Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos...

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Bernardo Abreu de Medeiros Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos estados constitucionais contemporâneos Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Adrian Sgarbi Rio de Janeiro, junho de 2009.

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Bernardo Abreu de Medeiros

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Bernardo Abreu de Medeiros

Positivismo Jurídico Inclusivo: a

possibilidade de incorporação de

valores morais ao direito nos

estados constitucionais

contemporâneos

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Teoria do Estado e Direito

Constitucional da PUC-Rio como requisito parcial

para obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Adrian Sgarbi

Rio de Janeiro, junho de 2009.

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Bernardo Abreu de Medeiros

Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos estados constitucionais contemporâneos .

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Adrian Sgarbi Orientador

Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Alejandro B. Alvarez Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Noel Struchiner Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Marcelo de Araújo UERJ

Prof. Nizar Messari

Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 17 de junho de 2009.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução

total ou parcial do trabalho sem autorização da

Universidade, do autor e do orientador.

Bernardo Abreu de Medeiros

Graduou-se em Bacharel em Direito no ano de 2006

pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

(PUC-Rio)

Ficha Catalográfica

CDD: 340

Medeiros, Bernardo Abreu de Positivismo jurídico inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos estados constitucionais contemporâneos / Bernardo Abreu de Medeiros ; orientador: Adrian Sgarbi. – 2009. 113 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Direito)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. Direito – Teses. 2. Positivismo jurídico. 3. Teoria do direito. 3. Incorporacionismo. I. Sgarbi, Adrian. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.

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Aos meus.

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Agradecimentos

Agradecer não é tarefa simples. Tantos foram aqueles que contribuíram

de maneira decisiva para nessa longa caminhada que corro sério risco de

esquecer alguém. Neste percurso de incerteza, descobertas e mais incertezas, a

ajuda, compreensão e incentivo são incomensuráveis.

Agradeço inicialmente à minha família, especialmente à minha mãe, pela

compreensão e carinho dispensados, aditivos essenciais que me garantiram

percorrer esse árduo e gratificante trajeto.

Aos amigos que fiz aqui e aos que trago da vida, e com quem

compartilhei vitórias e angústias, especialmente, Helena Colodetti, Thamis

Dalsenter, Daniel Giotti e o velho companheiro Jorge Chaloub.

Aos parceiros de luta pelas searas da teoria do direito e com quem travei

frutíferos debates e revi minhas concepções, em especial, Janaina Matida, Fabio

Shecaira, Rodrigo Tavares e Ronaldo Dias.

Ao Professor Adrian Sgarbi, meu profundo agradecimento por despertar o

interesse pelo tema e pela dedicação e parceria pra conclusão deste trabalho.

Aos sempre solícitos Professores Noel Struchiner, cujos debates,

indicações bibliográficas, apoio e estímulo foram indispensáveis para esta

dissertação; e José Ribas Vieira; com sua estimulante obsessão pelo

conhecimento e pela vida acadêmica.

Aos demais professores que tive o privilégio de conhecer e interagir ao

longo do mestrado, muitos dos quais são figuras centrais desta dissertação e se

dispuseram a prestar todo auxilio possível nessa jornada: Wilfrid Waluchow,

Angéles Ródenas, Juan Carlos Bayón, Juan Bautista Etcheverry, Manuel

Atienza, José Juan Moreso, Juan Ruiz Manero e Luis Roberto Barroso.

Ao Anderson e à Carmen, funcionários solícitos do Programa da Pós-

Gradação em Direito da PUC-Rio, pela ajuda constante.

À Capes e à PUC, pelos auxílios concedidos e sem os quais este

trabalho não seria possível.

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Resumo

MEDEIROS, Bernardo Abreu. Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos estados constitucionais contemporâneos . Rio de Janeiro, 2009, 113p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Poucas questões têm sido tão abordadas ao se discutir teoria do direito e

direito constitucional como a “a crise do positivismo jurídico”. A publicação de O

Conceito de Direito de Hart em 1961 representou um marco na teoria do direito

do século XX, tanto pelas inovações teóricas que aportou, representando um

refinamento da teoria juspositivista, como pelo fecundo debate que gerou. Tal

debate, que se inicia com as primeiras críticas de Dworkin ao positivismo de Hart

em Modelo de Regras I e II, compiladas em Levando os direitos a sério, se

desenvolve até hoje com fortes debates internos ao próprio positivismo jurídico.

Dentre elas, centraremos a análise no positivismo inclusivo, termo cunhado por

Wilfrid Waluchow, mas cujas origens remontam ao início dos anos 70. A principal

proposta de tal corrente é conciliar alguma das críticas de Dworkin com as bases

da tradição positivista. A corrente se constrói refutando de um lado, teses não

positivistas como as de Dworkin e, de outro, teses exclusivas como as de Raz,

buscando assim manter as bases do positivismo jurídico e dar conta de uma das

principais características dos estados constitucionais contemporâneos – a ampla

incorporação de valores ao direito, especialmente nas cartas constitucionais.

Inicialmente, serão abordados os fundamentos da teoria juspositivista,

encarando-a como uma tradição. Em seguida será situado o debate

Hart/Dworkin nesse cenário para analisar seus desdobramentos, focando no

surgimento e consolidação do Positivismo Inclusivo. Finalmente, abordam-se as

contribuições recentes ao debate, fazendo um balanço das teses envolvidas e

discutindo a sua relevância atual.

Palavras-Chave

Positivismo Jurídico – Teoria do Direito - Incorporacionismo

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Abstract

MEDEIROS, Bernardo Abreu. Inclusive Legal Positivism: the

possibility of incorporation of morals in law in contemporary

constitutional states. Rio de Janeiro, 2009, 113p. Master Dissertation –

Law Department, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Few issues have been so intensively discussed in legal theory and constitutional

law as "the crisis of legal positivism." The publication of The Concept of Law by

Hart in 1961 represented a milestone in the theory of law of the twentieth century,

both for the theoretical innovations that it contributed, representing a refinement

of the theory juspositivista, as for the fruitful discussions that resulted. This

debate, which begins with the first criticism of Dworkin to Hart’s positivism in the

Model of Rules I and II, and is developed till today with very strong internal

debates in legal positivism. Among them, the analysis focus on inclusive

positivism, a term created by Wilfrid Waluchow but whose origins date back to

the early 70ths The main proposal of this version is to reconcile some of the

criticisms of Dworkin with the tenants of positivist tradition. The proposal was, on

one hand, to reject part of, Dworkin critics to legal positivism, and on the other,

exclusive theories such as Raz’s conception of law, seeking thereby to maintain

the foundations of legal positivism and give an account of the main features of

contemporary constitutional states - the extensive incorporation of moral values,

especially in constitutional charters. Initially, this dissertation seeks for the

grounds of positivist tradition. Then the debate will be located in Hart/Dworkin

scenario to analyze its developments, focusing on the emergence and

consolidation of Inclusive Positivism. Finally, it deals with the recent contributions

to the debate, balancing the arguments involved and discussing its relevance

today.

Key-Words

Legal Positivism, Jurisprudence, Incorporationism

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Sumário

1. Introdução

9

2. O nascimento do positivismo jurídico inclusivo

2.1. O positivismo jurídico como tradição

2.2. O refinamento do positivismo jurídico de Herbert Hart

2.3. As primeiras críticas de Dworkin e o início do debate

2.4. As defesas iniciais de um positivismo inclusivo

3. A consolidação do positivismo jurídico inclusivo

3.1.Os embates dos inclusivos: entre Raz e Dworkin

3.2.O positivismo exclusivo de Raz

3.3. Os novos ataques de Dworkin

3.4.O soft positivism de Hart

3.4.1. Críticas de Hart à teoria Dworkiana

3.4.2. Aclarações de Hart às críticas de Dwokin

3.4.3. Teses do soft positivism hartiano

3.5. O positivismo inclusivo de Waluchow

3.5.1. Rebatendo os argumentos de Dworkin

3.5.2. Rebatendo os argumentos de outras versões do positivismo

3.5.3. As conclusões de Waluchow

4. O que resta do debate sobre o positivismo inclusivo

4.1. Contribuições contemporâneas ao positivismo inclusivo

4.2. O debate interno

4.3. Balanço final do debate

5. Conclusão

6. Referências bibliográficas

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1.

Introdução

Tornou-se lugar comum no debate atual sobre teoria do direito e direito

constitucional dar por certa a “crise do positivismo jurídico”. No entanto, suas

origens e conseqüências ainda parecem estar bastante obscuras. Boa parte da

rejeição do juspositivismo no debate brasileiro se dá de forma puramente

retórica, com emprego de expressões de desprezo ao positivismo, que é

apresentado como visão teoricamente ultrapassada e politicamente perigosa.1

Lê-se com freqüência que o positivismo “deixou de ser uma forma

adequada de compreender o direito”2, ou que constitui um “retrocesso”3 ,

constatando assim a sua decadência e a necessidade de se superar a “pesada

crosta do positivismo” e “nos livrar de suas amarras”4. Chega-se a afirmar que na

“idolatria formal-normativista (...) a vítima e o holocausto convivem em paz (...). A

visão vazia dos olhos do positivista tornou-se uma conseqüência até certo ponto

exótica e inesperada, da sua irremediável cegueira moral”5. A derrota do

positivismo é afirmada categoricamente:

“o modelo neoconstitucionalista teórico, que foi vitorioso ao positivismo – ao menos no Brasil -, permitiu a inversão do ônus, pois antes todos era positivistas exclusivos, mas agora o positivismo exclusivo não é mais o modelo aceitável”

6

O tratamento da matéria no Brasil parece estar em profundo

descompasso com os debates da doutrina estrangeira sobre os mesmos temas.

A publicação de O Conceito de Direito de Herbert Hart em 1961 representou um

marco na teoria do direito do século XX, tanto pelas inovações teóricas que

aportou como pelo fecundo debate que gerou. Tal debate se inicia com as

primeiras críticas de Ronald Dworkin ao positivismo de Hart em Modelo de

Regras I e II (1967), compiladas em Levando os direitos a sério, e se desenrola

1 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico. Introdução a uma teoria do direito e defesa do

pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 45, de onde também se colheu boa parte das citações seguintes. 2 BARCELLOS, Ana Paula. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro:

Renovar, 2005, p. 8. 3 STRECK, Lenio. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.6.

4 CAMARGO, Margarida Lacombe. Hermenêutica e argumentação. Rio de Janeiro: Renovar,

2003, p.139. 5 PASQUALINI, Alexandre, Hermenêutica e sistema jurídico. Porto Alegre: Livraria do

Advogado1999, p. 66. 6 MOREIRA, Eduardo. Neoconstitucionalismo. A Invasão da Constituição. São Paulo: Método,

2008, p. 51.

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até hoje com fortes debates internos ao próprio positivismo jurídico. Dentre elas,

daremos destaque à corrente do positivismo inclusivo, termo cunhado por Wilfrid

Waluchow, mas cujas origens remontam ao início dos anos 70. A principal

proposta de tal corrente é conciliar alguma das críticas de Dworkin com as bases

da tradição positivista. A corrente se constrói refutando de um lado, teses não

positivistas como as de Dworkin, e, de outro, teses exclusivas como as de

Joseph Raz.

Os objetivos do presente trabalho são 1) analisar a evolução da tradição

positivista e de sua “crise” ; 2) avaliar a possibilidade de incorporação da moral

ao direito e 3) a viabilidade da proposta do positivismo jurídico inclusivo.

No segundo capítulo será abordada a origem do debate, partindo da idéia

de positivismo jurídico como uma tradição de pensamento e tendo como marco a

obra de Hart. Por se tratar de uma discussão quase não abordada na doutrina

nacional, foi feita uma breve digressão às origens do positivismo jurídico e sua

evolução. As inovações trazidas por Hart em relação à tradição positivista da

primeira metade do século XX, e como as críticas lançadas por Dworkin anos

depois constituíram o centro da discussão na teoria do direito. Em apertada

síntese, o centro das refutações de Dworkin à Hart está na impossibilidade de

seu conceito de direito dar conta não apenas de regras, mas de princípios, que,

independentemente de sua positivação, fariam parte do direito. É o seu valor

moral, e não seu critério de fonte que tornam os princípios parte do direito.

As primeiras respostas surgem já no começo da década de 70 com os

trabalhos de Genaro Carrío (1970) e Raz (1972), tentando articular de que

maneira os princípios poderiam estar presentes num conceito positivista de

direito. Soper (1977) e Lyons (1977) elaboram o que é considerado a primeira

defesa de um positivismo inclusivo partindo da possibilidade de incorporação de

valores ou testes de conteúdo ao direito.

Raz elabora então sua tese da autoridade do direito (1975), passando a

se constituir assim no principal nome do positivismo exclusivo, pois, pare ele, o

direito não pode incorporar em nenhuma hipótese critérios morais como

condição de validade, pois o direito é visto como um conjunto de razões

excludentes para ação. Se fosse possível, quando de sua aplicação, discutir os

valores que estão por trás do direito, este não cumpriria seu papel. De outro

lado, Dworkin oferece respostas às críticas que havia recebido por seu modelo

de regras e tece novas críticas ao convencionalismo. É nesse cenário que se

desenvolverá no primeiro capítulo o surgimento do positivismo jurídico inclusivo.

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O terceiro capitulo será centrado nas obras de Wilfrid Waluchow,

Positivismo Jurídico Inclusivo, e no Pós-escrito que Hart incorpora ao seu O

Conceito de Direito, ambos publicados em 1994. Hart buscou dar respostas a

diversas críticas que sua obra recebera desde a publicação inicial, mas falece

antes de completar sua empreitada. Denominando sua teoria como um

positivismo suave, tentou demonstrar a compatibilidade de suas teses com a

incorporação de princípios morais ao direito. Waluchow consolida uma série de

artigos dos anos 80 e pretende consolidar também a própria idéia de positivismo

inclusivo. A estratégia adotada por ele é elencar uma série de críticas feitas ao

positivismo inclusivo e rebatê-las. Em seguida, pretende mostrar as virtudes que

sua teoria apresenta em relação a outras teorias explicativas do direito.

O quarto capítulo pretende avançar no debate posterior a obra de

Waluchow no terreno do positivismo, discutindo os desdobramentos

contemporâneos do tema, com as contribuições recentes que recebeu. Terão

destaque os intentos de Coleman (2001), Moreso (2002), Ródenas (2003), Villa

(2000), Kramer e Himma (1999), atentando para divergências intrínsecas a

própria versão inclusiva. Por fim, vai-se buscar fazer um balanço de todo o

debate apresentado, a fim de se constatar se a pretensão do positivismo

inclusivo fora atingida e o que restou após tão longos debates.

Desta forma, este trabalho tentará preencher de alguma forma este hiato

entre a discussão da matéria no Brasil e no cenário internacional. Como destaca

Dimoulis, a grande maioria dos trabalhos brasileiros se satisfaz com referências

abstratas a uma abordagem que denomina genericamente de “positivismo

jurídico”, relacionadas quase sempre com a obra de Kelsen, e com menos

freqüência Hart e Ross, como se o positivismo jurídico se encerrasse com obras

de autores nascidos em 1881, 1899 e 1907 respectivamente. “Como explicar

que, após décadas de discussão mundial a controvérsia entre positivismo

jurídico inclusivo e exclusivo permanece ignorada no Brasil?”7

A estrutura do trabalho segue, em muitos pontos, a proposta

metodológica oferecida por Juan Bautista Etcheverry8 e teve como objetivo

principal oferecer um mapa do debate em questão, percorrendo os principais

artigos publicados sobre o tema nos últimos quarenta anos. Como quase a

totalidade das publicações nas quais este trabalho se pautou foram escritas em

7 DIMOULINS, Positivismo Juridico, op. cit., p. 134.

8 ETCHEVERRY Juan Bautista, El debate sobre el Positivismo Juridico Incluyente. Un estado de la cuestión.UNAM: México, 2006.

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Inglês ou Espanhol e não possuem tradução para o Português, foi adotada a

livre tradução para nosso idioma nas citações. No casos em que já havia

tradução oficial para o Português, esta foi adotada.

Tal debate ainda se encontra candente e não se pode precisar o seu

desfecho. No entanto, pode-se afirmar com segurança que, ao contrário do que

grande parte da doutrina nacional faz parecer, o positivismo jurídico é uma

tradição viva que não foi enterrada junto com Kelsen.

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2.

O Nascimento do Positivismo Jurídico Inclusivo

2.1 O positivismo jurídico como tradição

O positivismo jurídico constitui um conjunto de proposições teóricas em

torno de determinados aspectos fundamentais do ordenamento jurídico, como

sua definição e relação com outros fenômenos normativos.7 Sob a etiqueta de

“positivismo jurídico”, muitos autores afirmaram teses diversas, logicamente

independentes e até mesmo conflitantes8. A preocupação inicial será apresentar

tal corrente de pensamento como uma tradição que começa a se estruturar com

a formação do Estado Moderno e se desenvolve desde então, ocupando papel

central na teoria do direito.

Embora alguns autores sustentem que os partidários do positivismo jurídico

tenham sofrido influência do positivismo filosófico, tal qual definido a partir do

pensamento de Auguste Comte (1798-1857) e seus seguidores, estes não se

confundem9. A denominação “positivista”, com destaca Dimitri Dimoulis, não

7 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico. Introdução a uma teoria do direito e defesa do

pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 66. Cf. STRUCHINER, Noel. “Algumas „Proposições Fulcrais‟ acerca do Direito: O Debate Jusnaturalismo vs. Juspositivismo” in Perspectivas Atuais da Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 399-415. 8 Cf. BIX, Brian. “Legal Positivism”. In GOLDING e EDMUNDSON (org) The Blackwell Guide to the

Philosophy of Law and Legal Theory. Victoria: Blackwell, 2006, p. 29-49; HART, Herbert. “Positivism and the separation of Law and morals” Harvard Law Review, 71, 1958, p. 593: BOBBIO, Norberto. El problema del positivismo juridico. México: Fontamara, 1999, p. 37-64: CARRIÓ, Genaro. “Princípios Jurídicos y Positivismo Juridico” in Notas sobre Derecho y Lenguaje. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2006, p. 203 et seq. 9 É recorrente na doutrina nacional a vinculação entre positivismo filosófico e positivismo jurídico.

Por todos, cf Luis Roberto Barroso, para quem “o positivismo jurídico foi a importação do positivismo filosófico para o mundo do direito”. ”Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro” in BARROSO (Org) A Nova Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p.24. No entanto, embora possa ter havido algum tipo de influência de um em outro, trata-se de correntes distintas de pensamento. Cf. DIMOULIS, Dimitri, op. cit., p. 66 “É inegável que os partidários do PJ foram influenciados pelo positivismo filosófico, como se percebe na tendência de rejeitar teses metafísicas e/ou idealistas sobre a natureza do direito, concentrando-se em fatos demonstráveis, tais como a criação de normas jurídicas pelo legislador político.” Neste sentido, positivismo seria o “sistema filosófico formulado por Auguste Comte, tendo como núcleo sua teoria dos três estados, segundo a qual o espírito humano, ou seja, a sociedade, a cultura, passa por três etapas: a teleológica, a metafísica e a positiva. As chamadas ciências positivas surgem apenas quando a humanidade atinge a terceira etapa, sua maioridade, rompendo com as anteriores. As ciências se ordenariam hierarquicamente, cada uma tomando por base a anterior e atingindo um nível mais elevado de complexidade. A finalidade ultima do sistema é política: organizar a sociedade cientificamente com base nos princípios estabelecidos pelas ciências positivistas”. (JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 217.) Ainda de acordo com os autores, num sentido mais

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14

deriva do movimento filosófico, mas do termo ius positivum ou ius positum,

indicando a preocupação com o estudo do direito posto.10

Termos ligados à positividade do direito passam a ser correntemente

utilizados a partir da terceira década do século XII na Europa, indicando o direito

criado e imposto pelo legislador. Já na obra de Hugo de Saint-Victor do ano de

1127 – Didascalicon – há menção ao termo iustitia positiva. 11 No entanto,

Pattaro identifica a origem remota do uso do termo no século IV d.C., na

tradução de Calcídio de diálogos platônicos para o Latim12. Já na compilação do

Imperador Romano Justiniano, o Corpus Iuris Civilis, publicado entre os anos

529 e 534, a expressão legem ponere aparece pela primeira vez como termo

jurídico.13

Segundo Fassò, é na obra de Pedro Abelardo (1079-1142), filósofo tido

como o mais racionalista dos escolásticos, e em outros escritos anônimos da

época que a expressão ius positivum é encontrada, revelando que a

“positividade” a que o positivismo jurídico se referia era a concepção formal das

normas, o estar estabelecidas por um ente a que se atribuía o poder exclusivo

de criar o direito, e, em definitivo, em referência àquela qualidade sua pela qual

desde os últimos anos do período medieval, o direito formalmente vigente se

chamava positivo, por haver sido precisamente posto, positum, por uma

autoridade.14 15

Todavia, é na obra do francês Jean Bodin (1529-1596) – Os Seis Livros da

República – que idéias positivistas começam a ganhar densidade, já que o autor

considera que as leis existem única e exclusivamente por força da vontade do

soberano, embora, para Bodin, o soberano estivesse submetido a leis divinas e

naturais16. No entanto, Bodin apresenta as leis da sociedade como fruto da

amplo e vago, “positivismo” pode ainda designar outras teorias do século XIX como a de Mill, Spencer e Mach que se caracterizam pela valorização de um método empirista e quantitativo, pela defesa da experiência sensível como fonte principal do conhecimento, pela hostilidade em relação ao idealismo, e pela consideração das ciências empírico-formais como paradigmas de cientificidade. (Idem) 10

DIMOULIS, op. cit. , p. 68. 11

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1999, p. 239. 12

PATTARO, Enrico (org). A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence, Dordrecht: Springer, 2005, p. 80 13

Idem. 14

FASSÒ, Guido. História de la Filosofia del Derecho. Madrid: Pirámide, 1996, vol. 1 p. 172-173 e vol. 3 p. 151-152. 15

Apesar da origem do termo ser milenar, o positivismo jurídico como uma abordagem quanto à natureza do direito, podendo ser assim considerado uma “teoria”, tem cerca de dois séculos de existência, a partir da Jurisprudence inglesa, como se verá adiante. 16

BODIN, Jean. Six Books on the Commonwealth. Trad. M. J. Tooley. Oxford: Basil Blackwell Oxford, 1955. Disponibilizado no endereço eletrônico: http://www.constitution.org/bodin/bodin_.htm

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vontade do legislador, ao contrário do pensamento dominante da Idade Média

que adotava um pluralismo de fontes, entendendo as leis como decorrentes da

vontade do povo, da Igreja, dos senhores feudais e dos juristas.17

Thomas Hobbes (1588-1679) também ocupa elevado destaque na

consolidação do pensamento positivista18. Ele não abre mão da crença na

existência de um direito natural, mas faz fortes críticas a ele, centradas,

sobretudo, na insegurança gerada. De acordo com Hobbes, o conceito de direito

poderia ser estabelecido de forma convencional, ao invés de se partir da

observação da realidade.19

Apesar de existir certa recusa em classificá-lo como um positivista, muitas

das idéias de Hobbes estão intimamente ligadas a esta corrente, apresentando

algumas características típicas do positivismo como o formalismo e o

imperativismo20. Ao vincular o direito ao mandato de um soberano, subscreve a

tese das fontes sociais. Além disto, o autor nega a existência de alguma forma

de justiça objetiva independente do direito. Portanto, em nome da necessidade

de garantir os valores pelos quais existem a comunidade política, sobretudo a

ordem, a segurança pessoal e a vida dos cidadãos é que se deve refutar uma

idéia de direito que o vincule com a de justiça ou injustiça.21 Assim, mesmo que

não se possa considerar Hobbes como um autor positivista na inteireza do

termo, uma vez que admite a existência de um direito natural ao lado do direito

positivo, certamente é um autor de transição entre as duas correntes e de suma

importância para o pensamento positivista.22

Todas estas premissas teóricas vêm a se consolidar paralelamente ao

estabelecimento do Estado Moderno e a correspondente monopolização do

poder político pelos aparelhos estatais, aliados a ideais racionalistas de

produção do direito. As codificações do século XIX refletem a materialização

deste pensamento.

No século XIX, as raízes da análise positivista do direito podem ser

encontradas nas obras de juristas franceses e belgas da École de l’Exégèse,

que compreendiam o direito como aquilo e apenas aquilo criado pelo legislador.

17

DIMOULIS, op. cit., p. 69. 18

PALÁ, Pedro Rivas. El retorno a los orígines de la tradición positivista. Madrid: Civitas, 2007, p. 17; BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit, p. 36; DIMOULIS, Positivismo Jurídico, op.cit., p.69. 19

PALÁ, El retorno a los orígines de la tradición positivista , op. cit., p.17 et seq . 20

Bobbio, por exemplo, considera estes alguns dos “pontos fundamentais” da doutrina juspositivista. Cf. BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit., p. 131 et seq. 21

PALÁ, El retorno a los orígines de la tradición positivista , op. cit., p.18 22

BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 146-147.

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16

O marco histórico dessa corrente foi o Código de Napoleão de 1804. A idéia da

codificação surge na segunda metade do século XVIII como fruto do

pensamento iluminista, e representa uma experiência jurídica dos dois últimos

séculos típica da Europa continental.23 Nesse contexto, surge a Escola da

Exegese, centrada numa interpretação passiva e mecânica do Código. A técnica

adotada assume pelo trato científico a mesma distribuição da matéria adotada

pelo legislador, resumindo-se tal tratamento a um comentário, artigo por artigo,

do Código.24 Seus autores se fundavam na primazia do direito positivo sobre o

direito natural 25, a concepção rigidamente estatal do direito, a interpretação da

lei fundada na vontade do legislador, o culto ao texto da lei e o respeito pelo

princípio da autoridade.26

Na Alemanha, o primado do pensamento positivista é atribuído à Escola

Histórica do Direito, com forte rejeição ao jusnaturalismo e ao universalismo,

centrado suas análises no direito vigente de seu país. Seu maior expoente foi

Friedrich Carl von Savigny, e o ponto central da referida Escola era encarar o

direito não como um fruto da idéia da razão, mas como um produto da história.27

Nos países do commom law, onde o movimento codificador tem traços

totalmente distintos da Europa continental, a concepção positiva do direito está

ligada ao desenvolvimento da Jurisprudence, termo utilizado para designar a

teoria geral do direito. É a partir deste momento que se pode falar numa

verdadeira “teoria” do direito positivo, que buscava delimitar a sua natureza e

objeto. Nesse contexto, dois nomes foram decisivos: Jeremy Bentham e John

Austin.

Jeremy Bentham publica em 1789 a obra An introduction to the principles

of morals and legislation (Introdução aos princípios da moral e da legislação),

ponto de referência na sua concepção jusfilosófica. Bentham desenvolve uma

23

BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit. p. 63 24

Ibid, p. 78 25

Em virtude da bimilenar tradição cultural do direito natural, os expoentes da escola exegética não ousaram negar tal direito, mas desvalorizaram sua importância e significado prático. 26

Ibid, p. 83-89. Dentre os principais autores da corrente destacam-se: Alexandre Duranton, Charles Aubry, Frédéric Charles Rau, Jean Demolombe e Tropolong. Há quem discorde da visão usualmente atribuída á Escola da Exegese. Cf. REMY, Philippe. “Éloge de L‟Exégèse”. Revue de Recherche Juridique, n.1, 1982, p. 254-266. Para Remy, não se tratou verdadeiramente de uma “escola”, mas de uma “grande obra”, cuja filosofia característica é a da liberdade. Se ao invés de se ater apenas aos prefácios das obras da “escola” busca-se a sua essência, vê-se que elas vão além da exegese da letra da lei e encontrar-se-ão afirmações de opiniões políticas pessoais, como a de Duranton, que sustentara que “uma lei injusta é antes uma anomalia que uma lei”. 27

Em oposição ao “culto ao código” da Escola da Exegese, Savigny era contrário à codificação do direito da Alemanha de sua época por considerar que este se encontrava em um período de decadência, carecendo assim da maturidade necessária à codificação, que ao invés de resolver os males do direito alemão, poderia agravá-los. ( BOBBIO, 1999, p. 57-62)

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17

concepção utilitarista e a aplica na produção legislativa, partindo de uma visão

antinaturalista e antiracionalista. Sua publicação é fruto da compilação dos textos

escritos em 1780 com uma nota sobre a Declaração Americana dos Direitos do

Homem. A obra se abre com a colocação do princípio da utilidade: o bem-estar

(felicidade) é o fim último do homem, e, por conseguinte, a busca do prazer e a

fuga da dor constituem os motivos de todas as ações. 28

O princípio da utilidade tem origem no epicurismo. Não sendo o objetivo

deste trabalho uma análise do utilitarismo enquanto postura filosófica, podemos

apenas indicar três teses que são compartilhadas pelos diversos pensadores

desta corrente. A primeira delas sustenta que direito e Estado se baseiam na

busca do útil, e não em um princípio superior de justiça. Em segundo lugar, não

haveria um direito nem um estado sem fim. Esse fim é exatamente a busca do

maior bem estar pelo maior número de pessoas. Finalmente, direito e Estado

são concebidos como sistemas de equilíbrio social de interesses individuais para

assegurar o interesse coletivo.

Particularmente, o utilitarismo de Bentham é centrado na concepção

realista do útil, e assim, toda norma jurídica deve ser analisada sob o aspecto do

quanto ela é capaz de aumentar o bem estar coletivo, tido como a soma dos

interesses individuais. Ele enuncia o princípio da utilidade, afirmando que “a

natureza colocou o homem sob domínio de dois senhores soberanos: a dor e o

prazer” 29. Assim, o “princípio da utilidade recorre à sujeição e a coloca como

fundamento do sistema, cujo objetivo consiste em construir o edifício da

felicidade através da razão e da lei”. 30

Bentham tece duras críticas a William Blackstone, que fora discípulo de

John Locke e representava um ícone do pensamento jusnaturalista no Reino

Unido, concebendo a lei como a vontade de Deus manifestada sobre todas as

coisas. Para Bentham, o direito é um instrumento para atingir fins. O direito

natural não existiria, sendo apenas expressões vazias de sentido. O common

law representa incerteza e insegurança.31

A figura do soberano deveria se sustentar sobre dois poderes distintos: o

poder imperativo, isto é, o poder de produzir normas; e de outro lado, um poder

28

Cf. SGARBI, Adrian. A Teoria do Direito de Jeremy Bentham , 2009, mimeo; FASÒ, História de La Filosofia Del Derecho, op. cit., p. 30 et se.q 29

BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 3 30

Idem. 31

Cf. HART, Herbert. “The demystification of the law”. In Essays on Betham. Jurisprudence and Political Theory. Oxford: Clarendon, 2001, p. 26.

Page 18: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

18

físico de infligir sanções. A sanção era tida como o instrumento jurídico de

realização do utilitarismo

Além da influência direta de Hobbes, pode-se notar uma forte influência do

pensamento de Helvetius, ao fazer da “lei do interesse” a analogia, para o

universo moral, das leis do movimento do universo prático; e de Beccaria, que

havia retomado a analogia extraindo conseqüências para legislação32, sobretudo

penal, confiando-lhe a tarefa de “conduzir os homens ao máximo de felicidade

ou ao mínimo de infelicidade possível para aludir a todos os cálculos dos bens e

dos males da vida.” 33

A originalidade do pensamento de Bentham não está tanto no

estabelecimento de uma teoria utilitarista simplesmente, mas nas severas

críticas às teorias do direito natural e seus prolongamentos políticos. Opõe-se

diretamente às teses que pretendem fazer da lei natural, e não da utilidade, o

princípio da legislação: dizer que há uma regra eterna e imutável do direito,

evocar o direito natural, a eqüidade natural, os direitos do homem, é, com efeito,

julgar arbitrariamente que tal ação é boa ou má não porque ela aprove ou

contrarie o interesse daqueles em questão, mas porque ela agrada ou

desagrada àquele que julga.34 O princípio de direito natural é, na verdade, um

princípio de “simpatia ou antipatia” - já que aqueles que se valem do direito

natural só fazem, graças a noções abstratas que são puras ficções (necessidade

do empirismo), ditar seus sentimentos como leis e se arrogar o privilégio da

infalibilidade.

São, portanto, as leis positivas, arrumadas pelo legislador com o intuito de

maximizar ou minimizar os prazeres, as únicas que dão existência aos direitos.

As leis reais dão nascimento aos direitos reais, enquanto o direito natural é

apenas uma criação da lei natural, que nada mais é do que uma ficção, logo,

como nada vem do nada, o direito natural não é nada.

Declarações de direitos do homem são jargões vazios de sentido, pois não

há direitos anteriores às leis. No entender de Bentham, o pretenso benefício das

Declarações seria, segundo seus autores, prevenir toda invasão das leis

positivas sobre a liberdade dos cidadãos, ou toda ameaça dessas mesmas leis à

sua igualdade. Ora, não só essas Declarações são ineficazes e não impedem de

maneira nenhuma tais ameaças e tais invasões, como também são geradoras da

32

FASSÒ, Op. Cit, p. 30. 33

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2006, p. 109. 34

Cf. BENTHAM, Jeremy. A fragment on government. London: T Payne, 1776, p. 8 et seq

Page 19: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

19

anarquia por causa da imprecisão de suas noções: dizer que os homens têm

direitos naturais à igualdade e à liberdade, sem maiores esclarecimentos, é

convidar o individuo a se levantar, em nome destes valores abstratos, contra as

leis existentes, a negar estas leis reais em nome de uma fictícia lei natural,

convida-se assim cada um a erigir seu capricho em uma pretensa lei diante da

qual as leis positivas deveriam se destruir.35

Pouco mais de quarenta anos depois, Austin busca definir o objeto do

estudo do direito em sua principal obra, The province of jurisprudence

determined (A Delimitação do Objeto do Direito - 1832)36, e o faz o limitando ao

estudo do direito positivo, isto é o direito imposto por superiores aos seus

súditos. Diversos autores apontam Austin como o fundador do positivismo

jurídico.37

Para Austin, antes de se entender a aplicação do direito se fazia

necessário entender a dimensão do direito, separando-o de tudo aquilo que

assim não o era.

O fim ou o propósito das seis lições seguintes consiste em distinguir as leis positivas ( o objeto do direito) das coisas antes enunciadas: coisas com as quais se relacionam por semelhanças e analogias, por seu nome comum de „leis‟ e com as quais, por conseguinte, se mesclam e se confundem com freqüência. Portanto, em virtude de que este é o propósito principal das seis lições seguintes, as denomino, considerando-as em seu conjunto, „o objeto do direito‟. Já que este é o seu principal propósito, as seis lições intentam trazer o limite que separa o campo do direito das zonas que se encontram em seus confins.

38

Austin é pioneiro em distinguir com clareza a existência de uma norma do

seu conteúdo.

A existência de uma lei é uma coisa; seu mérito ou demérito, outra. Se existe ou não, é uma questão; se acomoda ou não a um presumido modelo, é questão diferente. Uma lei que realmente exista é uma lei, ainda que desgostemos dela, ou ainda seja disforme quando a respeito de critério com o qual governamos nossa aprovação ou desaprovação. Esta verdade, quando se afirma em abstrato, é tão simples e evidente como parece ocioso insistir nela. Porém, apesar de simples e evidente como parece em abstrato, tem sido esquecida em muitos casos concretos, e a enumeração de exemplos chegaria a um volume completo

39

35

BENTHAM, Jeremy. “La estructura del derecho” in CASANOVAS, P. e MORESO J. J.(org) , El ámbito de lo jurídico: Lecturas del pensamiento jurídico contemporáneo . Barcelona: Crítica, 1994 p. 132-146. Cf. BENTHAM, Jeremy. “Anarchichal Fallacies” in BOWRING, John (org). Works of Jeremy Bentham, vol. II. Edimburgh: William Tait, 1843. 36

Para uma análise sistemática da obra, cf. SGARBI, Clássicos de Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 37

BIX, Brian “Legal Positivism”, op. cit. p. 29. 38

AUSTIN, Jonh. El objeto de la jurisprudencia. Madrid : Marcial Pons , 2002, p.26. 39

Ibid, p. 188

Page 20: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

20

O conceito de lei, para Austin, é dado pelo trinômio desejo, dano e

comunicação do desejo, numa estrutura de forte cunho utilitarista, na esteira de

Bentham, segundo a qual para evitar uma dor indivíduos racionais se

comportariam de acordo com as leis. O desejo a que se refere Austin é a

manifestação de vontade de um ser racional, o soberano, a outro ser racional

para que faça ou omita algo. Soberano é aquele habitualmente obedecido e

fonte de todo o direito. As leis que não se enquadram neste trinômio são

consideradas leis anômalas, porque são interpretativas, revogadoras ou

imperfeitas.

Austin rejeita as teorias contratualistas, pois constituem uma construção

não empírica, tratando-se de uma ficção, uma hipótese desnecessária e

supérflua. “o pacto dificilmente obrigaria os súditos originários ou sucessivos (..)

toda convenção jurídicamente vinculativa (ou qualquer convenção propriamente

dita) deriva sua eficácia jurídica de uma lei positiva.”40

Confrontando a postura de Bentham com a de Austin vemos que ambos

desenvolvem uma teoria de cunho utilitarista e delimitam o direito como um

conjunto de leis, sendo estas aquelas feitas pelo soberano. No entanto, Bentham

defende a codificação como forma de dar segurança ao sistema, e Austin não

considera o common law irracional, pois é delegado pelo soberano. Ademais,

Bentham se preocupa em tecer críticas ao direito natural através da negação da

existência de leis naturais, enquanto o foco de Austin é uma preocupação

metodológica de distinção entre direito e moral.

Uma vez concretizado um primeiro trabalho do positivismo jurídico de

delimitar o objeto do direito, vinculando-o ao direito posto pelo soberano,

refutando o pensamento jusnaturalista de um lado, e estabelecendo a distinção

entre a existência e o conteúdo das normas de outro, foi possível a teoria

juspositivista do século XX avançar sobre novos aspectos.

O principal pensador do positivismo jurídico da primeira metade do século

XX foi sem sombra de dúvida Hans Kelsen (1881 – 1973). A Teoria Pura do

Direito, mais do que a sua principal obra escrita, é um projeto de definição do

direito enquanto ciência.

Um esclarecimento inicial necessário em relação à pureza referida. O que

Kelsen pretende elaborar é uma teoria pura do direito, e não uma teoria do

40

Ibid, p. 301.

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21

direito puro.41 Isto é, a pureza se refere à teoria, à doutrina, à ciência do direito, e

não ao direito em si. Kelsen não aceita a existência de direito sem valores42

Aclarado este ponto, vale destacar que teoria kelseniana se baseia na

existência de dois mundos distintos: o mundo do ser e o do dever ser. O mundo

do ser, que é, por exemplo, o da natureza, há uma ligação direta entre um fato e

uma conseqüência. Se eu solto um corpo no ar, ele cai atraído pela gravidade.

Já no mundo do dever ser, como a moral, a religião, o direito, há, entre o fato e a

conseqüência, uma imputação. Assim, para os fenômenos da natureza, vale o

princípio da causalidade: se “A”, então “B”. Esse é o campo da proposição, da

descrição, da ciência. Por outro lado, para os fenômenos normativos, o princípio

aplicável é o da imputação, tipo da norma e fruto da vontade.

Kelsen aprimora a definição de direito do legado positivista, estabelecendo

três critérios de delimitação do seu objeto: direito é uma técnica social

específica, direito usa a força monopolizada pelo Estado e direito pertence ao

mundo do dever43

Direito não tem uma finalidade em si; é uma técnica de controle social, e

como técnica, serve a quem a utiliza. O direito é uma técnica de motivação

indireta das condutas humanas. Indireta porque o comportamento conforme é

obtido através do uso de sanções punitivas socialmente organizadas.

A conduta em conformidade com a ordem é conseguida por uma sanção proporcionada pela própria ordem. O princípio de recompensa e punição – o princípio da retribuição - , fundamental para a vida social, consiste em associar uma conduta em conformidade com a ordem e a conduta contraria à ordem com a promessa de uma vantagem ou com a ameaça de uma desvantagem, respectivamente, na condição de sanções.

44

Disso decorre que a paz produzida pelo direito apenas pode ser

relativa, porque ao se entender paz como “ausência de força”, utilizando-se o

direito necessariamente da força a paz obtida não pode ser absoluta.

41

Para este ponto, cf. SGARBI, Adrian. Hans Kelsen. Ensaios Introdutórios (2001-2005). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 2 et seq. 42

Kelsen refuta a possibilidade de valores morais absolutos, não se podendo determinar um elemento comum aos conteúdos das diferentes ordens morais. Nem mesmo valores como “paz” seriam absolutos: “Mas já Heráclito ensinou que a guerra não só é o “pai”, isto é, a origem de tudo, mas também o “rei”, isto é, a mais alta autoridade normativa, o mais alto valor, sendo, portanto, boa, que o Direito é luta e que a luta, por isso, é justa. E até Jesus diz: “Eu não vim para trazer a paz à terra, mas a discórdia” e, portanto, não proclama de forma alguma, pelo menos para a ordem moral deste mundo, a paz como o valor mais alto.” KELSEN, [1961], p. 46. No entanto, reconhece que todo direito constitui um valor moral relativo “Sob estes pressupostos, a afirmação de que o Direito é, por sua essência, moral, não significa que ele tenha um determinado conteúdo, mas que ele é norma e uma norma social que estabelece, com o caráter de devida (como devendo-ser), uma determinada conduta humana. Então, neste sentido relativo, todo o Direito tem caráter moral, todo o Direito constitui um valor moral (relativo).” Idem. 43

SGARBI, Clássicos de Teoria do Direito…, op. cit. p. 35. 44

KELSEN, Hans. O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. [1941] São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 225-226.

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22

A paz é uma condição em que a força não é usada. Nesse sentido da palavra, o Direito provê apenas a paz relativa, não absoluta – ele priva o individuo do direito de empregar a força, mas reserva-o à comunidade. A paz do Direito não é uma condição de ausência absoluta de força, um estado de anarquia; é uma condição de um monopólio de força da comunidade

45

A segunda característica do direito informa que a sanção não é exclusiva

do direito, mas ele monopoliza a força. Se a religião monopoliza a força ela se

confunde com o direito como em Estados fundamentalistas. A ordem jurídica se

diferencia da ordem normativa moral pelo modo mediante o qual prescreve ou

proíbe certa conduta.

A questão da necessidade do Direito é idêntica à questão da necessidade do Estado. Pois o estado é uma ordem coercitiva, uma ordem jurídica, relativamente centralizada, relativamente soberana – uma comunidade constituída por tal ordem jurídica. Se o estado for definido como uma organização política, isso significará uma ordem coercitiva. O elemento especificamente político consiste em nada mais que o elemento de coerção.

46

Pelo terceiro critério, o mundo do ser significa realidade natural (mundo

físico), plano existencial determinado pela ocorrência de um nexo naturalístico

necessário, o qual o pensamento humano meramente constata. O mundo do

dever é o mundo normativo, explicado pelo princípio da imputação.

A forma verbal em que são apresentados tanto o princípio da causalidade como o da imputação é um juízo hipotético em que um determinado pressuposto é ligado a uma determinada conseqüência. O sentido da ligação, porém, é – como já vimos – diferente nos dois casos. O princípio da causalidade afirma que, quando é A, B também é (ou será). O princípio da imputação afirma que quando A é, B deve ser. Como exemplo de uma aplicação do princípio da causalidade numa lei natural concreta, remeto para lei já referida, que descreve a ação do calor sobre os metais. Exemplos de aplicação do princípio da imputação no domínio das ciências sociais normativas são: quando alguém te fez algum bem, deves mostrar-te agradecido; quando alguém sacrifica a sua vida pela pátria, sua memória deve ser honrada; quando alguém pecou, deve fazer penitência.

47

Apresentada a sua própria teoria de delimitação do direito, Kelsen passa a

apresentar sua estruturação de aplicação do direito, definindo validade e

apresentado a dinâmica de aplicação das normas sintetizada na figura da

pirâmide normativa e no conceito de norma fundamental.

Validade expressa a compreensão de que determinada norma existe e

que, por existir, é juridicamente obrigatória. Para Kelsen há dois tipos de

45

Ibid, p. 232 46

Ibid, p. 233 47

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito [1960]. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2003.p. 100.

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23

derivação possíveis: o estático e o dinâmico.48 Sistemas jurídicos são dinâmicos

porque as normas têm origem em uma complexa organização de produção

normativa por competência e delegação de competência. Nos sistemas

estáticos, como os morais, a derivação normativa é dada por uma seqüência de

deduções lógicas (ilações)

As normas de um ordenamento do primeiro tipo [estático], quer dizer, a conduta dos indivíduos por ela determinada, é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. Assim, por exemplo, as normas: não devemos mentir, não devemos fraudar, devemos respeitar os compromissos tomados, não devemos prestar falsos testemunhos, podem ser deduzidas de uma norma que prescreve a veracidade. Da norma segundo a qual devemos amar o nosso próximo, não devemos, especialmente, causar-lhe a morte, não devemos prejudicá-lo moral ou fisicamente, devemos ajudá-lo quando precise de ajuda. Talvez se pense que a norma da veracidade e a norma do amor ao próximo se podem reconduzir a uma norma ainda mais geral e mais alta., porventura a norma: estar em harmonia com o universo. Sobre ela poderia então fundar-se uma ordem moral compreensiva. Como todas as normas de um ordenamento deste tipo já estão contidas no conteúdo de uma norma pressuposta, elas podem ser deduzidas daquela pela via de uma operação lógica, através de uma conclusão geral para o particular. Esta norma, pressuposta como norma fundamental, fornece não só o fundamento de validade como o conteúdo de validade das normas dela deduzidas através de uma operação lógica. Um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de normas. O princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um princípio estático. (...)

O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou - o que significa o mesmo - uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental..

49

Seguindo o sistema dinâmico apresentado, a validade de uma norma pode

ser rastreada até se alcançar a Constituição histórica primeira, a primeira

constituição daquela ordem jurídica, usualmente marcada por um ato de

independência de um Estado frente a outro. Neste final do caminho, poder-se-ia,

outra vez, questionar qual seria o fundamento de validade desta constituição

histórica primeira, porque, na falta de alguma fundamentação normativa, todas

as demais normas perderiam seus respectivos suportes de validade. Essa busca

sem fim constitui o “problema da fundamentação normativa”.

É para dar a resposta a este regresso provocado pelo imperativo de se

indicar, sempre, a “norma validamente superior” que Kelsen elabora a “teoria da

48

Ibid, p. 217-221 49

Idem.

Page 24: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

24

norma fundamental”. Segundo Kelsen, a norma fundamental corresponde à

postura necessária e intelectual de se considerar válida como marco jurídico-

positivo inicial a constituição histórica primeira não mais em disputa, pois esta é

uma pressuposição imprescindível para poderem se identificar as normas da

ordem jurídica.50

Todavia, a “teoria da norma fundamental” não é uma construção

totalmente original de Kelsen. Embora já houvesse aparecido com contornos

mais definidos em 1920, no seu livro “O Problema da Soberania e a Teoria do

Direito Internacional”, a idéia já fora desenvolvida anteriormente por Alfred

Verdross51, que reconheceu a norma fundamental como uma hipótese

relacionada ao material do direito positivo analogamente à hipótese da ciência

natural. De toda sorte, importa destacar que, apesar de não ter sido Kelsen o

precursor da exposição do tema da norma fundamental em termos iniciais, tendo

dela feito uso em seus trabalhos, imprimiu-lhe elaboração pessoal.

Se queremos conhecer a natureza da norma fundamental, devemos sobretudo ter em mente que ela se refere imediatamente a uma Constituição determinada, efetivamente estabelecida, produzida através do costume ou da elaboração de um estatuto, eficaz em termos globais; e mediatamente se refere à ordem coercitiva criada de acordo com essa Constituição, também eficaz em termos globais, enquanto fundamenta a validade da mesma Constituição e a ordem coercitiva de acordo com ela criada. A norma fundamental não é, portanto, o produto de uma descoberta livre. A sua pressuposição não se opera arbitrariamente, no sentido de que temos a possibilidade de escolha entre diferentes normas fundamentais quando interpretamos o sentido subjetivo de um ato constituinte e dos atos postos de acordo com a Constituição por ele criada como seu sentido objetivo, quer dizer: como normas jurídicas objetivamente válidas. Somente quando pressuponhamos esta norma fundamental referida a uma Constituição inteiramente determinada, quer dizer, somente quando pressuponhamos que nos devemos conduzir de acordo com esta Constituição concretamente determinada, é que podemos interpretar o sentido subjetivo do ato constituinte e dos atos constitucionalmente postos como sendo o seu sentido objetivo, quer dizer, como normas jurídicas objetivamente válidas, e as relações constituídas através destas normas como relações jurídicas.

52

Assim, deve-se pressupor em determinado momento a validade da norma

fundamental que estivesse atribuindo validade à constituição histórica não mais

em disputa. E a consideração de não estar mais em disputa se vincula ao

pertencimento a uma ordem jurídica globalmente eficaz, o que ocorre quando

preenchidos dois requisitos: a comprovação de que as normas estão servindo de

50

SGARBI, Hans Kelsen. Ensaios…, op. cit. , p. 13. 51

Cf. KELSEN, Hans. Problemi fondamentali della dottrina del diritto pubblico. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1997, p. VI. 52

KELSEN, Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 224-228.

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25

parâmetro de obediência e; nos casos de não estarem sendo obedecidas, se é

possível se observar que os funcionários as estão aplicando.

No primeiro teste, a questão é respondida quando se informa se a norma N

está servindo de referência para as condutas. O segundo teste encontra

satisfação se responde que os funcionários estão punindo aqueles que não

obedeceram à norma N. Se a resposta for positiva, o ordenamento jurídico é

eficaz neste caso particular. 53

Kelsen dedicou o último capítulo de sua Teoria Pura para interpretação do

direito, entendendo a interpretação como a operação mental que acompanha a

aplicação do direito.

Quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita de fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas. A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. Na hipótese em que geralmente se pensa quando se fala de interpretação, na hipótese da interpretação da lei, deve responder-se à questão de saber qual o conteúdo que se há de dar à norma individual de uma sentença judicial ou de uma resolução administrativa, norma essa a deduzir da norma geral da lei na sua aplicação a um caso concreto. Mas há também uma interpretação da Constituição, na medida em que de igual modo se trate de aplicar esta - no processo legislativo, ao editar decretos ou outros atos constitucionalmente imediatos - a um escalão inferior; e uma interpretação dos tratados internacionais ou das normas do Direito internacional geral consuetudinário, quando estas e aqueles têm de ser aplicados, num caso concreto, por um governo ou por um tribunal ou órgão administrativo, internacional ou nacional. E há igualmente uma interpretação de normas individuais, de sentenças judiciais, de ordens administrativas, de negócios jurídicos, etc., em suma, de todas as normas jurídicas, na medida em que hajam de ser aplicadas”.

54

Kelsen aponta então para o fato de todo ato jurídico de aplicação do direito

ser um ato de criação jurídica, sendo em parte determinado pelo direito, em

parte, indeterminado. A indeterminação pode ser intencional, quando se fixa um

limite máximo e mínimo para uma multa, por exemplo; ou não intencional, já que

o sentido verbal de uma norma não é inequívoco.55

Assim, em todos os casos de indeterminação, seja ela intencional ou não,

há sempre um leque de possibilidades de aplicação jurídica. O direito a aplicar

formaria assim uma moldura dentro da qual estariam inseridas as possibilidades

de aplicação.

O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito

53

SGARBI, Hans Kelsen. Ensaios.. op. cit. p.20 54

KELSEN,Teoria Pura do Direito, op. cit. p. 245 55

Ibid, p 246.

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26

todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível. (...)

Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito.

56

Dessa forma Kelsen refuta a visão da teoria tradicional segundo a qual a

interpretação poderia produzir uma única solução correta, ajustada. O aplicador

escolhe uma dentre as diversas soluções possíveis dentro da moldura.

A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a “justeza” (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo.

57

O outro grande nome da doutrina juspositivista do século XX, ao lado de

Kelsen, é Herbert Hart (1907-1992). Sua principal obra, The Concept of the Law

(O Conceito de Direito), foi publicada no ano de 1961, fazendo uma revisão das

teses de Austin. Hart considerava insuficientes conceitos chaves da obra de

Austin como a definição de direito tida por “ordens baseadas em ameaças”,

assim como o “hábito de obediência ao soberano”.

Em um contraste com a idéia kelseniana de “moldura da norma”, vemos

que ambos afirmam a discricionariedade do aplicador, embora Kelsen tenha se

preocupado com o leque de opções que o direito pode produzir para um

determinado caso, e a análise hartiana se centra na vagueza da linguagem, fruto

da textura aberta da norma.

A partir do debate gerado por O Conceito de Direito com as idéias de

Ronald Dworkin, a teoria do direito passa por profundas transformações, levando

a edição de uma segunda edição da obra de Hart em 1994 que incorpora um

56

Ibid, p.247. 57

Ibid, p.248.

Page 27: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

27

pós-escrito trazendo substanciais inovações e esclarecimentos, como se verá

adiante58.

Pode-se notar até aqui como evoluiu a tradição positivista. Inicialmente

focada na refutação de teses jusnaturalistas – Bentham – incorpora

preocupações metodológicas de delimitação de seu objeto, distinguindo-o da

moral – Austin – para então se dedicar às suas formas de elaboração e

aplicação – Kelsen. Veremos agora a contribuição que Hart deu a tradição e que

passou a figurar como um marco nas discussões contemporâneas sobre

positivismo jurídico.

2.2

O refinamento do positivismo jurídico de Herbert Hart

O objetivo de Hart em O Conceito de Direito é expresso desde suas

primeiras páginas: aprofundar a compreensão do direito, da coerção e da moral

como fenômenos sociais diferentes, mas relacionados59. Para isso, apresenta

inicialmente as perplexidades com as quais a teoria do direito tem se deparado

na definição de seu objeto e quais seriam suas questões recorrentes. Estas

seriam três: a distinção entre direito e ordens baseadas em ameaças, a

diferenciação entre obrigação jurídica e obrigação moral, e qual seria o papel

das regras no direito.

Hart reconhece a dificuldade de se obter uma definição satisfatória para

estas inquietudes, mas sustenta ser possível isolar e caracterizar determinados

elementos que seriam comuns a estas respostas60. Assim, pretende traçar um

“mapa” da teoria jurídica, partindo dos erros da que denomina “teoria imperativa

simples”, que tem como Austin como seu principal representante, para então

analisar sua principal rival, a teoria de uma conexão necessária entre o direito e

a moral.

Desta forma, Hart não pretende dar uma definição de direito, mas “fazer

avançar a teoria jurídica, facultando uma análise melhorada da estrutura

distintiva de um sistema jurídico interno e fornecendo uma melhor compreensão

58

Antes mesmo da publicação da edição de 1994, Hart já reconhecia ser um autor um tanto “descuidado” que havia produzido em seus escritos diversas ambigüidades e imprecisões. Cf. PÁRAMO, Juan Ramon. “Entrevista a H. L. Hart”. Doxa, n. 5, 1998, p. 343. 59

HART, Herbert. O conceito de direito. [1961] Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 01 60

Ibid, p.21

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28

das semelhanças e diferenças entre o direito, a coerção e a moral, enquanto

tipos de fenômenos sociais”61

Hart dedica então os três capítulos seguintes a analisar a teoria

imperativa simples, elegendo Austin e sua obra Province of Jurisprudence

Determined como principal alvo, embora reconheça que em certos pontos, para

intensificar a crítica, desenvolve alguns de seus argumentos na linha de teóricos

posteriores, notadamente Hans Kelsen.62 Tal teoria “simples” concebe o direito

como ordens coercivas do soberano e Hart vê nela quatro pontos principais de

falha.63

Primeiramente, mesmo leis penais - as que mais se assemelham a ordens

baseadas em ameaças - com estas não se confundem, já que leis penais

também se aplicam àqueles que as criam, e não apenas aos demais. Em

segundo lugar, existem outros tipos de direito, como os que conferem poderes

para criar e alterar direitos, que não podem ser concebidos como ordens

baseadas em ameaças. Além disso, algumas regras jurídicas se diferenciam de

ordens desde sua origem, por não possuírem nenhuma prescrição explícita; e,

finalmente, a descrição do direito com base num soberano habitualmente

obedecido e isento de limitações não é capaz de explicar a continuidade da

produção legislativa característica do Estado Moderno.64

Algumas soluções apresentadas pela teoria imperativa simples para

superar os referidos problemas também não se mostraram satisfatórias. A

primeira delas tenta resolver a incompatibilidade entre regras que conferem

poderes com a noção de ordens coercivas. Ou bem se alarga o conceito de

sanção para nele incluir a nulidade de um negócio jurídico que não observasse

tais regras, ou bem se restringe o significado de “lei” para excluir de seu âmbito

este tipo de regra, sendo as regras que conferem poderes apenas fragmentos

incompletos de ordens coercivas, e não genuínas regras jurídicas.65 Hart

considera que tal tentativa de reduzir a variedade de regras a uma única forma –

ordens baseadas em sanções – paga o elevado preço de distorcer as diversas

funções sociais que os distintos tipos de regra jurídica cumprem.66

61

Ibid, p.22 62

Ibid, p. 23 63

Ibid, p.27 et seq 64

Ibid, p.89. 65

Ibid, p.43. 66

Ibid, p.46.

Page 29: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

29

Com relação ao conceito de soberano, colocá-lo como elemento central da

idéia de direito traz problemas de identificação e continuidade da produção

legislativa. Mesmo considerando que o soberano equivalha ao legislador

moderno, o mero hábito de obediência não dá nenhum direito de sucessão a um

novo legislador, e não se pode presumir que as ordens de um novo legislador

serão obedecidas.67

Por fim, embora existam semelhanças entre regras e hábitos, como a idéia

de um comportamento geral repetido, um conceito não se reduz ao outro já que

a regra não é uma mera convergência de comportamento, mas exige uma

atitude crítica reflexiva, um sentimento assumido de obrigação.68

Hart conclui, portanto, que a exposição da teoria imperativa simples é o

“relato de uma derrota e há obviamente a necessidade de um novo começo”69. E

completa:

A causa de raiz dessa derrota reside no fato de que os elementos a partir dos quais essa teoria foi construída, nomeadamente as idéias de ordens, obediência, hábitos e ameaças, não incluem e não podem originar, pela sua combinação, a idéia de uma regra, sem a qual não podemos esperar elucidar mesmo as formas mais elementares de direito.

70

O novo começo proposto por Hart parte da introdução de um novo tipo de

regra. Um sistema jurídico complexo é composto por normas de conduta,

denominadas primárias, e normas atributivas de poderes ou secundárias.

Por força das regras de um tipo, que bem pode ser considerado o tipo básico ou primário, dos seres humanos é exigido que façam ou se abstenham de fazer certas ações, quer queiram ou não. As regras do outro tipo são em certo sentido parasitas ou secundárias em relação às primeiras: porque asseguram que os seres humanos possam criar, ao fazer ou dizer certas coisas, novas regras do tipo primário, extinguir ou modificar as regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar sua aplicação. As regras do primeiro tipo impõem deveres, as regras do segundo tipo atribuem poderes, públicos ou privados. As regras do primeiro tipo dizem respeito a ações que envolvem movimento ou mudanças físicos; as regras do segundo tipo tornam possíveis atos que conduzem não só a movimento ou mudanças físicos, mas à criação ou alteração de deveres ou obrigações

71

A noção de sistema jurídico como união de regras primárias e

secundárias está vinculada a outros dois elementos na teoria de Hart: a noção

de obrigação jurídica e os aspectos internos e externos ao direito. Em relação à

67

Ibid, p.64. 68

Ibid, p.66. 69

Ibid, p.90 70

Idem. 71

Ibid, p.91.

Page 30: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

30

noção de obrigação jurídica, o autor traça uma linha distintiva entre alguém “ser

obrigado a fazer algo” e alguém “ter a obrigação de fazer algo”72.

A primeira afirmação está ligada às crenças e motivos que guiam a

conduta do sujeito. Assim, quando alguém é obrigado a entregar seu dinheiro a

um assaltante, o faz porque crê que algum mal aconteceria a ele caso não o

fizesse. Mas não podemos dizer que a vítima tinha a obrigação de entregar o

dinheiro. Ter a obrigação de fazer algo independe das crenças e motivos do

destinatário, mas traz consigo implícita a existência de uma regra. Assim, o fato

da pessoa ter a obrigação de pagar tributos independe de suas crenças, mas da

existência de um regra que assim determina.

Diretamente vinculada a esta distinção está outra, que diferencia pontos de

vista interno e externo. O ponto de vista externo é aquele do observador, que

pode simplesmente descrever condutas faticamente comprováveis. O ponto de

vista interno se vincula ao sentimento assumido de obrigação. Este seria o ponto

de vista dos que “não se limitam a anotar e predizer o comportamento conforme

as regras, mas que usam as regras como padrões de apreciação do

comportamento próprio e dos outros”.73 Assim, o observador pode, sem precisar

aceitar as regras, afirmar que determinado grupo as aceita e assim referir do

exterior ao modo pelo qual eles são afetados por elas, de um ponto de vista

interno.74

Portanto, a constatação empírica de convergências fáticas é tida como o

aspecto externo ao direito, já a relação crítica e a adesão dos participantes

representariam seu caráter interno. Assim, por aspecto interno, não compreende

uma simples questão de sentimentos, por oposição ao comportamento físico

observável externamente, mas uma atitude crítica reflexiva em relação a certos

tipos de comportamento enquanto padrões comuns.75

Uma vez superadas as críticas ao modelo de Austin e caracterizado como

elemento central do direito a combinação de normas primárias e secundárias,

Hart introduz a sua teoria elementos de fundamento do sistema jurídico, cuja

chave de leitura está na regra de reconhecimento.

A regra de reconhecimento é um tipo especial de regra secundária que é

aceita e utilizada para identificação de regras primárias de obrigação. Tal regra

72

Ibid, p. 92 et seq 73

Ibid, p. 108. Grifo do original. 74

Ibid, p. 99 75

Ibid.

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31

raramente é formulada de forma expressa, enunciada. “Sua existência

manifesta-se no modo como as regras concretas são identificadas, tanto pelos

tribunais ou outros funcionários, como pelos particulares ou seus consultores.”76

É portanto uma regra última, que fornece os critérios pelos quais a validade das

demais regras do sistema é avaliada.

Este conceito não se confunde com o de “norma fundamental” cunhado por

Kelsen77. A regra de reconhecimento é um fato, enquanto a norma fundamental

constitui uma pressuposição lógica necessária, já que sua validade é suposta

mas não demonstrada78. Desta forma, a regra de reconhecimento não pode ser

considerada nem suposta válida ou inválida; ela é aceita. A noção de validade é

utilizada para regras que se colocam dentro do sistema que satisfazem ou não

os critérios estabelecidos pela regra de reconhecimento. Mas não se pode

questionar a validade da própria regra que faculta os critérios de validade. Ela é

simplesmente aceita e praticada como tal.

(...) a regra de reconhecimento é diferente de outras regras do sistema. A asserção de que existe só pode ser uma afirmação externa de fato. Porque enquanto uma regra subordinada de um sistema pode ser válida e, nesse sentido „existir‟, mesmo se for geralmente ignorada, a regra de reconhecimento apenas existe como uma prática complexa, mas normalmente concordante, dos tribunais, dos funcionários e dos particulares, ao identificarem o direito por referencia a certos critérios. A sua existência é uma questão de fato.

79

Hart assim conclui que a existência de um sistema é uma afirmação de

duas faces, sendo uma delas a obediência dos cidadãos comuns e a outra a

aceitação pelos funcionários como padrões críticos comuns. Tal dualidade é o

reflexo da união de regras primárias e secundárias, num sistema jurídico em que

a aceitação das regras como padrões comuns para o grupo pode se desligar da

aquiescência passiva dos indivíduos em relação às regras.80

Outra contribuição hartiana ao direito foi, com base nas lições de

Wittgenstein, identificar uma “textura aberta” da norma no âmbito de sua

interpretação. Não há uma formulação de uma teoria completa da interpretação,

mas o fornecimento de elementos essenciais para compreensão do problema da

linguagem no direito. Há, no entender de Hart, tanto no direito como em todos os

campos da experiência, um limite à natureza da linguagem. Há casos simples,

76

Ibid, p.113 77

Cf. SGARBI, Clássicos de Teoria do Direito, op. cit. p. 135 et seq. 78

KELSEN, Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 141. 79

HART, O Conceito de Direito, op. cit. p. 120 80

Hart alerta para possibilidade de patologias num sistema jurídico, situação na qual já não existe obediência geral às regras que são válidas segundo critérios usados pelos tribunais Cf. HART, O Conceito de Direito, op. cit., p. 129 et seq

Page 32: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

32

que ocorrem em contextos semelhantes, aos quais as expressões gerais são

claramente aplicáveis, mas há outros casos em que esta clareza inexiste.81

Assim, a textura aberta do direito significa que há, na realidade,

determinadas áreas de condutas em que certos elementos devem ser deixados

para serem resolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais

determinam o equilíbrio, à luz do caso concreto, entre interesses conflitantes.82

Distingue-se assim, uma “zona clara” de aplicação do direito de uma “zona de

penumbra”. Os casos da zona de penumbra são aqueles em que o texto legal

oferece apenas alguma diretriz, mas de modo incerto, exigindo uma

discricionariedade do aplicador, fruto da vagueza da linguagem. 83 A incerteza na

linha de fronteira é o preço que deve ser pago pelo uso de termos gerais.84

Neste cenário, haveria dois pontos extremos. Um deles seria o ceticismo

sobre regras, segundo o qual as regras seriam meros mitos que camuflam o fato

de consistir o direito apenas naquilo que os tribunais predicam; noutro extremo

estaria o formalismo, que busca disfarçar a necessidade de escolha na aplicação

da regra uma vez fixados os termos gerais.85 Para Hart, ambos são exageros

que se corrigem e a verdade está no meio, numa posição intermediária na qual

as regras cumprem um papel embora em diversos casos deixem uma zona de

penumbra para discricionariedade do aplicador, em função de sua textura

aberta.86

Uma vez derrotada a teoria imperativa simples, reconstruída a sua teoria

do direito a partir da união de regras primárias e secundárias, regra de

reconhecimento e textura aberta, Hart dedica dois capítulos para analisar aquela

que ele considerou como principal rival da primeira teoria, a teoria que considera

necessária uma conexão entre direito e moral.

81

Ibid, p. 139. 82

Ibid, p. 148. 83

A vinculação de discricionariedade e zona de penumbra aparece com certa nitidez na edição inicial de O Conceito de Direito (1961), mas é apresentada em termos mais flexíveis em outros escritos como em “Positivism and the separation of Law and Morals”. Nesse sentido, veja-se WALUCHOW, [1994], p.247 e seg. Voltaremos ao ponto no capítulo seguinte. 84

O exemplo dado por Hart é a célebre analogia da proibição de veículos no parque, na qual se tem clareza que se inclui um automóvel no âmbito da proibição, mas restam dúvidas se um patinete ou uma bicicleta estariam ou não incluídos no conceito de „veículo‟. Cf. HART, O Conceito de Direito, op. cit., p. 139 85

Cf. HART, Herbert. “American Jurisprudence through English Eyes: The Nightmare and the Noble Dream”. In Essays in jurisprudence and philosophy. Oxford University Press, 1983 , p. 123-

144. 86

Haveria, no entanto, certa circularidade no pensamento de Hart, uma vez que a regra de reconhecimento depende da prática dos tribunais, que são estabelecidos de acordo com regras secundárias que conferem poderes. Só que estas regras são identificadas a partir da regra de reconhecimento. Assim temos um quadro no qual a regra de reconhecimento depende de regras secundárias que por sua vez dependem da regra de reconhecimento. Nesse sentido cf. SGARBI, Clássicos de Teoria do Direito, op.cit. p. 134.

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33

Hart esclarece inicialmente que há uma grande confusão de termos ao se

referir a uma “conexão necessária” entre direito e moral. Para Hart “há muitas

interpretações possíveis dos termos-chave „necessário‟ e „moral‟ e estas nem

sempre têm sido distinguidas e consideradas separadamente”.87 Uma avaliação

completa de tais termos levaria a análise a questões profundas de filosofia

moral, mas a pretensão de Hart é fazer algo menos ambicioso, mas que faculte

ao leitor elementos suficientes para formar sua opinião acerca de tais temas.

Para isso, propõe uma analise da idéia de justiça, bem como das características

distintivas e da relação entre regras jurídicas e morais.

Hart apresenta as noções de “justo” e “injusto” como formas específicas de

crítica moral, para, em seguida, indicar as semelhanças e distinções entre direito

e moral. Ambos se assemelham na medida em que são vinculantes, independem

do consentimento individual e são sustentados por pressão social.88 No entanto,

regras morais necessitam de importância para se manterem, o que não é

necessário para regras jurídicas; aquelas não podem ser deliberadamente

alteradas, como estas podem. As violações morais dependem da culpa do

agente, enquanto que se concebem violações jurídicas independente de culpa; e

por último, a forma da pressão moral normalmente é dada pelo apelo à

consciência do individuo, sustentados pela culpa e pelo remorso, enquanto o

direito se baseia muitas vezes em ameaças.89

Feitas as distinções, o autor busca então determinar a forma como ambos

se articulam. Conclui haver um conteúdo mínimo de direito natural em todas as

ordens jurídicas. Este seria composto por “princípios de conduta reconhecidos

universalmente, que têm como base as verdades elementares respeitantes aos

seres humanos, ao seu ambiente natural, e às suas finalidades.”90. Desta forma,

uma vez reconhecida a sobrevivência como finalidade, direito e moral devem ter

um conteúdo mínimo, afirmado a partir de cinco truísmos (vulnerabilidade

humana; igualdade aproximada; altruísmo limitado; recursos limitados e

compreensão e força de vontade limitados)91 Por fim, Hart identifica, para além

destas verdades óbvias, algumas coincidências fáticas entre direito e moral, que

87

HART, O Conceito de Direito, op. cit., p. 170. 88

E acrescenta: o cumprimento de uma obrigação jurídica bem como de uma obrigação moral não é digno de elogio, mas é tomado como „coisa corrente‟. Ademais, ambas regem os comportamentos dos indivíduos em situações constantes da vida. Cf. HART, O Conceito de Direito, op. cit., p. 187. 89

Ibid, p. 188 et seq. Apesar de refutar a teoria imperativa simples, Hart não desconsidera o papel

da ameaça na caracterização do direito. 90

Ibid, p. 209. 91

Ibid, p. 210 et seq

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34

embora não sejam verdades, são comumente encontradas nos sistemas

jurídicos.92

2.3

As primeiras críticas de Dworkin e o início do debate

Seis anos após a publicação de O Conceito do Direito, o positivismo

jurídico, agora na sua versão hartiana, volta a ser posto no centro do debate com

a publicação de The Model of Rules I (1967), de Ronald Dworkin. Como destaca

Etcheverry, em função do renome que gozava a proposta hartiana e a agudez

das críticas dworkianas, estas obras representam o início de um debate sobre o

qual correriam rios de tinta e no qual desde então participaram, com maior ou

menor intensidade, uma boa parte dos filósofos do direito.93

Dworkin estrutura sua crítica partindo dos conceitos de direito e obrigação

jurídica para então traçar aquilo que considera o esqueleto do positivismo,

tomando a versão de Hart como referência não só por sua “clareza e elegância”,

mas por considerar que em quase todas as áreas de filosofia do direito “o

pensamento que visa construir deve começar com um exame das concepções

de Hart.”94

Dworkin traça então o esqueleto positivista a partir de três elementos: 1) a

definição do direito como um conjunto de regras, identificáveis não pelo seu

conteúdo, mas por sua origem (pedigree); 2) os casos não cobertos por estas

regras não podem ser resolvidos pelo direito, devendo ser decidido por alguma

autoridade pública com o exercício de discricionariedade; e 3) existe uma

vinculação entre obrigação jurídica e o enquadramento numa regra jurídica

válida, não havendo tal regra, também inexiste uma obrigação jurídica. 95

A este esqueleto, adiciona os elementos incorporados por Hart, como a

união de regras primárias e secundárias, a distinção entre aceitação e validade e

a existência de uma regra de reconhecimento. Conclui então que a versão

hartiana é mais complexa do que a oferecida por Austin e seu teste de validade

92

Estas seriam seis: Poder e autoridade; influência moral sobre o direito; interpretação; crítica do direito; princípios de legalidade e justiça; e validade jurídica e resistência contra o direito. Cf. HART, 2001, p 218 et seq 93

ETCHEVERRY, Positivismo Juridico Incluyente, op. cit., p.8. 94

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo:Martins Fontes, 2007, p.27 95

Ibid, p. 28 et seq.

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35

de regras é mais sofisticado, mas ambos os teóricos se aproximam ao identificar

a existência de limites imprecisos das regras e explicam os casos problemáticos

a partir do exercício de poder discricionário do aplicador.

Apresentado seu desenho do positivismo, Dworkin inicia um “ataque

geral”96 contra ele, e reitera que usará a versão hartiana como alvo. O cerne do

ataque está no fato do direito, na visão de Dworkin, ser composto não apenas

por regras, como sustentam os positivistas, mas por outros padrões como

princípios e políticas.97 E para demonstrar a relevância destes padrões, cita dois

casos julgados por tribunais americanos nos quais os padrões aplicados para

resolver o litígio não foram regras, mas princípios.98

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e nesse caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida e neste caso em nada contribui para a decisão.

99

Além desta distinção, Dworkin apresenta outra dimensão diferenciadora

das regras e princípios: a dimensão de peso. Os princípios possuiriam uma

dimensão de peso que as regras não possuem. Na aplicação de princípios é

importante perguntar-se qual peso ele possui num determinado caso ou o quão

importante ele é. Já em um conflito de regras, uma delas necessariamente não

pode ser válida e deve ser abandonada.100

A partir de então, Dworkin busca relacionar a idéia de princípio com a de

discricionariedade do aplicador, para determinar até que ponto este está

vinculado ou não à aplicação de princípios. Para tanto distingue dois sentidos de

discricionariedade. Num sentido fraco, ter discricionariedade significa usar o

discernimento para aplicar padrões estabelecidos ou o fato de ninguém rever

certa decisão. Num sentido forte, significa que o aplicador não está limitado

96

Ibid, p. 35. 97

Dworkin esclarece que apesar de se referir a “princípios, políticas e outros tipos de padrões”, utilizará freqüentemente apenas a expressão “princípios” para se referir a todo este conjunto, salvo quando necessário estabelecer algum tipo de distinção entre eles. Política seria o padrão que estabelece um fim a ser alcançado, enquanto princípio seria um padrão que deve ser observado por uma exigência de justiça, equidade ou outra dimensão moral. DWORKIN, 2007, p. 36. 98

Os exemplos referidos são os casos Riggs vs. Palmer (115 N.Y. 506, 22) , no qual se negou o

direito de herança ao neto que havia assassinado o avô em nome do princípio de que ninguém pode se valer da sua própria torpeza; e Henningsen vs. Bloomfield Motors Inc (32 N.J. 358, 161), no qual se condenou a fabricante de veículos a indenizar o consumidor das despesas decorrentes de um acidente de carro a despeito de cláusula contratual dispondo em sentido contrário, em nome da peculiaridades do caso e exigência de equidade. 99

DWORKIN, Levando os direitos a sério,op. cit. p. 39. 100

Ibid, p. 43.

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36

pelos padrões estabelecidos, e desta forma, nunca pode ser considerado

desobediente.101

Dworkin retoma então seu ataque ao positivismo, afirmando que o

relevante para o estudo dos princípios é o uso do sentido forte de

discricionariedade pelos positivistas. Para estes, os princípios não imporiam

obrigações aos juízes, apenas regras o fariam.102 Os positivistas devem

apresentar alguma razão para sustentar que os princípios não podem contar

como parte do direito.103 Juristas tenderiam a associar direito a regras

principalmente pela educação jurídica, que consiste há décadas em ensinar o

exame de regras estabelecidas.

Em outro passo, se entendemos os princípios, tal qual propõe Dworkin,

como fazendo parte do direito e sendo vinculantes aos aplicadores, teríamos de

abandonar a tese forte da discricionariedade e a possibilidade da existência de

um teste de pedigree a partir de uma regra suprema para identificação do direito,

como a regra de reconhecimento de Hart.

Dworkin finaliza seu primeiro ataque deixando uma série de perguntas em

aberto relativas à identificação e aplicação do direito que conte não apenas com

regras, mas também com princípios, e sustenta que o enfrentamento destas

questões extrapola o positivismo.

“Essas questões devem ser enfrentadas, mas mesmo as questões prometem mais do que o positivismo tem a oferecer. Nos termos de sua própria tese, o positivismo não chega a enfrentar esses casos difíceis e enigmáticos que nos levam à procura de teorias do direito. Quando lemos esses casos, o positivista nos remete a uma teoria do poder discricionário que não leva a lugar algum e nada nos diz. Sua representação do direito como um sistema de regras tem exercido um domínio tenaz sobre nossa imaginação, talvez graças a sua própria simplicidade. Se nos livrarmos desse modelo de regras, poderemos ser capazes de construir um modelo mais fiel à complexidade e sofisticação de nossas próprias práticas.”

104

Este é o cenário no qual o debate vai se desenrolar. No centro da questão,

o papel dos princípios no direito e a capacidade do positivismo jurídico lidar com

eles de maneira satisfatória. Não tardaram a aparecer réplicas a Model of Rules

I, fazendo com que o debate extrapolasse a questão entre os dois autores e

ocupasse os debates de boa parte dos teóricos do direito.

101

O autor ressalva que essa liberdade do aplicador não equivale à licenciosidade nem exclui a crítica. Ibid, p. 53. Para uma análise do conceito de discricionariedade em Dworkin, cf. SGARBI, Clássicos de Teoria do Direito, op. cit. p. 157-162 102

Ibid, p. 55. 103

Ibid, p. 58. 104

Ibid, p. 71-72

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37

A primeira resposta às críticas de Dworkin vem em 1970 em um artigo do

professor argentino Genaro Carrió, considerada por alguns a primeira defesa do

que seria chamado anos depois de positivismo inclusivo105. Em Princípios

Jurídicos y Positivismo Jurídico106, Carrió defendia a posição de Hart frente aos

ataques de Dworkin.

Nada no conceito de “regras de reconhecimento” obsta, em conseqüência, para que aceitemos o fato de que critérios efetivamente usados pelos juízes para identificar as regras subordinadas do sistema possam incluir referencias ao conteúdo destas. Pode ocorrer que, em uma comunidade dada, os únicos costumes considerados jurídicos ou juridicamente obrigatórios sejam aqueles compatíveis com as exigências da moral. Ou seja, os juízes podem aceitar como válidas somente aquelas leis que, além de terem sido corretamente aprovadas por um corpo com competência para isto, não violem um catálogo escrito de direitos e liberdades individuais.

107

Para ele, a regra de reconhecimento tal qual proposta poderia englobar

critérios morais, sem, no entanto, afirmar que determinada norma é jurídica

porque está de acordo com moral, e sim por estar de acordo com a regra de

reconhecimento que incorpora tal valor. Assim conclui

Seja qual for a força desta objeção, o certo é que a crítica antipositivista que examinamos dirige sua artilharia a um chamado “modelo de regras” que difere substancialmente da teoria que pretende abater. Ainda que se questionem os títulos que esta última tem para ser chamada positivista, não há dúvidas que ela sobrevive indene ao ataque, pela simples razão que este errou o alvo.”

108

Joseph Raz e Rolf Sartorius também buscaram explicar a existência dos

princípios a partir da teoria positivista. Raz (1972) sustenta que os positivistas

nunca negaram a existência de princípios, porém estes não afastam a

discricionariedade judicial como propõe Dworkin, já que ela é inerente à vagueza

da linguagem. Raz tenta aclarar a noção de princípio e concorda com Dworkin

que há uma distinção lógica entre regra e princípio, já que a primeira prescreve

atos relativamente específicos, enquanto o segundo prescreve atos altamente

inespecíficos.109 No entanto, tal fato não esgota a distinção, e por isso Raz

oferece um breve guia das diferentes tarefas que os princípios podem cumprir,

105

ATIENZA e MANERO, “Dejemos atrás el positivismo jurídico” in Isonomía : Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, n. 27, 2007, México : Instituto Tecnológico Autónomo de México, p. 7-28 106

CARRIÓ, Genaro. “Princípios Jurídicos y Positivismo Juridico” in Notas sobre Derecho y Lenguaje. op. cit., p. 197-235 107

CARRIÓ, Genaro. “Dworkin y el positivismo jurídico” in Notas sobre Derecho y Lenguaje, op. cit.

p. 354; 108

Ibid, p. 234 109

RAZ, Joseph. “Legal Principles and the Limits of Law”, in Yale Law Journal, n.81, 1972, p. 838.

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38

como servir de base para interpretação de leis, para sua alteração, ou para

excepcioná-las.110

O ponto principal de divergência entre Raz e Dworkin está na possibilidade

de construção de um teste para distinguir o que é direito daquilo que não o é, ou

seja, estabelecer os limites do direito. Para Raz, os princípios jurídicos não

excluem a discricionariedade judicial, pelo contrário, eles pressupõem sua

existência, além de dirigirem-na e guiarem-na. O que há para além disso é uma

retórica judicial danosa que muitas vezes faz crer que a discricionariedade está

baseada em metas comuns ou valores compartilhados. Raz adverte que tal

retórica não deve ser interpretada literalmente, e que esta pode levar a opressão

de minorias. O direito deve ser entendido para abarcar a realidade, não a

retórica.111

Raz propõe ainda uma revisão no critério de identificação do direito de

Hart. Um sistema jurídico consiste não apenas de uma regra costumeira dos

órgãos de imposição do direito e todas as leis reconhecidas por ela, mas de

todas as regras e princípios consuetudinários dos órgãos de imposição do direito

e todas as leis reconhecidas por elas112. Assim, a identificação do direito não se

basearia em apenas uma regra de reconhecimento, mas num conjunto de regras

e princípios.

Sartorius, por sua vez, se aproxima de Dworkin ao negar a

discricionariedade judicial, afirmando que o papel do juiz, enquanto juiz, é aplicar

o direito. Ele não pode, em nome de princípios democráticos, ser um legislador.

“Um legislador que não tem o direito de apelar a nenhuma outra coisa que não

sejam padrões jurídicos dotados de autoridade e pré-estabelecidos para justificar

suas decisões, simplesmente não é um legislador.”113

Por outro lado, tal qual Raz, discorda de Dworkin quanto a possibilidade de

existência de um critério de identificação do direito. A solução para o que ele

chama de “problema do reconhecimento” (the problem of recognition) está numa

redefinição da regra proposta por Hart. Ela estaria composta por três níveis

distintos

Nós podemos realmente ter três fases aqui, como pode ser visto se considerarmos que o teste final poderá identificar como leis válidas (1) os estatutos promulgados por um determinado órgão legislativo (2), os princípios e políticas

110

Ibid, p. 839 et seq. 111

Ibid, p. 850-851. 112

Ibid, p. 853. 113

SARTORIUS, Rolf. “Social Policy and Judicial Legislation” American Philosophical Quarterly, n.8, 1971, p. 160.

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39

incorporados nas leis válidas de acordo com (1), (3) princípios e políticas "extra-legais" tornados relevantes por leis válidas de acordo com (1) ou (2). Embora o real preenchimento de tal critério seja uma tarefa final complexa e exigente para qualquer sistema jurídico maduro, se é de fato uma possibilidade prática a todos, a única alegação de que precisa ser feita é que é em princípio possível, e que é precisamente essa possibilidade que, em princípio, subjaz à identificação de algo como um padrão jurídico dotado de autoridade.

Embora talvez esteja a uma boa distância da versão de Hart do positivismo, ela está de acordo com o princípio fundamental positivista, tal qual descrito por Dworkin: "O direito de uma comunidade... pode ser identificado e diferenciado por critérios específicos, por testes ligados não com conteúdo... mas com pedigree" É também bastante coerente com penetrantes observações de Dworkin sobre a maneira em que defendem a existência de peso de um princípio jurídico, e sua rejeição da estrita dicotomia entre aceitação e validade que resulta do conceito de Hart de uma regra de reconhecimento aceita situada sobre o topo de uma pirâmide de normas válidas.”

114

Pode-se notar que as primeiras críticas sofridas por Dworkin tentavam

demonstrar a possibilidade do positivismo jurídico dar conta da existência e

importância dos princípios sem abrir mão de um teste de identificação do direito.

Num segundo momento, no final da década de 70, surgem os primeiros

trabalhos preocupados não só com a afirmação da possibilidade de um teste de

identificação do direito, mas com a forma pela qual os valores são incorporados

ao direito.

2.4 As defesas iniciais de um positivismo inclusivo

Em 1977 são apresentadas duas defesas do positivismo hartiano que

buscam dar conta da incorporação de valores no direito: as de Philip Soper e

David Lyons. Ambos buscam desmontar a tese da incompatibilidade

apresentada por Dworkin.

Soper busca demonstrar a possibilidade de se estender o teste de

identificação do direito para identificar os princípios aplicáveis aos casos difíceis,

aqueles nos quais o direito não fornece uma resposta precisa e clara, ou que

Soper prefere chamar de “casos realmente difíceis” (really hard cases): aqueles

nos quais a decisão deve ser alcançada com base em padrões que são, por

114

Ibid

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40

definição, inerentemente não convencionais e controversos.115 Após superar

uma questão entre os tipos de padrões existentes, Soper enfrenta sua questão

central: o que juízes devem fazer nestes casos difíceis e como acomodar o

modelo positivista a estas situações? Uma solução apontada pelo autor é

recorrer a uma prática social para interpretar a norma, expandido a investigação

de uma regra particular e seus objetivos para a observação da totalidade de

cada instituição incluindo ai as normas, práticas relevantes e seus objetivos, a

partir dos padrões utilizados para obter a melhor solução de um caso concreto.

O teste final para identificar assim se determinado padrão tem o apoio

institucional necessário e conta como direito seria bastante complexo, reconhece

Soper, mas “simplicidade nunca foi tida como uma das características do modelo

teórico positivista”116

Por seu turno, Lyons lança crítica semelhante ao trabalho de Dworkin, por

entender que o positivismo jurídico não afasta os padrões morais do dirieto

porque não nega a possibilidade de testes de conteúdo. Para ele, a definição de

positivismo dada por Dworkin estaria equivocada. Positivistas não sustentariam

que a identificação do direito só se daria por testes de pedigree. A tese

positivista é que não é necessário que uma regra satisfaça determinado padrão

moral para ser considerada direito. Todavia, não é porque não seja necessária

uma qualificação de conteúdo, não significa que ela não possa ocorrer.117

A tese de Lyons é que a interpretação de termos morais pelos juízes pode

gerar uma prática que determina aquilo que é ou não direito, e que isso é

plenamente compatível com o modelo proposto por Hart. Ele identifica o erro de

Dworkin da seguinte forma: apesar de identificar corretamente que positivistas

consideram fatos sociais (tal qual a prática dos tribunais e funcionários), os

testes de identificação do direito não se confundem com a prática em si dos

funcionários. A prática dos funcionários pode incluir quaisquer testes, inclusive

os que levem em conta algum conteúdo específico.118

Se Dworkin quer negar o positivismo, ele deve demonstrar que sistemas jurídicos atuais ou possíveis têm características incompatíveis com o desenho apresentado por essa teoria, ou que algum sistema jurídico tenha características que o positivismo negligencia. Apesar de Dworkin tentar demonstrar algumas vezes uma dessas duas coisas, fica claro ao final que sua crítica falha para demonstrar qualquer uma delas. Sua descrição de nosso sistema jurídico não tem

115

SOPER, Philip. “Legal Theory and the Obligation of a Judge. The Hart/Dworkin Dispute” in Michigan Law Review, n. 75, 1977, p. 488. Também publicado em COHEN, Marshal. (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence, New York: Rowman & Allanheld, 1984, p. 3-27. 116

Ibid, p. 510. 117

LYONS, David. “Principles, Positivism and Legal Theory“, Yale Law Journal, n.87, 1977, p. 426. 118

Ibid, p. 425

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41

implicações para sistemas jurídicos em geral, e, como visto, é compatível com a

tese positivista.119

Assim, tanto Lyons como Soper recorrem a uma prática social para

identificação do direito, ainda que tal prática remeta a valores morais. Tal

remissão não seria incompatível com as teses positivistas, embora não possa

ser considerada nunca como necessária a identificação do direito. Nesse ponto

reside a idéia central do positivismo inclusivo, que se desenvolveu ao longo das

décadas de 80 e 90.

119

Idem.

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3. A Consolidação do Positivismo Jurídico Inclusivo

3.1 Os embates dos inclusivos: entre Raz e Dworkin

Como visto no capítulo anterior, alguns artigos publicados na década de

setenta e inicio dos anos oitenta propunham uma superação das críticas

dworkianas ao positivismos jurídico de Hart, assumindo a possibilidade de

incorporação de valores nos critérios de identificação do direito.

Desta forma, o positivismo jurídico inclusivo passa a ser enfrentado por

duas teorias do direito. De um lado, o positivismo jurídico de Raz, e por outro a

teoria do direito de Dworkin. Como destaca Etcheverry, das suas defesas contra

ambas as frentes o positivismo jurídico inclusivo vai desenvolvendo e

amadurecendo sua proposta. “Por esta razão, o grande desafio do positivismo

inclusivo – ao menos o desafio que percebem seus defensores – é demonstrar

que existe um positivismo possível entre a teoria do direito dworkiana e o

positivismo exclusivo de Raz”120. Neste item buscaremos expor as duas

principais frentes de ataque que a versão inclusiva sofre, para em seguida

apresentarmos as duas principais defesas da teoria, que representariam sua

consolidação.

3.2 O positivismo exclusivo de Raz

Joseph Raz coloca como marco distintivo do direito a sua pretensão de

autoridade. Isso o diferenciaria de outras ordens ou ameaças.

Se o Direito se adéqua à tese das fontes, então dizer que há uma obrigação de obedecer ao Direito é o mesmo que dizer que o órgão produtor do Direito tem autoridade (moralmente legitima) para produzir Direito. Desta forma, a tese equivale a dizer que o Direito pretende autoridade. (...) A tese crucial é que o Direito pretende autoridade moral. Esta me parece ser a única opinião consistente com o fato de que o Direito não é (aos olhos das instituições jurídicas) somente força organizada. O Direito não deve se confundir com regras de bandos de gângsters. A diferença está na pretensão de autoridade moral que acompanha

todas as exigências jurídicas. 121

120

ETCHEVERRY, Juan, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op.cit. p.31. 121

MANERO, Juan. “Entrevista con Joseph Raz”. Doxa, n. 9, 1991, p. 343.

Page 43: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

43

O ponto inicial de distinção entre Raz e Hart está na maneira de encarar

as regras. Ao invés de tomá-las como práticas como faz este, Raz as encara

como razões operativas para ação, isto é, uma razão que implique numa atitude

prática. Raz traça então uma distinção entre duas ordens de razões. Razões de

primeira ordem seriam motivos para agir, enquanto razões de segunda ordem

são motivos para atuar ou deixar de atuar por outra razão. Uma razão

excludente é um tipo de razão de segunda ordem, sempre superior a razões de

primeira ordem. Uma razão excludente exclui as razões que estavam por trás de

sua tomada.

Raz chama razões de primeira ordem as razões para realizar ou não realizar uma ação. As razões de segunda ordem seriam razões para atuar ou não atuar por uma razão de primeira ordem: no primeiro caso se trataria de uma „razão de segunda ordem positiva‟: no segundo, de uma „razão de segunda ordem negativa‟ ou razão excludente

122

Uma regra prescreve algo e exige que sejam deixadas outras

considerações relevantes. Por isso, a força do direito não depende de sua

capacidade para facilitar o cumprimento dos objetivos do sujeito, mas de estar

constituído por razões excludentes.123

Quando uma razão de primeira ordem entra em conflito com uma razão excludente de segunda ordem, não se resolve tal conflito pela força das razões que competem, mas por um princípio geral que estabelece que triunfam sempre as razões excludentes. Ou seja, ante uma razão excludente não se faz ponderação de razões, não se julga os méritos do caso. Por isso, a razão excludente pode excluir uma razão que havia sido superada em todo caso, mas pode também excluir uma razão que teria inclinado a ponderação de razões.

Pode-se dizer que não supera outras razões, mas as derrota. 124

Para ilustrar sua concepção de autoridade, Raz se utiliza do “exemplo do

árbitro”. O papel do árbitro é emitir uma decisão dotada de autoridade que é

vinculante para as partes de uma disputa. A decisão deve se basear nas razões

para ação que se aplicam às partes e sobre as quais surgiu a controvérsia. Estas

são as razões dependentes. Seria um erro o árbitro decidir baseando-se em

razões que não aquelas dependentes aplicáveis ao caso. Além disso, a decisão

deve substituir as demais razões de deliberação das partes. Se as partes não

rechaçarem as razões dependentes para ação, frustram a razão de ser da

122

Cf. BAYON, Juan Carlos. “Razones y Reglas”. Doxa, n. 10, 1991, p.25 et seq. 123

ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op.cit., p.34. 124

SEOANE, José e RIVAS, Pedro. El último eslabón del positivismo jurídico. Colmares, Granada, 2005 p. 176

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44

arbitragem. Para Raz, as diretivas jurídicas são como a decisão do árbitro, pois

estão destinadas a desempenhar um papel mediador, excludente. Determinam o

que fazer, excluindo razões dependentes controvertidas para ação. Uma diretiva

jurídica que requer X pretende não apenas ser uma boa razão para fazer X, mas

também excluir todas as outras razões dependentes que poderiam existir para

fazer X ou abster-se de fazê-lo.125

Em relação a delineamento do positivismo jurídico de Raz, este

reconhece que a confusão terminológica em torno do termo “positivismo jurídico”

faz com que a melhor aproximação ao tema seja partir de um determinado grupo

de teses.126 Por trás destas teses, estariam três “áreas de disputa” que estariam

no centro da controvérsia: 1) a identificação do direito, 2) seu valor moral, e 3) o

significado dos seus termos-chave.127 Essas três áreas se vinculariam a três

teses: a tese social, a tese moral e a tese semântica, respectivamente.

A primeira das teses, a tesa social, afirma que o que é direito e o que não

é direito é uma questão de fatos sociais. Todas as variedades de teses sociais

sustentadas pelos positivistas seriam refinamentos e elaborações desta

formulação crua. A tese moral sustenta que o valor moral do direito ou seu

mérito são questões contingentes, dependentes do conteúdo do direito e das

circunstancias da sociedade a qual se aplica. E finalmente, a única tese

semântica que pode ser identificada como comum a maioria das teorias

positivistas é uma negativa, segundo a qual termos como “direitos” e “deveres”

não podem ser usados com o mesmo significado em contextos morais e

jurídicos.128

Das três teses, Raz aponta a tese social como mais importante e nega

que as outras duas sejam decorrências desta.129 Sua versão da tese social é tida

por ele mesmo como “forte”, pois pressupõe que qualquer teoria completa do

direito inclua um teste de identificação do direito; que há um vocabulário

suficientemente rico de termos valorativamente neutros; e não exige uma

inobservância das intenções e valores morais das pessoas, já que neutralidade

valorativa não implica behaviorismo. 130

125

RAZ, Joseph. “Authority, Law and Morality”. The Monist, vol. 68, n.3,1985, p. 298 et seq. Cf.WALUCHOW, Wilfrid. Positivismo Jurídico Incluyente, Madrid: Marcial Pons, p. 140 126

RAZ, Joseph. The Authority of the Law, Oxford: Clarendon Press, 1979 , p. 37. 127

Idem. 128

Idem. 129

Cf. RAZ, Joseph, Practical Reason and Norms, London: Hutchinson, 1975, p. 162. 130

RAZ, The Authority of the Law, op. cit., p. 40.

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45

Dentre as razões para se sustentar a tese social, Raz aponta o bom

reflexo do uso ordinário do termo “direito”; a clara separação entre descrição e

avaliação do direito; o favorecimento da imparcialidade, e, sobretudo, ressalta o

caráter do direito como instituição social.131

Tendo delineado sua tese social forte, Raz passa a atacar então a versão

“fraca” da tese social, que seria a defendida por autores inclusivos como Soper e

Lyons. A diferença entre ambas as versões da tese social estaria em que a forte

insiste, ao contrario da fraca, que a existência e o conteúdo do direito são

totalmente determinados por fontes sociais.132

O autor passa a denominar então de “tese das fontes” (sources thesis) a

sua tese forte. Duas seriam suas vantagens: “refletir e sistematizar diversas

distinções interconectadas incorporadas em nossa concepção de direito” e

“identificar uma função básica do direito de fornecer padrões publicamente

comprováveis que vinculam os membros da sociedade de tal forma que não

possam escusar sua desobediência a estes padrões desafiando sua

justificação”133. Assim, Raz não nega a utilização de argumentos morais pelos

tribunais, mas a tese das fontes permite ter claro quando se está aplicando e

quando se esta criando direito.

Raz recusa desta forma a “tese da incorporação” que amplia a noção de

direito, compreendendo não só aquilo que ordena uma autoridade, mas também

o que deriva ou implica dela.134 Isso incluiria padrões que nunca foram

confirmados pelas instituições criadoras do direito. Raz recusa com isso a

existência ou validade de “normas derivadas”135. Portanto, não se deve confundir

estar “implicado” pelo direito com estar “corroborado” pelo direito, confusão esta

que acomete a tese da incorporação. Outra tese rechaçada por Raz é a da

“coerência”, que agrega às fontes a justificação moralmente mais razoável do

direito. Esta seria a tese de Dworkin, mas que não seria capaz de explicar a

pretensão de autoridade do direito, e conseqüentemente, explicar o próprio

direito.136

De fato, em uma entrevista em 2001, Raz sustentou estar de certa forma

em um ponto intermediário entre Hart e Dworkin no que diz respeito à autoridade

131

Ibid, p. 41-42. 132

Ibid, p. 46. 133

Ibid, p. 52. 134

RIVAS, El último eslabón del positivismo jurídico, op. cit., p. 191 135

Para uma discussão sobre a aceitação das normas derivadas na jurisprudência analítica, cf. RIVAS, El último eslabón del positivismo jurídico, op. cit, p. 191, nota 82. 136

Cf. RIVAS, El último eslabón del positivismo jurídico, op. cit, p. 192.

Page 46: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

46

moral do direito. Isto porque o primeiro nega que o direito pretenda autoridade

moral, e o segundo insiste que o direito não só pretende tal autoridade como que

realmente o possui em todos os regimes, exceto os mais bárbaros.

A este respeito você pode dizer com veracidade que minha opinião é um meio termo entre Hart, que nega que o Direito pretenda autoridade moral, e Dworkin, que insiste em que o direito não apenas pretende tal autoridade, como que realmente a possui em todos os regimes exceto os mais extremamente bárbaros. Eu julgo isto impossível de aceitar. Situo-me junto aqueles que trataram de mostrar que os argumentos tradicionais a favor da autoridade do direito não lograram fundamentar tal conclusão. Mas a teoria de Dworkin não pode se sustentar sem se comprometer com a

moralidade do direito. 137

Raz reitera também que a posição de Hart não é a da negação de que se

possa identificar o direito recorrendo a algum critério moral. A regra de

reconhecimento é que pode ser identificada sem referência a tais critérios.

Todavia, Raz vê razões para ir mais além da tese de Hart, reafirmando assim

sua “tese das fontes”.138

A argumentação se dá em três níveis. Primeiramente, a cultura jurídica

do common law reconheceria a distinção entre aplicar o direito existente e

desenvolvê-lo para além do direito atual. E tal distinção estaria ligada a usar

considerações morais para identificar o direito e usar considerações morais para

criá-lo. Mas isto não é suficiente.

Um segundo nível de argumentação é traçado a partir do exemplo da

criação pelo parlamento de um imposto sobre a renda. Para que necessitamos

de uma lei, ao invés de deixarmos cada um contribua com os recursos que

moralmente deva aportar? Porque concluímos que a autoridade do parlamento

para determinar um imposto sobre a renda se apóia, no terreno da moral, na

idéia de que a proporção é mais bem determinada por uma autoridade central do

que individualmente por cada contribuinte. Isso significa que a identificação do

conteúdo do direito deve estar livre de considerações morais, que foram feitas

previamente pelo parlamento para definir seu conteúdo. A idéia de autoridade do

parlamento implica que a sua decisão sobre os valores envolvidos deve

prevalecer sobre o juízo individual da justiça de cada caso.

Nestes termos, a determinação do conteúdo do direito deve ser uma

questão de fato, ou seja, aquilo que decidiu o parlamento. Qualquer outra forma

de determinação, sobretudo a que invoque considerações sobre a proporção

137

MANERO, “Entrevista con Joseph Raz”, op. cit., p. 343 138

Ibid, p. 341 et seq.

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47

justa do tributo, frustra o propósito de confiar o assunto ao parlamento.139 Isto

não implica que os tribunais não possam utilizar argumentos morais para decidir

casos de direito tributário, mas marca a linha divisória entre aplicar o direito

existente e desenvolve-lo para mais além.

O terceiro nível está na concepção de que o direito como um todo, e não

apenas o direito legislado, é “autoritativo”140. Assim, leis, costumes, precedentes

e outras fontes normais do direito o esgotam. Isto deixa clara a distinção entre

aquilo que posso fazer porque é o correto que devo fazer e o que não posso

fazer, porque o direito o proíbe, ainda que por todo resto fosse correto.

O próprio Lyons rebate as críticas de Raz, afirmando que a tese social

forte é pouco plausível e não pode derivar da concepção social do direito.141

Lyons concebe que a separação entre o direito e a moral não pode derivar da

tese social, pois esta é silente no tocante à relação entre os fatos e sua

valoração moral. Lyons desmembra a tese social forte em duas: a afirmação de

que o direito está determinado por fatos sociais e a afirmação de que ele não

está determinado por considerações morais. Para o autor, elas são

independentes. Ademais, aqueles que sustentam que a separação entre direito e

moral deriva da concepção social do direito, o fariam por considerar,

equivocadamente, que, sendo o direito fruto de condutas humanas, e sendo as

condutas humanas moralmente falíveis, tal separação seria uma decorrência

necessária. Lyons rebate essa linha de raciocínio se valendo do exemplo das

máquinas, que também são produto do homem, e não parecem ser moralmente

falíveis. Assim, a simples idéia de que o direito é um fato social, não implica que

seja moralmente falível.

Em relação à segunda parte da tese, que sustenta que o direito não pode

ser determinado por valores morais, em realidade apenas implica que a

moralidade do direito é uma questão em aberto. Além disto, nem sempre que se

aplica uma clausula constitucional com carga valorativa os juízes criam direito

como supõe Raz, eles podem estar aplicando uma interpretação correta do

direito, criando assim direito apenas quando tomarem uma decisão errada.

139

Ibid, p. 342. 140

O registro formal da Língua Portuguesa não encontra tradução para o termo em Inglês

“autoritative”, ou “autoritativo” em Espanhol. Por esta razão, e pela falta de termo equivalente em nosso idioma, empregaremos a palavra “autoritativo”, sempre entre aspas, para designar aquilo que inclui ou supõe autoridade. 141

LYONS, “Moral Aspects of Legal Theory” in COHEN, Marshal. (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence, New York: Rowman & Allanheld, 1984, p. 49-72. O artigo havia sido originalmente publicado em 1982 em Midwest Studies in Philosophy, n. 7.

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48

A discussão sobre a existência de uma resposta correta no direito ainda

geraria acirrados debates na teoria do direito. O que restava claro neste

momento era a afirmação de uma corrente doutrinaria que negava os intentos

dos inclusivos de conciliar as teses positivistas com a possibilidade de

identificação do direito a partir de critérios morais. No extremo oposto, a corrente

inclusiva se via enfrentada também por novas críticas de Dworkin, desta vez

dirigidas a esta versão de “positivismo jurídico menos positivo”.142

3.3 Os novos ataques de Dworkin

Ao final dos anos setenta e ao longo dos anos oitenta, novos trabalhos

foram publicados sobre o tema e a corrente do positivismo inclusivo floresceu

consideravelmente.

Dentre estes trabalhos, a coletânea sobre Dworkin, publicada em 1983

sob coordenação de Marshal Cohen, tem elevado destaque, por reunir trabalhos

que apresentam uma continuação das primeiras defesas da proposta inclusiva e,

ao final, uma réplica de Dworkin a todas as críticas.143 Dos treze trabalhos

reunidos, três tratam especificamente do positivismo inclusivo: o de Soper144, já

analisado no capítulo anterior, juntamente com artigos de Lyons e Coleman, aos

quais dedicaremos uma breve análise. Em seguida, analisaremos as novas

críticas apresentadas por Dworkin em O Império do Direito.

Em seu novo artigo145, além de rebater, como visto, as críticas de Raz,

Lyons apresenta aquela que seria a nota distintiva do positivismo jurídico: a “tese

da separação entre direito e moral” Como o sentido desta tese não é tão claro

quanto parece, Lyons a desmembra a fim de determinar melhor seu alcance:

uma tese mínima da separação, sustentando que o direito é moralmente falível;

e uma tese do “conteúdo moral explícito”, segundo a qual o direito só possui

condições morais que estejam expressamente estabelecidas em lei.

142

ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op.cit., p. 52. 143

COHEN, Marshal (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence. op. cit. 144

SOPER, Philip “Legal Theory and the Obligation of a Judge: the Hart/Dworkin Dispute” in COHEN, M. Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence. op. cit. 145

LYONS, David. “Moral Aspects of Legal Theory”, op. cit.

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49

Lyons considera a tese da separação entre direito e moral um axioma, e

não um corolário do pensamento positivista.146Não obstante, a tese mínima não

seria uma exclusividade dos positivistas. A tese sustentada por boa parte dos

positivistas será a do conteúdo explícito.

“Alguém pode crer que a linguagem moral deveria ser excluída das leis para que elas tenham maior clareza e precisão. Mas esta linha de raciocínio é irrelevante para a presente questão. Termos morais são encontrados na linguagem legislativa e judicial, e a questão aqui é se sua aplicação envolve interpretar ou criar direito”

147

Lyons não chega a oferecer uma resposta definitiva, mas conclui que as

teorias do direito analítica e a normativa estão inseparavelmente conectadas, e a

chave da questão estaria na justificação das decisões judiciais, o que envolveria

necessariamente valorações morais.148

Em outro passo, Jules Coleman, partindo de algumas observações de

Dworkin sobre a natureza controversa de certos padrões jurídicos, nos apresenta

sua tese incorporacionista, que se desdobraria em uma tese positiva e negativa.

A tese negativa sustenta que os sistemas jurídicos não precisam reconhecer

como direito padrões morais controvertidos, embora possam fazê-lo.

“A tese da separabilidade vincula o positivismo à tese de que existe pelo menos um sistema jurídico concebível no qual a regra de reconhecimento não especifica ser um princípio de moralidade dentre as reais condições de nenhuma proposição jurídica. O positivismo é verdadeiro, então, apenas no caso em que se possa imaginar um sistema jurídico no qual ser um princípio de moralidade não seja condição de legalidade de nenhuma norma: ou seja, apenas no caso da idéia de um sistema jurídico no qual a verdade moral não figure como condição de validade jurídica não seja contraditória.”

149

Esta idéia é tida como uma concepção negativa de positivismo pois

afirma apenas aquilo que o direito necessariamente não é, não podendo assim

ser derrubada por contra exemplos, que no máximo demonstrarão que em

algumas circunstancias a moralidade pode figurar como critério de identificação

do direito. 150 Mas por afirmar tão pouco, seria uma tese trivial.

A tese positiva do positivismo de Coleman, que pretende afirmar aquilo

que de fato o positivismo jurídico é, pode ter duas feições: a dos “fatos duros”

146

Ibid, p. 58. 147

Ibid, p. 66. 148

Ibid, p. 68. 149

COLEMAN, “Negative and Positive Positivism” in COHEN, Marshal. (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence, New York: Rowman & Allanheld, 1984, p. 31. O artigo fora originalmente publicado em The Journal of Legal Studies, 11, n.1, 1982, p 139-164. 150

Idem

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50

(hard facts) ou da convenção social (social convention). Ambas dialogam

diretamente com as críticas de Dworkin à regra de reconhecimento hartiana. O

positivismo dos fatos duros sustenta que padrões controvertidos não podem

valer como direito. Esta seria a tese que Dworkin teria atribuído corretamente à

Hart, mas erroneamente ao positivismo jurídico como um todo.

A forma de positivismo positivo que Coleman vai sustentar é o

positivismo que encara o direito como uma convenção social. Coleman

apresenta inicialmente uma simples forma de rebater as objeções de Dworkin

em “Modelo de Regras I”: construir uma regra de reconhecimento que inclua

princípios morais e não somente regras.151 No entanto, Dworkin diria que tal

regra de reconhecimento seria inerentemente controvertida, não sendo assim

considerada uma regra social ou convencional.

Coleman busca então apresentar uma tese que desenvolva uma forma de

positivismo que aceite a natureza controvertida de alguns elementos do direito,

mas que ao mesmo tempo negue que isto seja incompatível com a natureza

convencional do direito.152 Para isso, desenha uma distinção entre três versões

de positivismo:

(1) “Positivismo Negativo, a visão de que o sistema jurídico não precisa reconhecer como direito padrões morais controversos; (2) “positivismo positivo, dos fatos duros”, a visão que padrões controversos não podem ser vistos como direito, e, conseqüentemente, rejeita os pontos de Dworkin; (3) “positivismo positivo, da regra social”, que insiste apenas no status convencional da regra de reconhecimento mais aceita os pontos de Dworkin. Já que a inclusão de princípios morais controversos não é uma característica necessária do conceito de direito, os argumentos de Dworkin (...) são inadequados para derrubar a tese fraca do positivismo negativo.

153

Assim, a atuação judicial em casos controversos seria mais bem explicada

a partir da aceitação crítica da prática de resolução de conflitos do que a partir

de princípios morais.154

Dworkin elabora então um conjunto de réplicas às críticas que recebeu e

apresenta novas críticas ao positivismo. As réplicas são apresentadas na obra

coletiva sobre seu pensamento155, as novas críticas, em sua obra publicada em

1986, “O Império do Direito” (Law`s Empire).

151

Ibid, p. 35 152

Ibid, p. 47. 153

Ibid, p. 46 154

Idem 155

Cf. COHEN, Marshal. (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence, op. cit, p. 247-300.

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51

Parte das respostas aos críticos já havia sido publicada em um artigo de

1977, Seven Critics156, especialmente as dirigidas a Soper157. Estas dariam conta

da vinculação do positivismo jurídico a duas importantes afirmações que não

estariam presentes nas afirmações iniciais do positivismo inclusivo: a

necessidade de um critério mais ou menos mecânico de identificação do direito,

retomando assim a idéia de pedigree já apresentada158; e a idéia de que uma

proposição do direito, quando é verdadeira, “consiste em fatos históricos comuns

sobre comportamentos individuais ou sociais, incluindo talvez fatos referentes a

crenças e a atitudes, mas não em fatos metafisicamente suspeitos.”159

Com relação à primeira afirmação, esta se vincula à função do direito, que

seria fornecer um conjunto estabelecido público e confiável de padrões de

conduta. Assim, ficaria clara a distinção das situações nas quais o direito ditaria

uma decisão e situações nas quais o juiz utilizaria seu poder discricionário. Um

positivismo flexível como o proposto por Soper e Lyons enfraqueceria tal

afirmação e o argumento de Dworkin estaria reforçado.

No tocante à segunda afirmação, o “positivismo ao estilo Soper-Lyons” não

conseguiria sustentá-la, pois a verdade das proposições do direito dependeriam

sistematicamente da verdade das proposições de moralidade, o que inviabilizaria

a “separação ontológica prometida entre direito e moral”160

Dworkin faz ainda alusão à distinção de Soper entre teorias descritivas e

conceituais. Para Soper, o positivismo seria uma teoria conceitual, enquanto a

teoria de Dworkin seria descritiva, já que as afirmações positivistas seriam

válidas para qualquer sistema jurídico, enquanto as dworkianas, apenas para um

sistema específico. Para Dworkin, o positivismo defende uma concepção

específica do conceito de direito e ele defende uma concorrente. Ao percorrer

sistemas jurídicos modernos e complexos “para demonstrar que, uma vez que

nesses sistemas a verdade de uma proposição sobre direitos jurídicos pode

consistir em algum fato moral, a concepção positivista de direitos jurídicos deve

ser falsa”161. Portanto, Dworkin conclui que se deve abandonar a concepção

156

DWORKIN, Ronald. “Seven Critics”, Georgia Law Review, 11, n. 5, 1977. Tal artigo foi posteriormente incorporado na forma de apêndice a Taking Rights Seriously. 157

Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, op. cit. p. 530-541. Neste mesmo artigo, Dworkin rebate críticas de outros autores, como Nickel, Mackie e Munzer. Como estas fogem ao escopo do presente trabalho, não serão objeto de análise. 158

Ibid, p. 531. 159

Ibid, p. 533. 160

Ibid, p. 534. 161

Ibid, p. 540.

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52

positivista em prol de uma que torne a prática institucional e a história de cada

jurisdição importantes para a verdade das proposições jurídicas.

Em resposta a Coleman, Dworkin afirma concordar com suas teses em

relação ao positivismo negativo, que seria uma teoria trivial; e do positivismo dos

“fatos duros”, que seria uma tese falsa.162 Já a tese por Coleman defendida, do

“direito como convenção”, estaria bem próxima à proposta por Soper, mas com

um fundamento distinto.

No entanto, tal qual desenhada por Coleman, esta tese também beiraria a

trivialidade. Ao partir da idéia de que toda comunidade deve possuir uma

convenção fundamental, com certo grau de concretude. Se daí se parte para

uma saída universalista, segunda a qual toda comunidade possui uma

convenção com um grau desejado de concretude, isto é falso, como parece

reconhecer o próprio Coleman. No entanto, caso se parta para uma saída

existencialista, sustentando que existem apenas alguns sistemas jurídicos

apresentam convenções deste tipo, voltamos ao positivismo negativo, que como

dito, é trivial.

Com relação às teses de Lyons, Dworkin debate seu ceticismo sobre a

teoria do direito. Para Dworkin, toda teoria do direito estaria baseada numa teoria

política normativa, inclusive a positivista. Lyons aceita que isso possa se dar com

alguns positivistas, como Bentham ou Raz, mas outros entendem que o direito é

fruto apenas de fatos sociais, não porque isso seja desejável, mas porque é

assim que as coisas são.163 Para fundamentar sua idéia, Lyons recorre a Hart,

citando-o. Para Dworkin, no entanto, a teoria de Hart não estaria baseada

apenas em análises lingüísticas, como faz parecer no inicio do seu livro. Ao

apresentar as regras secundárias como capazes de resolver defeitos de um

sistema composto apenas por regras primárias, Hart teria feito uma opção

política, e não meramente descritiva. Direito é um conceito político não apenas

por ser controverso, mas, sobretudo, pelo modo pelo qual é controvertido, num

contexto profunda e densamente político.164

Os novos ataques ao positivismo apresentados em O Império do Direito

parecem estar centrados em dois argumentos principais: aquele que Dworkin

denominou de “aguilhão semântico”, e críticas em torno da idéia de

convencionalismo. Examinemos cada um deles.

162

DWORKIN, Ronald. “A Reply”, in COHEN, Marshal. (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence. op.cit., p. 252 163

Ibidp. 254. 164

Ibid, p. 256.

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53

Dworkin tece críticas inicias às teorias semânticas do direito, que seriam

aquelas baseadas em “certos critérios lingüísticos para avaliar as proposições

jurídicas”165, e que pressuporiam que os operadores do direito estejam de acordo

quanto aos seus fundamentos. O positivismo jurídico seria uma teoria semântica

que “sustenta o ponto de vista do direito como simples questão de fato e a

alegação de que o verdadeiro argumento sobre o direito deve ser empírico, não

teórico.”166. Para ele, muitas divergências no direito são teóricas, e não apenas

empíricas, e o aguilhão estaria nessa visão demasiadamente tosca do que seria

a divergência no direito.167 Ao focarem-se apenas em desacordos verbais, os

juristas deixam de observar as disputas genuínas no direito.

Os desacordos genuínos não estariam apenas em uma “zona de

penumbra”, mas, sobretudo, nos casos centrais, já que são atinentes aos

critérios que determinam os significados dos termos.168 Os conceitos não

decorrem apenas de convenções, mas de interpretações, e por essa razão

Dworkin apresenta uma “teoria interpretativa” como solução para a cegueira das

teorias semânticas aos reais desacordos jurídicos. Vê, portanto, as controvérsias

como sendo de caráter interpretativo, já que versariam sobre a melhor forma de

interpretar uma prática social determinada.

Dworkin reitera assim a impossibilidade de se definir o direito a partir de

uma regra de reconhecimento, já que uma característica fundamental do direito é

ser uma prática social de natureza argumentativa. A interpretação desta pratica

deve ser um tipo de interpretação criativa

Interpretar uma pratica social é apenas uma forma ou ocasião de interpretação. As pessoas interpretam em muitos contextos diferentes e, para começar, devemos procurar entender em que esses contextos se diferem. A ocasião mais conhecida de interpretação – tão reconhecida que mal a reconhecemos como tal – é a conversação. Para decidir o que uma outra pessoa disse, interpretamos os sons ou sinais que ela faz. A chamada interpretação científica tem outro contexto: dizemos que um cientista começa por coletar dados, para depois interpretá-los. Outro, ainda, tem a interpretação artística: os críticos interpretam poemas, peças e pinturas a fim de justificar algum ponto de vista acerca de seu significado, tema ou propósito. A forma de interpretação que estamos estudando – a interpretação de uma pratica social – é semelhante à interpretação artística no seguinte sentido: ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas, e não o que as pessoas dizem, como uma interpretação da conversação, ou fatos não criados pelas

pessoas, como no caso da interpretação científica.169

165

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 40. 166

Ibid, p. 45-46. 167

Ibid, p. 56. 168

Para uma classificação de Dworkin quanto aos desacordos jurídicos, cf. O Império do Direito, op. cit. p. 5-10. 169

Ibid, p. 60-61.

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54

A interpretação jurídica proposta por Dworkin é criativa, pois ela busca

“decifrar os propósitos e intenções do autor ao escrever determinado romance

ou consertar uma tradição social específica, do mesmo modo que, na

conversação, pretendemos perceber as intenções de um amigo ao falar como

fala.”170 No entanto, a interpretação criativa não é conversacional, e sim

construtiva, por se preocupar substancialmente com o propósito, e não com a

causa. Através dela deve-se impor um propósito a um objeto ou pratica para

torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou gênero às quais ele possa

pertencer.171

Para aclarar sua teoria da interpretação, Dworkin realiza uma divisão

analítica da mesma em três fases: pré-interpretativa, interpretativa e pós-

interpretativa172. Na etapa pré-interpretativa, são identificados as regras e os

padrões que se consideram fornecer o conteúdo experimental da pratica. Apesar

da denominação, o autor reconhece que algum tipo de interpretação se faz

necessário nessa fase. No segundo estágio, o interprete deve focar numa

justificativa geral para os elementos identificados na etapa anterior, atribuindo-

lhes assim sentido. Na ultima etapa, também denominada de reformadora, na

qual é feito um ajuste da idéia do interprete daquilo que a pratica realmente

requer para melhor servir à justificativa aceita na etapa interpretativa, buscando-

se assim uma aplicação coerente da melhor justificativa prática.

Dworkin ainda adiciona à sua teoria interpretativa a necessidade de

coerência, a ser alcançada pelo intérprete como parte de um processo que deve

ter uma consistência narrativa. Através da metáfora do romance em cadeia,

Dworkin busca explicar sua tese, afirmando que tal qual um romancista de uma

cadeia interpreta os capítulos recebidos para escrever o próximo, o juiz ao

decidir uma demanda deve escolher a melhor leitura da cadeia de precedentes

para dar-lhe continuidade. Trata-se de um aprimoramento da idéia de “teia

inconsútil” apresentada anteriormente em Levando os Direitos a Sério173.

A teoria interpretativa de Dworkin pretende então livrar o direito do

aguilhão que teorias semânticas o colocaram, ajustando o foco do jurista para o

real problema do direito, que não é semântico, mas sim interpretativo. A pratica

social na qual consiste o direito deve ser interpretada segundo a melhor leitura

170

Ibid, p. 62. 171

Ibid, p. 63-64. 172

Ibid, p. 81-84. 173

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério, op. cit. p. 181-183.

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55

possível que possua coerência e consistência narrativa, buscando-se assim o

ideal de integridade ao direito.

Com relação ao convencionalismo, Dworkin começa por apontar as

semelhanças entre as teorias convencionalistas e as semânticas, já que ambas

pretendem dar solução para questões jurídicas recorrendo a decisões do

passado. Ambas também reconhecem que estas decisões nem sempre são

suficientes, e ao surgirem novas questões para serem decididas, os juízes

devem atuar com algum grau de discricionariedade.174 No entanto, haveria uma

importante diferença entre elas: enquanto as teorias semânticas sustentam que

o vocabulário jurídico concretizam o próprio direito, as teorias convencionalistas

são interpretativas, mas assumem posturas ambivalente de qualquer

interpretação.175

O convencionalismo teria assim duas pretensões: uma positiva, segundo a

qual os juízes devem respeitar as convenções jurídicas, salvo em circunstancias

excepcionais; e uma negativa, sustentando que não existe direito além do que

se extrai de decisões políticas do passado segundo técnicas convencionadas.

Não havendo direito pré-existente os juízes devem exercer sua

discricionariedade.

Haveria também duas formas de convencionalismo: uma “estrita”, que

restringe o direito de uma comunidade à extensão explícita de suas convenções

jurídicas, tais quais a lei e o precedente176; e uma “moderada”, que sustenta que

o direito de uma comunidade inclui tudo que estiver contido na extensão implícita

dessas convenções. Esta última versão estaria exercendo uma atração “sobre

uma geração recente de filósofos do direito”, fazendo referências expressas a

Coleman, Soper e Lyons, que adotariam esta perspectiva ao defenderem que o

direito pode depender de juízos morais polêmicos se assim define uma

convenção legal.

No entanto, o convencionalismo moderado fracassaria em ser uma versão

autêntica de convencionalismo. Seria uma versão muito abstrata e

subdesenvolvida de direito como integridade que representaria um tipo espúrio

de convencionalismo, uma vez que, apesar de rejeitar a separação entre direito

e política, não impede o juiz de envolver suas próprias convicções morais na

174

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, op. cit. p. 141-143. 175

Ibid, p. 144. 176

Ibid, p. 152.

Page 56: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

56

decisão de um caso. Assim, o convencionalismo moderado não seria, em

verdade, convencionalismo

Espero que agora esteja evidente que o convencionalismo moderado não é,

em absoluto, uma forma de convencionalismo (...) Trata-se, na verdade, de uma

forma muito abstrata e subdesenvolvida de direito como integridade. Rejeita o

divórcio entre o direito e a política que uma teoria convencionalista, pelos motivos

que descrevi tenta assegurar.. Esse tipo espúrio de convencionalismo não impede

que um juiz convencionalista supostamente moderado envolva suas próprias

convicções morais e políticas em sua decisão. 177

Já o “formalismo estrito” fracassaria por não se ajustar às práticas

judiciais.178 Um juiz que atuasse sob essa forma de convencionalismo deveria

perder interesse na legislação e nos precedentes quando constatasse que o

sentido explícito dos mesmos não dá conta de resolver o caso e criaria um novo

direito. No entanto, não é isso que a prática demonstra, já que os juízes apelam

muitas vezes para o sentido implícito das leis e precedentes para dar solução a

um caso.

Portanto, em síntese, o convencionalismo fracassaria por não ser uma

versão autêntica de convencionalismo, no caso de sua versão moderada, ou por

se ajustar mal à prática judicial (e por não haver razões para que a prática se

ajuste a esta concepção) no caso de sua versão estrita.

Conforme o surgimento de novas réplicas contra os intentos inclusivos de

superar as críticas de Dworkin ao positivismo jurídico hartiano, o Positivismo

Jurídico Inclusivo foi se consolidando como teoria jurídica. Como exposto

anteriormente, duas são as principais teorias que enfrentam a proposta inclusiva:

por um lado, a versão do positivismo jurídico de Raz; e por outro, a visão de

direito como integridade de Dworkin. Do enfretamento contra estes opositores

surge o desenvolvimento e consolidação do positivismo inclusivo.

O ano de 1994 é emblemático para o desenvolvimento desta teoria, pois

nele se publicam as duas principais obras de sua consolidação: o pós-escrito de

Hart ao seu Conceito de Direito de 1961 e a obra Inclusive Legal Positivism de

Wilfrid Waluchow, que reúne a aprimora diversos artigos publicados pelo autor

nos anos anteriores. Faremos uma análise de cada uma delas.

177

Ibid, p. 156. 178

Ao se referir à “práticas judiciais” Dworkin tem em mente as práticas dos países de common law, especialmente Estados Unidos e Reino Unido. Nesse sentido, cf. ETCHEVERRY, Op. Cit., p. 48.

Page 57: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

57

3.4 O soft positivism de Hart

A defesa do positivismo frente às críticas de Dworkin foi levada a cabo até

o final da década de noventa principalmente por autores próximos a Hart, ou por

autores que, não obstante serem opositores deste, discrepam em maior medida

das propostas de Dworkin.

Hart teve durante vários anos o projeto de desenvolver uma resposta

compreensiva às críticas de Dworkin e refinar sua própria teoria para superar as

dificuldades colocadas pelo teórico norte-americano. Com este fim, trabalhou em

um pós-escrito a O Conceito de Direito que ainda não estava concluído quando

de sua morte. Todavia, a seção dedicada a Dworkin se encontrava quase

concluída, sendo editada e publicada no mesmo ano de seu falecimento.179

Nele, Hart elabora três tipos de defesa180: em primeiro lugar oferece razões

para demonstrar que várias das teses que Dworkin lhe atribui não se

depreendem de sua obra, e pelo contrario, estão explicitamente excluídos dela.

Neste ponto, a defesa de Hart consiste, em outras palavras, em afirmar que

Dworkin interpretou erroneamente sua teoria (3.4.1).

Em segundo lugar, Hart argumenta a favor de algumas de suas teses, e

procura demonstrar que estas não sucumbem diante das críticas dworkinianas.

Neste ponto a defesa não está em demonstrar erros de leitura, mas mostrar que,

apesar de interpretar corretamente, as teses positivistas são mais consistentes

do que as propostas de Dworkin (3.4.2).

Por último, Hart aceita algumas “inconsistências” e “vazios” de sua teoria e

sugere adaptações para solucioná-las. Esta última estratégia trata de refinar as

formulações de sua teoria inicial. (3.4.3) 181

O ponto central da defesa de Hart é a reivindicação da possibilidade de

elaborar uma teoria descritiva do direito que, inobstante possuir este caráter, dê

179

RODRIGUEZ, Cesar. La decision judicial. El debate Hart-Dowrkin. Bogota: Siglo de los Hombres, 2008, p. 43. 180

A apresentação do pós escrito de Hart em três grupos de argumentos segue metodologia proposta por ETCHEVERRY (2007) e RODRIGUEZ (2008) 181

Ibid, p. 44

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58

conta da existência de juízos valorativos no direito. Apesar das práticas dos

operadores do direito demonstrarem que se apela a regras para criticar condutas

ou fazer exigências, isto não impede a elaboração de uma teoria descritiva, sem

ser ela mesma crítica ou justificadora. Hart sustenta que a sua teoria é um

“positivismo suave”, já que procura descrever o funcionamento do direito

reconhecendo a existência de valores na regra de reconhecimento, sem com

isso passar a ser uma teoria valorativa no estilo dworkiniano182

3.4.1 Críticas de Hart à teoria dworkiana

Inicialmente, com relação à tese da conexão necessária entre direito e

moral, Hart considera a teoria de Dworkin muito próxima ao jusnaturalismo. As

críticas de Dworkin contra a tese hartiana da discricionariedade dependeriam de

uma teoria moral objetivista. Como esta inexiste, o juiz Hércules, na sua busca

da melhor justificação moral do direito não poderia escapar da

discricionariedade.

De outro lado, Hart também questiona a possibilidade de uma única

resposta certa como elemento superador da discricionariedade. Exemplifica o

problema ao supor que num caso de dois juízes competentes para um

determinado caso, resulta impossível afirmar quem está com a razão.

No tocante à consideração de Dworkin de acordo com a qual os direitos

jurídicos devem ser lidos como direitos morais, Hart considera que tal afirmação

deve ser abandonada ou não passa de uma trivialidade.183 Esclarece Hart

os direitos e deveres jurídicos são o ponto em que o direito, com seus recursos coercivos, respectivamente protege a liberdade individual e a restringe, ou confere aos indivíduos, ou lhes nega, o poder de, eles próprios, recorrerem ao aparelho coercivo do direito. Assim, quer as leis sejam moralmente boas ou más, justas ou injustas, os direitos e os deveres requerem atenção como pontos focais nas atuações do direito, que se revestem de importância fundamental para os seres humanos, e isto independentemente dos méritos morais do direito. Por isso, é falso que as afirmações de direitos e deveres jurídicos só possam fazer sentido no mundo real se houver algum fundamento moral para sustentar a formação de sua existência.

184

182

Ibid, p. 45. 183

HART, Herbert. Essays on Bentham Oxford: Clarendon, 1982, p. 147-149 184

HART, Herbert. “Pós-escrito”, in O Conceito de Direito, op. cit. p. 332

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59

Finalmente, Hart afirma que Dworkin tece uma crítica baseada apenas em

exemplos contra as teses positivistas, e não numa teoria jurídica geral, portanto,

baseia-se em fatos contingentes e não representa um verdadeiro desafio ao

positivismo jurídico.185 Não obstante, a teoria proposta por Dworkin é normativa,

sendo incapaz de responder à pergunta “o que é o direito”, mas tão somente

dando conta de um sistema jurídico específico, calcada numa perspectiva

interna. Hart sustenta a possibilidade de uma teoria descritiva do direito

elaborada a partir de um observador externo

Mas nada há, de fato, no projeto de uma Teoria Geral do Direito (Jurisprudence) descritiva, tal como está exemplificado no meu livro, que impeça um observador externo não participante de descrever os modos por que os participantes encaram o direito, de tal ponto de vista interno. (…) o teorizador jurídico descritivo deve compreender o que é adotar o ponto de vista interno, e, nesse sentido limitado, deve estar apto a pôr-se, ele próprio, no lugar de uma pessoa dentro do sistema, mas isso não é aceitar o direito, ou partilhar, ou sustentar o ponto de vista interno da pessoa de dentro, ou, de qualquer outro modo, renunciar à sua postura descritiva. (…) Uma descrição pode ainda continuar sendo descrição mesmo quando o que é descrito constitui uma avaliação.

186

3.4.2 Aclarações de Hart às críticas de Dworkin

Três são os pontos centrais de esclarecimentos feitos por Hart: a noção de

obrigatoriedade no direito, a natureza da teoria jurídica e discricionariedade da

atividade judicial.

Com relação à obrigatoriedade do direito, Hart vê nela o principal problema

de O Conceito de Direito.187 Isto porque tal conceito era equivocadamente

apresentado como fruto de uma regra social. Assim, todo tipo de obrigação

surgiria de regras sociais. Sua teoria fora chamada de “teoria da prática” porque

encarava as regras sociais de um grupo como uma prática social que abrangeria

tanto modelos de conduta regularmente seguidos pela maior parte dos membros

do grupo, como uma atitude de normativa de aceitação.188 No entanto, tal

explicação se amoldaria bem apenas para regras convencionais de caráter

consuetudinário, mas não para regras emanadas do Poder Legislativo,

necessitando, portanto, de uma revisão.

185

HART, Herbert. “El nuevo desafio del positivismo jurídico”, op. cit. p. 14 et seq. 186

HART, Herbert. “Pós-escrito”, op. cit. p. 303-306. 187

PARAMO, J. “Entrevista a H L A Hart” , Doxa, 5, 1998, p. 343. 188

HART, Herbert. “Pós-escrito”, p. 317.

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60

A nova teoria de Hart sustenta que as normas não precisam ser aceitas

pela maioria de uma comunidade para serem reconhecidas como válidas. A

teoria de Hart permaneceria fiel apenas em relação a regras sociais

convencionais, nas quais se incluem os costumes sociais comuns e certas

regras jurídicas importantes como a regra de reconhecimento, que sendo de

fato, uma forma de regra judicial costumeira, somente existe se for aceita e

executada pelos tribunais. Já as regras legisladas, embora sejam identificáveis

pelos critérios fornecidos pela regra de reconhecimento, podem existir enquanto

regras desde seu surgimento, mesmo antes de verificada qualquer ocasião para

sua prática.189

Com relação à natureza da teoria jurídica, Hart reitera a possibilidade já

exposta de elaborar-se uma teoria geral e descritiva. Cabe ressaltar nesse ponto

que Hart e Dworkin partem assim de premissas metodológicas distintas. Isto faz

com que o debate Hart x Dworkin se pareça em muitos pontos mais com um

“conjunto de conexões perdidas do que de respostas encontradas”.190

Retomaremos o ponto no capítulo seguinte.

Por derradeiro, no tocante à discricionariedade judicial, Hart reafirma a

possibilidade de casos de indeterminação ou incompletude do direito, casos nos

quais o juiz exerceria seu poder discricionário. Dworkin rejeita esta tese por se

tratar de uma concepção enganadora tanto do direito como da atividade judicial.

Não seria o direito incompleto, mas a visão que os positivistas têm deste. O

direito nunca seria incompleto, pois estaria composto além do direito

estabelecido explícito, por princípios jurídicos implícitos, isto é, aqueles

princípios que melhor se ajustam ao direito explícito ou com ele mantenham

coerência, conferindo a melhor justificação moral dele.191

Dworkin considera a concepção de Hart descritivamente falsa, pois a

retórica do processo judicial transmite a idéia de que inexistem casos não

regulados pelo direito. Hart adverte que “é importante distinguir a linguagem

ritual utilizada por juízes e juristas, quando os primeiros decidem os casos nos

tribunais, das suas afirmações mais reflexivas sobre o processo judicial”.192 A

referência recorrente a princípios por parte dos julgadores não elimina a criação

do direito, apenas a retarda em alguns casos, pois ao se deparar com princípios

189

Ibid, p. 318. 190

ETCHEVERRY, El Positivismo Jurídico Incluyente, op. cit. p. 88 191

HART, Herbert. “Pós-escrito” op. cit., p. 335.. 192

Ibid, p. 337.

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61

concorrentes, o juiz terá que agir como um legislador, confiando no seu senso de

escolha, e não se baseando em algo previamente estabelecido.

A concepção do poder discricionário não poderia também ser tida como

antidemocrática, tal qual Dworkin sustentara. Apesar de não serem em regra

eleitos, reconhecer o poder dos juízes de criar direito seria um preço necessário

a se pagar para evitar inconvenientes ainda maiores de soluções alternativas,

como a remessa da causa ao órgão legislativo.193 Trata-se de uma característica

das modernas democracias. Tampouco seria injusta tal concepção, pois mesmo

ao criar direito ex post facto, inexistindo direito previamente estabelecido, não se

pode dizer que alguém teve expectativas legítimas frustradas com o novo direito

criado.

3.4.3 Teses do soft positivism hartiano

Hart pretendia com seu Pós-escrito responder as críticas que sua teoria

durante mais de trinta anos. Todavia, só conseguiu completar parte deste

trabalho, já que faleceu antes de concluir a segunda seção, na qual dialogava

com outros autores que não Dworkin.194

O primeiro passo de Hart foi esclarecer a natureza do positivismo jurídico.

Para ele, sua teoria não é semântica, e, portanto, não é atingida pelo “aguilhão”

apontado por Dworkin. Ele não nega em momento nenhum da obra a

possibilidade de desacordos teóricos no direito, e acrescenta

Embora os meus exemplos principais dos critérios fornecidos pela regra de reconhecimento, sejam questões daquilo a que Dworkin tem chamado de pedigree, dizendo respeito apenas ao modo como as leis são adotadas ou criadas por instituições jurídicas, e não ao seu conteúdo, eu expressamente afirmo os dois seguintes pontos neste livro e no meu artigo intitulado “Positivism and the Separation of Law and Morals”, que em muitos sistemas de direito, tal como nos Estados Unidos, os critérios últimos de validade jurídica podiam incorporar explicitamente, para além de pedigree, princípios de justiça ou valores morais substantivos, e estes podem integrar o conteúdo de restrições jurídico-constitucionais.

195

No que se refere especificamente à regra de reconhecimento e sua

insuficiência ou incapacidade de lidar com princípios, Hart afirma inexistir razão

193

Ibid, p. 338. 194

Cf. Nota dos editores a O Conceito de Direito. 195

HART, Herbert. “Pós-escrito”,op.cit. p. 309.

Page 62: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

62

alguma para que a regra de reconhecimento não possa diretamente identificar

alguns princípios por seu conteúdo, sendo assim parte do critério de

identificação de validade jurídica.196 Assim, a regra de reconhecimento pode

incorporar critérios de validade em conformidade com princípios morais

substantivos. Para Hart, Dworkin teria sido levado a um duplo erro: “em primeiro

lugar, a crença de que princípios jurídicos não podem identificar-se pelo seu

pedigree, e, em segundo lugar, a crença de que a regra de reconhecimento só

pode fornecer critério de pedigree”197

Hart sustenta que nenhum dos aspectos dos princípios que impede sua

identificação por critérios de pedigree. Como exemplo, estariam os princípios

previstos nas constituições e atos legislativos, ou ainda princípios do common

law, como o da vedação de beneficiar-se da própria torpeza, que podem ser

identificados por pedigree na medida em que são invocados de forma recorrente

e coerente pelos tribunais. Com relação aos demais princípios, não identificáveis

por pedigree, quer seja por sua fugacidade ou indeterminação, isto não propõe

uma alternativa à regra de reconhecimento, mas à necessidade, como Soper,

Coleman e Lyons advertiram, de delineamento de uma regra de reconhecimento

capaz de identificar os princípios por seu conteúdo, e não por seu pedigree.198

Ainda de acordo com Hart, a regra de reconhecimento seria não só

possível, como necessária. Isto porque o ponto de identificação de qualquer

princípio jurídico seria uma área específica do direito constituído, ao qual o

princípio se amolda e justifica, o que exigiria necessariamente uma regra de

reconhecimento. Isto estaria ligado ao que Dwkorkin determinou “etapa pré-

interpretativa”, cuja identificação sustenta a existência de uma regra de

reconhecimento, que identifique de forma autorizada as fontes do direito.199

No tocante à incerteza ou à margem de controvérsia que tal regra de

reconhecimento, ao aceitar que a identificação do direito dependa de questões

controvertidas, possa gerar, isto não abala em nada as pretensões positivistas.

Tal crítica sobrevalora não só a importância que os positivistas dariam ao grão

de certeza dos padrões jurídicos, como o de incerteza que resultaria dos valores

ou princípios morais. A exclusão total da incerteza não é um objetivo da regra de

reconhecimento, e isto estaria expressamente afirmado na zona de penumbra

196

HART, Herbert. “Positivism and the Separation of Law and Morals” Harvard Law Review, Vol. 71, No. 4. 1958, p. 593 et seq; “El nuevo desafio del positivismo jurídico”,op. cit. p. 8. Cf. ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo incluyente, op.cit. p. 94. 197

HART, Herbert. “Pós-escrito” op. cit. , p. 327. 198

Ibid, p. 328. 199

Ibid, p. 329.

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63

gerada por ela. A incerteza deve ser tolerada e até é bem-vinda, a questão está

em se estabelecer qual é o grau de incerteza tolerado por determinado sistema

jurídico.

Hart aborda ainda a distinção entre princípios e regras, reconhecendo suas

próprias falhas na abordagem inicial do tema, mas afirmando ser possível

repará-las com pequenos ajustes. As distinções entre princípios e regras se

centrariam em pelo menos dois aspectos: um de grau, já que, em relação às

regras, os princípios seriam extensos, gerais ou não específicos; e outro ligado à

finalidade, já que ao se referirem a um objetivo ou valor, os princípios são

desejáveis de se manter ou se aderir, contribuindo para justificação das regras.

No entanto, não há porque rejeitar certa dimensão de peso das regras,

considerando sua aplicação como “tudo ou nada”.

Não há razão para que um sistema jurídico não deva reconhecer que uma regra válida determina o resultado nos casos em que é aplicável,m exceto quando outra regra, julgada como sendo mais importante, seja também aplicável ao mesmo caso. Por isso, uma regra que seja superada em concorrência com uma regra mais importante num caso dado, pode, tal como um princípio, sobreviver para determinar o resultado em outros casos, em que seja julgada como mais importante do que outra regra concorrente.

Desta forma, a distinção seria apenas uma questão de grau, e não uma

oposição disjuntiva como apresentada por Dworkin. O próprio caso referido

Riggs vs Palmer, na qual aplicou-se um princípio em detrimento de uma regra

legislada, demonstra que a regra não possui uma dimensão “tudo ou nada” já

que é passível de entrar em conflito com um princípio.

Em uma apertada síntese, pode-se resumir em três teses o núcleo do

positivismo hartiano.200

1) A tese das fontes sociais do direito: a existência e o conteúdo do direito

de uma determinada sociedade dependem de um conjunto de fatos

sociais, ou seja, de um conjunto de ações dos membros desta

sociedade.

2) A tese da separação conceitual entre direito e moral: a validade jurídica

de uma norma (ou seja, a o pertencimento de uma norma a um sistema

jurídico) não implica de maneira necessária seu acordo com a

200

MORESO, José Juan. “En defensa del positivismo jurídico inclusivo” NAVARRO, Pablo e REDONDO, M Cristina. La relevância del derecho: ensayos de filosofia moral, jurídica y política. Barcelona: Gedisa, 2002, p. 94.

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64

moralidade, e a validade moral de uma norma não comporta

necessariamente sua validade jurídica:

3) A tese dos limites do direito ou da discricionariedade judicial: o

conteúdo das normas jurídicamente válidas não determina a

qualificação normativa de todas as ações. Nestes casos, então, os

juízes possuem discricionariedade na hora de decidir controvérsias.

3.5 O positivismo inclusivo de Waluchow

Publicada no mesmo ano do Pós-escrito de Hart, Inclusive Legal Positivism

reúne e aprimora diversos artigos publicados por Wilfrid Waluchow ao longo dos

anos 80 e 90.201

Waluchow destaca inicialmente as fronteiras incertas da teoria jurídica,

colocando-a num estado de perplexidade. Teóricos que se dizem partidários de

uma mesma corrente sustentam teses que aparentemente são contraditórias. É

o caso, por exemplo, de positivistas como Raz e MacCormick que sustentam ser

plenamente compatível com o positivismo a idéia de que o direito tem algum

valor moral, e de outro lado, o também positivista Austin, que sustentava, como

visto, que a existência do direito é uma coisa, seu mérito ou demérito moral

outra.202 O mesmo ocorre com jusnaturalistas como Finnis203, afirmando que

nunca foi uma preocupação central do jusnaturalismo a negação da validade de

uma lei injusta e, em sentido oposto, a famosa afirmação de Santo Agostinho

segundo a qual o direito injusto não parece direito em absoluto204. O objetivo de

Waluchow é retirar a teoria do direito do caos em que ela foi recentemente

colocada, e o caminho será partir da teoria de Hart, efetuando as alterações

necessárias, sem abandonar seu impulso essencial.205

201

São eles: “The Forces of Law”, The Canadian Journal of Law and Jurisprudence, 1990; “The Weak Social Thesis”, 9 Oxford Journal of Legal Studies, 1989; “Charter Challenges: A Test For Theories of Law”, 29 Osgoode Hall Law Journal, 1990; “Herculean Positivism”, 5 Oxford Journal of Legal Studies, 1985; “Strong Discretion”, 33 The Philosophical Quarterly, 1983 e “Hart, legal Rules and Palm Tree Justice”, 4 Law and Philosophy, 1985. 202

WALUCHOW, Wilfrid. Positivismo Jurídico Incluyente, Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 15. 203

Finnis talvez seja mais bem classificado como “neojusnaturalista”; Nesse ponto, cf. SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito, op. cit. p. 197 et seq. 204

WALUCHOW, Wilfrid. Positivismo Jurídico Incluyente op. cit., p. 16 205

Ibid, p. 17.

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65

Portanto, o que Waluchow pretende fazer é “refinar” e “aclarar” as posições

de Hart, defendendo sua posição do positivismo inclusivo frente aos seus

principais oponentes, Raz e Dworkin. Essa será, seguindo os demais teóricos da

corrente, a estratégia de Waluchow: afirmar sua versão de positivismo rebatendo

argumentos contrários de ambos os lados.

Waluchow não descuida do fato que muitas das discussões em teoria do

direito têm sua origem em pontos de partida distintos. É o que acontece entre

Hart e Dworkin. O primeiro apresenta uma teoria descritiva que é moral e

politicamente neutra, acerca de todo ou ao menos da maioria dos sistemas

jurídicos. Já o segundo apresenta uma teoria normativa, totalmente

comprometida (ou interpretativa, como ele denomina) com as práticas

adjudicativas dos sistemas anglo-saxões. Há que se perguntar se em realidade

eles não estariam discutindo “em idiomas distintos”. No entanto, ao invés de

desqualificar o debate, isto só aumenta a necessidade de cuidado ao analisá-lo.

3.5.1 Rebatendo os argumentos de Dworkin

O autor identifica na obra de Dworkin quatro argumentos centrais contra a

tese inclusiva e busca contestar cada um deles (validade, pedigree, função e

discricionariedade)

3.5.1.1

O argumento da validade

Waluchow sintetiza o argumento de Dworkin da seguinte forma206:

1. De acordo com o positivismo, uma lei é uma classe especial de

padrões, distinguível de todas as outras classes de padrões não jurídicos

por superar certos testes de validade jurídica;

2. De acordo com Hart, os testes de validade jurídica se encontram

delineados ou exibidos na regra de reconhecimento, a regra social mestra

que outorga validade a todos os outros padrões jurídicos do sistema;

206

Ibid, p. 183.

Page 66: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

66

3. Assim, para o positivista Hart, todo o direito é direito válido;

4. “Validade”, no entanto, é um conceito “tudo-ou-nada”, apropriado para

regras, mas inconsistente com a dimensão de peso dos princípios;

5. Princípios de moral política do tipo que figuram em casos como

Riggs, Henningsen, não podem, por ter peso, ser válidos;

6. Portanto, princípios não podem contar como direito válido;

7. Conclusão: o positivismo é inconsistente com o papel dos princípios e

deve ser rechaçado.

As três premissas iniciais apontam com um grau de generalidade a tese do

pedigree. A controvérsia se instaura na premissa 4, pois para Waluchow “não há

razão alguma para supor que uma lei válida não possa também ter peso. Mais

especificamente, não há razão para pensar que aqueles princípios que possuem

peso não possam também satisfazer os testes de validade que se encontram na

regra de reconhecimento”207

Portanto, o autor foca na premissa 4, buscando invalidá-la para invalidar o

argumento como um todo. Para isso, parte da afirmação de Dworkin sobre as

regras, segundo a qual “regras são aplicadas à maneira “tudo-ou-nada”. Se

estão dados os fatos que a regra estipula, então ou a regra é válida, em cujo

caso a resposta por ela oferecida deve ser aceita, ou não o é, em cujo caso

nada contribui para decisão.”208

Para falsear tal afirmação, Waluchow recorre à doutrina canadense sobre

direito local. No caso de conflito entre uma lei federal e uma lei local sobre uma

mesma matéria, a lei federal deve prevalecer no caso concreto, mas isso não

implica que a lei local deixou de ser válida. Isto é, mesmo válida, a lei local não

terá aplicabilidade no caso, mas continua sendo válida e possuindo força

institucional.

Assim, como uma lei pode ser válida e a resposta por ela oferecida não ser

aceita, a afirmação de Dworkin é falsa, e conseqüentemente a premissa 4 e o

argumento como um todo.

207

Ibid, p. 185. 208

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, op.cit.p. 39.

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67

3.5.1.2

O argumento do pedigree

O argumento seguinte analisado por Waluchow se vincula a assertiva de

que o positivismo jurídico só está comprometido com testes de fonte para

determinação da validade jurídica, e não com testes de conteúdo. Pode-se

sintetizar o argumento desta forma209:

1. O direito pode ser identificado e distinguido por critérios específicos,

por testes que em nada tem a ver com conteúdo, mas com o seu pedigree

ou a maneira pelo qual foi adotado ou desenvolvido;

2. Um princípio, no entanto, é um princípio jurídico somente se for um

princípio da moralidade política que figura na melhor teoria herculeana

interpretativa e construtiva do direito dado;

3. A tentativa de determinar qual é a melhor teoria, e, em conseqüência,

que princípios se convertem em jurídicos, deve submergir o jurista muito

profundamente na teoria política e moral, e mais além do ponto em que

seria correto dizer que exista algum teste de pedigree para decidir qual de

duas justificações distintas é superior; e, portanto, que princípios são

jurídicos;

4. Portanto, princípios jurídicos não podem satisfazer os testes

positivistas de pedigree, neutros em relação ao conteúdo, baseado em

critérios de fonte;

5. Assim, os princípios jurídicos não podem, de acordo com o

positivismo jurídico, contar como padrões jurídicos válidos.

Neste caso, Waluchow afirma que Dworkin identifica, equivocadamente, o

positivismo com o positivismo exclusivo210, e, portanto foca seu ataque na

premissa 1, segundo a qual positivistas só estariam centrados em testes

exclusivamente de pedigree. Para isso, ele oferece dois argumentos.

209

Ibid, p. 190. 210

Ibid, p. 191.

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68

Primeiramente, afirma que diversos positivistas como Hart e Bentham

aceitariam a possibilidade de testes de conteúdo para determinação da validade

jurídica. Hart afirmara que em alguns sistemas jurídicos como o norte-americano,

os critérios últimos de validade jurídica incorporam explicitamente valores morais

substantivos. Anteriormente, Bentham já afirmara que até o poder legislativo

supremo poderia ser limitado por uma constituição, não tendo negado que

princípios morais como o da Quinta Emenda poderiam conformar o conteúdo de

tais restrições morais. Até mesmo Austin havia admitido que um estatuto poderia

conferir poder para legislar e restringir a área de seu exercício com referência a

princípios morais211

Em segundo lugar, Waluchow sinaliza que alguns sistemas jurídicos de

fato apresentam testes de conteúdo como determinantes da validade jurídica,

como o Canadá. Assim, ao menos que queiramos excluir Hart, Bentham e Austin

do rol dos positivistas e negar realidades fáticas como a do Canadá, deve-se

rechaçar a afirmação segundo a qual o positivismo só trabalha com testes

neutros em relação ao conteúdo, focando-se apenas nas fontes.

3.5.1.3

O argumento da função

A terceira “confusão” que Dworkin teria feito na sua avaliação do

positivismo jurídico, reduzindo-o a sua versão exclusiva, poderia ser expressa no

argumento da função, assim sintetizado:212

1. Dworkin afirma que os positivistas concebem o direito como uma

instituição pública que tem como uma de suas funções primárias

proporcionar padrões públicos e seguros para guiar a conduta dos juízes e

pessoas em geral;

2. Hart sustenta que isto é atendido com a incorporação de uma regra

de reconhecimento. Esta incorporação marca a distinção entre sociedades

pré-jurídicas e sociedades de direito, salvando as primeiras do defeito da

incerteza latente;

211

Ibid, p. 192. Cf. HART, Herbert. “Positivism and the Separation of Law and Morals”, op. cit. 212

Ibid, p. 198-199.

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69

3. Para que se cumpra esta função do direito são necessários que a

satisfação dos testes de juridicidade seja de fácil identificação; como

também devem ser fáceis a determinação de que norma aplicar a

determinado caso e o que requer determinada norma em um caso

concreto;

4. Desta forma, positivistas devem recusar a incorporação de critérios

morais para determinação de validade jurídica para que a finalidade do

direito seja alcançada. Devem excluir também os princípios como

possíveis candidatos a direito válido, por não oferecerem respostas claras,

sendo necessário ponderá-los;

5. A regra de reconhecimento que incorpora testes morais de validade

jurídica, como proposto pelo positivismo inclusivo, introduz indeterminação

no direito, e, portanto, esta não é uma forma possível de positivismo

jurídico.

Waluchow afirma que tal argumento exacerba a necessidade de certeza e

determinação que os positivistas clamam. Vários positivistas, como Hart,

afirmam que o direito deve se utilizar de termos flexíveis e possuir uma textura

aberta. Ademais, o contraste do grau de certeza de normas identificadas por

pedigree e por razão de conteúdo é falso. Isto porque normas obtidas por critério

de fonte podem apresentar infindáveis controvérsias quanto a sua interpretação

e aplicação, podendo apresentar ambigüidades e conflitos com outras normas.

Por outro lado, normas identificadas por critérios de conteúdo, envolvendo

questões de moral política, podem apresentar alto grau de concordância em

determinada sociedade política.

Não obstante a isto, nem sempre a determinação de validade dependerá

de um critério moral. O positivismo inclusivo não está comprometido com uma

regra de reconhecimento tão profundamente indeterminada como, por exemplo,

“direito é aquilo que é justo”, que certamente levaria a um grande grau de

instabilidade. Isto é um exagero do grau de incerteza da regra de

reconhecimento.

Finalmente, não se deve confundir aquilo que é desejável a um sistema

jurídico com aquilo que é essencial à sua existência. Assim, positivistas podem

considerar que estabilidade e determinação sejam avaliados em um sistema

jurídico, mas não conformam uma característica essencial do direito. Remonta-

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70

se assim a tão referida distinção entre o que o direito é, e aquilo que ele deveria

ser. Conclui assim que a “teoria do direito descritivo-explicativa do positivista não

deveria transformar-se, contra sua vontade, numa teoria normativa sobre o que é

desejável encontrar nos sistemas jurídicos.”213

3.5.1.4

O argumento da discricionariedade

Como visto anteriormente, a crítica de Dworkin a Hart no tocante à

discricionariedade judicial pode ser resumida a dois pontos principais: juízes,

especificamente os anglo-saxões, não possuem discricionariedade em sentido

forte; e ao se apelar para critérios morais, sempre se estará agindo com

discricionariedade, o que seria incompatível com as teses positivistas.

Inicialmente, Waluchow retoma a discussão de Dworkin em Levando os

Direitos a Sério sobre os sentidos da palavra “discrição” para concluir que existe

imprecisão no sentido forte do termo. Isto porque não parece claro na proposta

de Dworkin se somente não haveria discricionariedade em sentido forte quando

as pautas impostas pela autoridade se propõem a controlar a decisão do juiz ou

quando de fato elas logram controlar a decisão do juiz. Waluchow sustenta que

Dworkin adota a primeira hipótese, o que seria um equívoco para ele.214

Para Waluchow a visão de Dworkin não se sustenta, pois diversos juízes

anglo-saxões têm a clareza de terem decidido para além dos controles

“autoritativos” impostos, e para isso cita testemunhos de Holmes, Radcliffe,

Macmillan e Cardozo.215 Ademais, há que se diferenciarem os casos em que o

juiz possui discricionariedade dos casos em que ele a exerce. Isto porque não

basta que os juízes pensem que não possuem discricionariedade para que de

fato eles não a exerçam: eles podem estar equivocados. Por isso Waluchow

sustenta que existe discricionariedade forte no sistema anglo-saxão, e que isso

independente da existência de uma única resposta correta.

213

Ibid, p. 205. 214

Ibid, p. 215. 215

Ibid, p. 229.

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71

Em relação à suposta incompatibilidade do positivismo inclusivo com o

reconhecimento da discricionariedade judicial, Waluchow conclui que não há

razão para que ambos não sejam compatíveis. Quando testes morais estão em

jogo, pode ser necessário o uso de discricionariedade em sentido forte, porem

ao menos que se pense que nunca há respostas para perguntas morais, não há

razões para supor que tal juízo discricionário seja sempre exigido. A aplicação

de determinado valor constitucionalmente consagrado pode não despertar

controvérsias nem criação de direito novo, logo não existiria inconsistência no

positivismo inclusivo.

3.5.2

Rebatendo os argumentos de outras versões de positivismo

Uma vez considerada defendida sua teoria frente às críticas

dworkianas216, Waluchow volta-se então a outras versões do positivismo, por

excelência a versão exclusiva, centrada na figura de Joseph Raz. Até então a

mesma estratégia de outros teóricos da corrente. O fato curioso é que Waluchow

dedica diversas páginas de seu livro a rebater argumentos do próprio Hart, cuja

teoria pretende defender. Embora Hart nunca tenha feito críticas contra o

positivismo inclusivo, pelo contrário, tenha se afirmado defensor desta corrente

(sob a denominação de soft positivism), Waluchow vê por bem rebater alguns de

seus argumentos apresentados em O Conceito de Direito. Isto porque certos

argumentos contrários os jusnaturalismo poderiam ser estendidas a versões

inclusivas do positivismo.217 O questionamento a estes pontos pode ser

encarado como o refinamento proposto por Waluchow em suas páginas iniciais.

3.5.2.1

Rebatendo os argumentos de Hart

216

Não seguimos aqui a ordem de apresentação dos argumentos adotada por Waluchow em seu livro. Por se tratar de uma “reunião aprimorada” de diversos artigos, a exposição dos seus pontos não é sistemática, retornando por diversas vezes ao mesmo ponto. Optamos por apresentar inicialmente as críticas aos argumentos de Dworkin para então aquelas em relação a Hart e Raz por entendermos dar mais clareza à exposição. A estratégia dotada segue a ETCHEVERRY, 2007. 217

Cf. ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente op. cit. p. 125

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72

Um dos argumentos de Hart “refinados” por Waluchow é o “causal”- que

também seria compartilhado por Bentham - igualmente chamado de “argumento

moral”. De acordo com tal argumento, afirmações como “lei injusta não é direito”

e outras afirmações jusnaturalistas impediriam a crítica ao direito. Para Bentham,

poderia levar a uma conexão duvidosa entre direito e moral e a pensamentos

perigosos, revolucionários ou anarquistas. Este argumento poderia servir para

desqualificar também versões do positivismo inclusivo em favor do exclusivo, e

por isso Waluchow vê por bem combatê-lo.

Waluchow encara esse argumento como “causal” por ser

conseqüencialista, e não parece muito coerente tentar refutar uma teoria

descritivo-explicativa com base em suas possíveis conseqüências. A verdade de

uma proposição e suas conseqüências práticas são coisas distintas. O

argumento de Bentham e Hart só faria sentido se buscasse desafiar uma teoria

normativa que desenhasse pautas de conduta, o que, definitivamente, não é o

caso do positivismo inclusivo. E, citando Hume, afirma: “Não é certo que uma

opinião seja falsa em virtude de suas conseqüências”218

De outro lado, caberia perguntar-se por que essa possível conexão entre

direito e moral leve a extremos de anarquia e revolução. Em uma sociedade em

que as restrições morais ao poder estão oficial e publicamente reconhecidas,

com garantias para os cidadãos é muito menos susceptível a sofrer esses tipos

de ameaças extremas do que um sistema em que a restrições morais não o são.

Waluchow, valendo-se de um argumento de Fuller, conclui subscrevendo a

afirmação de que “um sistema de direito suficientemente aberto a argumentos

morais tem maior probabilidade de ser moralmente aceitável e assim servir a

causa da paz e à ordem”.219 Portanto, não haveria mérito em argumentos

causais / morais como os de Hart e Bentham por repousarem em premissas

falsas.220

Outro argumento de Hart que Waluchow busca rebater é o da “clareza

intelectual”, que Hart apresenta tomando por base a atuação de tribunais

alemães no pós-guerra. Teorias jusnaturalistas obscureceriam ou simplificariam

218

Ibid, p. 109 219

Ibid, p. 113. Cf. FULLER, Lon. “Positivism and fidelity to law" in BIX, Brian (org) Philosophy of Law: critical concepts in philosophy, vol. II, NY: NY, 2006, pp. 318-352 220

Waluchow afirma em seu livro que em correspondências privadas com Hart este revelara que não mais aceita a validade de argumentos causais/morais a favor do positivismo, desejando empregar apenas argumentos que repousem em considerações valorativas metateóricas, não morais. Cf. Ibid, p. 113, nota 29.

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73

por demasiado questões complexas. O positivismo jurídico colocaria um “feixe

de luz” sobre estas questões, trazendo a clareza necessária para deliberações

morais. A conclusão a que Waluchow chega é que este argumento é fraco para

se preferir o positivismo ao jusnaturalismo por se tratar de uma petição de

princípio. Neste ponto, põe-se de acordo com Raz, para quem isto significa

pressupor a tese mais do que apoiá-la, ou seja, para afirmar a clareza do

positivismo, a pressupõe.

3.5.2.2

Rebatendo os argumentos de Raz

Waluchow divide os argumentos de Raz em dois grupos: os argumentos

populares e os originais. Isto porque parte dos argumentos de Raz não são

originais dele, ele apenas os reutiliza contra o positivismo inclusivo. São eles: o

argumento lingüístico, o da parcialidade e o da conexão institucional.

O argumento lingüístico sustenta que o positivismo jurídico reflete com

maior precisão o significado do termo “direito” e termos análogos da linguagem

ordinária221 A partir desses termos, conclui-se que o direito pode ser injusto ou

imoral, e a linguagem ordinária seria uma demonstração da virtude do

positivismo exclusivo. Waluchow se pergunta se o uso ordinário da palavra

“direito” de fato contribui para compreender a sociedade e suas instituições, se

devemos ser “escravo das palavras”. Conclui, na esteira de Hart, que este não é

um bom argumento em favor do positivismo

O argumento da parcialidade (bias) sustenta que a preferência pela

versão exclusiva do positivismo se funda na possibilidade que este cria de

descrever o direito sem se deixar contaminar por valorações impuras. Ao se

admitir que a validade jurídica possa depender de valores morais, como fazem

os inclusivos, a parcialidade do investigador será muito maior, comprometendo

assim sua descrição. Waluchow afirma que o problema deste argumento está no

fato que, queiramos ou não, a existência do direito depende algumas vezes de

221

Ibid, p.119.

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74

considerações morais, e negar este fato só gera distorções e erros. “O que há de

bom numa teoria pura se o fenômeno investigado é totalmente impuro?”222

Por fim, o último dos argumentos populares, o da conexão institucional

repousa no fato do direito ser um fenômeno social, e não uma construção ideal.

O conteúdo do direito é definido pelo próprio direito. É uma instituição social.

Isto, para Waluchow, em nada afeta o positivismo inclusivo, posto que, para ele,

as considerações morais podem ser relevantes para identificação do direito

apenas se o próprio sistema jurídico reconheça que estas considerações

cumprem este papel. Assim, concluir que ao contrário do direito natural, o

positivismo inclusivo é totalmente compatível com o caráter institucional do

direito.

Três também seriam os argumentos próprios de Raz: o do poder

explicativo, o da função e o da autoridade do direito. De acordo com o

argumento do poder explicativo, a versão exclusiva do positivismo seria

preferível por explicar melhor nossa concepção de direito, sistematizando

distinções relevantes, como valorações jurídicas e morais: direito estabelecido

ou não: aplicar e criar direito, dentre outras distinções pré-teóricas. Waluchow

questiona se as distinções apontadas por Raz são as que uma teoria descritivo-

explicativa do direito exitosa deva buscar.223 Mesmo que Raz tivesse razão

nesse ponto, não haveria motivos para crer que o positivismo inclusivo não

conseguiria enfrentar estes pontos. Em uma sociedade cuja constituição possua

critérios morais para determinação do direito expressamente incorporados (

denominadas por ele de “sociedades de carta”), as distinções referidas podem

ser observadas, ainda que com matizes.224

O argumento da função é bem semelhante ao já apresentado quando da

análise dos pontos de Dworkin. Raz sustenta que a função do direito é

apresentar de modo claro os padrões de comportamento necessários à

cooperação social. Por isso, os padrões fornecidos pelo direito devem ser claros,

caso contrário, sua função não seria cumprida. A resposta de Waluchow também

é bastante semelhante, sustentando que o argumento exagera a necessidade de

222

Ibid, p. 121 223

Neste ponto Waluchow faz referência explicita às críticas de Stephen Perry. Cf. PERRY, Stephen. “Judicial Obligation, Precedent and the Common Law” Oxford Journal of Legal Studies, 7, 1987, p. 215-257. 224

Ibid, p.130.

Page 75: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

75

certeza do direito, bem como da certeza obtida a partir de normas que só

dependam de critérios de pedigree para sua validade225.

Por fim, o último dos argumentos abordados por Waluchow é o da

autoridade, ponto central na obra de Raz, e por isso considerado como o mais

poderoso. Como já apresentamos no inicio do capítulo o argumento da

autoridade, passamos diretamente as críticas de Waluchow. Para nosso autor,

apesar de ser inegável o caráter autoritativo do direito, isso não implica que

todas as diretivas jurídicas possam e devam ser estabelecidas independente de

considerações morais. Aceitar a autoridade não implicaria em excluir todas as

demais razões dependentes, simplesmente que tal razão deve ter algum peso.

Waluchow contesta também o exemplo do arbitro, utilizado por Raz para

exemplificar sua tese, pois algumas características da arbitragem não se aplicam

ao direito226 Decisões dotadas de autoridade afetam o peso de outras razões

para ação, diferentemente de decisões não dotadas de autoridade, que carecem

desta propriedade normativa. Raz estaria equivocado ao identificar a força

institucional do direito com um único tipo de força, a excludente.

Portanto, para Waluchow, nem é uma função essencial do direito resolver

conclusiva e “autoritativamente” as disputas sobre razões dependentes, bem

como essa função não se frustra completamente por qualquer consideração de

razões morais e dependentes. Aceitar certo grau de indeterminação do direito é

um preço razoável que as “sociedades de carta” devem pagar para salvar outros

valores.

Ademais, em uma sociedade de carta, ao realizar considerações morais,

não se está necessariamente voltando às razões excluídas pelo direito. Tratam-

se normalmente de razões distintas. Os direitos morais invocados não precisam

ter relação alguma com as razões excluídas. A validade de uma lei poderia ser

questionada sobre bases morais que em nada guardam relação com as razões

dependentes que aquela se propõe determinar.

Um último ponto relevante é abordado por Waluchow: a

discricionariedade judicial. Segundo Raz, uma teoria coerente deveria oferecer

225

O argumento é reapresentado por autores exclusivos, como Scott Shapiro, sob o nome de “argumento da diferença prática”. Com base nos mesmos fundamentos entende que versões inclusivas do positivismo impedem que as regras possam cumprir sua função de guia de conduta dos juízes e demais indivíduos, ou seja, não geram nenhum tipo de diferença prática nas pessoas. Se tivermos que consultar princípios morais, como razoes de primeira ordem que a regra deveria substituir, ela não estará provendo nem um guia epistêmico nem motivacional, e portanto, não gera nenhuma diferença prática. 226

Ibid., p. 138 et seq.

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76

algum critério para distinção das hipóteses nas quais a referência a um valor

moral implica aplicação de direito pré-existente dos casos nos quais se estaria

criando direito novo.227 Waluchow rebate a crítica afirmando que para se saber

se um juiz age ou não com discricionariedade, deve-se observar sua atuação.

Caso baseiem sua decisão na premissa que sua interpretação da carta

constitucional é a correta e a exigida pelo direito, a aplicação não é

discricionária. Caso contrário, se a decisão se baseia na interpretação não é tida

pelo juiz como univocamente correta ou requerida pelo direito, há

discricionariedade. Neste último caso, a decisão é tomada com base em padrões

não “autoritativos” que parecem razoáveis para as circunstâncias do caso.

Para distinguir os casos nos quais a apelação à moral equivalem a, ou implicam, o exercício de discricionariedade no sentido forte, dos casos em que isto não é assim, devemos observar os juízes e o modo como eles decidem. Se um juiz baseia sua decisão na premissa de que sua interpretação de um direito da Carta é correta e é, portanto, a requerida pelo direito, então a sua apelação a tal direito não é discricionária. E isto é assim inclusive se ele está equivocado a respeito, e efetivamente possui discricionariedade forte porque há, ao menos, duas interpretações possíveis entre as que se pode realizar uma escolha determinada. Se, por outro lado, sua decisão não está baseada na premissa de que sua interpretação do direito da Carta aplicável é a única correta e portanto a requerida pelo direito, então temos aqui uma referencia discricionária à moral. Sua escolha entre as interpretações alternativas que acredita que deixam abertas as

pautas “autoritativas” estará baseada em outras pautas “não autoritativas”. 228

3.5.3

As conclusões de Waluchow

A partir de todos os argumentos expostos e rebatidos anteriormente,

Waluchow conclui que o positivismo inclusivo é uma teoria do direito viável,

dedicada a responder todos os desafios que se lhe apresentam.

A grande vantagem dessa teoria em relação ao positivismo exclusivo é

sua capacidade explicativa daquilo que o autor denominou sociedades de carta,

isto é, sistemas jurídicos que reconheceram explicitamente teste morais para

validade e conteúdo do direito, como grande parte das constituições dos

sistemas jurídicos ocidentais.

A estratégia de Waluchow parece, em seu conjunto, bem sucedida, pois

consegue conciliar a possibilidade da existência de um teste de juridicidade que

227

RAZ, Joseph. La autoridad del derecho, op.cit. p. 67 228

WALUCHOW, Positivismo Jurídico Incluyente, op. cit. p. 242-243

Page 77: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

77

leve em conta critérios de conteúdo com a manutenção das teses básicas

positivistas, ou seja, é capaz de superar o “desafio da carta” propiciado pelos

estados constitucionais contemporâneos. No próximo capítulo analisaremos

manifestações contemporâneas do positivismo inclusivo e a relevância da

persistência do debate com os exclusivos.

Page 78: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

4.

O que resta do debate sobre o positivismo inclusivo

A década de 90 representou a consolidação da teoria do positivismo

inclusivo, com destaque, como visto, ao Pós-escrito de Hart e a obra de

Waluchow. O debate, todavia, não se encerrou por aí, estendendo-se até os dias

atuais. Pode-se observar que além da nova contribuição de novos autores ao

debate, tem-se também um debate interno ao próprio positivismo inclusivo, posto

que, se há um consenso entre seus autores sobre a possibilidade de

incorporação da moral como critério de identificação do direito, isto é, que a

moralidade pode ser uma condição de legalidade, a forma como essa

incorporação se dá é bastante controversa.

Com o amadurecimento do debate, surgiram também questionamentos

sobre a sua própria relevância, fazendo com que autores afirmassem a

superação do debate entre inclusivos e exclusivos. Há autores que entendem ser

apenas uma disputa de rótulos, sem maiores implicações, enquanto outros

afirmam que nenhuma das duas correntes consegue ser satisfatória. Neste

capítulo, abordaremos as contribuições recentes ao tema, para então

analisarmos o debate interno e fazermos um balanço final do positivismo

inclusivo, para buscar o que resta dele depois de quase quarenta anos de

embates.

4.1

Contribuições contemporâneas ao positivismo inclusivo

Dedicaremos esta seção à apresentação das principais contribuições

feitas ao positivismo inclusivo na última década. Como boa parte das

publicações sobre o tema aponta e discute argumentos já expostos e analisados

neste trabalho, vamos nos ater àquilo que cada um dos autores em comento traz

de inovador ao debate.

Page 79: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

79

Jules Coleman, como visto, foi um dos pioneiros na defesa do positivismo

inclusivo, publicando artigos sobre o tema desde finais da década de setenta.229

No início desta década, publica um livro – The Practice of Principles – no qual

consolida boa parte de suas idéias antes expostas, em especial, uma visão

“robusta” do positivismo inclusivo.230

Embora sustente que ninguém hoje em dia considere os argumentos

apresentados por Dworkin em Modelo de Regras I convincentes231, a relevância

deste trabalho foi provocar explicações alternativas para o lugar do argumento

moral no discurso jurídico. Destaca assim os dois principais campos de

competição na tradição positivista: exclusivos e inclusivos. Os primeiros teriam

como ponto nodal a tese das fontes, e crêem que a moral pode vincular os

aplicadores do direito, mas sem ser direito.232 Já os inclusivos233 sustentariam,

ao contrário de Dworkin, que o fato da moral ser ou não condição de legalidade

em um sistema jurídico específico depende de uma convenção social, isto é, a

regra de reconhecimento.234 A distinção entre as duas formas de positivismo

poderia ser sintetizada da seguinte forma: enquanto ambas compartilham a tese

básica do positivismo da convencionalidade da legalidade, os inclusivos

sustentam que o positivismo não impõe nenhuma limitação adicional ao

conteúdo deste critério, enquanto os exclusivos sustentam que a legalidade deve

ser uma questão de fontes sociais, não de conteúdo. 235

A nota distintiva do pensamento de Coleman em relação aos demais

teóricos da corrente, especialmente Waluchow, está em ver que a disputa em

torno do positivismo não é descritiva, mas interpretativa236. Isto o leva a sustentar

229

Cf. “Taking Rights Seriously”, California Law Review, 66, 1978; “Negative and Positive Positivism”, Law Journal of Legal Studies, 11, n.1, 1982; “On the relationship between Law and Morality”, Ratio Juris, 2, n.1, 1989; “Rules and Social Facts”, Harvard Journal of Law and Public Policy, 14, n.3, 1991; “Authority and Reason”, in GEORGE, Robert, The Autonomy of Law: Essays on Legal Positivism, Oxford University Press, 1996. 230

Embora represente a consolidação de grande parte das teses expostas em artigos precedentes, The Practice of Principles traz algumas reconsiderações. É o que acontece, por exemplo, com a tese da diferença prática. Em artigos anteriores, como “Incorporationism, Conventionality and the Practical Difference Thesis” sustentara que, como a tese incorporacionista e a da diferença prática entram em conflito, esta última deve ser abandonada. Já em The Practice of Principles não vê

necessidade de se abandonar tal tese, apenas considera que as regras em sua maioria, ou o direito como um todo deve ser capaz de fazer uma diferença prática, e não uma regra isoladamente. Cf. COLEMAN, Jules. The Practice of Principles. In Defense of a Pragmatist Approach to Legal Theory: Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 147 231

Ibid, p. 105. 232

Ibid, p. 107. 233

Coleman considera o termo “incorporacionismo” mais adequado a essa corrente, mas para não desfocar o debate em uma multiplicação de termos, adota aquele mais comumente usado. (Ibid, p. 105, nota 9) 234

Ibid, p.108. 235

Idem. 236

Ibid, p. 109.

Page 80: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

80

uma versão mais “forte” da regra de reconhecimento, na qual a moralidade

possa figurar como condição suficiente de legalidade, e não apenas como

condição necessária como sustentam outros autores.237 Retomaremos este

ponto quando abordarmos o debate interno.

Jose Juan Moreso também realiza uma defesa do positivismo inclusivo,

por ele considerada a noção de positivismo jurídico mais adequada para dar

conta de certas características dos ordenamentos jurídicos das democracias

constitucionais contemporâneas.238 De outro lado, a imagem do direito

proporcionada pela versão exclusiva é distorcida, pois exacerba a

discricionariedade dos aplicadores. Moreso se vale da mesma estratégia de

outros autores: apresentar argumentos contrários ao positivismo inclusivo para

em seguida rebatê-los. Seu caráter inovador está na abordagem que dá ao que

denomina “argumento do colapso”.

O argumento do colapso está baseado na critica que Dowrkin faz ao

positivismo inclusivo – soft convencionalism, nas palavras de Dworkin –

considerando-o como uma “versão subdesenvolvida da teoria da integridade”.239

Esta seria uma tese altamente instável e conduziria a destruição das teses

centrais do positivismo, que colapsaria em um antipositivismo.240

Moreso busca demonstrar que a tese dworkiana de direito como

integridade está de acordo com a tese das fontes sociais e da separação

conceitual entre direito e moral. Dworkin aceitaria um mínimo de

convencionalismo na etapa de identificação do direito; e ao reconhecer que

apesar de injusto o direito nazista possa ser considerado direito, o mesmo

ocorreria com a tese da separação. A distinção ficaria por conta da

discricionariedade já que Dworkin sustenta a tese da reposta correta, mas

Moreso considera que a posição de Dworkin é apenas uma versão otimista do

positivismo inclusivo. Assim, não é o positivismo inclusivo que colapsa em um

antipositivismo, mas a versão do direito como integridade é que acaba por ser

tornar em um tipo de positivismo inclusivo.

Angeles Ródenas apresenta em seu artigo ¿Qué queda del positivismo

jurídico? uma versão peculiar de positivismo inclusivo. Ao invés de rebater

237

Ibid, p. 114. 238

MORESO, José Juan. “En defensa del positivismo jurídico inclusivo” NAVARRO, Pablo e REDONDO, M Cristina. La relevancia del derecho: ensayos de filosofía moral, jurídica y política.

Barcelona: Gedisa, 2002, p. 93. 239

Cf. DWORKIN, Ronald. O império do direito. op. cit. p. 157 240

Ibid, p. 101. Cf. DWORKIN, Ronald O império do direito, op.cit, p. 107.

Page 81: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

81

argumentos contrario à teoria, Ródenas parte das existência de tensões internas

ao direito. Desta forma, identifica três principais eixos da denominada “crise do

positivismo”241. O primeiro deles seria a polêmica entre Hart e Dowkin sobre a

relevância dos juízos de valor para identificação do direito. Em segundo lugar,

peculiaridades do common law demonstrariam a insuficiência da versão forte da

tese das fontes sociais, já que seria recorrente na pratica judicial norte

americana a aceitação de argumentos substantivos, não baseados na autoridade

da fonte. Finalmente, o auge do constitucionalismo moderno, que representou a

incorporação de um amplo catálogo de valores ao direito positivo, obriga o

interprete a realizar constantes ponderações para concretização de tais valores

de acordo com as circunstâncias do caso. Desta forma, estaria minada a tese

forte das fontes sociais, vinculada ao positivismo exclusivo, que afirma que a

identificação do direito independe do seu conteúdo. Esta seria válida apenas se

os sistemas jurídicos fossem capazes de entrincheirar regras com perfeita

autonomia semântica em relação às razões subjacentes. Como sustenta a

autora, “um sistema jurídico que tomasse sempre as regras como

completamente opacas em relação às razões que lhes servem de justificação

padeceria de certas insuficiências e estaria arriscado a cometer determinados

excessos.”242 E a razão para tais insuficiências da tese forte reside precisamente

na existência de tensões internas ao direito.

Tais tensões fazem com que todo sistema jurídico padeça de

insuficiências, e isso se dá pela dupla natureza das razões que incorpora: razões

“autoritativas” e valores jurídicos. Os valores jurídicos por sua vez atuariam em

um “jogo duplo” de contração e expansão do direito, permitindo por um lado que

normas que de acordo com critérios “autoritativos” de fonte não seriam

identificáveis como direito, apesar disto resultem aplicáveis; e por outro que

normas identificáveis “autoritativamente” como direito resultem inaplicáveis.243

No primeiro caso teríamos uma expansão do direito e os valores funcionariam

como condição suficiente de juridicidade, tal como ocorre com os conceitos

jurídicos indeterminados e nos casos de interpretação extensiva. No segundo

caso, os valores seriam condição necessária de juridicidade e ocorreria uma

241

RÓDENAS, Ángeles. “Qué queda del positivismo jurídico?” Doxa, n.26, 2003, p. 417-419. 242

Ibid, p. 420. 243

Idem.

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82

contração do direito. É o que se dá nos casos de interpretação restritiva ou de

“ilícitos atípicos”244, como o abuso de direito.

As soluções criadas pelo positivismo poderiam ser agrupadas de acordo

com seu “grau de radicalidade”.245 A versão mais extrema apresentaria o

problema das tensões internas como imperfeições dos ordenamentos jurídicos

que não podem ser superadas por mecanismos racionais, já que um sistema é

mais perfeito na medida em que deixa menos espaços para arbitrariedades.246 O

problema desta versão é que tal inclusão de valores no direito não parece ser

fruto de uma irracionalidade, mas de uma pretensão de torná-lo mais racional.

Uma saída menos extremada é o positivismo jurídico exclusivo tal qual

proposto por Joseph Raz, cuja solução para as tensões internas seria a outorga

de discricionariedade ao aplicador. A questão que se coloca à esta tentativa de

salvação da tese forte do positivismo jurídico é qual o preço que se paga pela

renúncia do direito a julgar estes casos. A existência de categorias como a

interpretação extensiva podem ser vistas como a possibilidade de introdução de

convicções morais do aplicador quando julgue conveniente, e, caso isso ocorra,

a idéia de autoridade do direito, tão cara a essa corrente, se desvaneceria.

Assim, por exemplo, quando o legislador utiliza conceitos como o de “honra” ou “tratamento degradante”, é possível vê-los como uma mera renúncia a julgar estes casos, outorgando plena discricionariedade ao aplicador? Ou, ainda mais grave, categorias como as da interpretação extensiva e restritiva podem ser vistas como construções doutrinárias que possibilitam a introdução sub-reptícia no Direito das próprias convicções morais do aplicador quando o julgue procedente? Parece duvidoso que a resposta a estas questões possa ser afirmativa. Se os juízes tivesse discricionariedade para se afastarem das fontes prescritas nas circunstancias e na direção que estimassem moralmente

procedentes, a idéia de autoridade do Direito se desvaneceria.” 247

Uma terceira solução seria do positivismo inclusivo, sustentando que o

direito de uma comunidade pode remeter a padrões morais. A questão que se

coloca aqui á a que tipo de padrões morais está se referindo: um raciocínio

moral autônomo do interprete ou um raciocínio baseado em algum critério

convencional de racionalidade? A primeira hipótese resultaria ao fim em uma

concepção bem próxima à discricionariedade proposta pelo positivismo

244

Para um aprofundamento acerca dos ilícitos atípicos, cf. ATIENZA, Manuel e MANERO Juan Ruiz. Ilícitos atípicos. Madrid: Trotta, 2000. 245

RÓDENAS, “Qué queda del positivismo jurídico”, op. cit., p. 426. 246

Embora isto não fique explícito, a autora atribui essa linha de pensamento a autores como Riccardo Guastini e Eugenio Bulygin. tal postura coincide em grande parte com aquilo que Bayón denomina de “positivismo simples”. Cf. BAYÓN, “Derecho, convencionalismo y controversia” in La relevancia del derecho: ensayos de filosofía moral, jurídica y política. Barcelona: Gedisa, 2002. p. 60. 247

RÓDENAS, “Qué queda del positivismo jurídico”, op. cit., p. 427.

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83

exclusivo. A autora então aposta em uma reconstrução baseada em um critério

de racionalidade.

Tal reconstrução se baseia em uma taxonomia tricotômica das razões que

o direito incorpora: além de princípios e regras, o direito também incorpora

compromissos, que seriam ponderações entre razões ou juízos de prevalência.

Os princípios expressam diretamente valores, enquanto os compromissos

expressam compromissos entre valores. A noção de compromisso, por sua vez,

se vincula diretamente à distinção entre duas formas de convencionalismo.

Seguindo a Juan Carlos Bayón248 a autora traça uma diferenciação entre dois

tipos de convencionalismos: um convencionalismo superficial, no qual os

critérios de correção de um conceito vão até onde chega o acordo explícito por

parte da comunidade; e o convencionalismo profundo, segundo o qual podem

existir convenções apesar de haver controvérsias quanto ao seu conteúdo.

Adotar esta última perspectiva de convencionalismo implica que, mesmo nos

casos que se encontram na zona de penumbra, há sentido em se falar que o

aplicador carece de discricionariedade.

A partir de todos estes elementos apresentados, Ródenas traça então a

sua versão de positivismo inclusivo: aquele que assume que os princípios morais

podem ser condição necessária de juridicidade e apenas subsidiariamente

suficiente, e, ademais, assenta-se no convencionalismo profundo.249 Traduz

ainda sua proposta em três regras procedimentais: 1) salvo prova em contrario,

as regras de mandato operarão no raciocínio dos aplicadores do direito como

razões peremptórias e independentes do conteúdo; 2) corresponde a quem o

alega mostrar que uma regra não identificável “autoritativamente” deve ser

aplicada a um caso, ou que uma regra assim identificada não deve ser aplicada

(ou bem porque o caso em questão constitui uma exceção a regra, estando fora

de seu alcance, ou porque a regra torna-se invalidada); e 3) quem pretenda a

aplicação de uma regra não identificável “autoritativamente”, ou a não aplicação

de uma regra assim identificada deverá realizar uma ponderação tendente a

demonstrar que, de acordo com as convenções interpretativas vigentes

(expressas ou tácitas), há razões suficientes para incorporar uma nova regra ao

sistema ou afastar-se do que elas estabelecem.250

248

Para a distinção de Bayón entre dois tipos de convencionalismo, v. BAYÓN, Juan Carlos. “Derecho, convencionalismo y controversia” op.cit., p. 57-92. 249

RÓDENAS, “Qué queda del positivismo jurídico”, op. cit., p. 446. 250

Ibid, p. 448.

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84

Vittorio Villa realiza também uma defesa peculiar do positivismo inclusivo,

de caráter construtivista251. A tese central do autor é que o positivismo inclusivo

representa em certas condições uma proposta mais frutífera e interessante que o

positivismo exclusivo, e isto ocorre basicamente por duas razões: 1) o

positivismo inclusivo é mais hábil para dar conta de algumas características dos

estados constitucionais contemporâneos 2) é possível que se combine com

consistência esta versão de positivismo com outras concepções valiosas na

teoria do direito, como a que concebe o direito como prática social e a que

propõe uma reconstrução da interpretação jurídica pragmaticamente

orientada.252

Inicialmente, o autor faz uma definição conceitual de positivismo jurídico

que possibilite incorporar tanto a versão inclusiva quanto a exclusiva como duas

concepções distintas de um mesmo conceito. Tal conceito consiste em duas

teses que, apesar de não serem logicamente conectadas, conjuntamente

expressam o núcleo conceitual do positivismo jurídico. A primeira delas é

ontológica, e a segunda, metodológica. De acordo coma primeira, o direito é um

fenômeno positivo, normativo, convencional e contingente. Com relação à

segunda, descrever o direito é inteiramente distinto de tomar uma posição em

relação a ele. 253 Para Villa, o nível ontológico é particularmente importante neste

contexto, pois é precisamente ai que as propostas teóricas do positivismo

inclusivo e exclusivo estão localizadas e constituem duas interpretações

divergentes de um dos corolários da tese ontológica: a tese da separabilidade.

Com relação às referidas vantagens da versão inclusiva, o maior poder

explicativo deve-se à sua capacidade conjugar o reconhecimento da plena

peculiaridade do conteúdo moral dos princípios constitucionais com relação a

outras normas e a manutenção das teses positivistas, possibilitando uma

ampliação da regra de reconhecimento.

Até aqui, nada de particularmente novo na proposta de Villa. É na

segunda vantagem do positivismo inclusivo de Villa que reside seu caráter

inovador - a possibilidade de articulação com uma teoria construtivista. Esta

versão construtivista do positivismo inclusivo pode ser resumida assim: traçando

uma via intermediária entre a objetividade metafísica e uma objetividade

251

Cf. VILLA, Vittorio. “Inclusive Legal Positivism e Neo-giusnaturalismo: lineamenti di una analisi comparativa.” Persona y Derecho, vol. 43, 2000, pp. 33-97, cujas idéias centrais são reapresentadas em “Inclusive Legal Positivism, Legal Interpretation and Value-Judgments”. Ratio Juris, v. 22, 2009, p. 110-127 252

VILLA, “Inclusive Legal Positivism, Legal Interpretation and Value-Judgments”, op. cit., p 111. 253

Ibid, p. 113. Cf. ETCHEVERRY, op. cit., p. 367.

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85

epistêmica, abandona-se a concepção descritiva da linguagem jurídica, segundo

a qual é possível formular assertivas que espelhem com fidelidade porções da

realidade, e, reconhecendo a presença de juízos de valor neste tipo de discurso,

sustenta-se que a linguagem cognitiva sempre possui uma função construtiva.

Desta forma, a linguagem estrutura e organiza o campo da experiência

de que trata, reconstruindo-o e recortando-o de acordo com coordenadas

lingüísticas ditadas pelas categorias e critérios incorporados ao esquema

conceitual do qual parte.254 Villa aponta algumas implicações desta abordagem,

uma delas, considerar que a existência do direito positivo é o resultado coletivo

de práticas sociais, e não a decisão única de sujeitos particulares. Outra é que,

similarmente, a inclusão de valores morais no direito não se dá em um único ato,

mas através de um fluxo continuo de práticas complexas. Desta forma, a teoria

da interpretação poderia se libertar da escolha entre formalismo e anti-

formalismo e reconhecer em uma orientação dinâmica e pragmática que a

interpretação é uma mistura de descoberta e criação, que ocorrem em fases

distintas do processo interpretativo. 255

Em suma, a teoria de Villa nos convida a abandonar o princípio da

neutralidade valorativa como guia do conhecimento e reconhecer a necessidade

inevitável de formular juízos de valor se nos situamos na perspectiva dos

discursos sobre conteúdos valorativos.256

Outros dois autores tiveram grande destaque pelos diversos artigos

referentes ao positivismo inclusivo publicados recentemente: Matthew Kramer e

Kenneth Himma. Matthew Kramer em suas publicações257 adotou a mesma

estratégia de grande parte de seus partidários, isto é, reafirmou as teses do

positivismo inclusivo buscando oferecer respostas tanto a argumentos de

autores exclusivos – Raz, Marmor, Shapiro - como os de Dworkin. O mesmo se

deu em seu mais recente trabalho258, no qual prolongou o debate com

seguidores de Joseph Raz – David Lafkowitz259 e Michael Giudice260 – buscando

oferecer respostas às suas defesas do positivismo exclusivo raziano. A proposta

254

Ibid, p. 121. 255

Ibid, p. 122. 256

SERNA, Pedro. “Sobre el Inclusive Legal Positivism. Una respuesta al Prof. Vittorio Villa”, Persona y derecho, 43, 2000, p. 109. 257

Cf. KRAMER, Matthew. In Defense of Legal Positivism: Law without trimmings, Oxford: Oxford University Press, 1998; “How moral principles can enter into Law”, Legal Theory, 5, n. 1, 2000; Where Law and Morality Meet, Oxford: Oxford University Press, 2004. 258

KRAMER, Matthew. “Moral Principles and Legal Validity” Ratio Juris, 22, n.1, 2009, p. 44-61. 259

Cf. LEFKOWITZ, David. “Customary Law and the Case for Incorporationism” Legal Theory, 11, 2005, p. 405-420. 260

Cf. GIUDICE, Michael. “The Regular Practice of Morality in Law” Ratio Juris 21, 2008, p.94-106

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86

de Krammer é um incorporacionismo moderado, em oposição a uma tese

“robusta” como a de Coleman, que fosse capaz de assegurar que a moral

pudesse ser condição necessária de validade jurídica e ao mesmo tempo

garantisse um grau de regularidade que permitisse a manutenção de um sistema

jurídico.

Kenneth Himma também consagra a mesma estratégia de sustentação

da viabilidade teórica do positivismo inclusivo frente às suas principais linhas de

oposição261, no entanto, somente pode ser considerado um verdadeiro defensor

do positivismo inclusivo em um sentido matizado. Embora refute argumentos

contrários à tese incorporacionista, tem sustentado, em seus trabalhos mais

recentes, que a incorporação, embora conceitualmente possível, possui pouca

aplicação prática. Segundo Himma:

(...) a caracterização de qualquer sistema jurídico particular como genuinamente inclusivo depende de três rigorosas condições que não podem ser satisfeitas nesse mundo dadas as nossas limitações. Em primeiro lugar, os aplicadores do sistema jurídico que tem que ter um meio confiável para identificar a correta resposta moral a questões difíceis (e, naturalmente, eles têm de ser orientados em suas decisões por aqueles casos difíceis). Em segundo lugar, temos de ter um meio confiável para determinar que a primeira condição é satisfeita. Em terceiro lugar, e igualmente importante, temos que crer, e isso justificadamente, que temos um meio confiável para determinar que a primeira condição é satisfeita, isto é, temos de ser epistemicamente justificados em pensar que temos uma metodologia que geralmente resulta em nosso alcance das respostas corretas sobre as difíceis questões morais.

262

Todavia, reitera que a escassez relativa de sistemas objetivamente

inclusivos não pode refutar o positivismo inclusivo, pois, estritamente construída,

a tese da incorporação sustenta apenas que é conceitualmente possível que

sistemas jurídicos incorporem critérios morais de legalidade. Isto é, para Himma,

o positivismo inclusivo é teoricamente possível, devendo argumentos em sentido

contrario como os de Raz e Dworkin serem refutados, mas em termos empíricos,

possui “pouco, se é que algum, valor prático”263 pois, tudo considerado, não são

os valores morais em si que determinam o direito, mas a interpretação que as

cortes supremas dão a eles.264

261

Cf. HIMMA, Kenneth. “Incorporationism and the objectivity of moral norms”, Legal Theory, 5, n. 4, 1999; “H. L. A. Hart and the Practical Difference Thesis”, Legal Theory, 6, n.1, 2000; “Bringing Hart and Raz to the Table: Coleman`s compatibility thesis”, Oxford Journal of Legal Studies, 20, n.4, 2001. Ver também ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op. cit., p. 371. 262

HIMMA, Kenneth. “Final authority to bind with moral mistakes” Law and Philosophy, 24, 2005, p.

44. 263

Ibid, p. 45. 264

Ibid, p. 2.

Page 87: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

87

Como vemos, o debate em torno do positivismo inclusivo segue vivo até os

dias atuais, mas podemos notar fortes divergências internas entre os partidários

da corrente. Passaremos então a uma breve análise sistemática destas

divergências.

4.2

O debate interno

A partir do exposto, talvez se possam traçar três eixos principias de

divergência interna no positivismo inclusivo.265 O primeiro e principal deles gira

em torno do papel que a moral desempenha na identificação do direito. Parece

haver consenso entre todos os defensores da teoria que é conceitualmente

possível que o direito incorpore a moral como critério de validade. A questão é

como esta incorporação se dá.266

Waluchow e Kramer sustentam que a moral pode ser incorporada apenas

como uma condição necessária de validade jurídica, enquanto que para

Coleman, ela pode ser tanto uma condição necessária como também suficiente.

Coleman busca aclarar a distinção:

A regra de reconhecimento pode fazer da moralidade uma condição de legalidade tanto como uma condição necessária quanto como uma condição suficiente (ou como ambas). Se a moralidade de uma norma é condição necessária de sua legalidade, então as normas possuidoras do requisito do critério de fonte não conseguirão atingir o status jurídico se elas falharem no teste relevante de moralidade. Neste caso, todos os padrões jurídicos terão o requisito das fontes sociais, mas nem todas as normas que tenham este requisito serão direito. De outro lado, se a moralidade de uma norma é condição suficiente de sua legalidade, então a norma pode ser direito mesmo que falte sua fonte social.”

267

Kramer pontua nessa questão uma diferença entre “incorporacionismo” e

“positivismo jurídico inclusivo”. Incorporacionismo poderia vir em duas versões: a

“robusta” e a “modesta”. A versão robusta é aquela em que não ha limitações ao

critério de validade jurídica; a versão modesta sustenta que a moralidade pode

ser condição suficiente de moralidade, mas apenas em casos difíceis; enquanto

265

Quanto à sistematização do debate interno, seguiremos uma vez mais a proposta de ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op. cit. p. 375 et seq. 266

ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op. cit. p. 376. 267

COLEMAN, Jules. “Constraints on the criteria of legality” Legal Theory, 6, 2000, p. 175. (grifos do original)

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88

positivismo inclusivo sustentaria que a moral pode ser condição necessária de

legalidade.268

A disputa de rótulos não é o relevante e maioria dos autores tem usado os

termos “incorporacionismo” e “positivismo inclusivo” indiscriminadamente. O que

leva Coleman a defender seu ponto de vista é que, segundo ele, a versão de

Waluchow parece estar desconectada com a crítica de Dworkin que suscitou o

debate, e busca responder apenas às críticas de autores exclusivos que

levantaram o alto grau de incerteza que uma regra de reconhecimento que

incorpore a moral possa gerar. Assim, para Coleman, estar-se-ia invocando um

argumento empírico - os possíveis problemas de coordenação que seriam

gerados - para rebater um conceitual - a possibilidade destes critérios guiarem

condutas.

Controvérsia não é a questão para o positivismo jurídico exclusivo; apenas confusões naturais porém sérias levaram alguns positivistas inclusivos a pensarem de maneira distinta. A questão é a compatibilidade de certo critério de legalidade com a possibilidade conceitual de autoridade legal, não a possibilidade de facto de legalidade. E é por isso que eu continuo a defender as formas mais “robustas” de regra de reconhecimento, nas quais a moralidade possa ser condição suficiente de legalidade.

269

De outro lado Waluchow sustenta ter conseguido dar conta da crítica

dworkiana, pois os princípios em debate, como o aplicado no emblemático caso

Riggs vs. Palmer são critérios de validade incluídos em uma regra de

reconhecimento. Assim o simples fato de serem morais não torna os princípios

jurídicos sem algum ato que os cristalize.270 Desta forma, o referido princípio de

que “ninguém pode se valer da própria torpeza” só pode funcionar como critério

necessário de validade jurídica, pois existe um número potencialmente ilimitado

de padrões que satisfazem esse critério de validade.

A mesma disputa se instaura entre Coleman e Kramer, que debatem sobre

a versão forte e moderada de incorporacionismo. Coleman afirma se ver forçado

a salvar o positivismo inclusivo da defesa de Kramer. Coleman sustenta que a

afirmação de Kramer segundo a qual uma regra de reconhecimento “robusta” é

extremamente controvertida para sustentar uma pratica jurídica não consegue

afetar sua teoria pela mesma razão, isto é, se tratar de um caráter empírico, e

não conceitual. E acrescenta

268

Ibid, p. 177; KRAMER, Mathew. “How Moral Principles Can Enter Into Law”. Legal Theory, 6, 2000, p. 83 et seq 269

COLEMAN, Jules. The practice of principles, op. cit. p. 113 270

WALUCHOW, Wilfrid. “Authority and the Practical Diffrence Thesis: A Defense of Inclusive Legal Positivism” Legal Theory, 6, n. 1, 2000, p. 76.

Page 89: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

89

Acho que é inexplicável que Kramer me associe ao que ele chama "Incorporacionismo Robusto", porque a minha opinião é muito mais ampla do que isso. Ela é a visão de que não existem restrições sobre as condições de legalidade impostas, quer pela teses básicas do positivismo jurídico ou pelo nosso conceito de direito. Se não existirem tais restrições, então a fortiori é possível até mesmo a existência de uma regra de reconhecimento que faz da moralidade uma condição necessária e suficiente da legalidade, mas essa possibilidade marca o caso limite deste tipo de sistema jurídico possibilitados pelo meu ponto de vista. Eu certamente não espero que tais critérios possam sustentar uma efetiva prática jurídica sob nenhum conjunto particular de circunstancias empíricas.

271

Kramer rebate, afirmando que, apesar do incorporacionismo forte ser

conceitualmente possível, parece ser apenas aplicável a sociedades muito

homogêneas, enquanto sua versão moderada pode ser aplicável em grande

escala.

(...) enquanto a tese do Incorporacionismo extremo é verdadeira - como eu sempre aceitei prontamente - ela é inutilmente distrativa e não iluminadora e desnecessariamente problemática. Suas virtudes são totalmente compartilhadas e suas deficiências evitadas por uma versão moderada do Incorporacionismo. Seguramente, um filósofo tão ágil como Coleman pode lograr desenvolver uma série de idéias para defender a tese robusta do incorporacionismo contra vários desafios conceituais. No entanto, os mesmos desafios podem ser repelidos pelo Incorporacionismo moderado, e, na verdade, esta última doutrina pode lidar com eles de maneira mais suave. (...) Para compreender plenamente a aptidão da tese moderada do Incorporacionismo, neste contexto, devemos refletir brevemente sobre o que ela afirma. Essa tese não nega nada do afirmado pela tese robusta do Incorporacionismo, mas simplesmente afirma menos.

272

Outra questão de divergência entre os autores é como Hart, que pode ser

considerado o “pai” do debate e que faleceu em 1994, antes de concluir seu Pós-

escrito, se encaixaria nas discussões, isto é, em que lado do debate está o

positivismo suave hartiano. Como a proposta inicial do positivismo inclusivo é

partir do positivismo hartiano, a maioria dos autores da corrente reiteradamente

afirme que sua versão é com ele compatível. Waluchow sustenta

expressamente que Hart adere a sua versão de positivismo inclusivo. Isto porque

o exemplo de regra de reconhecimento que inclua valores morais oferecido por

Hart é o da Quinta Emenda da Constituição norte-americana, o que para ele,

deve ser interpretado como uma condição necessária de validade. 273 De outro

lado, Himma e Coleman sustentam o oposto, isto é, que o soft positivism de Hart

busca demonstrar como o positivismo pode se adequar ao pensamento de

271

COLEMAN, Jules. “Constraints on the criteria of legality” Legal Theory, 6, 2000, p. 183. 272

KRAMER, Matthew. “Throwing light on the role of moral principles in the Law: further reflections”. Legal Theory, 8, 2002, p. 129. 273

WALUCHOW, Wilfrid. “Authority and the Practical Difference Thesis: A Defense of Inclusive Legal Positivism” Legal Theory, 6, n. 1, 2000,, p. 79.

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90

Dworkin, e isto só pode se dar se a obrigatoriedade dos princípios não for

dependente de um fonte “autoritativa”.

Enquanto alguns positivistas inclusivos endossam apenas o componente necessário da tese da incorporação, Hart mais plausivelmente esta comprometido com ambos componentes. Como Jules Coleman pontuou, o objetivo de Hart ao adotar a tese da incorporação foi mostrar como o positivismo poderia acomodar a visão de Dworkin que o princípio do caso Riggs era juridicamente vinculante, não porque possuía uma fonte “autoritativa”, mas porque seu conteúdo era um requisito fundamental de justiça.

274

Um terceiro ponto de tensão é em relação à metodologia utilizada na

abordagem do fenômeno jurídico. Como visto, Coleman rejeita a aproximação

descritivo-explicativa de Waluchow, o que traz reflexos maiores nos projetos

empreendidos por cada um dos autores. Isso implica que Coleman não se atem

ao “desafio da carta” que é um dos temas centrais da defesa do positivismo

inclusivo de Waluchow e de seus artigos mais recentes e que se funda na

capacidade explicativa do positivismo inclusivo.275

Coleman até reconhece que a capacidade explicativa pode ser uma

virtude, mas o cerne da disputa com a versão exclusiva do positivismo não é

uma questão de explicação, mas de interpretação. O ponto nodal para Coleman

não é qual teoria tem maior precisão descritiva, mas qual oferece a melhor

interpretação da presença de linguagem moral em cláusulas constitucionais.

Obviamente, ninguém nega que precisão descritiva é uma virtude de uma teoria, mas a disputa entre positivismo exclusivo e inclusivo não pode ser resolvida com bases descritivas, pela simples razão que a disputa não é descritiva.É uma disputa interpretativa. (...) A questão não é se o positivismo exclusivo ou inclusivo satisfaz este critério de precisão descritiva, ao contrário, a questão é qual visão proporciona a melhor explicação para o fato da linguagem moral aparecer em

cláusulas constitucionais.276

Em resposta, Waluchow afirma que sua teoria fora mal interpretada,

destacando que o uso da palavra “descritiva” teve por objetivo distinguir sua

teoria de uma teoria “interpretativa” como a de Dworkin. Por isso, buscava

explicar sem se comprometer com a moral ou objetivos justificatórios.

(...) é possível reconhecer o papel do valor, incluindo o valor moral, na teoria do direito sem necessidade de estar totalmente de acordo com Dworkin. Pode se encontrar uma papel central para o valor sem propor que deliberadamente tratemos de fazer dos dados investigados “o melhor que moralmente possam ser”. Pode se permitir que o valor influa em, inclusive em alguns casos governe, a

274

HIMMA, Kenneth. “H. L. A. Hart and the Practical Difference Thesis” op. cit. p. 3-4. 275

WALUCHOW, Wilfrid. "Four Concepts of Validity: Reflections on Inclusive and Exclusive Positivism", in HIMMA, K. e ADLER, M. The Rule of Recognition and the United States Constitution Oxford: Oxford University Press, 2009 276

COLEMAN, J. The Practice of Principles, op. cit. p. 109.

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91

descrição teoria sem arriscar-se a cair no engano moral e intelectual que se observa nas concepções dworkinianas

277

Ademais, Waluchow não concorda com Coleman que o argumento do

“desafio da carta” não seja uma boa refutação ao positivismo exclusivo.

Waluchow demonstra que, quer se encare a versão exclusiva como conceitual

ou como descritiva, a existência de um sistema jurídico que determine o direito

com base em considerações morais é capaz de refutá-lo

O positivismo exclusivo, em ambas as suas formas – conceitual ou descritiva, é falseado pela existência de sistemas jurídicos nos quais a determinação do direito algumas vezes dependa de valores morais. O positivismo inclusivo, em ambas as suas formas, é sustentado pela existência destes sistemas. Talvez seja útil notar que ate mesmo se não existissem sistemas como este, isto não invalidaria ou falsearia a versão conceitual de positivismo inclusivo. Como Jules Coleman observa, sua versão é defensável desde que consigamos

conceber pelo menos um mundo possível onde este sistema exista. 278

Além destes três eixos centrais do debate interno – o papel efetivo da

moral, o lugar do soft positivism hartiano no debate e a metodologia empregada

– existem outras divergências menores. Himma também manifestou suas

divergências com a proposta de Waluchow, apontando falhas na articulação de

seus argumentos. A principal crítica de Himma é que Waluchow não se esforça

em oferecer uma versão positivista sobre a obrigatoriedade dos princípios,

preferindo focar-se em falhas argumentativas de Dworkin. 279

De outro lado Kramer busca oferecer resposta a critica de Himma,

segundo a qual o PJI não ajuda a compreender a prática jurídica em sociedades

nas quais é a Corte Suprema quem tem a autoridade final. Para Kramer, embora

a Corte Suprema tenha autoridade final em algumas sociedades, as críticas e

elogios das decisões tomadas estabelecem de forma coletiva o dever da Corte

Em suma, Himma afasta-se consideravelmente para abastecer as linhas de pensamento com a sua crítica ao positivismo inclusivo e ao incorporacionismo. Tendo debatido algumas questões de grande importância, ele averigua muitos de seus subtítulos; neste processo, em certa medida, ele contraria a sua própria perspectiva sobre eles. De qualquer forma, apesar de seus picantes argumentos, ele não conseguiu refutar a idéia de que a lei e a moralidade podem, de maneira convincente, reunir-se na forma prevista pelo positivismo inclusivo ou pelo incorporacionismo

280

277

WALUCHOW, W. Positivismo Juridico Incluyente. op. cit. p 33 278

WALUCHOW, Wilfrid. ”The many faces of legal positivism”. University of Torornto Law Journal, nº48,1998, p. 394-396. 279

HIMMA, Kenneth. ”Waluchow „s defense of Inclusive Legal Positivism” Legal Theory , 5, 1999, p. 115. 280

KRAMER, M. Where Law and morality meet, Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 140.

Page 92: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

92

4.3

Balanço final do debate

Tendo em vista o caminho percorrido – da gênesis do positivismo inclusivo

aos debates atuais, incluindo debates internos – resta-nos perguntar o que resta

depois de tantas réplicas e tréplicas. Em muitos momentos o debate parece um

diálogo de surdos, no qual cada autor fica mais preocupado em afirmar sua

posição do que compreender a do próximo. Em outros, parece que a discussão

se resume a uma disputa de rótulos, sem maiores relevâncias práticas.

4.3.1

O conteúdo mínimo do positivismo jurídico

Um ponto que parece ter ficado claro é como termo “positivismo jurídico”

suscita dúvidas e ambigüidades, e é utilizado para designar teses logicamente

independentes. Apesar de antiga, a lição de Bobbio parece não ter sido

plenamente assimilada, e como destaca Bayón281, um caminho para melhor

compreensão da questão passa por uma breve discussão sobre as teses

presentes sob o titulo “positivismo jurídico” e por aqui deve começar nosso

balanço final.

O esforço inicial de clarificar a tese positivista passa normalmente pela

tese da “separação conceitual entre o direito e a moral”. Todavia os mesmos

problemas que acontecem com o termo “positivismo jurídico” acabam por se

repetir com o da “separação conceitual”, isto é, sob essa expressão encontram-

se teses logicamente independentes. Bayón aponta que grande parte do debate

aqui exposto é fruto da aceitação seletiva de algumas destas teses, e não sua

aceitação ou recusa em bloco, o que faz com que essa teoria do direito se situe

em uma “inóspita terra de ninguém” entre positivismo e não positivismo, para a

281

BAYÓN, Juan Carlos. “El contenido mínimo del positivismo jurídico” in ZAPATERO, V. (Ed.) Horizontes de La Filosofía del Derecho. Homenaje a Luis García San Miguel. Ediciones de Universidad de Alcalá de Henares, 2002, vol. II, p. 33-54.

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93

qual já se chegou a improvisar etiquetas de circunstancia de nulo poder

explicativo como pós-positivismo. Uma teoria do direito saudável deve

concentrar seus esforços nas idéias e não nas etiquetas, por isso é necessário

traçar um bom mapa desta terra de ninguém.282

Decompondo-se a “tese da separação conceitual entre direito e moral”

chega-se a seu aspecto básico e central que é a “tese das fontes sociais”, que

também pode ser desmembrada em elementos logicamente independentes até

se chegar a um denominador comum entre todos eles, obtendo-se assim o

núcleo básico do positivismo que seria a “tese convencionalista”, podendo ser

considerado desta forma o conteúdo mínimo do positivismo jurídico.

A tese social, embora enunciada de maneiras distintas, costuma ser

caracterizada da seguinte forma: a existência e o conteúdo do direito é algo que

depende de fatos sociais complexos. Assim encarada, cuida-se de uma tese

conceitual, não podendo ser verdadeira nem falsa; é uma estipulação de um

critério para o uso do termo direito. Ocorre que, como visto, tem-se sustentado

nos embates teóricos a existência de duas versões possíveis da tese das fontes

sociais: uma forte, ou excludente; outra fraca, inclusiva ou incorporacionista.

Segundo a tese forte, a identificação do direito depende exclusivamente de fatos

sociais, o que implica que a não conexão identificatória entre o direito e a moral

é uma verdade necessária. Para a tese fraca, no entanto, o que é

necessariamente de natureza convencional é a identificação dos critérios de

identificação do direito, e não necessariamente estes últimos, o que torna a tese

da não conexão identificatória entre o direito e a moral meramente contingente.

Portanto, torne-se ambíguo afirmar que o núcleo básico do positivismo está na

tese das fontes sociais – já que esta se apresenta em duas versões . Para se

alcançar realmente uma tese unitária, deve se retroceder a um núcleo comum

das duas versões da tese social - a tese convencionalista – segundo a qual o

direito é uma função de práticas sociais, sem se comprometer com nenhum

ponto de vista sobre que classe de função seria esta.283

Chegamos então, nessa regressão a partir de teses ambíguas, ao que

seria o núcleo comum das teses positivistas – a tese convencionalista. Note-se

que este núcleo comum não pretende ser um conceito de direito, apenas a real

interseção entre as diversas teses denominadas positivistas. Assim considerado

– como uma convenção, como fruto de práticas sociais – o direito não seria

282

Ibid p. 35. 283

Ibid, p. 46-47.

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94

discernível da moral, que também pode ser encarada como uma prática social

fruto de convenções. Mas não poderia ser diferente, já que as divergências

centrais das várias versões de positivismo estão exatamente na relação entre

direito e moral – separação, separabilidade, incorporação, etc. – não se podendo

falar em tese compartilhada por todos a este respeito.

O passo seguinte é examinar se essa desvinculação da tese das fontes

com a não conexão necessária entre o direito e a moral é viável, ou se a única

versão plausível da tese social é a sua versão forte. Essa é a afirmação feita,

como vimos, desde extremos opostos como Raz e Dworkin.

4.3.2

A viabilidade teórica do positivismo inclusivo

Raz afirma que os que sustentam a tese social fraca deveriam

proporcionar algum critério para distinguir quando, a partir de referências morais,

ocorre a aplicação de direito pré existente de quando há criação de direito novo,

mas no entanto, não proporciona.284 Dworkin, baseando-se sobretudo na versão

incorporacionista de Coleman, afirma que a tese fraca não passa de um

“positivismo fingido” (pickwickian positivism), sendo melhor descrita como um

anti-positivismo285. E mesmo autores, que não se situam em nenhum dos dois

extremos, como o próprio Bayón, sustentam a inviabilidade teórica do

positivismo inclusivo, pois o discurso de identificação do direito, ao estar

constrangido por nossas convenções, não pode ser um genuíno discurso moral.

O positivismo inclusivo enfrentaria assim um dilema: ou bem abandona o

convencionalismo ou resulta indiscernível da versão exclusiva. Desta forma, uma

suposta convenção de seguir critérios não convencionais ou é uma convenção

meramente aparente ou seu conteúdo não é seguir critérios não

convencionais.286

Nenhuma destas críticas parece prosperar, isto é, o positivismo jurídico

inclusivo configura-se teoricamente viável. Waluchow logrou dar uma resposta

satisfatória ao desafio lançado por Raz, isto é, para saber quando os juízes

284

RAZ, Joseph. La autoridad del derecho, op. cit. p. 67 285

Cf. DWORKIN, Ronald. “Thirty years on”. Harvard Law Review, 115, n. 6, 2002. 286

BAYÓN, J. “El contenido mínimo del positivismo jurídico” op. cit. p. 48.

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95

atuam ou não com discricionariedade, devemos observar seu comportamento.

(vide capítulo 3). Recorrer a um valor moral e recorrer à discricionariedade não

são equivalentes.

Quanto à crítica de Dworkin, segundo a qual a versão inclusiva colapsa em

um anti-positivismo, ela somente possui algum sentido se vinculada à

(problemática) versão inclusiva de Coleman, que sustenta que a moral pode ser

condição suficiente de legalidade. Levando-se em conta versões, como de

Waluchow ou Kramer, segundo as quais a moral pode funcionar apenas como

condição necessária de legalidade, a crítica de Dworkin não prospera, e fora

bem rebatida por Moreso – isto é, a visão de Dworkin é apenas uma visão

otimista de positivismo inclusivo.

Por fim, com relação a inviabilidade de um genuíno discurso moral ser

compatível com os limites de uma convenção, como sustenta Bayón, parece

assistir razão à Angeles Ródenas, ao afirmar que quando da aplicação de

diversas cláusulas constitucionais, temos um raciocínio que é ao mesmo tempo

restringido por convenções – como a constituição – e é baseado num raciocínio

moral. É o que se dá, por exemplo, quando da aplicação do princípio

constitucionalmente positivado da dignidade da pessoa humana. Temos ai um

discurso moral dentro dos limites de uma convenção.

Tal solução parece ser preferível àquela oferecida por teorias exclusivas,

em todas as suas versões, que resolve a aplicação de valores morais em termos

de discricionariedade, em uma discussão que é alheia ao direito. Isto discrepa

profundamente da prática jurídica que vivemos, na qual cada vez é mais

freqüente que se tenha juristas, dentro de tribunais, discutindo os limites de

aplicação da dignidade da pessoas humana – para nos atermos ao mesmo

exemplo dado. Encarar tal menção a valores como uma mera delegação de

poder ao aplicador para decidir, decisão esta que não está regulada pelo direito,

é oferecer uma visão distorcida das práticas jurídicas.

Ao encararmos estas referências morais como meras delegações de poder

discricionário ao aplicador, elas poderiam ser vistas como intercambiáveis, já

que o efeito de todas elas seria o mesmo: transferir a decisão para o aplicador.

Mas mesmo termos com alto grau de vagueza como “dignidade humana” ou

“boa-fé” não parecem ser intercambiáveis e parecem exercer algum tipo de

limitação jurídica ao aplicador. Ao tratar essas questões como jurídicas, o

positivismo inclusivo se mostra mais próximo da realidade, uma solução mais

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96

adequada do que varrer as incertezas para baixo do tapete da

discricionariedade, relegando-as ao campo da moral, da política ou de alguma

outra esfera que não o direito.

Assim, não vemos razão para se considerar inviável do ponto de vista

conceitual, a existência de uma versão inclusiva de positivismo jurídico. Os

outros argumentos levantados contra o positivismo inclusivo também não se

demonstraram hábeis a refutá-lo. Argumentos como o da autoridade, do

pedigree, ou da função parecem, como visto, exacerbar estas características do

direito. O direito não deixa de cumprir sua função nem abre mão de sua

pretensão de autoridade pelo simples fato de incorporar determinados valores

morais controversos. O direito como um todo deve exercer alguma diferença

prática, e não as normas individualmente consideradas.

Podemos encontrar algumas inconsistências na refutação de algumas

teses apresentadas por Waluchow. Com relação ao argumento da validade, por

exemplo, a afirmação que um padrão que possua peso possa ser tido como

legalmente válido não decorre da discussão do autor sobre lei local e federal.

Trata-se de questões distintas. Num conflito entre lei local e lei federal podem

estar presentes uma série de circunstâncias e critérios hierárquicos e de

repartição de competências que não são aplicáveis a questões gerais de

coexistência de peso e validade jurídica. Com relação ao argumento do

pedigree, Waluchow oferece argumentos empíricos, enquanto a afirmação de

Dworkin sobre a inconsistência de testes de conteúdo para validade jurídica é

conceitual287

Apesar disto, a estratégia de Waluchow parece, em seu conjunto, bem

sucedida, pois consegue conciliar a possibilidade da existência de um teste de

juridicidade que leve em conta critérios de conteúdo com a manutenção das

teses básicas positivistas. O debate com Raz parece demonstrar certo exagero

nas afirmações exclusivas quanto ao grau de certeza de padrões identificáveis

por um critério de fonte e o de incerteza dos identificáveis por critérios de

conteúdo, assim como do caráter autoritativo do direito. A preferência pela

versão exclusiva com bases nestes fatores perde de fato força. Portanto, o

positivismo inclusivo consegue escapar ileso das críticas externas que recebe

287

Todavia é fácil encontrar padrões legalmente válidos e possuidores de peso; a demonstração da falsidade da premissa 4 do argumento é bem mais simples. Cf HIMMA, Kenneth. “Waluchow‟s defense of inclusive positivism”. Legal Theory, 5, 1999, p. 101-116

Page 97: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

97

4.3.3

A moral como condição necessária ou suficiente

Voltando agora ao debate interno, se deixamos de lado questões

meramente nominais, de rótulos e etiquetas, a principal questão que fica é a do

papel da moral na identificação do direito: condição necessária ou suficiente?

Parece ter razão Wilfrid Waluchow, segundo o qual a moral somente pode

funcionar como condição necessária, pois precisa haver sido cristalizada pelo

ordenamento, e o exemplo maior é a incorporação de alguns valores, e não

outros, em nosso ordenamento. Esta necessidade de cristalização de

determinado valor previamente no ordenamento, inviabiliza que ele funcione

como condição suficiente de legalidade.

A defesa de Coleman no sentido contrário – isto é, de que a moral pode

funcionar como critério suficiente de juridicidade – é restrita, como ele mesmo

deixa claro, ao campo conceitual, pois seria incapaz de sustentar uma pratica

jurídica concreta. Kramer sustenta com razão que a versão moderada da tese

incorporacionista é capaz de proporcionar as virtudes da tese robusta sem os

problemas que esta pode causar – colapsar num antipositivismo ou ter valor

meramente conceitual. A tese moderada tem aplicação em diversos sistemas

jurídicos existentes, e neste ponto se justifica a sua preferência. Uma regra de

reconhecimento que afirme que “direito é tudo aquilo que for justo” pode ser até

conceitualmente possível, mas praticamente inviável.

Waluchow oferece alguns exemplos de casos envolvendo valores no

ordenamento canadense. O debate em si começou a partir de exemplos de

Dworkin de casos nos quais valores morais eram aplicados por juízes. Podemos

também, a título de exemplo, buscar um caso recente e polêmico do

ordenamento brasileiro: o “Caso Richarlyson”288. Em breves linhas, Richarlyson,

um jogador de futebol do clube São Paulo, ajuizou queixa-crime em face de um

dirigente de outro clube, Palmeiras, que haveria insinuado que o jogador era

homossexual. O juiz do caso arquivou a referida queixa-crime por entender não

ter havido nenhum tipo de ofensa à honra do jogador evocando uma série de

288

Processo nº 936/07 da Comarca da Capital do Estado de São Paulo. A decisão, na íntegra, pode ser encontrada em http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/20070803-caso_richarlysson.pdf

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98

valores morais para isso. Transcrevo:

“futebol é jogo vil, varonil, não homossexual. (...) Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas forme o seu time e inicia uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si. (...) O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal. (...) Precisa portanto, a estrofe popular que consagra – Cada macaco no seu galho, cada galo em seu terreiro, cada rei em seu baralho. É assim que eu penso... e porque penso assim, na condição de Magistrado, digo! Rejeito a presente Queixa-Crime. Arquivem-se os autos.”

Não cabe aqui analisar o mérito do caso nem a eventual culpabilidade

dos agentes. O que importa é notar que, ao afastar a ilicitude da conduta,

descaracterizando assim crime contra a honra, com base no valor moral da

“virilidade no futebol” o juiz lançou mão de um valor que definitivamente não está

consagrado no ordenamento jurídico brasileiro. Mesmo que “virilidade

futebolística” faça parte da moralidade positiva – se é que o faz – não se

encontra positivada constitucional nem infra-constitucionalmente. 289 Temos aqui

um típico caso de aplicação de um valor moral, talvez até compartilhado pela

maioria dos indivíduos da sociedade, mas que definitivamente não é jurídico.

Apesar de se tratar de um valor moral, não pode funcionar como condição

suficiente de juridicidade. E assim reconhece o próprio magistrado, que afirma

estar aplicando discricionariamente uma convicção pessoal – e não aplicando

direito pré-existente. O exemplo demonstra a necessidade de cristalização de

determinados valores morais para que possam funcionar como critério de

juridicidade e demonstra também como é possível, ao se recorrer a um valor

moral, distinguir o exercício de discricionariedade da aplicação de direito pré-

existente.

4.3.4

A superação do debate

289

Aliás, o valor da “virilidade futebolística” choca-se frontalmente com outros valores positivados – ou cristalizados, nos dizeres de Waluchow – constitucionalmente, como a isonomia, (5º, caput) ou a “promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV)

Page 99: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

99

Um último ponto que merece abordagem é a atual relevância do debate

entre inclusivos e exclusivos, isto é, depois de quase quarenta anos de debates,

que colocaram o positivismo jurídico numa verdadeira “encruzilhada”, cabe-se

questionar se ainda faz sentido permanecer nesta discussão.

Três seriam os caminhos possíveis290. Um deles é negar o positivismo – e

entender assim que Dworkin foi o vencedor da disputa com Hart – afirmando,

portanto, uma teoria não-positivista do direito. É o que faz Alexy, por exemplo.291

Alexy entende que o direito possui uma natureza dual – real e ideal – que

conjuga coerção com correção, e o positivismo jurídico não seria capaz de

apreender essa segunda faceta do direito; somente uma visão compreensiva

seria capaz de fazê-lo.

Um segundo caminho, dando razão a Hart no debate com Dworkin,

compreender que o positivismo jurídico é capaz de dar conta dos desafios que

lhe foram postos nos últimos anos. Restaria então uma disputa interna ao

positivismo, entre exclusivos e inclusivos – e como vimos, até mesmo entre

estes últimos.

Autores como Fernando Atria consideram a disputa uma mera “briga de

família”292, outros, como Danny Priel consideram, o debate superado pelo fato de

ambos os lados estarem errados. Segundo Priel, embora termos morais

freqüentemente apareçam em textos legais, elas se referem ao seus conceitos

jurídicos, e não aos seus conceitos morais. Desta forma, quando há menção ao

termo “justiça” em algum texto legal, se está fazendo referência não ao conceito

moral “justiça”, mas ao seu conceito jurídico293. Portanto, a questão da

incorporação da moral no direito deve ser evitada e o debate deixado de lado. A

solução não parece satisfatória, pois de fato se está lidando com uma classe de

conceitos que são jurídicos e morais. Tais conceitos, embora consolidados em

algum texto legal, não parecem guardar autonomia semântica com o valor moral

290

Evitamos fazer menção a termos que, apesar de largamente utilizados nos debates sobre teoria do direito, especialmente no Brasil, são altamente vagos e muitas vezes de nulo poder explicativo, como “neoconstitucionalismo” e “pós-positivismo”. Muitas vezes as expressões são empregadas pela doutrina nacional como sinônimas, mas um exame da obra que serve como marco teórico do tema – Neoconstitucionalismo(s), organizada por Miguel Carbonel – dá conta que o termo abarca teorias de cunho positivista, como Ferrajoli, Guastini e até mesmo Jose Juan Moreso; e outras antipositivistas – como Alexy. Já o termo “pós-positivismo” é ainda mais problemático e de pequeno (ou nulo) valor explicativo, por ser empregue com as mais distintas finalidades – como por Mario Jori, MacCormick ou Calsamiglia. Cf. BAYON, J “El contenido mínimo del positivismo jurídico” op. cit; DIMOULIS, D. Positivismo Juridico, op. cit. 291

ALEXY, Robert. “On the concept and the nature of Law” Ratio Juris, 21, n. 3, 2008, p. 281-299. 292

ATRIA, Fernando. “La ironía del positivismo jurídico” Doxa, 27, 2004, p. 83. 293

PRIEL, Danny. “Farewell to the Exclusive-Inclusive Debate” Oxford Journal of Legal Studies, v. 25, n. 4, 2005, p. 675-696.

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100

correspondente, isto é, o conceito jurídico de “justiça” parece estar intimamente

ligado ao conceito moral de “justiça”, e o problema assim persiste.

Wilfrid Waluchow, um dos protagonistas do debate, propôs em recente

artigo294 uma solução alternativa, mas que também representaria de certa forma

a superação da questão inclusiva/exclusiva. Partindo da discussão entre Himma

e Kramer, conclui que cada um deles logrou observar corretamente

determinados aspectos, e uma solução possível de compatibilização é

desmembrar o conceito de validade, separando-o do conceito de existência. A

idéia de tentar acomodar as teorias, buscando valorizar os pontos corretamente

observados pelos opositores é louvável, e parece ser o caminho a seguir, mas

não se pode dizer que o debate tenha sido de fato superado, ainda persistem

muitos pontos de divergência.

Um terceiro caminho seria não apenas uma superação do debate entre

inclusivos e exclusivos, mas a superação do positivismo jurídico como um todo.

É o que propõe, por exemplo, Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero em seu

trabalho Dejemos atrás el positivismo jurídico. Ambos consideram corretas as

teses básicas do positivismo, não havendo porque negá-las. Deve-se dar

continuidade ao legado positivista, mas para deixá-lo para trás. As teses

positivistas, apesar de corretas, não são capazes de dar conta do estado

constitucional em que vivemos, pois o direito não é apenas um conjunto de

regras e princípios, mas uma prática social complexa, focada no aspecto

argumentativo do direito.295

Dos três caminhos possíveis, entendemos, como já vínhamos alinhavando,

ser o positivismo jurídico inclusivo – na versão proposta por Waluchow, Kramer,

Moreso - o mais adequado a dar conta do estado constitucional contemporâneo,

pois consegue oferecer uma descrição valorativamente neutra dos sistemas

jurídicos e ao mesmo tempo dar conta do conteúdo moral neles incorporados.

Em outras palavras, aceita e resolve o “desafio da carta” sem precisar se tornar

uma teoria normativa nem reduzir a aplicação de valores à discricionariedade do

aplicador.

Não há porque “deixar para trás” a tradição positivista – sob o risco de se

“jogar fora a criança com a água do banho” – mas esta pode seguir avançando,

como o fez ao longo dos últimos dois séculos, buscando-se priorizar a

294

WALUCHOW, W. "Four Concepts of Validity: Reflections on Inclusive and Exclusive Positivism", op.cit. 295

ATIENZA, M. e MANERO, J. “Dejemos atrás el positivismo jurídico” op. cit.; ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación. Barcelona: Ariel, 2006

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101

acomodação de corretas percepções do fenômeno normativo em detrimento de

disputas de rótulos e “mal entendidos” que marcaram boa parte do recente

debate. Mantendo-se a “vigilância” proposta por Brian Bix para que as disputas

teóricas não sejam apenas aparentes296, pode-se evitar a previsão critica e bem-

humorada de Schauer segundo a qual a teoria analítica em geral, e em especial

os debates sobre positivismo jurídico são grandes preocupações irrelevantes de

um pequeno grupo de pedantes obsessivos por questões filosóficas, muitos dos

quais são ingleses, e a maioria dos quais já estão mortos.297

296

BIX, Brian. “Patroling the Boundaries: Inclusive Legal Positivism and the Nature of Jurisprudence Debate” Canadian Journal of Law and Jurisprudence, 12, 1999, p 33. 297

SCHAUER, Frederick. “Positivism trough thick and thin” in BIX, Brian. Analyzing Law: New Essays in Legal Theory, Oxford: Clarendon Press, 1998.

Page 102: Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos Estados constitucionais contemporâneos

5.

Conclusão

Ao longo dos capítulos anteriores, buscou-se apresentar o positivismo

jurídico como uma tradição que tem como origens remotas a afirmação de leis

positivas – já desde os Diálogos platônicos – e como origem imediata a

Jurisprudence inglesa no mundo anglo-saxônico e as “escolas” Histórica e da

Exegese na Europa continental. A partir daí, examinou-se sua evolução, que

procurava aprimorar os critérios de identificação e aplicação do direito, com

destaque aos dois principais nomes do juspositivismo do século XX – Kelsen e

Hart.

O refinamento do positivismo proposto por Hart – baseado centralmente

na idéia de textura aberta da norma e de duas classes de regras – sofreu um

profundo questionamento quando criticado por Ronald Dworkin. Mais do que

revelar inconsistências viscerais do positivismo jurídico, a principal virtude da

crítica dworkiana foi estimular a produção de alternativas à explicação da relação

existente entre direito e moral.

Paralelamente, os sistemas jurídicos do segundo pós-guerra passaram a

apresentar textos constitucionais cada vez mais recheados de valores morais

que foram incorporados ao seu texto. Estas cartas constitucionais com diversas

cláusulas valorativas geraram o “desafio da carta” ao qual se refere Waluchow –

isto é, dar conta de regras de reconhecimento que possuam valores substanciais

como critérios de identificação do direito – característica de boa parte dos

estados constitucionais contemporâneos.

O positivismo jurídico vê-se então em uma encruzilhada, e numerosos

são os esforços para demonstrar que a teoria juspositivista é capaz de oferecer

respostas adequadas à aplicação de princípios morais no âmbito jurídico. No

extremo oposto às críticas de Dworkin, surge a versão exclusiva do positivismo

jurídico, que, tendo Joseph Raz como maior expoente, refuta que a identificação

do direito possa depender de considerações morais, pois isto inviabilizaria a

função primordial do direito: possuir autoridade para guiar condutas, fazendo

assim uma diferença prática no agir tanto dos aplicadores do direito, como nos

cidadãos comuns. A identificação do direito se dá por um critério exclusivamente

de fonte, não de conteúdo. As previsões valorativas do direito representariam,

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103

em linhas gerais, não um critério de identificação do direito, mas uma delegação

de poder ao aplicador para agir discricionariamente em determinados casos.

O positivismo jurídico inclusivo surge para demonstrar a viabilidade de

uma teoria positivista que se encontra entre o positivismo exclusivo de Raz e a

teoria do direito como integridade de Dworkin. Essa proposta inicial da teoria

inclusiva marcou todo seu desenvolvimento e marca até hoje o desenrolar dos

debates. Tem-se assim uma teoria de cunho eminentemente defensivo, que só

pode ser entendida, portanto, a partir das críticas dworkianas e refutações da

versão exclusiva.

Por ter sido este o foco de todo amadurecimento da teoria inclusiva,

optou-se por manter a mesma abordagem no presente trabalho, tentando dar

conta dos principais ataques que ela recebeu e das respostas que logrou

proporcionar. Passados cerca de quarenta anos do início do debate, objetivou-se

traçar um balanço do que restou após rios de tinta que correram sobre o tema.

De todo o exposto, creio que podemos enumerar em quatro pontos as

conclusões principais a que chegamos:

1) O positivismo jurídico é uma tradição de pensamento que engloba

teses logicamente independentes e muitas vezes contraditórias. Ao

se perquirir qual seria então um núcleo comum que permita

denominar estas teses “positivistas”, esbarra-se em outras teses

confusas e ambíguas como a “tese da separação entre direito e

moral” e a “tese das fontes sociais”. Portanto, concluímos que o

verdadeiro ponto em comum de todas as correntes positivistas é

encarar o direito como fruto de convenções, de práticas sociais

complexas. Esta não pretende ser uma definição de direito, mas

apenas um núcleo comum sobre a qual as diversas correntes

positivistas adicionam suas notas distintivas, em especial como se

relacionam e se diferenciam estas práticas e convenções jurídicas

das práticas e convenções morais.

2) Dentre estas diversas teorias positivistas, centramos nossa análise

no positivismo inclusivo, cujas origens remontam à década de 70 do

século passado. Apesar da peculiar natureza defensiva da teoria,

que fez com que em muitos momentos o debate se centrasse sobre

a viabilidade de uma teoria e não sobre a realidade do direito, e

apesar da questão por muitas vezes parecer um diálogo de surdos

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104

centrado apenas em etiquetas e debates nominais, o positivismo

jurídico inclusivo logrou apresentar respostas convincentes aos

desafios que se lhe colocaram, provando ser uma teoria

conceitualmente viável, capaz de manter a pretensão hartiana de se

tratar de uma teoria descritivo-explicativa e de dar conta dos padrões

morais inseridos nos ordenamentos jurídicos dos estados

constitucionais.

3) Mesmo dentro da corrente inclusiva, vimos que também existem

fortes divergências, sendo a principal delas em relação ao caráter

necessário ou suficiente que a moral pode desempenhar na

identificação do direito. Ambas as versões são conceitualmente

viáveis, mas apenas aquelas teorias que encaram a moral como

condição necessária e não suficiente – Waluchow, Moreso, Kramer -

possuem viabilidade e aplicação prática, sendo portanto

consideradas por nós preferíveis em relação a outras teorias

inclusivas que admitem a suficiência da moral para determinação do

direito.

4) Qual será o desfecho para o referido debate não se pode precisar.

Trata-se de uma disputa ainda candente e sobre a qual ainda se

despenderá muita energia, tanto na teoria do direito como no direito

constitucional. De certo resta apenas que o positivismo jurídico não

é uma teoria decadente e ultrapassada, incompatível com o estágio

do processo civilizatório e que deva ser abandonada em nome de

teorias “neos” e “pós”. Cuida-se de uma teoria viva, que, com ou sem

qualificativos, continua buscando a teorização descritivo-explicativa

dos ordenamentos jurídicos, inclusive aqueles permeados por

cláusulas valorativas, como os estados constitucionais

contemporâneos.

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6.

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