia inferior a cinco

    anos nos municpios de Roraima e idade igual ou superior a cinco anos9.

    Em relao aos deslocamentos inter-estadual, merece destacarmos o crescente nmero

    de imigrantes que buscaram Roraima como destino ao longo das ltimas dcadas. Note-se que

    no final da dcada de 1970 chegaram ao ento Territrio de Roraima 11.729 imigrantes. Esse

    nmero quase triplicou ao final da dcada seguinte, chegando 33.086. Novo acrscimo deu-

    se no final dos anos de 1990, quando outros 45.491 imigrantes chegaram ao estado de

    Roraima. (Figura 1).

    Figura 1 - Volume das imigraes em Roraima: 1975-1980, 1986-1991 e 1995-200010

    .

    Fonte: Diniz; Santos, 2006.

    9 Para os dados de deslocamentos inter e intra-estadual, utilizei os resultados e metodologia de Diniz e Santos

    (2006), com algumas adaptaes. 10

    Para os dados sobre movimento migratrio em Roraima no foi possvel a aproximao com a data atual, uma

    vez que as informaes do Censo 2010 esto sendo disponibilizados aos poucos.

  • 37

    Segundo Rodrigues (1996), os principais motivos desse crescimento foram os

    incentivos imigrao atravs dos projetos de assentamento e colonizao agrcola

    implantados a partir de meados da dcada de 1970 e a descoberta de novos garimpos na

    regio noroeste, principalmente a partir de 1980.

    Alm do crescente nmero de imigrantes, tambm chamaram a ateno as

    significativas mudanas ocorrida nas ltimas dcadas em relao aos principais estados de

    procedncia desses imigrantes. Os estados do Maranho e Amazonas eram os principais

    fornecedores de imigrantes no final da dcada de 1970. No entanto, ao fim da dcada de 1980

    outros fluxos surgiram como fornecedores de imigrantes, como o caso dos estados do Cear

    e do Par. At o final da dcada de 1990, o estado do Maranho constitua-se no principal

    estado de procedncia dos imigrantes, seguido por Par e Amazonas.

    No plano dos municpios de destino, Boa Vista mantm a primazia, sendo a principal

    rea de atrao de imigrantes que buscam o Estado. Nas dcadas de 1980 e incio de 1990,

    Boa Vista era o principal ponto de referncia aos garimpeiros que, estabeleciam residncia na

    cidade e utilizavam-na como centro de apoio para a empreitada mineradora.

    Como os rgos responsveis pela regularizao fundiria, como o Instituto Nacional

    de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA) e o Instituto de Terras de Roraima

    (ITERAIMA), encontram-se sediadas na capital, parte dos agricultores que chegam a Roraima

    em busca de terras, tambm estabelece residncia na cidade de Boa Vista.

    Portanto, comum entre os imigrantes recm-chegados estabelecerem residncia em

    carter temporrio na cidade at conseguirem acesso aos lotes nas reas de assentamento

    agrcola do estado. Mesmo depois de assentados na zona rural de Roraima, a capital Boa Vista

    continua a exercer grande atrao, isso porque a cidade constitui-se no maior mercado para

    produtos agrcolas, sendo prtica comum entre os agricultores o deslocamento semanal para

    vender os seus produtos. (DINIZ, 2003)

    Segundo Castells (1983), o sistema produtivo se reorganiza em funo dos interesses

    da sociedade dominante que, geralmente est concentrada nas capitais e nos grandes centros

    urbanos.

  • 38

    Para compreender o movimento populacional para o estado de Roraima deve-se

    resgatar as transformaes estruturais inerentes ao processo de evoluo da fronteira agrcola,

    conforme descritos por Diniz (2003), como:

    ... altera a realidade dos assentamentos rurais, transformando reas marcadas

    por agricultura de subsistncia e ausncia de mercados de terra e de trabalho

    em reas mais proximamente incorporadas economia nacional. Neste

    processo, a penetrao do modo de produo capitalista termina por expulsar

    os imigrantes pioneiros, que se deslocam, no mais das vezes, para as reas

    urbanas do Estado, em especial para a cidade de Boa Vista. Para l acorrem

    levas de re-migrantes, atrados, sobretudo, pelo setor tercirio e pela relativa

    facilidade de se conseguir local para a construo de habitaes na periferia

    da cidade. Do mesmo modo, muitos colonos frustrados com as precrias

    condies inerentes s reas de assentamento agrcola, doenas tropicais,

    falta de infra-estrutura adequada e isolamento fsico, so prevalentes, acabam

    sucumbindo a atrao exercida por Boa Vista. (DINIZ, 2003, p.368).

    Com a oferta de terras em novos projetos de colonizao e a criao de postos de

    trabalho no mbito urbano, com a criao dos novos municpios em meados da dcada de

    1990, os recm criados municpios de Rorainpolis, Iracema e Cant, aumentaram sua

    populao na dcada de 2000 a uma taxa de 216,46%, 121,03% e 112,05%, respectivamente.

    No final da dcada de 1970, os principais fluxos migratrios para Roraima tinham

    como destinos os municpios de Boa Vista e Caracara e a procedncia desses migrantes era

    preponderantemente dos estados das regies norte e nordeste, sobretudo dos estados do Cear

    e Maranho. Subjacentes a esses fluxos existem importantes processos histricos,

    principalmente desde o ciclo da Borracha. Essas vinculaes histricas parecem ter se

    perpetuado, fato que explicaria os fluxos migratrios ligando esses estados a Roraima.

    (VALE, 2006).

    At a dcada de 1940, a rea hoje conhecida como Estado de Roraima pertencia ao

    Estado do Amazonas, logo sob influncia direta de Manaus. Vale ressaltar as fortes

    vinculaes de Roraima e sua relao de dependncia com as cidades da regio norte,

    sobretudo em relao Manaus que se apresenta como a base logstica dessa regio, ou

    seja, uma base ou ponto de apoio para a expanso colonizadora. (DINIZ; SANTOS, 2006).

    Tais fatores histricos explicam, pelo menos parcialmente os intensos fluxos entre as cidades

    da regio norte e Roraima, mas tambm so dignos de nota os fluxos oriundos de cidades do

    interior do Estado do Par, como Itaituba e Santarm e do estado do Maranho, especialmente

    Imperatriz, Santa Luzia, Bacabal e Santa Ins no mesmo perodo. (Tabela 1).

  • 39

    Tabela 1 Principais movimentos migratrios para Roraima: 1975/2000

    Procedncia 1975/1980 1986/1991 1995/2000 Total

    AM Manaus 1985 2300 5170 9455

    Total 1985 2300 5170 9455

    PA Belm

    Santarm

    Itaituba

    Xinguara

    Rurpolis

    374 712 670 1756

    157 705 1691 2553

    - 1564 4627 6191

    - 295 - 295

    - - 436 436

    Total 531 3276 7424 11231

    CE Fortaleza

    Aracati

    319 946 422 1687

    114 - - 114

    Total 433 946 422 1801

    MA Imperatriz

    Santa Luzia

    So Luis

    Bacabal

    Santa Ins

    Joo Lisboa

    Vitorino Freire

    Z Doca

    Aailndia

    564 1555 521 2640

    562 - - 562

    241 567 447 1255

    263 498 714 1475

    132 703 532 1367

    120 - - 120

    205 - - 205

    - 785 829 1614

    - 306 - 306

    Total 2087 4414 3043 9544

    RJ Rio de Janeiro 131 556 445 1132

    Total 131 556 445 1132

    AC Rio Branco 96 - - 96

    Total 96 - - 96

    GO Goinia - 376 - 376

    Total - 376 - 376

    PI Teresina - 362 - 362

    Total - 362 - 362

    SP So Paulo - 354 - 354

    Total - 354 - 354

    RO Porto Velho - - 620 620

    Total - - 620 620

    Total geral 5263 12584 17124 34971 Fonte: Diniz; Santos, 2006. (Com adaptaes)

    A intensificao desses fluxos estaria associada entre outras coisas, ao boom do

    garimpo, desencadeada pela descoberta de ouro e diamantes em sua poro setentrional, em

    meados da dcada de 1980. (RODRIGUES, 1996). No bojo desse intenso movimento de

    chegada de pessoas, no coincidncia a procedncia de outras reas de garimpo ativas ou

    declinantes na Amaznia, como o caso de Itaituba e Santarm.

  • 40

    Outra modificao que merece destaque em relao aos principais fluxos migratrios

    do final dos anos 1990 o fato de que pela primeira vez os fluxos inter-municipais em

    Roraima rivalizaram com os inter-estaduais. Este o caso de vrios fluxos originrios no

    municpio de Boa Vista em direo aos municpios de Cant, Pacaraima, Caracara e Bonfim.

    Como revelado anteriormente, esse aspecto da migrao intra-estadual, est associada

    expanso da oferta de terras em novos projetos de colonizao alm dos postos de trabalho

    gerados em virtude da criao dos novos municpios nos anos de 1994/1995. (Tabela 2).

    Tabela 2- Principais fluxos migratrios internos/RR - 1975/2000000

    Perodo Total

    Procedncia Destino 1975/1980 1986/1991 1995/2000 1975/2000

    Boa Vista Caracara 131 - 708 839

    Boa Vista Cant - - 957 957

    Boa Vista Pacaraima - - 781 781

    Boa Vista Bonfim - - 681 681

    So J. da Baliza Boa Vista - 443 - 443

    Alto Alegre Boa Vista - 403 552 955

    Mucaja Boa Vista - 288 - 288

    Caracara Boa Vista - - 498 498

    Total 131 1134 4177 5442 Fonte: Diniz; Santos, 2006. (Com adaptaes)

    No final da dcada de 1970, o deslocamento populacional entre os dois municpios do

    estado, Boa Vista e Caracara, alm de exguas, geravam baixos nmeros entre os municpios.

    Na dcada de 1980, com a intensificao dos deslocamentos dentro do estado de Roraima, o

    municpio de Boa Vista sobressai-se com expressivo nmero de migrantes, enquanto os

    demais municpios do estado contabilizaram perdas migratrias.

    No incio da dcada de 1990 a atividade de garimpagem proibida pelo governo

    federal. Milhares de garimpeiros so obrigados pela Polcia Federal e Exercito brasileiro a

    deixar as reas de garimpo que se encontravam na sua grande maioria na rea indgena

    Yanomami. Muitos garimpeiros voltaram para seus Estados de origem, enquanto outros

    continuaram em Roraima e, de diversas formas, passaram a tirar seu sustento e da sua famlia.

    At meados da dcada de 1990, a facilidade de se conseguir lotes urbanos em Roraima

    fez com que as famlias dos agricultores se dividissem, ficando os homens e os filhos mais

  • 41

    velhos na rea rural, enquanto as mulheres e os filhos em idade escolar estabelecem residncia

    no mbito urbano.

    Desta forma, os migrantes usufruam as oportunidades econmicas tanto do mundo

    rural, quanto urbano. Durante as fases que demandam trabalho intensivo na agricultura, como

    a colheita, por exemplo, os membros urbanos da famlia passam temporadas nos lotes rurais.

    Por outro lado, os membros rurais da famlia visitam regularmente a cidade, para rever os

    familiares, comprar e vender vveres e fazer uso dos servios urbanos como, clnicas, igrejas,

    atividades de lazer, entre outros.

    Em processo descrito por Diniz (2003), a ocupao demogrfica de reas inabitadas

    ou pouco habitadas se d em etapas, sendo forjada pela chegada de ondas distintas de

    imigrantes. Essa tambm uma caracterstica da fronteira agrcola.

    A mobilidade na fronteira fortemente baseada em canais informais de informao e

    migraes por corrente. Neste processo, um determinado agricultor (inovador) chega

    fronteira em busca de terra. Durante toda a sua estadia, este ator mantm contato direto com o

    local de origem e, to logo obtenha acesso a um pedao de terra e alguma estabilidade,

    deflagra-se a segunda onda de migrantes (seguidores), que chegam fronteira, inspirados pelo

    sucesso e pelo apoio do inovador.

    Esta invaso de reas de assentamento por indivduos de mesma origem geogrfica se

    intensifica, uma vez que to logo a primeira onda de seguidores ganha acesso a terra,

    sucessivas ondas de migrantes seguidores, com algum grau de relao, chegam ao destino.

    Situaes nas quais os migrantes mantm contato direto com os locais de origem, seja atravs

    de cartas, telefonemas e visitas regulares, fazem com que a migrao acabe representando e

    promovendo no destino a expanso da comunidade de origem. (DINIZ, 2003)

    3.2 Fronteira agrcola ou fronteira urbana? A transio urbana em Roraima

    O status de Territrio Federal, juntamente com a criao das colnias agrcolas, teve

    um profundo impacto na populao local. O censo de 1950 contabilizou 18.116 indivduos,

  • 42

    80% acima da contagem de 1940. A tendncia de crescimento continuou durante os anos

    1950, culminando com uma populao de 28.304 habitantes em 1960.

    Apesar de todas essas mudanas, Roraima permaneceu esparsamente povoado e

    economicamente isolado. O maior impedimento a ocupao e desenvolvimento do territrio

    era a sua grande dependncia do rio Branco para o transporte. O rio no era navegvel por

    barcos de maior calado durante a estao seca devido a presena de corredeiras ao longo do

    seu curso. Esse impedimento s foi resolvido em 1976 quando a estrada de rodagem BR 174,

    estabeleceu o primeiro elo terrestre entre Boa Vista e Manaus. A estrada foi mais tarde

    estendida at a divisa com a Venezuela e concluda em 1998. importante mencionar a

    construo da rodovia Perimetral Norte, conhecida em Roraima como BR 210, que abriu o

    flanco sudoeste do Estado colonizao. (BARROS, 1995)

    A construo dessas estradas marcou o incio de uma nova era de ocupao na regio,

    uma vez que garantiu a ligao via terrestre durante todas as estaes do ano e permitiu que

    vastas reas fossem exploradas em diversos projetos de colonizao.

    Conseqentemente a populao que era de 28.304 habitantes em 1960, chegou a

    40.885 em 1970. A tendncia de crescimento se manteve durante a dcada seguinte, chegando

    a 79.159 pessoas. Segundo Diniz e Santos (2006), esta poca foi tambm marcada pela

    criao de incentivos a ocupao do territrio para solucionar dois problemas crnicos: o

    primeiro, de cunho geopoltico, que significava ocupar os espaos vazios do territrio,

    tendo em vista a antiga preocupao dos governos centrais em defender as fronteiras

    internacionais do pas; o segundo, de cunho scio-econmico, que residia na questo regional

    nordestina cuja soluo seria a criao de colnias agrcolas para transferir a populao de

    regies empobrecidas e castigadas pela seca para regies mais midas e supostamente

    agricultveis.

    Assim, as famlias de migrantes poderiam ter acesso a fraes de terra para sua

    subsistncia, servindo ento como um grande fator de atrao e auxiliando,

    concomitantemente, aos interesses geopolticos.

    Nas ltimas duas dcadas, tem ocorrido uma concentrao da populao nos centros

    urbanos. Esta tem sido uma tendncia geral em todo o pas e, em Roraima, tambm. Nas

    dcadas de 1960 e 1970, a populao rural/urbana manteve-se estvel. Na dcada de 1980,

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    ocorreu uma inverso significativa quando a populao urbana chegou a representar 62%. Em

    1991 a populao urbana era de 68%, em 2000 representava 76%, mantendo-se praticamente

    estvel em 2010, demonstrando assim o forte processo de urbanizao do Estado. (Tabela 3).

    Tabela 3 Populao Residente. Roraima - 1950/2010

    R U R A L U R B A N A

    ANOS TOTAL Habitantes (%) Habitantes (%)

    1950 18.116 12.984 72 5.132 28

    1960 28.304 16.156 57 12.148 43

    1970 40.885 23.404 57 17.481 43

    1980 79.159 30.425 38 48.734 62

    1991 217.583 70.814 32 146.769 68

    2000 324.397 77.381 24 247.016 76

    2010 450.479 105.620 23 344.859 77

    Fonte: IBGE. Censos demogficos

    Entre 1970 e 1980, a populao de Roraima praticamente duplicou, apresentando uma

    taxa anual de crescimento na ordem de 6,83% ao ano. Tambm nesse perodo, Roraima sofreu

    profundas transformaes na estrutura populacional, com destaque para a consolidao da

    transio urbana do Estado, que ocorreu na dcada de 1980, como mostrado anteriormente.

    Esta tendncia concentrao urbana em Roraima explicada em parte pelo resultado

    dos esforos, sem grandes sucessos, dos empreendimentos dos governos, federal e estadual,

    na implementao de polticas de colonizao e incentivo migrao para rea rural.

    (BARBOSA, 1994).

    Outro fator que contribuiu para a concentrao urbana foi a corrida do ouro na

    dcada de 1980. Como a maioria dos garimpos estava localizada em reas distantes de

    ncleos urbanos como as vilas, povoados e as pequenas cidades, as referncias de apoio para

    os garimpeiros eram as cidades maiores, mais precisamente a capital Boa Vista que tornou-se

    desta forma o ncleo de atrao dessa populao, por possuir maior e melhor infra-estrutura

    de servios e de diverses como bares, cabars, boates, alm do comrcio para abastecimento

    de produtos e equipamentos para a minerao. (RODRIGUES et al, 2002).

  • 44

    Todavia, apesar da natureza rural dos atrativos populacionais das atividades de

    garimpagem e dos assentamentos agrcolas, Roraima um estado com populao

    eminentemente urbana.

    J na dcada de 1990 o estado de Roraima foi o que mais cresceu populacionalmente

    entre todos os estados da regio norte a uma taxa de 10,64% ao ano, enquanto que o estado de

    Rondnia na mesma dcada apresentou uma taxa de crescimento populacional de 7,87% e o

    Amap 4,65%.

    A esse crescimento computado a intensa atividade mineira que praticamente

    triplicou os nmeros absolutos da populao do estado que passou de 79.159 em 1980, para

    217.583 na dcada seguinte. Alm da migrao para atividades de minerao, outro fator que

    contribuiu para o aumento dos fluxos migratrios foram as polticas de assentamentos rurais,

    predominantemente no sul do Estado.

    A minerao, por ser uma atividade conduzida de maneira clandestina em parques

    nacionais e reservas indgenas foi proibida pelo governo Federal que removeu os garimpeiros

    e proibiu tal atividade, gerando um g