o Regime de Cambio Flutuante

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Daniela Magalhães Prates O regime de câmbio flutuante no Brasil 1999-2012 especificidades e dilemas

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macroeconomia

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    O regime de cmbio flutuante no Brasil

    1999-2012 especificidades e dilemas

  • Professora associada do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq).

    Daniela Magalhes Prates

    O regime de cmbio flutuante no Brasil

    1999-2012 especificidades e dilemas

  • Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro Roberto Mangabeira Unger

    Fundao pbl ica v inculada Secretar ia de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasi leiro e disponibil iza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    PresidenteJess Jos Freire de Souza

    Diretor de Desenvolvimento InstitucionalLuiz Cezar Loureiro de Azeredo

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da DemocraciaDaniel Ricardo de Castro Cerqueira

    Diretor de Estudos e PolticasMacroeconmicasCludio Hamilton Matos dos Santos

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    Chefe de Gabinete, SubstitutoJos Eduardo Elias Romo

    Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaoJoo Cludio Garcia Rodrigues Lima

    Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoriaURL: http://www.ipea.gov.br

  • Braslia, 2015

    Daniela Magalhes Prates

    O regime de cmbio flutuante no Brasil

    1999-2012 especificidades e dilemas

  • Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ipea 2015

    Prates, Daniela MagalhesO regime de cmbio flutuante no Brasil : 1999 - 2012 :

    especificidades e dilemas / Daniela Magalhes Prates. Braslia : IPEA, 2015.

    180 p. : grfs. color.

    Inclui Bibliografia.ISBN: 978-85-7811-232-5

    1. Taxa de Cmbio. 2. Poltica Cambial. 3. Mercado Financeiro. 4. Globalizao. 5. Brasil. I. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada.

    CDD 332.456

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, no exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins comerciais so proibidas.

  • SUMRIO

    APRESENTAO .............................................................................................7

    PREFCIO ........................................................................................................9

    INTRODUO ...............................................................................................17

    CAPTULO 1A LITERATURA SOBRE OS DETERMINANTES DA TAXA DE CMBIO NOMINAL NA GLOBALIZAO FINANCEIRA ................................21

    CAPTULO 2A INSTITUCIONALIDADE DO MERCADO DE CMBIO NO BRASIL .....................61

    CAPTULO 3O REGIME DE CMBIO FLUTUANTE NO BRASIL ...............................................89

    CAPTULO 4CENRIOS PARA A TAXA DE CMBIO NOMINAL DO BRASIL .........................137

    CONCLUSO ...............................................................................................159

    REFERNCIAS ............................................................................................165

  • APRESENTAO

    H cerca de seis anos, especificamente no dia 15 de setembro de 2008, a falncia do banco de investimento Lehman Brothers foi o estopim para a transformao da crise das hipotecas de alto risco (subprime) dos Estados Unidos em uma crise financeira global. Contudo, ao contrrio dos anos 1930, graas s amplas polticas anticclicas, os pases avanados enfrentaram somente uma grande recesso.

    O ambiente de abundante liquidez internacional associado s polticas de afrouxamento quantitativo (quantitative easing QE) teve dois desdobramentos adicionais: o retorno dos fluxos de capitais para os pases emergentes e a especu-lao nos mercados futuros de commodities, que contribuiu para a alta dos preos desses bens a partir do segundo trimestre de 2009. Neste contexto, aps fortes depreciaes no perodo mais agudo da crise, as moedas dos pases emergentes tornaram-se novamente alvo de operaes de carry trade, exigindo intervenes dos bancos centrais e a adoo de controles de capitais para contrarrestar as presses em prol da sua apreciao. Contudo, a partir de 2010, com a ecloso da crise da rea do euro e, sobretudo, de maio de 2013, quando o Federal Reserve anunciou que comearia a desmontar seu QE, estas moedas tornaram-se novamente vtimas de movimentos de fuga para a qualidade, que tm resultado em forte volatilidade.

    As moedas dos pases avanados euro, iene, franco suo, libra esterlina tambm sofreram os efeitos dos movimentos de capitais especulativos. Em alguns casos (sobretudo, do Japo e da rea do euro), a trajetria de depreciao, associada s polticas monetrias lassas, foi bem-vinda, ao estimular a atividade econmica pelo canal da demanda externa. Assim, se evitou outra grande depresso, mas, como nos anos 1930, a guerra cambial voltou cena como instrumento adicional de poltica econmica.

    Este livro procura contribuir para a compreenso da dinmica contempornea das taxas de cmbio nominal nos pases emergentes, em geral, e no Brasil, especificamente. O entendimento das peculiaridades desta dinmica e dos dilemas enfrentados desde 1999 pela poltica cambial brasileira fundamental para o aperfeioamento da gesto do regime de cmbio flutuante nos prximos anos.

    Jess SouzaPresidente do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada

  • PREFCIO

    Ao receber o convite para assinar o prefcio do livro de Daniela, senti dois calafrios. Primeiro, tratar das teorias a respeito dos determinantes da taxa de cmbio e avaliar regimes cambiais exige a coragem dos temerrios e a humildade dos carmelitas. A leitura da pesquisa de Daniela suscitou o segundo repelo na espinha: diante do seu minucioso estudo sobre teorias e regimes, aumentaram meus receios de no atender s exigncias de um prefcio. Seja como for, vou enfrentar o desafio.

    Desde o sculo XVIII, os tericos e praticantes da moderna economia poltica debatem os conflitos e contradies entre a moeda universal (e seu carter mercantil) e o exerccio da soberania monetria pelos Estados nacionais.

    No final do sculo XIX, a metstase da Revoluo Industrial para os Estados Unidos e para a Europa Continental foi acompanhada pela constituio de um sistema monetrio global, amparado na hegemonia da Inglaterra. Essa construo poltica e econmica do capitalismo suscitou, no imaginrio social e na prtica dos negcios, a iluso necessria acerca da naturalidade e impessoalidade do padro-ouro e de suas virtudes na promoo do ajustamento suave e automtico dos balanos de pagamentos.

    Ao promover a ampliao do comrcio internacional, o padro-ouro imps a reiterao e a habitualidade da mensurao da riqueza e da produo de mercadorias por uma unidade de conta abstrata. Assim ironias da vida econmica , a confiana na moeda universal, em sua roupagem dourada, promoveu a expanso da moeda bancria, suscitando a progressiva absoro das determinaes funcionais do dinheiro unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor por uma representao, um signo desmaterializado garantido pelas finanas do Estado.

    O ltimo quartel do sculo XIX presenciou uma intensa concentrao bancria na praa de Londres e a progressiva transformao dos bancos emissores de notas em instituies de depsito, passivos bancrios utilizados como meios de pagamento. Essas transformaes asseguraram a Londres o predomnio financeiro em todo o espao econmico abrigado sob a hegemonia britnica. A Inglaterra possua, ento, todos os requisitos para o exerccio da funo de financiadora do mundo: a moeda nacional, a libra, era reputada a mais slida entre todas e, por isso, mantinha uma sobranceira liderana enquanto referncia para a denominao das transaes mercantis e como instrumento de denominao e liquidao de contratos financeiros.

    Impulso decisivo para o avano da globalizao financeira daqueles tempos foi dado, em boa medida, pelo crescente endividamento dos pases da periferia

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    (e da semiperiferia europeia), obrigados a tomar emprstimos nas praas financeiras mais importantes com o propsito de sustentar a conversibilidade de suas moedas. Os problemas de balano de pagamento eram recorrentes, determinados pelas quedas de preo dos produtos primrios, concomitantes s flutuaes peridicas no nvel de atividades nos pases centrais. As economias perifricas funcionavam, na verdade, como reas de expanso comercial e financeira dos pases centrais nas etapas expansivas do ciclo e como uma vlvula de segurana para o ajustamento das economias desenvolvidas nas fases de contrao.

    Nos anos 1920, o declnio da Inglaterra coabitou com a incapacidade poltica do poderio econmico americano em afirmar sua hegemonia. O perodo em que prevaleceram as moedas inconversveis, durante e logo depois da Primeira Guerra Mundial, foi marcado por desvalorizaes e tenses inflacionrias na Inglaterra e na Frana e episdios de hiperinflao na Alemanha, na ustria e na Hungria. Isto tornou problemtica a restaurao do padro-ouro, mesmo sob a forma atenuada do Gold Exchange Standard, que permitia a acumulao de reservas em dlares e libras.

    Em sua ressurreio, o padro-ouro foi incapaz de reanimar as convenes do perodo anterior. Os deficit e os superavit tornaram-se crnicos. Os pases superavitrios como a Frana (depois da estabilizao do franco desvalorizado) e os Estados Unidos se empenharam em esterilizar o aumento das reservas em ouro para impedir os efeitos indesejveis sobre os preos domsticos. Enquanto isso, a Inglaterra sofria as consequncias econmicas de Mr. Churchill. Winston Churchill cedeu a presses da City e ignorou a inflao ocorrida nos anos do conflito. Contra a opinio de John M. Keynes, a Inglaterra voltou ao padro-ouro, restabelecendo a paridade que prevalecia no perodo anterior guerra. As presses sobre a libra ganharam fora na segunda metade dos anos 1920 e tornaram-se insuportveis depois do crash de 1929. Em 1931, a Inglaterra abandonou o padro-ouro e deu novo impulso corrida de desvalorizaes competitivas, j iniciada pelos pases menores e perifricos. A disputa entre as moedas desvalorizadas provocou uma brutal contrao do comrcio internacional.

    Em 1930, os Estados Unidos haviam declarado guerra ao livre comrcio com a edio da Lei Smoot-Hawley, que elevou s alturas as barreiras tarifrias. Em 1933, no nadir da Grande Depresso, Franklin D. Roosevelt proibiu as exportaes de ouro e, assim, saltou fora do moribundo padro monetrio.

    Nos trabalhos elaborados para as reunies que precederam as reformas de Bretton Woods em 1944, Keynes formulou a proposta mais avanada e internacionalista de gesto da moeda internacional. Baseado nas regras de administrao da moeda bancria, o Plano Keynes previa a constituio de uma entidade pblica e supranacional encarregada de controlar o sistema internacional de pagamentos e de provimento de liquidez aos pases deficitrios. O Plano Keynes

  • 11Prefcio

    visava, sobretudo, eliminar o papel perturbador exercido pelo ouro ou por qualquer divisa-chave enquanto ltimo ativo de reserva do sistema. Tratava-se no s de contornar o inconveniente de submeter o dinheiro universal s polticas econmicas do pas emissor (como se observa agora), mas tambm de evitar que a moeda internacional assumisse a funo de um perigoso agente da fuga para a liquidez. Essa dimenso essencial do Plano Keynes frequentemente obscurecida pela opinio dominante que sublinha com maior nfase o carter assimtrico dos ajustamentos de balano de pagamentos entre credores e devedores.

    Daniela pega o touro unha ao recorrer s pginas do clebre e incompreendido (se, por acaso, lido) captulo XVII da Teoria geral do emprego, do juro e da moeda para desvendar os mistrios da taxa de cmbio envolta na sua roupagem monetria e financeira. Recorre-se ao texto de Daniela.

    Conceitos como preferncia pela liquidez, demanda especulativa por moeda e formao de expectativas sob incerteza keynesiana genuna ou fundamental (no quantificvel, no probabilstica) tm no mercado de cmbio um lcus privilegiado de anlise. A abordagem ps-keynesiana ancora-se na ideia de que os fluxos de capitais de curto prazo desempenham papel ativo e autnomo e so os principais determinantes da trajetria das taxas de cmbio (...). Assim, uma questo fundamental na perspectiva ps-keynesiana diz respeito aos fatores subjacentes formao das expectativas dos agentes nos mercados de cmbio num ambiente de incerteza.

    O dinheiro internacional, o bancor, uma moeda escritural, cumpriria exclusivamente as funes de unidade de conta e meio de pagamento. As transaes comerciais e financeiras seriam denominadas em bancor e liquidadas nos livros da instituio monetria internacional, a Clearing Union. Os deficit e superavit seriam registrados em uma conta corrente que os pases manteriam junto Clearing Union. No novo arranjo institucional, tanto os pases superavitrios quanto os deficitrios estariam obrigados, mediante condicionalidades, a reequilibrar suas posies, o que distribuiria o nus do ajustamento de forma mais equnime entre os participantes do comrcio internacional. No Plano Keynes no haveria lugar para a livre movimentao de capitais em busca de arbitragem ou de ganhos especulativos. Em 1944, nos sales do Hotel Mount Washington, na acanhada Bretton Woods, a utopia monetria de Keynes capitulou diante da afirmao da hegemonia americana que imps o dlar ancorado no ouro como moeda universal investida na funo perturbadora de reserva universal de valor.

    O establishment financeiro americano no via com bons olhos a incurso internacionalista de seu governo. Uns entendiam que as novas instituies poderiam limitar a independncia da poltica econmica nacional americana. Outros temiam que os mecanismos de liquidez e de ajustamento do Fundo Monetrio Internacional (FMI) pudessem deflagrar tendncias inflacionrias na economia mundial.

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    O enfraquecimento do Fundo, em relao s ideias originais, significou, na prtica, a entrega das funes de regulao de liquidez e de emprestador de ltima instncia ao Federal Reserve. O sistema monetrio e de pagamentos que surgiu do Acordo de Bretton Woods foi menos internacionalista do que desejariam os que sonhavam com uma verdadeira ordem econmica mundial. Assim, as restries ao desempenho do FMI no dizem respeito ao seu poder excessivo como continuam imaginando alguns crticos esquerda , mas sim sua crescente submisso ao poder e aos interesses dos Estados Unidos.

    Nos anos 1990, o FMI empenhou a alma se que ainda tem uma na abertura financeira. Sendo assim, as crises de Mxico, sia, Rssia e Brasil eram mais do que previsveis. S os tolos e desavisados os idelogos do baixo monetarismo ainda teimam em ignorar que os slidos fundamentos fiscais no so suficientes (e nem podem ser) para evitar um colapso cambial e financeiro depois de um ciclo exuberante e descontrolado de endividamento externo. No caso da economia coreana, engolfada na crise financeira de 1997/1998, os bons fundamentos contriburam para construir as condies que levaram ao desastre. A confiana dos investidores levou apreciao da moeda nacional, o won, a deficit elevados em transaes correntes e, finalmente, parada sbita causadora da crise cambial e bancria. s vsperas da crise asitica de 1997/1998, a Coreia do Sul dispunha de condies fiscais impecveis: superavit nominal de 2,5% e dvida pblica inferior a 15% do produto interno bruto (PIB). A misso do FMI, encarregado de analisar a situao da economia coreana, teceu loas aos slidos fundamentos.

    A receita para esses desfechos trgicos sabida: se o pas dispe de uma moeda no conversvel, valorize o cmbio, financie o deficit em conta corrente com endividamento externo e permita a acumulao rpida da dvida interna de curto prazo.

    O arranjo monetrio realmente adotado em Bretton Woods sobreviveu ao gesto de 1971 a desvinculao do dlar ao ouro e posterior flutuao das moedas em 1973. Na esteira da desvalorizao continuada dos anos 1970, a elevao brutal do juro bsico americano em 1979 derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lanou os europeus na desinflao competitiva e culminou na crise japonesa dos anos 1990. Na posteridade dos episdios crticos, o dlar se fortaleceu, agora obedecendo ao papel dos Estados Unidos como demandante e devedor de ltima instncia.

    A crise dos emprstimos hipotecrios e seus derivativos, que hoje nos aflige, nasceu e se desenvolveu nos mercados financeiros dos Estados Unidos. Na contramo do senso comum, os investidores globais empreenderam, em um primeiro momento, uma fuga desesperada para os ttulos do governo americano. Assim como nas crises cambiais dos anos 1990, protagonizadas pela periferia (Mxico, sia, Rssia, Brasil e Argentina), os ttulos do governo dos Estados Unidos ofereceram repouso para

  • 13Prefcio

    os capitais cansados das aventuras em praas exticas. Assim, os tormentos da crise cambial e dos balanos estropiados de empresas e bancos so reservados para os incautos que acreditaram nas promessas de que desta vez ser diferente.

    Na posteridade da crise asitica, os governos e o FMI ensaiaram a convocao de reunies destinadas a imaginar remdios para as assimetrias e riscos implcitos no atual regime monetrio internacional e nas prticas da finana globalizada. Clamavam por uma reforma da arquitetura financeira internacional. A reao do governo Bill Clinton aconselhado pelos conselheiros do presidente Barak Obama, Robert Rubin e Lawrence Summers foi negativa. Os reformistas enfiaram a viola no saco.

    A pretendida e nunca executada reforma do sistema monetrio internacional, ou coisa assemelhada, no vai enfrentar as conturbaes geradas pela decadncia americana. Vai sim acertar contas com os desafios engendrados pelo dinamismo da globalizao. Impulsionada pela deslocalizao da grande empresa americana e ancorada na generosidade da finana privada dos Estados Unidos, o processo de integrao produtiva e financeira das ltimas duas dcadas deixou como legado o endividamento sem precedentes das famlias consumistas americanas e a migrao da indstria manufatureira para a sia produtivista. No por acaso, a China acumulou US$ 4 trilhes de reservas nos cofres do Peoples Bank of China.

    Mesmo depois da queda das hipotecas subprime, no vai ser fcil convencer os americanos a partilhar os benefcios implcitos na gesto da moeda reserva. Num primeiro momento, os deficit em conta corrente dos Estados Unidos responderam timidamente desvalorizao do dlar provocada pelas inundaes de grana nas reservas dos bancos e demais instituies financeiras. A poltica de inundao de liquidez destinada a adquirir, sobretudo, ttulos de dvida pblica de longo prazo (quantitative easing) impulsionou, num primeiro momento, a desvalorizao do dlar, mas afetou muito pouco sua utilizao como moeda de denominao das transaes comerciais e financeiras, a despeito do avano do renminbi nos negcios entre os pases asiticos.

    Vou repetir o que j escrevi a respeito da farra dos capitais sob o efeito anabolizante das polticas que cuidaram de espancar a crise financeira. Observa-se um rearranjo das carteiras, outrora contaminadas pelos ativos podres criados pelos sabiches de Wall Street. Agarrados aos salva-vidas lanados com generosidade pelo Estado, gestor em ltima instncia do dinheiro esse bem pblico objeto da cobia privada , os senhores da finana tratam de restaurar as prticas de todos os tempos. Na posteridade da crise, engolfado no turbilho de liquidez das intervenes, o mundo flutuou na mar montante do dinheiro caando rendimentos.

    Os gestores do capital lquido, depois de sair caa das moedas (e ativos) dos emergentes e das commodities, voltaram a buscar ganhos de capital na radiosa

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    capitalizao da bolsa americana e na inflao de preos dos bnus do Tesouro. Hoje, a crise europeia e as respostas do Banco Central Europeu contribuem para impulsionar a busca de ativos em processo de valorizao nos mercados financeiros dos Estados Unidos.

    Os movimentos observados no interior da circulao financeira, em si mesmos, no prometem economia global uma recuperao rpida e brilhante, mas indicam que os mercados se dedicam, mais uma vez, ao esporte radical de formao de novas bolhas: as bolsas americanas e os bnus do Tesouro fumegam os vapores dos sentimentos altistas e j prenunciam correes desagradveis dos preos inflados. Enquanto isso, os emergentes padecem as dores do rearranjo de portflios.

    As crises cambiais nos emergentes ou na periferia so episdios que se repetem em tediosa e montona cadncia. A experincia das globalizaes financeiras aquela das trs derradeiras dcadas do sculo XIX, assim como a dos nossos tempos a era do Lobo de Wall Street demonstram que os humores dos mercados financeiros globalizados, em sua insacivel voracidade, impem suas razes s polticas monetria e fiscal dos pases de moeda inconversvel que abrem suas contas financeiras, surfam nos ciclos de crdito externo e se tornam devedores lquidos em moeda estrangeira.

    Os ttulos de riqueza denominados na moeda no conversvel e os carimbados com o selo das moedas conversveis so substitutos muito imperfeitos. Diante da hierarquia de moedas o dlar mais lquido do que o peso ou o real , o teorema da paridade descoberta das taxas de juros no funciona. Isso permite aos mercados financeiros prosseguir sem sustos na peculiar arbitragem entre juros internos e externos, sem convergncia das taxas, descontados os diferenciais de inflao esperada.

    O cmbio flutuante fica merc das peculiares idiossincrasias dos mercados de ativos e os bancos centrais esto sempre obrigados a sujar as flutuaes. As tendncias apreciao ou depreciao da moeda nacional dependem do estgio em que se encontra o ciclo de fluxos de capitais e do maior ou menor descasamento entre os ativos e os passivos em dlar dos bancos, empresas e rentistas sediados no pas de moeda inconversvel.

    Os idelogos da finana, mais por interesse do que por ignorncia, concentram suas baterias, nos momentos de stress, nas condies fiscais internas dos pases de moeda no conversvel. A primeira gerao de modelos pretendia explicar as crises cambiais mediante convenientes relaes de determinao: partiam dos deficit fiscais, caminhavam para o excesso de absoro (demanda) domstica e terminavam no abismo dos deficit em conta corrente. A fuga de capitais, as bruscas e intensas desvalorizaes cambiais, com impacto desastroso sobre a inflao, e as finanas pblicas eram atiradas s costas dos governos gastadores e irresponsveis.

  • 15Prefcio

    No h quem aprove ou recomende desatinos fiscais e monetrios dos governos. Mas h quem ignore os desastres fiscais e monetrios deflagrados no Brasil dos anos 1980 e 1990; no Mxico, em 1994; na sia, em 1997; na Rssia, em 1998; e na Argentina do Dr. Cavallo, em 2001, pelas viradas de mesa dos provedores privados de financiamento externo.

    As camuflagens grosseiras so desenhadas pelos sequazes da finana. Essas narrativas ocultam o essencial e elementar: trata-se simplesmente da poltica e do poder do dinheiro vagabundo caando rendimentos. Money chasing yield, como explicou o onanista e cheirador Hanna ao ganancioso Jordan Belford no filme de Martin Scorcese (O lobo de Wall Street, 2013).

    Para os pases de moeda no conversvel, as taxas de juros e de cmbio se tornaram refns das bruscas reaes dos senhores dos portflios globais diante dos rodopios e contradanas dos gestores da moeda internacional. Sob o comando dos humores da finana e da sabedoria de seus asseclas, os ditos emergentes sacolejam os traseiros nos carnavais e rolezes da abundncia de liquidez enquanto os bacanas se refestelam nas utilidades do intil, a indstria manufatureira das vtimas sofre as agruras das exportaes minguantes e das importaes predatrias.

    A festana termina nas quartas-feiras dos crashs de preos de ativos e na desvalorizao das moedas. Quando se aproxima uma crise cambial, o bloco que acredita nos desarranjos dos fundamentos das vtimas mimetiza os sestros faciais enigmticos entre a Mona Lisa e o Coringa , sempre pronto a anunciar que preciso fazer um ajuste fiscal e elevar a taxa de juros.

    Seja como for, a crise demonstrou que a almejada correo dos chamados desequilbrios globais vai exigir regras de ajustamento no compatveis com o sistema monetrio internacional em sua forma atual, a includo o papel do dlar como moeda reserva. Isto no significa prognosticar a substituio da moeda americana por outra moeda, seja o euro ou o renminbi, mas constatar que o futuro promete solavancos e colises nas relaes comerciais e financeiras entre as naes.

    Luiz Gonzaga de Mello BelluzzoProfessor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual

    de Campinas (IE/Unicamp)

  • INTRODUO

    O sistema monetrio e financeiro internacional que emergiu aps o colapso de Bretton Woods em 1973 constitui um arranjo institucional hierarquizado em torno de uma divisa-chave1 (o dlar flexvel e fiducirio, no sistema atual), que se caracteriza por assimetrias entre as divisas dos pases centrais e aquelas dos pases perifricos, que condicionam a dinmica dos mercados de cmbio destes ltimos pases. Na dimenso financeira, sua principal caracterstica o ambiente de globalizao financeira. Como destaca Chesnais (1996), este ambiente emerge a partir da eliminao das barreiras internas entre os diferentes segmentos dos mercados financeiros, da interpenetrao dos mercados monetrios e financeiros nacionais e da sua integrao aos mercados globalizados. Contudo, a globalizao financeira tambm assimtrica, incorporando, de forma desigual, os pases cen-trais e perifricos. Neste ltimo grupo de pases, os que se inserem neste ambiente se tornam pases emergentes.

    Assim, alm da integrao dos mercados on-shore aos mercados off-shore e entre os mercados on-shore que resultou no ambiente de ampla mobilidade dos fluxos de capitais outro trao fundamental da globalizao financeira a integrao entre os mercados de diferentes temporalidades, ou seja, entre os mercados vista e de derivativos, que so mercados de liquidao diferida. Esta ltima dimenso fundamental para o entendimento da formao dos preos dos ativos financeiros, em geral, e da taxa de cmbio nominal, em particular que, alm de se tornar um elemento-chave nessa formao (Aglietta, 1986), tambm se tornou um ativo financeiro no sistema monetrio e financeiro internacional contemporneo.

    Os mercados de derivativos vinculados s taxas de cmbio,2 que se prolife-raram com o avano da globalizao financeira desde os anos 1980, passaram a exercer uma influncia decisiva no processo de formao do preo das principais divisas negociadas nos mercados cambiais globais (dlar, marco/euro, iene, libra esterlina, franco suo),3 devido s caractersticas destes mercados, principalmente

    1. Essa caracterstica foi destacada por Keynes nos debates que precederam conferncia de Bretton Woods (Keynes, 1980).2. O mercado de cmbio foi o primeiro mercado a se tornar globalizado (Chesnais, 1996) e o contrato futuro de cmbio do dlar inaugurou o mercado de derivativos financeiros, ao ser lanado, em maro de 1972, pela Chicago Mercantil Exchange. Isto ocorreu em resposta grande volatilidade introduzida pelo regime de cmbio flutuante aps a ruptura dos acordos de Bretton Woods, que fez com que boa parte das incertezas de curto prazo se concentrasse na taxa de cmbio e engendrasse uma demanda por cobertura de riscos. De forma praticamente simultnea, estes mercados tambm se tornaram lcus privilegiado de especulao. Sobre essa natureza dual dos derivativos (instrumento de hedge e especulao), ver Farhi (1999). Sobre o movimento de proliferao de novos derivativos financeiros nos anos 1990, ver Farhi (2002).3. O estudo de Klitgaard (2004), por exemplo, mostra a importncia das posies vendidas nos mercados futuros na formao da taxa de cmbio vista do dlar no curto prazo.

  • 18 O Regime de Cmbio Flutuante no Brasil 1999-2012: especificidades e dilemas

    sua maior alavancagem, os elevados volumes negociados e, assim, sua maior liquidez, relativamente aos mercados vista , bem como sua transparncia quando negociados nos mercados organizados. Entre os fatores condicionantes da dinmica contempornea das taxas de cmbio nominais, destacam-se, assim, os fluxos de capitais (mais especificamente, da alocao dos portflios entre ativos denominados em diferentes divisas) e as posies dos agentes nos mer-cados de derivativos cambiais.

    A influncia dessas posies na formao das taxas de cmbio, contudo, no se restringe s divisas dos pases centrais, sendo tambm observada nos pases emergentes com mercados cambiais integrados financeiramente com o exterior e com um segmento de derivativos lquido e profundo, entre os quais se destaca o Brasil, como documentado em vrios estudos de diferentes matizes tericas (Farhi, 2006 e 2010; Garcia e Urban, 2004; Ventura e Garcia, 2012; Prates, 2009; Kaltenbrunner, 2010; Rossi, 2012).

    O objetivo deste livro avanar na compreenso das especificidades da di-nmica da taxa de cmbio nominal brasileira aps a adoo do regime de cmbio flutuante no Brasil, em 1999. Do ponto de vista terico, apesar dos avanos da literatura sobre os determinantes da taxa de cmbio nominal no contexto da glo-balizao financeira, identificou-se uma importante lacuna tanto no mbito dos modelos do mainstream como da abordagem ps-keynesiana, qual seja, a inexistncia de uma explicao para as especificidades dessa dinmica no caso das economias emergentes, entre as quais a sua maior volatilidade.

    O primeiro objetivo especfico avanar nessa explicao a partir do resgate das reflexes de Keynes sobre os atributos dos ativos em uma economia monetria e sobre o perfil hierrquico e assimtrico dos sistemas monetrios e financeiros internacionais, bem como dos economistas estruturalistas sobre a natureza da condio perifrica. Seu segundo objetivo especfico fornecer uma explicao para o papel fundamental do mercado de derivativos na dinmica da taxa de cmbio brasileira. O terceiro objetivo especfico analisar a gesto do regime de cmbio flutuante desde sua adoo, em janeiro de 1999, at dezembro de 2012, procurando identificar os dilemas e desafios decorrentes da posio da moeda brasileira na hierarquia de divisas do sistema monetrio e financeiro internacional, bem como das especifici-dades do regime macroeconmico e do mercado de cmbio brasileiro. Finalmente, o quarto objetivo elaborar um referencial analtico para a construo de cenrios sobre a trajetria da taxa de cmbio nominal do Brasil. Para atingir esses objetivos, o livro est estruturado em quatro captulos.

    O primeiro dedica-se literatura terica sobre os determinantes da taxa de cmbio nominal aps o colapso de Bretton Woods com o objetivo de verificar se (e como) o mainstream e a abordagem ps-keynesiana incorporam as duas dimenses

  • 19Introduo

    fundamentais do sistema monetrio e financeiro contemporneo (mencionadas acima) na anlise da trajetria das taxas de cmbio, quais sejam, o papel dos mer-cados de derivativos cambiais e as especificidades da dinmica das taxas de cmbio dos pases emergentes. Diante da concluso de que esta ltima dimenso no incorporada por essas duas correntes da literatura, a autora apresenta uma abor-dagem keynesiana-estruturalista sobre esta dinmica, que tem como eixo terico a equao do retorno total dos ativos apresentada no captulo 17 da Teoria Geral de Keynes (1936).

    O segundo apresenta a institucionalidade atual do mercado de cmbio bra-sileiro; seu principal objetivo mostrar a relao entre esta institucionalidade e a principal caracterstica distintiva deste mercado (relativamente aos demais pases emergentes), qual seja, o papel fundamental do segmento de derivativos (em es-pecial, do mercado futuro) na dinmica da taxa de cmbio nominal.

    O terceiro analisa a dinmica da taxa de cmbio nominal brasileira aps a adoo do regime de cmbio flutuante em janeiro de 1999, tendo como fio condutor a gesto do regime de flutuao suja, que se deparou com diferentes desafios nas fases de baixa e de alta do ciclo de liquidez internacional. Alm desse condicionante externo mais geral, tambm sero destacados os condicionantes internos dessa gesto (e, assim, da dinmica cambial), entre os quais os objetivos do regime macroeconmico, os fluxos efetivos de divisas no mercado de cmbio vista e as posies dos agentes no mercado futuro de cmbio.

    Finalmente, o quarto captulo dedica-se elaborao de um referencial ana-ltico que permita traar cenrios para a taxa de cmbio nominal do Brasil, que utilizado para a construo do cenrio para esta varivel em 2014.

    Desse modo, este livro fornece uma importante contribuio para a agenda de pesquisa atual da Diretoria de Estudos e Polticas Macroeconmicas (Dimac) do Ipea, que tem feito esforo para aprofundar o conhecimento de diferentes estruturas da economia brasileira inclusive do mercado financeiro e das principais variveis macroeconmicas consumo das famlias, do governo, formao bruta de capital fixo, exportaes, importaes, comportamento das receitas e despesas do governo etc. , precondio para a avaliao do impacto da poltica econmica, bem como para o seu aperfeioamento. A compreenso da dinmica da taxa de cmbio nominal, um dos preos-chave da economia brasileira, fundamental para o alcance desses objetivos.

    Claudio Hamilton Mattos dos SantosDiretor da Diretoria de Estudos e Polticas

    Macroeconmicas (Dimac) do Ipea

  • CAPTULO 1

    A LITERATURA SOBRE OS DETERMINANTES DA TAXA DE CMBIO NOMINAL NA GLOBALIZAO FINANCEIRA

    1 INTRODUO

    A literatura econmica sobre os determinantes da taxa de cmbio nominal o preo relativo entre duas moedas pode ser considerada uma das reas da macroeconomia aberta mais sujeita a controvrsias tericas e desafios empricos. Na realidade, ela integra a chamada exchange rate economics, cuja traduo literal em portugus seria economia da taxa de cmbio. Esta rea tambm abrange a anlise da dinmica dos regimes de taxa de cmbio fixa (que inclui os modelos de crises cambiais, de contgio e de zona-alvo), e os modelos de determinao das taxas de cmbio reais (o preo relativo entre os bens externos e internos, ou vice-versa)1 e das taxas de cmbio de equilbrio.2

    A origem dessa literatura remonta economia poltica clssica, mais especifi-camente s obras de David Ricardo. No contexto de emergncia de uma verdadeira economia internacional, em meados do sculo XIX (Kenwood e Lougheed, 1992), a reflexo sobre a taxa de cmbio surgiu como questo terica relevante diante do seu papel central na anlise da interao das economias nacionais. Desde ento, esta reflexo foi estreitamente condicionada pelas caractersticas histrico-institucionais da economia internacional. Seu florescimento, contudo, ocorreu em dois perodos histricos, ambos caracterizados pela vigncia de taxas de cmbio flexveis entre as divisas3 dos pases desenvolvidos.4 Isso porque, somente em um ambiente de flutuao cambial, a investigao dos fatores determinantes das paridades cambiais emerge como questo terica relevante.

    1. A taxa de cmbio real apresentada na forma de ndice, construdo a partir de um ndice da taxa de cmbio nominal e de ndices de preos externo e interno. Existem vrias medidas de taxas de cmbio real, que variam em funo dos ndices de preo utilizados (ao consumidor ou ao produtor) e dos parceiros comerciais considerados. Na medida bilateral, considerado somente o ndice de preo de um parceiro, enquanto na medida multilateral ou efetiva, so considerados, no clculo, os ndices dos principais parceiros comerciais (em geral, pases de destino das exportaes). Na medida indireta, adotada no Brasil, a taxa de cmbio nominal o preo de uma unidade da moeda estrangeira em termos da moeda nacional e, assim, a taxa de cmbio real o preo relativo dos bens externos em relao aos domsticos. Na medida direta (adotada, por exemplo, na rea do euro), exatamente o inverso (a taxa de cmbio nominal o preo da moeda domstica e a taxa de cmbio real o preo relativo dos bens domsticos em relao aos externos). Para mais detalhes sobre estes conceitos, ver Blanchard (2004).2. MacDonald (2007) apresenta uma excelente sntese da exchange rate economics no mbito do mainstream da economia.3. Utiliza-se aqui os conceitos de moeda e de divisa propostos por Aglietta (1986, grifos nossos): a moeda sobe-rana no seu espao nacional, tornando-se uma divisa quando ultrapassa as fronteiras nacionais e passa a circular em mbito internacional.4. Os termos pases desenvolvidos e pases centrais sero utilizados como sinnimos nessa tese, em contraposio, respectivamente, aos conceitos de pases em desenvolvimento e pases perifricos.

  • 22 O Regime de Cmbio Flutuante no Brasil 1999-2012: especificidades e dilemas

    O primeiro perodo corresponde ao entreguerras, quando Cassel (1916) for-mulou a primeira teoria de determinao da taxa de cmbio nominal, a Paridade do Poder de Compra (PPC), e Keynes (1924, 1930) a contraps com a Paridade da Taxa de Juros (PDTJ), alm de destacar, ao lado de Nurkse (1944), o papel instabilizador dos movimentos de capitais na evoluo desta taxa. O segundo, que perdura at os dias de hoje, se iniciou com o colapso do regime de Bretton Woods, em 1973. Neste contexto, renasceu, no mbito do mainstream da economia,5 a literatura sobre os determinantes da taxa de cmbio nominal, caracterizada pela proximidade e pelo dilogo constante entre os modelos tericos e a verificao emprica. As novas geraes de modelos foram, em grande medida, uma resposta s anomalias empricas e aos exchange rate puzzles (cuja traduo literal seria enigmas da taxa de cmbio), evi-denciados pelos infindveis estudos economtricos, que sucessivamente rejeitaram as concluses dos modelos tericos que os antecederam. Simultaneamente emergncia desses novos modelos do mainstream, emergiu a abordagem ps-keynesiana sobre a dinmica da taxa de cmbio nominal, que tambm procura explicar as especificidades desta dinmica no sistema monetrio e financeiro internacional contemporneo, que emergiu aps o colapso de Bretton Woods.

    Este captulo dedica-se literatura terica sobre os determinantes da taxa de cmbio nominal. Seu objetivo , em primeiro lugar, verificar se (e como) o mainstream e a abordagem ps-keynesiana incorporam duas dimenses fundamentais do sistema monetrio e financeiro contemporneo na anlise da trajetria das taxas de cmbio, quais sejam, o papel dos mercados de derivativos cambiais e as especifi-cidades da dinmica das taxas de cmbio dos pases emergentes, definidos, aqui, como os pases perifricos que se inseriam na globalizao financeira, um dos traos fundamentais do sistema monetrio e financeiro internacional contemporneo (ver a introduo). Diante da concluso de que esta ltima dimenso no incorpo-rada por essas duas correntes da literatura, apresenta-se uma abordagem keynesiana estruturalista sobre esta dinmica, que tem como eixo terico a equao do retorno total dos ativos apresentada no captulo 17 da Teoria Geral de Keynes (1936).

    5. Nesta tese, os termos mainstream da economia e literatura convencional so utilizados como sinnimos e se adota o conceito sociolgico proposto por Dequech (2007), segundo o qual o mainstream da economia ensinado nas universidades e escolas de maior prestigio e seus adeptos publicam nas revistas mais prestigiadas, recebem financiamento das principais fundaes e/ou institutos de pesquisa e tambm ganham os prmios mais prestigiados (p. 6, traduo da autora). Em contrapartida, ortodoxia da economia (orthodoxy economics) uma categoria intelectual e se refere ao que os historiadores do pensamento econmico classificam como a mais recente escola de pensamento dominante (Colander, Holt e Rosser, 2004, p. 490, traduo da autora). J o conceito de heterodoxia da economia (heterodoxy economics) mais controverso que os anteriores. Como destaca Dequech (2007), possvel definir hete-rodoxia negativamente ou positivamente, em contraposio ortodoxia ou ao mainstream e/ou como categoria socio-lgica ou intelectual. Por exemplo, Colander, Holt e Rosser (2004) definem heterodoxia negativamente e em oposio ortodoxia: alm da rejeio da ortodoxia, no h um elemento unificador que caracteriza a economia heterodoxa (p. 491-42, traduo da autora). Mas, acrescentam uma dimenso sociolgica ao conceito ao afirmarem que como muitos economistas do mainstream no aceitam aspectos importantes da ortodoxia, o trao adicional que define um economista heterodoxo social: economistas heterodoxos se recusam de trabalhar no arcabouo terico do mainstream economics, ou suas ideas no so bem-vindas no mainstream" (Ibid., traduo da autora). Para um conceito positivo de heterodoxia, ver Lawson (2006).

  • 23

    A Literatura sobre os Determinantes da Taxa de Cmbio Nominal na Globalizao Financeira

    A considerao destas dimenses fundamental para a anlise da dinmica da taxa de cmbio brasileira realizada no captulo 3 deste livro.

    Os argumentos esto organizados da seguinte forma: a segunda seo apresenta uma breve perspectiva histrica da reflexo terica sobre os determinantes da taxa de cmbio nominal no entreguerras e no contexto de Bretton Woods; a terceira dedica-se s teorias do mainstream desenvolvidas a partir dos anos 1970 (o foco ser a literatura terica; somente sero mencionados os estudos empricos que exerceram influncia decisiva na trajetria dessa literatura); a quarta, por sua vez, apresenta a abordagem ps-keynesiana; a quinta destaca as limitaes das duas abordagens no que se refere ao tratamento do mercado de derivativos cambiais e dinmica das taxas de cmbio dos pases emergentes; a sexta, e ltima, procura avanar na compreenso das especificidades dessa dinmica a partir do resgate das reflexes de Keynes sobre as propriedades de uma economia monetria e sobre o perfil hierrquico e assimtrico dos sistemas monetrios e financeiros internacionais, bem como da abordagem estruturalista sobre a natureza da condio perifrica.

    2 A REFLEXO TERICA DO ENTREGUERRAS A BRETTON WOODS

    Enquanto Ricardo plantou as sementes da primeira teoria de determinao da taxa de cmbio nominal,6 a teoria da PPC, sua primeira formalizao, foi rea-lizada pelo economista sueco Karl Gustav Cassel (1916), o qual desenvolveu a verso absoluta desta, que corresponde taxa de cmbio que iguala o preo de um mesmo bem (cesta de bens) em dois pases.7 A ideia subjacente que o valor da moeda determinado pelo montante de bens e servios que ela permite com-prar, ou seja, pelo seu poder de compra interno, inversamente proporcional ao nvel de preos. Assim, a PPC absoluta supe a validade da Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) em mbito nacional e a verificao da Lei do Preo nico no mercado internacional.8

    Cassel (1916) tambm foi instigado pelas circunstncias econmicas do seu tempo. Diante do abandono do padro libra-ouro (e, assim, das respectivas paridades cambiais em funo da ecloso da Primeira Guerra Mundial) e da inflao durante os anos do conflito (com diferente intensidade em cada pas)

    6. Somente aps o colapso de Bretton Woods e a acelerao da inflao nos anos 1970, a distino entre taxa de cmbio nominal e real se tornar relevante na literatura.7. A taxa de cmbio entre as moedas de dois pases (A e B) igual razo entre os nveis de preos, ou seja, equivale ao preo relativo entre os pases. EA/B = PA/PB. Na sua verso relativa, a variao percentual da taxa de cmbio entre duas moedas deve se igualar diferena entre as variaes percentuais nos nveis de preos nacionais: EA/B = PA- PB.8. De acordo com essa lei, em condies de livre mobilidade de fatores (inexistncia de custos de transporte e barreiras comerciais) e concorrncia perfeita, a arbitragem faz com que os preos de um mesmo bem (expressos em uma mesma moeda) sejam iguais em dois pases. As demais hipteses subjacentes so: consumidores com as mesmas preferncias e regras idnticas de formao de preos.

  • 24 O Regime de Cmbio Flutuante no Brasil 1999-2012: especificidades e dilemas

    emergiu a seguinte questo: em qual paridade as taxas de cmbio deveriam ser fixadas aps o fim do conflito mundial? A formalizao da PPC por Cassel foi uma resposta a esta dvida.9

    Poucos anos depois, Keynes tambm se interessou pelo tema, dedicando um captulo do seu livro Tract on monetary reform (1924) contraposio entre duas teorias de determinao da taxa de cmbio: a paridade de poder de compra (PPC); e a paridade descoberta da taxa de juros (PDTJ), segundo a qual os retornos antecipados de dois ativos de renda fixa de um determinado par de moedas so iguais quando medidos na mesma moeda.10 No contexto do abandono do padro libra-ouro e da emergncia de um sistema monetrio internacional de taxas de cmbio flexveis (que vigoraria at o retorno da Inglaterra ao padro-ouro em 1926)11 e com base em seus conhecimentos tericos e prticos (enquanto operador do mercado financeiro) sobre a dinmica das finanas internacionais, Keynes chamou ateno para a importncia das transaes financeiras na trajetria das taxas de cmbio, que no dependeriam somente da dinmica dos mercados de bens, como suposto na PPC. No Treatise on money (1930), este autor retomou a discusso sobre a dinmica cambial no mbito do gold-exchange standard, mostrando o seu vnculo com a poltica monetria e as expectativas dos agentes.12

    Outro economista que tambm foi atrado pelo tema no mesmo contexto histrico de Keynes foi Ragnar Nurkse (1944), o qual destacou a influncia de-sestabilizadora dos movimentos de capitais na evoluo das taxas de cmbio no entreguerras em seu livro League of nations: international currency experience. Lessons of the inter-war period.

    Assim como no caso das contribuies de Ricardo, Cassel, Keynes e Nurkse, a reflexo terica sobre os determinantes das taxas de cmbio aps a Segunda Guerra Mundial foi moldada pelas caractersticas da economia internacional a partir de ento.

    Nas dcadas de 1940 e 1950, um dos principais desafios dos economistas do mainstream naquele momento representado pela sntese neoclssica13 foi desenvolver um modelo macroeconmico keynesiano de economia aberta, ou seja,

    9. Desde sua formalizao por Cassel (1916) at os dias de hoje, a PPC tem sido objeto de controvrsias tericas e empricas. Vrios estudos empricos, como os realizados pelo CEPII (1995), concluram que a PPC no verificada nem no curto nem no longo prazo e que as diferenas entre as taxas de cmbio de mercado e a PPC se ampliaram aps os anos 1970. A PPC, contudo, tem uma aplicao prtica, sendo utilizada por organismos multilaterais como o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e o Banco Mundial na estimativa do produto interno bruto (PIB) dos pases de acordo com a PPC como critrio alternativo de comparao em relao ao PIB nominal.10. As hipteses subjacentes PDTJ so de arbitragem perfeita (inexistncia de custo de transao e restries mobilidade de capitais) e equivalncia entre os ativos em termos de risco, liquidez e prazo.11. Sobre a economia internacional no entreguerras, ver Mazzucchelli (2009).12. Sobre essa discusso, ver Prates e Cintra (2008).13. Ver Snowdon e Vane (2005).

  • 25

    A Literatura sobre os Determinantes da Taxa de Cmbio Nominal na Globalizao Financeira

    incluir na teoria de determinao da renda nacional (apresentada seminalmente por Keynes [1936] para uma economia fechada) as transaes internacionais e as vari-veis necessrias anlise do seu impacto na dinmica macroeconmica domstica, entre as quais a taxa de cmbio e a demanda externa (Isard, 1995; Krueger, 1983).

    A forma como o modelo keynesiano de economia fechada foi aberto refletiu duas caractersticas da economia internacional no perodo. Em primeiro lugar, embora o acordo de Bretton Woods tenha estabelecido um sistema de taxas fixas, mas ajustveis, na prtica, as taxas de cmbio dos pases desenvolvidos permane-ceram praticamente estveis, sendo os ajustes pouco frequentes durante a vigncia deste acordo.14 Em segundo lugar, devido s restries mobilidade internacional de capitais, outro pilar de Bretton Woods, os fluxos financeiros eram relativamen-te pequenos frente ao comrcio de bens. Neste contexto, os modelos, de forma geral, supunham a taxa de cmbio como fixa e excluam os fluxos de capitais da anlise, considerando somente o comrcio de bens como determinante dos fluxos de divisas (Isard, 1995).

    A primeira tentativa de adaptar o modelo keynesiano a uma economia aberta foi apresentada na abordagem (ou enfoque) das elasticidades, que se consolidou nas dcadas de 1940 e 1950 com os trabalhos de Metzler (1942), Lerner (1944), Laursen e Metzler (1950) e Haberler (1950), como destaca Zini Jr. (1995). Seu ob-jetivo analisar o efeito de uma mudana da taxa de cmbio (mais especificamente, de uma desvalorizao) sobre a balana comercial conhecido como efeito preo relativo. Uma hiptese fundamental desta abordagem que uma desvalorizao nominal equivale a uma desvalorizao real (e, assim, a uma mudana no preo relativo entre bens domsticos e estrangeiros) porque os nveis de preo interno e externo, determinados pela renda monetria (suposta constante) so, consequen-temente, tambm constantes. Vale mencionar que suas origens encontram-se nos trabalhos de Robinson (1937) e Machlup (1939), que foram inspirados pelas desvalorizaes competitivas e o aumento dos desequilbrios comerciais nos anos 1930 (Zini Jr., 1995).15

    A partir do resgate dos escritos de Marshall (1879) e Bikerdike (1920) sobre a influncia das elasticidades sobre a estabilidade do mercado de divisas estrangeiras, a abordagem das elasticidades analisa o impacto da mudana da taxa de cmbio sobre a balana comercial com base no arcabouo marshalliano de equilbrio parcial. Considerando que a taxa de cmbio o preo que iguala a oferta e a demanda no

    14. Os artigos do estatuto do FMI determinavam que os pases deveriam comunicar e obter a autorizao para alterar as paridades cambiais, que era concedida em caso de desequilbrios fundamentais do balano de pagamentos. Contudo, na prtica, os pases resistiam em realizar ajustes nas suas paridades cambiais devido aos traumas deixados pela experincia do entreguerras (instabilidade das taxas de juros determinadas pelo mercado durante a vigncia do sistema de cmbio flexvel, desvalorizaes competitivas e ajustes deflacionrios do padro-ouro), bem como ao receio de que uma desvalorizao teria impactos negativos sobre as expectativas dos agentes (Eichengreen, 1996).15. Para uma apresentao formal desses enfoques, ver Zini Jr. (1995).

  • 26 O Regime de Cmbio Flutuante no Brasil 1999-2012: especificidades e dilemas

    mercado de divisas estrangeiras, procura-se examinar as consequncias de uma mudana desse preo relativo (das divisas e dos bens, dada a hiptese de preos constantes) sobre a quantidade transacionada no mercado de cmbio e sobre a estabilidade do equilbrio (Zini Jr., 1995).

    Esse efeito depende de quatro elasticidades as elasticidades-preo da oferta e da demanda das exportaes e importaes. Para que a desvalorizao tenha efeito positivo sobre a balana comercial e, assim, impacto expansionista sobre a renda via multiplicador do comrcio exterior, em funo da hiptese keynesiana de eco-nomia abaixo do pleno emprego da sntese neoclssica , a soma das elasticidades de demanda das exportaes e das importaes precisa ser maior que a unidade. Esse resultado equivale conhecida condio de Marshall-Lerner, que continua sendo um dos pilares dos modelos de macroeconomia aberta dos livros-texto. Em contrapartida, se as elasticidades da demanda das exportaes e importaes foram inelsticas no curto prazo, a balana comercial piora aps uma desvalorizao em um primeiro momento, o que em termos grficos ficou conhecido como curva J, outro resultado presente nesses modelos.

    Esses resultados opostos decorrem, na realidade, da predominncia, em cada um dos casos, de um dos efeitos de uma desvalorizao: no caso da curva J, o efeito-termos de troca (a desvalorizao reduz o preo relativo das exportaes, denominado na moeda domstica, em relao ao preo das importaes)16 se sobrepe ao efeito-competitividade (o efeito positivo da desvalorizao sobre as quantidades exportadas e negativo sobre as quantidades importadas). No caso da condio de Marshall-Lerner, em contrapartida, o efeito-competitividade se sobrepe ao efeito-termos de troca.

    Como destaca Krueger (1983), embora a abordagem das elasticidades analise os efeitos de uma mudana na taxa de cmbio sobre o comrcio exterior e a renda domstica, uma relao simtrica pode ser pensada, qual seja, como mudanas nessas variveis macroeconmicas afetam a taxa de cmbio. Nessa perspectiva, esta abordagem incluiria, implicitamente, um modelo de determinao da taxa de cmbio nominal (e tambm real, caso se incluam as hipteses de renda nominal e preos constantes), que ficou conhecido na literatura como modelo de balano de pagamentos (balance of payments model) ou modelo dos fluxos, pois a taxa de cmbio determinada pelo fluxo de oferta e demanda de divisas no mercado de cmbio.17 Como esse fluxo provinha exclusivamente da balana comercial, tanto nessa abordagem como nos demais modelos dos anos 1950, a taxa de cmbio seria determinada, em ltima instncia, pelos fluxos de exportao e importao.

    16. Vale mencionar que esses modelos tinham como referncia o comrcio exterior dos pases desenvolvidos, no qual, de forma geral, o preo das exportaes fixado em moeda domstica. Em contrapartida, nos pases em desenvolvimento, a regra geral a denominao em moeda estrangeira.17. Para uma apresentao formal desse modelo, ver McDonald (2007).

  • 27

    A Literatura sobre os Determinantes da Taxa de Cmbio Nominal na Globalizao Financeira

    A identificao do balano de pagamentos com o comrcio exterior ser abandonada somente pelos modelos de Mundell e Fleming dos anos 1960.

    Embora a abordagem das elasticidades tenha trazido contribuies funda-mentais para a reflexo da macroeconomia aberta em geral e, em particular, para o tema tratado neste captulo, ela apresentava uma deficincia importante, qual seja, a desconsiderao da retroatividade entre o comrcio exterior e a renda domstica decorrente da hiptese de renda nominal e real constantes. Mais especificamente, foram desconsiderados os efeitos do aumento da renda aps uma desvalorizao sobre as importaes.

    Essa crtica foi feita, inicialmente, por Polak (1948) e Alexander (1952), que desenvolveram a abordagem (ou enfoque) da absoro. Estes autores chamaram ateno para a negligncia do efeito da desvalorizao sobre a renda domstica pela abordagem das elasticidades, mas incorreram no erro oposto, ao deslocar o foco da anlise para o impacto de uma mudana na absoro domstica sobre a balana comercial, relegando para segundo plano a mudana de preos relativos (ou seja, da taxa de cmbio real).

    A principal concluso desta abordagem que o efeito preo relativo, provocado por uma desvalorizao, tende a ser transitrio e no proporcional, sendo, assim, ineficaz para causar uma melhora sustentada da balana comercial. Consequente-mente, seria mais recomendvel utilizar a poltica monetria, que afeta diretamente a absoro, para obter essa melhora. As polticas de ajustamento externo recomendadas pelo FMI derivam, exatamente, deste enfoque, o qual tambm sofreu vrias crticas. Alm da negligncia do papel do efeito preo relativo, a relao causal suposta no automtica, ou seja, a queda da absoro no necessariamente melhora a conta comercial, mas pode implicar reduo da renda, j que a realocao dos recursos no ocorre instantaneamente.18

    O modelo keynesiano de economia aberta dos anos 1950, desenvolvido ini-cialmente por Meade (1951), pode ser considerado uma sntese das abordagens da elasticidade e da absoro. Consequentemente, nas diversas verses deste modelo, o balano de pagamentos se limitava balana comercial19 e a taxa de cmbio era dada ou considerada um parmetro a ser fixado pelas autoridades econmicas. Alm disso, como as taxas de inflao domsticas eram relativamente estveis, os modelos supunham preos constantes e, assim, no faziam distino entre a taxa de cmbio nominal e a taxa de cmbio real.20 Nas diversas verses deste modelo,

    18. Para uma anlise crtica da abordagem da absoro, ver Zini (1995) e Krueger (1983).19. Krueger (1983) denomina esses modelos de current account models, mas na realidade eles somente incorporam o comrcio de bens. Tanto o comrcio de servios como as rendas (juros, lucros e dividendos) e as transferncias unilate-rais demais componentes da conta corrente no so includos nos modelos.20. Para uma apresentao formal do modelo keynesiano de economia aberta, ver Baumann, Canuto e Gonalves (2004, c. 14).

  • 28 O Regime de Cmbio Flutuante no Brasil 1999-2012: especificidades e dilemas

    como na abordagem das elasticidades, uma desvalorizao real tem efeito positivo sobre a balana comercial (j que a condio Marshall-Lerner suposta vlida), mas ele menor do que nesta abordagem devido incorporao do efeito da desvalorizao sobre a absoro e as importaes, o que reduz o multiplicador do comrcio exterior.

    Alm da determinao da renda em uma economia com abertura do comrcio de bens, esses modelos tambm procuravam responder questo subjacente aos dois enfoques mencionados acima, qual seja, quais os determinantes do balano de pagamentos (na realidade, da balana comercial). medida que os dilemas de poltica econmica com taxas de cmbio fixa foram se tornando evidentes (a partir de meados dos anos 1950), maior nfase passou a ser dada ao papel desta taxa como um instrumento adicional capaz de tornar compatveis os dois objetivos desta po-ltica, quais sejam, os equilbrios externo (equilbrio de balano de pagamentos) e interno (pleno emprego). Enquanto a poltica cambial promoveria o deslocamento de gastos (expenditure-swifting) necessrio para o primeiro equilbrio, o manejo das polticas monetria e/ou fiscal conduziria a economia para o segundo equilbrio, mediante aumento ou reduo de gastos (expenditure increasing-decreasing).

    Nesse contexto, como destaca Krueger (1983), um questionamento adicio-nal emergiu: quais so os mritos dos sistemas de taxas fixas e de taxas flutuantes? Esta foi exatamente uma das questes que Mundell procurou responder com seu modelo de 1963.21 O modelo de Mundell tambm um modelo keynesiano de economia aberta (com economia abaixo do pleno emprego, preos e salrios fixos etc.), mas que, ao contrrio dos seus antecessores, adiciona ao arcabouo terico o mercado monetrio e os movimentos de capitais, alm de ser o primeiro a incor-porar a possibilidade de taxas de cmbio flexveis. As reflexes desse autor tambm foram condicionadas pelo contexto histrico de crescente mobilidade de capitais aps a adoo da conversibilidade da conta corrente nos pases da Comunidade Econmica Europeia (CEE) em 1958 e o surgimento do euromercado.

    Ao analisar a determinao da renda em uma economia aberta no mercado de bens e financeiro e sob distintos regimes cambiais (cmbio fixo e flexvel), Mundell mostrou que o conflito entre os dois objetivos de poltica (equilbrio externo e interno), destacado por Meade, no emergiria em um contexto de livre mobilidade de capitais, seja sob cmbio fixo, seja sob cmbio flexvel. Nos dois casos, uma combinao apropriada das polticas fiscal e monetria permitiria o alcance de ambos objetivos.

    21. Esse modelo ao lado do modelo de Fleming (1963) deu origem ao modelo IS-LM-BP dos livros-textos de ma-croeconomia. O termo Modelo Mundell-Fleming foi cunhado por Dornbusch para o modelo IS-LM-BP com taxa flexvel. Sobre a histria do modelo IS-LM-BP, ver Mundell (2001).

  • 29

    A Literatura sobre os Determinantes da Taxa de Cmbio Nominal na Globalizao Financeira

    No caso do regime de cmbio flexvel, a taxa de cmbio torna-se o meca-nismo de transmisso da poltica monetria para o nvel de renda real. Como os preos so fixos, uma desvalorizao nominal resulta em desvalorizao real, com impacto expansionista sobre as exportaes (a condio Marshall-Lerner continua vlida) e sobre a demanda agregada. Assim, nesse caso, pela primeira vez na tradio dos modelos de macroeconomia aberta, a taxa de cmbio se tornou uma varivel endgena, o que resulta na seguinte questo: quais os determinantes desta varivel?

    Apesar dos vrios aspectos inovadores do seu modelo, Mundell incorporou a teoria da paridade da taxa de juros com uma importante simplificao (que tambm est implcita nos modelos IS-LM-BP dos manuais de macroeconomia): em um ambiente de perfeita mobilidade de capitais e ttulos substitutos perfeitos, a taxa de juros interna seria igual externa porque, dadas a hiptese de inexistncia de especulao e de mercados de cmbio futuro, a taxa de cmbio vista equivale taxa futura. Em outras palavras, a PDTJ se converteu, sob estas hipteses, em uma igualdade entre as taxas de juros interna e externa que garante a horizontalidade da linha BP (F na nomenclatura de Mundell) no nvel da taxa externa, mesmo em um regime de taxas de cmbio flexveis.

    Isso quer dizer que no modelo de Mundell (1963), o papel das expectativas dos agentes na evoluo da taxa de cmbio desconsiderado. Essa dinmica depende, na realidade, dos movimentos dos fluxos de capitais (que respondem imediata-mente ao diferencial momentneo entre as taxas de juros interna e externa devido adoo de uma poltica monetria restritiva) e dos fluxos comerciais, que tambm reagem instantaneamente variao cambial. A taxa de cmbio torna-se a varivel de ajuste do excesso ou escassez de divisas no mercado de cmbio decorrente dos fluxos comerciais e de capitais.

    Assim, no modelo de Mundell e sua verso dos manuais de macroeconomia (IS-LM-BP), tambm haveria, mesmo que de forma implcita, uma teoria de determinao da taxa de cmbio, a qual, contudo, pode ser considerada outra verso do balance of payment model ou modelo de fluxos, sendo sua nica di-ferena frente aos seus predecessores a incluso na anlise dos fluxos de capitais (de natureza financeira) como um determinante adicional dos fluxos de divisas, ao lado dos fluxos comerciais.

    Alm disso, esse modelo pode ser considerado uma transio entre os modelos keynesianos de macroeconomia aberta dos anos 1940 e 1950 e os modelos de determinao da taxa de cmbio desenvolvidos no mbito do mainstream da economia aps o colapso de Bretton Woods, em 1973, apresentados na prxima seo.

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    3 OS MODELOS DO MAINSTREAM SOBRE A TAXA DE CMBIO NOMINAL NA GLOBALIZAO FINANCEIRA

    Aps ter abandonado a conversibilidade do dlar em ouro, de fato (em 1968) e de direito (em 1971), os Estados Unidos determinaram o fim definitivo do re-gime de Bretton Woods com o abandono da paridade fixa do dlar, em 1973.22 A partir de ento, foi estabelecido o sistema de taxas de cmbio flexveis entre as divisas dos pases desenvolvidos, cujo funcionamento no resultou em estabilidade destas taxas e no ajuste automtico dos balanos de pagamento, como suposto pelos economistas do mainstream nas duas dcadas anteriores (Belluzzo, 1995).23

    Nesse contexto, a reflexo sobre os determinantes da taxa de cmbio nominal atraiu, novamente, o interesse dos economistas do mainstream. Prope-se, aqui, a existncia de cinco geraes de modelo. Assim como no caso dos modelos de crises cambiais,24 uma das caractersticas dessa rea da macroeconomia aberta a forte influncia da literatura emprica sobre as abordagens tericas. Cada gerao de modelo procurou dar uma resposta, seja ao fracasso emprico dos modelos anteriores, seja aos puzzles relevados pelos estudos economtricos precedentes. Entre os exchange rate puzzles que surgiram desde os anos 1980, seis destacam-se.

    O primeiro e principal puzzle, de acordo com De Grauwe e Grimaldi (2005), conhecido como exchange rate determination puzzle (enigma da determinao da taxa de cmbio), refere-se desconexo entre a taxa de cmbio e seus fundamen-tos na maior parte do tempo, ao contrrio do suposto pela maioria dos modelos convencionais, revelada por vrios estudos, entre os quais Goodhart (1989), Goodhart e Figlioli (1991) e Faust et al. (2003). Esse puzzle j estava implcito no pioneiro estudo emprico de Meese e Rogoff (1983), segundo os quais os modelos de random walk (passeio aleatrio) so mais robustos no que diz respeito previso do comportamento das taxas de cmbio nominais do que os modelos estruturais desenvolvidos at aquele momento. Estes fazem parte do que se chama aqui de primeira gerao de modelos e supem uma relao estvel no mdio e longo prazos entre os movimentos da taxa de cmbio e os fundamentos.25

    O segundo puzzle, estreitamente relacionado ao anterior, refere-se aos desvios entre as taxas de cmbio observadas e a PPC, que seriam grandes e sustentveis,

    22. A literatura sobre a crise e o colapso do regime de Bretton Woods muito vasta. Para uma perspectiva de econo-mia poltica internacional, ver Heilleiner (1994). Para uma anlise no mbito do mainstream, ver Eicheengeen (1996).23. Antecedendo Mundell e Fleming, em um artigo seminal de 1953, Milton Friedman defendeu ardentemente o uso de taxas de cmbio flexveis, destacando seu papel no ajuste de uma economia a choques externos em um contexto de rigidez de preos e salrios e o papel estabilizador da atuao dos profit-maximizing speculators. Este argumento deu origem expresso especulao estabilizadora, em contraponto especulao desesta-bilizadora, de Nurkse (1944). A esse respeito, ver Friedman (1953).24. No caso desses modelos, existe uma classificao j consagrada dos modelos em trs geraes. A esse respeito, ver Prates (2002 e 2005).25. Sobre esse puzzle, ver Lyons (2001) e Bacchetta e Van Wincoop (2003).

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    A Literatura sobre os Determinantes da Taxa de Cmbio Nominal na Globalizao Financeira

    tambm contrariando a maior parte dos modelos convencionais. Alguns estudos detectaram perodos de quatro a cinco anos de desvio (Rogoff, 1996; Cheung e Li, 2000; Obstfeld e Rogoff, 2000), enquanto outros (Lothian e Taylor, 1996; Engel, 2000) encontraram perodos ainda maiores.

    O terceiro puzzle diz respeito ao excesso de volatilidade da taxa de cmbio, que seria muito maior que a volatilidade nas variveis econmicas subjacentes, de acordo com vrios estudos empricos, entre os quais Baxter e Stockman (1989) e Flood e Rose (1995). O quarto puzzle, confirmado por Engel e Morley (2001) e Cheung et al. (2002), refere-se menor velocidade de ajustamento das taxas de cmbio nominais em direo ao equilbrio relativamente velocidade dos preos.

    O quinto puzzle diz respeito distribuio do retorno das transaes cambiais (em ingls, do exchange rate returns) que no seria normal, mas, pelo contrrio, teria fat tails (caudas gordas), como documentado por Lux (1998), De Vries (2000) e Lux e Marchesi (2000). Esse resultado tambm no pode ser explicado pela maioria dos modelos convencionais na medida em que h pouca evidncia de caudas gordas na distribuio de probabilidade das variveis fundamentais que determinam as taxas de cmbio nestes modelos.

    Alm desses cinco puzzles, destacados por De Grauwe e Grimaldi (2006), um sexto puzzle, conhecido como forward premium puzzle emergiu e tem despertado o interesse de muitos macroeconomistas e econometristas do mainstream. Ele refere-se violao emprica da condio da paridade descoberta da taxa de juros, segundo a qual os ganhos obtidos a partir do diferencial de juros entre duas moedas seriam anulados pela variao cambial no perodo em questo. Este puzzle ser detalhado na subseo referente quinta gerao de modelos.

    3.1 A primeira gerao de modelos

    A primeira gerao envolve, como o prprio nome diz, os primeiros modelos de-senvolvidos no contexto de taxas de cmbio flexveis, entre a segunda metade dos anos 1970 e a primeira metade dos anos 1980. Como destaca Plihon (1999), seu denominador comum (e principal mrito) o deslocamento do foco da anlise dos fluxos de divisas (como no modelo de balano de pagamentos de determi-nao da taxa de cmbio nominal, hegemnico at ento) para os estoques de ativos monetrios e financeiros, que passam a ter influncia na trajetria da taxa de cmbio no curto prazo.

    Os pioneiros foram os modelos monetaristas de determinao da taxa de cmbio, de Frenkel (1976) e Johnson (1977), tambm conhecidos como aborda-gem monetria das taxas de cmbio. Nestes modelos, que derivam da abordagem monetria do balano de pagamento, as taxas de cmbio refletem o equilbrio do mercado monetrio, que depende da interao entre a oferta de moeda (exgena)

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    e a demanda de moeda (funo da renda real, dos preos e da taxa de juros real), sendo a relao macroeconmica mais estvel e importante.

    Uma hiptese fundamental desses modelos que os agentes econmicos no podem deter moeda estrangeira. As arbitragens se efetuam entre, de um lado, a moeda nacional e, de outro, os ativos financeiros e reais domsticos e estrangeiros. Assim, no h substitutibilidade entre moeda nacional e estrangeira, mas completa substitu-tibilidade entre moeda nacional e ativos reais e financeiros domsticos e estrangeiros.

    A taxa de cmbio nominal introduzida a partir da PPC. Assim, no mbito da teoria monetarista, a taxa de cmbio, que consiste no preo relativo das moe-das, depende das ofertas e demandas de moeda. Sua evoluo determinada pela evoluo relativa das massas monetrias, das rendas reais e das taxas de juros, mais especificamente, pela oferta de moeda controlada pelas autoridades monetrias, de um lado, e pelo comportamento dos detentores de encaixes monetrios, de outro.

    Desse modelo, dois resultados principais emergem. Em primeiro lugar, dadas as taxas de juros e as rendas reais, a taxa de depreciao cambial corresponder diferena entre as taxas de crescimento dos estoques de moeda. Em segundo lugar, dados os estoques de moeda e a taxa de juros, um aumento da renda real domstica resulta em uma demanda adicional por moeda nacional e em uma apreciao. Isso porque a demanda suplementar somente pode ser satisfeita por uma reduo dos preos domsticos, que implica apreciao, de acordo com a PPC (resultado oposto ao do modelo keynesiano).

    Uma das principais concluses dessa abordagem (defendida notadamente por Johnson, 1977), que todo desequilbrio cambial pode ser eliminado por uma poltica estritamente monetria. Embora tenha sido criticada tanto terica (em funo das hipteses pouco realistas, como a PPC e a perfeita substitutibilidade dos ativos financeiros) como empiricamente (instabilidade da funo de demanda por moeda), os modelos monetrios tiveram o mrito de enfatizar a importncia das variveis de estoque (ativos monetrios e financeiros) e da sua relao com as variveis de fluxo (principalmente de renda) na determinao das taxas de cmbio, abrindo caminho para a emergncia de uma abordagem mais geral de determinao da taxa de cmbio em termos da demanda por ativos, proposta pelos modelos de escolha de portflio (Plihon, 1996; McDonald, 2007).

    Entre a abordagem monetria e esses modelos, Dornbush (1976) apresen-tou o modelo inovador da sobrerreao (overshooting) das taxas de cmbio, que se tornou conhecido na literatura como modelo monetarista de preos rgidos (em contraposio a essa abordagem, que supunha preos flexveis). De acordo com Plihon (1996), este tambm foi o primeiro modelo do mainstream que props uma anlise coerente da instabilidade das taxas de cmbio, que decorreria das diferentes velocidades de ajustamento nos mercados financeiro e de bens e servios.

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    A Literatura sobre os Determinantes da Taxa de Cmbio Nominal na Globalizao Financeira

    Enquanto os preos no mercado financeiro se ajustariam instantaneamente s variaes de oferta e demanda, os preos dos bens e servios seriam rgidos no curto prazo. No longo prazo a PPC se impe, pois a evoluo das taxas de cmbio dependeria do diferencial de inflao entre os pases, alm de desempenhar um papel de ncora das antecipaes. J no curto prazo, os mercados de cmbio so dominados pelos movimentos de capital e seu equilbrio supe a verificao da PDTJ (segundo a qual o diferencial entre as taxas de juros entre as moedas equivale taxa antecipada de depreciao).

    Uma das concluses centrais do modelo de Dornbush que desequilbrios do mercado de cmbio no se resolvem, necessariamente, por um processo de convergncia regular em direo ao equilbrio. Todavia, seus resultados dependem, de forma crucial, do papel desempenhado pelas antecipaes. A convergncia da taxa de cmbio em direo ao equilbrio de longo prazo ocorre exatamente porque as antecipaes so estabilizadoras.

    Alm disso, no modelo de Dornbush, a reflexo terica sobre os determi-nantes da taxa de cmbio nominal passou por duas mudanas importantes e cor-relacionadas. Em primeiro lugar, incorporou-se, na anlise, o lag temporal, que diferencia a dinmica cambial no curto e no longo prazos. Em segundo lugar, esse modelo enfatizou o papel dos fatores financeiros na trajetria da taxa de cmbio nominal no curto prazo (a partir da paridade descoberta da taxa de juros). Com essas mudanas, Dornbush conseguiu compatibilizar, em um mesmo arcabouo terico, a intensa volatilidade cambial, com um dos supostos fundamentais dos modelos convencionais de determinao da taxa de cmbio, qual seja, a relao de causalidade entre os fundamentos e esta taxa, j que a PPC continuou vlida no longo prazo.

    O terceiro tipo de modelo da primeira gerao so os modelos de escolha de portflio, desenvolvidos seminalmente por Branson (1975) e Kouri (1976). Nestes modelos, a economia mundial considerada como um conjunto de ativos, principalmente monetrios e financeiros. Os operadores transacionam ativos em mbito mundial com o objetivo de maximizar a utilidade do seu portflio de ativos. A evoluo da taxa de cmbio segue, assim, uma lgica patrimonial, constituindo o reflexo das arbitragens permanentes entre ativos que transitam necessariamente pelos mercados cambiais.

    Inspirando-se nos modelos de escolha de portflio de Markowitz (1959) e Tobin (1965), esses modelos explicam a tima repartio dos portflios individuais em funo dos retornos e dos riscos relativos dos ativos. A introduo dos riscos diferenciados dos ativos permite o abandono da hiptese restritiva da abordagem monetria, de perfeita substitutibilidade dos ativos financeiros. Contudo, a hiptese de que os agentes no podem deter moeda estrangeira mantida.

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    Assim, os agentes devem distribuir sua riqueza entre trs tipos de ativos: moe-da nacional; ttulos nacionais e ttulos estrangeiros. A taxa de cmbio a varivel determinada pelo processo de escolha de portflio, que permite uma repartio da riqueza entre estes ativos. Em outras palavras, essa taxa o preo que garante o equilbrio nos diferentes mercados de ativos nacionais e estrangeiros, sendo determinada pelos fatores que afetam a oferta e a demanda de ativos monetrios e estrangeiros. Neste modelo, uma alta da taxa de juros interna resulta em aumento da demanda por moeda nacional e em apreciao cambial (contrariamente abor-dagem monetria, na qual essa alta implica depreciao da moeda domstica).26

    O modelo de Branson (1975) parte desse referencial, mas avana ao mostrar a integrao entre o mercado de ativos e o comrcio de bens. No curto prazo, a taxa de cmbio seria determinada pelas condies do mercado de ativos, como no modelo de Dornbush, devido maior ordem de grandeza dos estoques de ttulos suscetveis de serem trocados por ttulos denominados em outras moedas relati-vamente aos fluxos de divisas vinculados conta comercial. Enquanto o ritmo de ajuste dos mercados de ativos seria muito maior do que aquele do mercado de bens, a conta corrente reagiria de forma muito mais lenta s mudanas dos fundamentos.

    J no longo prazo, a taxa de cmbio resultaria de um processo de interao entre os fluxos reais e o mercado de ativos. O comrcio de bens afetaria essa taxa mediante seus efeitos sobre o estoque de ativos estrangeiros. Por exemplo, uma inovao tecnolgica reduziria a demanda por importaes, aumentando os ativos lquidos do pas no exterior devido melhora do resultado em conta corrente. Para reestabelecer o equilbrio do seu portflio, os residentes reduziriam a posse de ativos estrangeiros e aumentariam a deteno de ativos nacionais, provocando uma apreciao cambial.

    Em suma, no modelo de Branson e de seus seguidores, as transaes financeiras, cujo horizonte fundamentalmente de curto prazo, condicionariam o movimento da taxa de cmbio nesse perodo de tempo. E, como necessrio um maior lag temporal para explorar vantagens comparativas no comrcio de bens de servios, os fatores reais seriam os principais determinantes da taxa de cmbio no longo prazo.

    Uma importante limitao dos trs tipos de modelos apresentados at o momento a hiptese de que os residentes no detm moeda estrangeira; ou seja, de inexistncia de substituio monetria. No contexto de globalizao financeira, bancos e empresas detm uma tesouraria multidivisas (Plihon, 1999).

    26. Os termos apreciao/depreciao da moeda domstica e apreciao/depreciao cambial so considerados sinnimos. J o termo apreciao/depreciao da taxa de cmbio no ser utilizado, na medida em que ele sinnimo de apreciao/depreciao da moeda domstica somente quando a taxa de cmbio o preo da moeda domstica (medida direta). No caso da medida indireta (taxa de cmbio equivale ao preo da moeda estrangeira) usada no Brasil e nos demais pases emergentes e em desenvolvimento, os dois termos tm significado oposto: quando a taxa de cmbio sobe (aprecia), a moeda domstica deprecia e vice-versa.

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    A Literatura sobre os Determinantes da Taxa de Cmbio Nominal na Globalizao Financeira

    Um novo gnero de modelo monetarista entre os quais Miles (1978) e Mckinnon (1982) procurou superar esta limitao a partir da incluso da hiptese de que as moedas so substituveis entre si. A demanda de moeda refletiria um comportamento mundial, no sentido que cada divisa desejada em funo da taxa de juros domstica e das taxas de juros externas.

    Esses modelos enfatizaram as implicaes sobre as taxas de cmbio das subs-tituies entre moedas condicionadas por mudanas nos seus custos relativos; quanto maior a substitutibilidade, maior seria a instabilidade cambial. A hiptese subjacente que a demanda mundial de moeda estvel, mas que as demandas pelas diferentes moedas nacionais no o so. Consequentemente, o regime de cmbio flutuante no teria um papel estabilizador (como na abordagem monet-ria), bem como no garantiria a autonomia da poltica monetria. Assim, mesmo nos marcos de um referencial monetarista, os modelos de substituio de divisas chegam a um resultado interessante: as polticas monetrias domsticas tornam-se interdependentes no mbito de regimes de cmbio flutuante.

    3.2 A segunda e terceira geraes de modelos

    A segunda gerao de modelos, desenvolvida na segunda metade dos anos 1980, abrange modelos de matriz novo-clssica que procuraram responder, sobretudo, concluso do estudo de Meese e Rogoff (1983), de que modelos de passeio aleatrio teriam um melhor desempenho emprico na explicao da trajetria das taxas de cmbio do que os modelos estruturais desenvolvidos at aquele momento (ou seja, os modelos denominados aqui de modelos de primeira gerao).

    Nesse contexto, tornou-se referncia na literatura convencional o modelo de eficincia do mercado de cmbio que se baseia na anlise de Fama (1960), segun-do a qual, em um mercado eficiente, o preo de um ativo (neste caso, a taxa de cmbio) em um determinado perodo contm toda a informao disponvel neste perodo. Este modelo tambm pode ser denominado de modelo novo-clssico de determinao da taxa de cmbio, pois se ancora na hiptese de expectativas racionais, qual seja, os agentes alm de utilizarem toda a informao disponvel possvel, conhecem a verdadeira distribuio de probabilidades da varivel, no cometendo erros de previso sistemticos. A segunda hiptese subjacente que as arbitragens so perfeitas: os ativos financeiros so perfeitos substitutos e os rendi-mentos antecipados dos diferentes ativos em distintas moedas (denominados na mesma moeda), so iguais. Isso quer dizer que a paridade descoberta da taxa de cmbio verificada.

    A condio de eficincia do mercado de cmbio estabelece que a depreciao cambial esperada entre dois perodos equivale ao diferencial de juros entre as moedas (como na paridade descoberta); mais um erro aleatrio, cuja esperana

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    matemtica igual a zero.27 Se o lucro esperado da arbitragem de juros entre duas moedas igual a zero, como suposto na hiptese de eficincia, a taxa de cmbio seguir um passeio aleatrio.28

    Assim, esse modelo conseguiu responder ao puzzle da aleatoriedade (primeiro puzzle) revelado pelos estudos de Meese e Rogoff. Sua dominncia nesse perodo tambm foi favorecida por dois fatores. Por um lado, pelo avano do processo de globalizao financeira ao longo dos anos 1980, que tornou ainda mais evidente o papel da taxa de juros e das antecipaes na dinmica da taxa de cmbio; por outro, pelo fato da escola novo-clssica ser a ortodoxia do pensamento macroeco-nmico naquele momento.

    Outro modelo de matriz novo-clssica que integra a segunda gerao, de acordo com a classificao aqui proposta, o modelo de bolhas especulativas racionais, desenvolvido originalmente por Blanchard e Watson (1984). Este modelo fornece uma resposta ao primeiro puzzle (de desvinculao entre os fun-damentos e a taxa de cmbio) e tambm sobrevalorizao do dlar na primeira metade dos anos 1980.

    Seu ponto de partida que as diferenas durveis entre a taxa de cmbio de mercado e seu valor de equilbrio, que corresponde aos fundamentos (sobretudo, os diferenciais de inflao e de taxa de juros) decorreriam do surgimento de bolhas especulativas em mercados eficientes e com expectativas racionais. Esse modelo pode ser resumido da seguinte forma: se a maioria dos operadores antecipa uma apreciao da moeda devido a rumores, sem levar em conta os fundamentos, a demanda adicional faz com que a moeda efetivamente se aprecie, se distanciando do valor fundamental; as antecipaes se autorrealizam e o mercado eficiente no sentido de antecipar corretamente a evoluo da taxa de cmbio; em algum momento, as antecipaes descoladas dos fundamentos se revertem e a bolha explode (Plihon, 1999).29

    Esse modelo teve ampla aceitao no mainstream, j que compatibilizou as hipteses de eficincia de mercado e de expectativas racionais com o primeiro puzzle: a divergncia entre a taxa de cmbio do mercado e seu valor fundamental decorreria das bolhas especulativas, que resultariam em uma multiplicidade das solues de equilbrio no curto prazo.

    27. De acordo com a paridade descoberta: et+n et = it i*t (1). A hiptese de expectativas racionais implica que et = (et/It-1) + u, sendo E (u t) = 0 (2). Combinando (1) e (2), obtm-se: et+n et = (it i*t) + ut (3), que a condio de eficincia do mercado de cmbio.28. Contudo, como destacado por Levich (1986), essa condio implica aleatoriedade somente se o retorno esperado no equilbrio for constante.29. Na representao algbrica: E = E* + B, onde E* a taxa de cmbio esperada e B a bolha.

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    A Literatura sobre os Determinantes da Taxa de Cmbio Nominal na Globalizao Financeira

    Diante dos sucessivos estudos economtricos que rejeitaram a hiptese de efi-cincia do mercado de cmbio (McDonald, 2007) e dos novos puzzles evidenciados pelos trabalhos empricos, nos anos 1990 emerge o que se denomina aqui de terceira gerao de modelos, que envolve os modelos de determinao da taxa de cmbio desenvolvidos no mbito da New open macroeconomics, de Obstfeld e Rogoff (2000).30

    Esses modelos, como na gerao precedente, supem expectativas racionais, mas abrem espao para a existncia de rigidezes que impedem a taxa de cmbio de caminhar pari passu com os fundamentos em modelos dinmicos, com otimizao de funo utilidade e agentes representativos (McDonald, 2007). Podem, assim, ser chamados de modelos novo-keynesianos.

    3.3 A quarta gerao de modelos

    A quarta gerao emerge a partir do final dos anos 1990, com modelos que aban-donam a hiptese de agentes representativos, tendo como denominador comum a premissa de heterogeneidade dos agentes. Estes modelos, contudo, no rompem com o mainstream pois continuam ancorados na hiptese de ergodicidade, pre-condio para a utilizao de modelos estocsticos.

    Assim como aqueles da terceira gerao, esses modelos procuram responder aos cinco primeiros puzzles, sintetizados no incio desta seo. Essa gerao envolve dois tipos de modelos: o modelo da microestrutura do mercado de cmbio (microstructural model), desenvolvido por Evans e Lyons (2001, entre outros), em vrios trabalhos; e o modelo comportamental (behavioral model), desenvolvido, principalmente, por De Grauwe e Grimaldi (2006).

    O modelo microestrutural procura responder aos diversos puzzles revelados pelos estudos empricos a partir de um enfoque microeconmico baseado nos flu-xos de ordem dos dealers, que se referem s ordens de compra menos as de venda desses agentes e refletem a presso compradora/vendedora no mercado de cmbio vista. Nas palavras dos autores:

    O fluxo de ordem uma medida da presso de compra/venda. Ele corresponde ao valor lquido das ordens dos compradores e dos vendedores. Em um mercado de dealers, como o mercado de cmbio vista, so eles que absorvem este fluxo de ordem e so recompensados por isso (traduo da autora).31

    Embora os autores mencionem somente o mercado vista, esse modelo abre espao para a insero na anlise dos mercados de derivativos cambiais na medida em que permite a incorporao dos fluxos de ordem nesses mercados,

    30. Ver tambm Obstfeld (2002). Sobre a New open macroeconomics, ver Lane (2001). 31. No original: Order flow is a measure of buying/selling pressure. It is the net of buyer-initiated orders and seller-initiated orders. In a dealer market such as spot foreign exchange, it is the dealers who absorb this order flow, and they are compensated for doing so (Evans e Lyons, 1999, p. 167, grifo nosso).

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    como realizado por Klitgard (2007), com bom desempenho emprico. Contudo, esta incorporao, alm de insuficiente (pois no explicita os mecanismos de transmisso entre os mercados vista e de derivativos), no resulta na superao da principal fragilidade dos modelos microestruturais, qual seja, no fornecem uma explicao para os fatores subjacentes s ordens de compra e venda nos mercados cambiais, que constituem os determinantes, em ltima instncia, da trajetria das taxas de cmbio. Como destaca Willianson:

    presumivelmente verdadeiro, de fato, certamente quase tautologicamente ver-dadeiro, que as mudanas nas taxas de cmbio seguem os fluxos de ordem, mas se as ordens no so exgenas, o que determina o desejo de fazer ordens que so os determinantes efetivos das taxas de cmbio (traduo da autora). 32

    J a abordagem comportamental da taxa de cmbio, cujos principais expoentes so De Grauwe e Grimaldi (2006) tambm rejeita a hiptese de agentes racionais representativos, detalhando os fatores que condicionam as aes dos agentes nos mercados cambiais. Com base na literatura de finanas comportamentais (behavioral finance) inspirada nos trabalhos dos psiclogos Amos Tversky e Daniel Kahneman (Tversky e Kahneman, 1981 e 1982), esse modelo ancora-se na hiptese de que os agentes, diante da dificuldade em co-letar e processar informaes complexas, no mundo real, tomam decises com base em princpios heursticos (uso do senso comum ou regras de bolso, genricas, informais, que tendem a simplificar o processo de tomada de deciso), entre os quais trs se destacam.

    Em primeiro lugar, o princpio da disponibilidade (availability): os agentes tendem a atribuir maior probabilidade a eventos mais recentes. Em segundo lugar, o princpio da representatividade (representativeness), utilizado quando os agentes precisam definir se um evento A pertence a uma classe B (ou resultado de um processo B): quanto maior a semelhana entre o evento A e a classe (ou o processo) B, maior a probabilidade de A fazer parte (ou ser resultado) de B. A representativi-dade pode levar os agentes a imaginarem a operao de fatores causais (processos determinsticos), quando, na verdade, o acaso (processos aleatrios) poderia estar em operao. Em terceiro lugar, o princpio da ancoragem (anchoring), uti