Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos...
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Bernardo Abreu de Medeiros
Positivismo Jurídico Inclusivo: a
possibilidade de incorporação de
valores morais ao direito nos
estados constitucionais
contemporâneos
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Teoria do Estado e Direito
Constitucional da PUC-Rio como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Adrian Sgarbi
Rio de Janeiro, junho de 2009.
Bernardo Abreu de Medeiros
Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos estados constitucionais contemporâneos .
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Adrian Sgarbi Orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. Alejandro B. Alvarez Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. Noel Struchiner Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. Marcelo de Araújo UERJ
Prof. Nizar Messari
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 17 de junho de 2009.
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
Universidade, do autor e do orientador.
Bernardo Abreu de Medeiros
Graduou-se em Bacharel em Direito no ano de 2006
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-Rio)
Ficha Catalográfica
CDD: 340
Medeiros, Bernardo Abreu de Positivismo jurídico inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos estados constitucionais contemporâneos / Bernardo Abreu de Medeiros ; orientador: Adrian Sgarbi. – 2009. 113 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Direito)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. Direito – Teses. 2. Positivismo jurídico. 3. Teoria do direito. 3. Incorporacionismo. I. Sgarbi, Adrian. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.
Aos meus.
Agradecimentos
Agradecer não é tarefa simples. Tantos foram aqueles que contribuíram
de maneira decisiva para nessa longa caminhada que corro sério risco de
esquecer alguém. Neste percurso de incerteza, descobertas e mais incertezas, a
ajuda, compreensão e incentivo são incomensuráveis.
Agradeço inicialmente à minha família, especialmente à minha mãe, pela
compreensão e carinho dispensados, aditivos essenciais que me garantiram
percorrer esse árduo e gratificante trajeto.
Aos amigos que fiz aqui e aos que trago da vida, e com quem
compartilhei vitórias e angústias, especialmente, Helena Colodetti, Thamis
Dalsenter, Daniel Giotti e o velho companheiro Jorge Chaloub.
Aos parceiros de luta pelas searas da teoria do direito e com quem travei
frutíferos debates e revi minhas concepções, em especial, Janaina Matida, Fabio
Shecaira, Rodrigo Tavares e Ronaldo Dias.
Ao Professor Adrian Sgarbi, meu profundo agradecimento por despertar o
interesse pelo tema e pela dedicação e parceria pra conclusão deste trabalho.
Aos sempre solícitos Professores Noel Struchiner, cujos debates,
indicações bibliográficas, apoio e estímulo foram indispensáveis para esta
dissertação; e José Ribas Vieira; com sua estimulante obsessão pelo
conhecimento e pela vida acadêmica.
Aos demais professores que tive o privilégio de conhecer e interagir ao
longo do mestrado, muitos dos quais são figuras centrais desta dissertação e se
dispuseram a prestar todo auxilio possível nessa jornada: Wilfrid Waluchow,
Angéles Ródenas, Juan Carlos Bayón, Juan Bautista Etcheverry, Manuel
Atienza, José Juan Moreso, Juan Ruiz Manero e Luis Roberto Barroso.
Ao Anderson e à Carmen, funcionários solícitos do Programa da Pós-
Gradação em Direito da PUC-Rio, pela ajuda constante.
À Capes e à PUC, pelos auxílios concedidos e sem os quais este
trabalho não seria possível.
Resumo
MEDEIROS, Bernardo Abreu. Positivismo Jurídico Inclusivo: a possibilidade de incorporação de valores morais ao direito nos estados constitucionais contemporâneos . Rio de Janeiro, 2009, 113p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Poucas questões têm sido tão abordadas ao se discutir teoria do direito e
direito constitucional como a “a crise do positivismo jurídico”. A publicação de O
Conceito de Direito de Hart em 1961 representou um marco na teoria do direito
do século XX, tanto pelas inovações teóricas que aportou, representando um
refinamento da teoria juspositivista, como pelo fecundo debate que gerou. Tal
debate, que se inicia com as primeiras críticas de Dworkin ao positivismo de Hart
em Modelo de Regras I e II, compiladas em Levando os direitos a sério, se
desenvolve até hoje com fortes debates internos ao próprio positivismo jurídico.
Dentre elas, centraremos a análise no positivismo inclusivo, termo cunhado por
Wilfrid Waluchow, mas cujas origens remontam ao início dos anos 70. A principal
proposta de tal corrente é conciliar alguma das críticas de Dworkin com as bases
da tradição positivista. A corrente se constrói refutando de um lado, teses não
positivistas como as de Dworkin e, de outro, teses exclusivas como as de Raz,
buscando assim manter as bases do positivismo jurídico e dar conta de uma das
principais características dos estados constitucionais contemporâneos – a ampla
incorporação de valores ao direito, especialmente nas cartas constitucionais.
Inicialmente, serão abordados os fundamentos da teoria juspositivista,
encarando-a como uma tradição. Em seguida será situado o debate
Hart/Dworkin nesse cenário para analisar seus desdobramentos, focando no
surgimento e consolidação do Positivismo Inclusivo. Finalmente, abordam-se as
contribuições recentes ao debate, fazendo um balanço das teses envolvidas e
discutindo a sua relevância atual.
Palavras-Chave
Positivismo Jurídico – Teoria do Direito - Incorporacionismo
Abstract
MEDEIROS, Bernardo Abreu. Inclusive Legal Positivism: the
possibility of incorporation of morals in law in contemporary
constitutional states. Rio de Janeiro, 2009, 113p. Master Dissertation –
Law Department, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Few issues have been so intensively discussed in legal theory and constitutional
law as "the crisis of legal positivism." The publication of The Concept of Law by
Hart in 1961 represented a milestone in the theory of law of the twentieth century,
both for the theoretical innovations that it contributed, representing a refinement
of the theory juspositivista, as for the fruitful discussions that resulted. This
debate, which begins with the first criticism of Dworkin to Hart’s positivism in the
Model of Rules I and II, and is developed till today with very strong internal
debates in legal positivism. Among them, the analysis focus on inclusive
positivism, a term created by Wilfrid Waluchow but whose origins date back to
the early 70ths The main proposal of this version is to reconcile some of the
criticisms of Dworkin with the tenants of positivist tradition. The proposal was, on
one hand, to reject part of, Dworkin critics to legal positivism, and on the other,
exclusive theories such as Raz’s conception of law, seeking thereby to maintain
the foundations of legal positivism and give an account of the main features of
contemporary constitutional states - the extensive incorporation of moral values,
especially in constitutional charters. Initially, this dissertation seeks for the
grounds of positivist tradition. Then the debate will be located in Hart/Dworkin
scenario to analyze its developments, focusing on the emergence and
consolidation of Inclusive Positivism. Finally, it deals with the recent contributions
to the debate, balancing the arguments involved and discussing its relevance
today.
Key-Words
Legal Positivism, Jurisprudence, Incorporationism
Sumário
1. Introdução
9
2. O nascimento do positivismo jurídico inclusivo
2.1. O positivismo jurídico como tradição
2.2. O refinamento do positivismo jurídico de Herbert Hart
2.3. As primeiras críticas de Dworkin e o início do debate
2.4. As defesas iniciais de um positivismo inclusivo
3. A consolidação do positivismo jurídico inclusivo
3.1.Os embates dos inclusivos: entre Raz e Dworkin
3.2.O positivismo exclusivo de Raz
3.3. Os novos ataques de Dworkin
3.4.O soft positivism de Hart
3.4.1. Críticas de Hart à teoria Dworkiana
3.4.2. Aclarações de Hart às críticas de Dwokin
3.4.3. Teses do soft positivism hartiano
3.5. O positivismo inclusivo de Waluchow
3.5.1. Rebatendo os argumentos de Dworkin
3.5.2. Rebatendo os argumentos de outras versões do positivismo
3.5.3. As conclusões de Waluchow
4. O que resta do debate sobre o positivismo inclusivo
4.1. Contribuições contemporâneas ao positivismo inclusivo
4.2. O debate interno
4.3. Balanço final do debate
5. Conclusão
6. Referências bibliográficas
13
13
27
34
39
42
42
42
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57
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59
61
64
65
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76
78
78
87
92
102
105
1.
Introdução
Tornou-se lugar comum no debate atual sobre teoria do direito e direito
constitucional dar por certa a “crise do positivismo jurídico”. No entanto, suas
origens e conseqüências ainda parecem estar bastante obscuras. Boa parte da
rejeição do juspositivismo no debate brasileiro se dá de forma puramente
retórica, com emprego de expressões de desprezo ao positivismo, que é
apresentado como visão teoricamente ultrapassada e politicamente perigosa.1
Lê-se com freqüência que o positivismo “deixou de ser uma forma
adequada de compreender o direito”2, ou que constitui um “retrocesso”3 ,
constatando assim a sua decadência e a necessidade de se superar a “pesada
crosta do positivismo” e “nos livrar de suas amarras”4. Chega-se a afirmar que na
“idolatria formal-normativista (...) a vítima e o holocausto convivem em paz (...). A
visão vazia dos olhos do positivista tornou-se uma conseqüência até certo ponto
exótica e inesperada, da sua irremediável cegueira moral”5. A derrota do
positivismo é afirmada categoricamente:
“o modelo neoconstitucionalista teórico, que foi vitorioso ao positivismo – ao menos no Brasil -, permitiu a inversão do ônus, pois antes todos era positivistas exclusivos, mas agora o positivismo exclusivo não é mais o modelo aceitável”
6
O tratamento da matéria no Brasil parece estar em profundo
descompasso com os debates da doutrina estrangeira sobre os mesmos temas.
A publicação de O Conceito de Direito de Herbert Hart em 1961 representou um
marco na teoria do direito do século XX, tanto pelas inovações teóricas que
aportou como pelo fecundo debate que gerou. Tal debate se inicia com as
primeiras críticas de Ronald Dworkin ao positivismo de Hart em Modelo de
Regras I e II (1967), compiladas em Levando os direitos a sério, e se desenrola
1 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico. Introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 45, de onde também se colheu boa parte das citações seguintes. 2 BARCELLOS, Ana Paula. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2005, p. 8. 3 STRECK, Lenio. Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.6.
4 CAMARGO, Margarida Lacombe. Hermenêutica e argumentação. Rio de Janeiro: Renovar,
2003, p.139. 5 PASQUALINI, Alexandre, Hermenêutica e sistema jurídico. Porto Alegre: Livraria do
Advogado1999, p. 66. 6 MOREIRA, Eduardo. Neoconstitucionalismo. A Invasão da Constituição. São Paulo: Método,
2008, p. 51.
10
até hoje com fortes debates internos ao próprio positivismo jurídico. Dentre elas,
daremos destaque à corrente do positivismo inclusivo, termo cunhado por Wilfrid
Waluchow, mas cujas origens remontam ao início dos anos 70. A principal
proposta de tal corrente é conciliar alguma das críticas de Dworkin com as bases
da tradição positivista. A corrente se constrói refutando de um lado, teses não
positivistas como as de Dworkin, e, de outro, teses exclusivas como as de
Joseph Raz.
Os objetivos do presente trabalho são 1) analisar a evolução da tradição
positivista e de sua “crise” ; 2) avaliar a possibilidade de incorporação da moral
ao direito e 3) a viabilidade da proposta do positivismo jurídico inclusivo.
No segundo capítulo será abordada a origem do debate, partindo da idéia
de positivismo jurídico como uma tradição de pensamento e tendo como marco a
obra de Hart. Por se tratar de uma discussão quase não abordada na doutrina
nacional, foi feita uma breve digressão às origens do positivismo jurídico e sua
evolução. As inovações trazidas por Hart em relação à tradição positivista da
primeira metade do século XX, e como as críticas lançadas por Dworkin anos
depois constituíram o centro da discussão na teoria do direito. Em apertada
síntese, o centro das refutações de Dworkin à Hart está na impossibilidade de
seu conceito de direito dar conta não apenas de regras, mas de princípios, que,
independentemente de sua positivação, fariam parte do direito. É o seu valor
moral, e não seu critério de fonte que tornam os princípios parte do direito.
As primeiras respostas surgem já no começo da década de 70 com os
trabalhos de Genaro Carrío (1970) e Raz (1972), tentando articular de que
maneira os princípios poderiam estar presentes num conceito positivista de
direito. Soper (1977) e Lyons (1977) elaboram o que é considerado a primeira
defesa de um positivismo inclusivo partindo da possibilidade de incorporação de
valores ou testes de conteúdo ao direito.
Raz elabora então sua tese da autoridade do direito (1975), passando a
se constituir assim no principal nome do positivismo exclusivo, pois, pare ele, o
direito não pode incorporar em nenhuma hipótese critérios morais como
condição de validade, pois o direito é visto como um conjunto de razões
excludentes para ação. Se fosse possível, quando de sua aplicação, discutir os
valores que estão por trás do direito, este não cumpriria seu papel. De outro
lado, Dworkin oferece respostas às críticas que havia recebido por seu modelo
de regras e tece novas críticas ao convencionalismo. É nesse cenário que se
desenvolverá no primeiro capítulo o surgimento do positivismo jurídico inclusivo.
11
O terceiro capitulo será centrado nas obras de Wilfrid Waluchow,
Positivismo Jurídico Inclusivo, e no Pós-escrito que Hart incorpora ao seu O
Conceito de Direito, ambos publicados em 1994. Hart buscou dar respostas a
diversas críticas que sua obra recebera desde a publicação inicial, mas falece
antes de completar sua empreitada. Denominando sua teoria como um
positivismo suave, tentou demonstrar a compatibilidade de suas teses com a
incorporação de princípios morais ao direito. Waluchow consolida uma série de
artigos dos anos 80 e pretende consolidar também a própria idéia de positivismo
inclusivo. A estratégia adotada por ele é elencar uma série de críticas feitas ao
positivismo inclusivo e rebatê-las. Em seguida, pretende mostrar as virtudes que
sua teoria apresenta em relação a outras teorias explicativas do direito.
O quarto capítulo pretende avançar no debate posterior a obra de
Waluchow no terreno do positivismo, discutindo os desdobramentos
contemporâneos do tema, com as contribuições recentes que recebeu. Terão
destaque os intentos de Coleman (2001), Moreso (2002), Ródenas (2003), Villa
(2000), Kramer e Himma (1999), atentando para divergências intrínsecas a
própria versão inclusiva. Por fim, vai-se buscar fazer um balanço de todo o
debate apresentado, a fim de se constatar se a pretensão do positivismo
inclusivo fora atingida e o que restou após tão longos debates.
Desta forma, este trabalho tentará preencher de alguma forma este hiato
entre a discussão da matéria no Brasil e no cenário internacional. Como destaca
Dimoulis, a grande maioria dos trabalhos brasileiros se satisfaz com referências
abstratas a uma abordagem que denomina genericamente de “positivismo
jurídico”, relacionadas quase sempre com a obra de Kelsen, e com menos
freqüência Hart e Ross, como se o positivismo jurídico se encerrasse com obras
de autores nascidos em 1881, 1899 e 1907 respectivamente. “Como explicar
que, após décadas de discussão mundial a controvérsia entre positivismo
jurídico inclusivo e exclusivo permanece ignorada no Brasil?”7
A estrutura do trabalho segue, em muitos pontos, a proposta
metodológica oferecida por Juan Bautista Etcheverry8 e teve como objetivo
principal oferecer um mapa do debate em questão, percorrendo os principais
artigos publicados sobre o tema nos últimos quarenta anos. Como quase a
totalidade das publicações nas quais este trabalho se pautou foram escritas em
7 DIMOULINS, Positivismo Juridico, op. cit., p. 134.
8 ETCHEVERRY Juan Bautista, El debate sobre el Positivismo Juridico Incluyente. Un estado de la cuestión.UNAM: México, 2006.
12
Inglês ou Espanhol e não possuem tradução para o Português, foi adotada a
livre tradução para nosso idioma nas citações. No casos em que já havia
tradução oficial para o Português, esta foi adotada.
Tal debate ainda se encontra candente e não se pode precisar o seu
desfecho. No entanto, pode-se afirmar com segurança que, ao contrário do que
grande parte da doutrina nacional faz parecer, o positivismo jurídico é uma
tradição viva que não foi enterrada junto com Kelsen.
2.
O Nascimento do Positivismo Jurídico Inclusivo
2.1 O positivismo jurídico como tradição
O positivismo jurídico constitui um conjunto de proposições teóricas em
torno de determinados aspectos fundamentais do ordenamento jurídico, como
sua definição e relação com outros fenômenos normativos.7 Sob a etiqueta de
“positivismo jurídico”, muitos autores afirmaram teses diversas, logicamente
independentes e até mesmo conflitantes8. A preocupação inicial será apresentar
tal corrente de pensamento como uma tradição que começa a se estruturar com
a formação do Estado Moderno e se desenvolve desde então, ocupando papel
central na teoria do direito.
Embora alguns autores sustentem que os partidários do positivismo jurídico
tenham sofrido influência do positivismo filosófico, tal qual definido a partir do
pensamento de Auguste Comte (1798-1857) e seus seguidores, estes não se
confundem9. A denominação “positivista”, com destaca Dimitri Dimoulis, não
7 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico. Introdução a uma teoria do direito e defesa do
pragmatismo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006, p. 66. Cf. STRUCHINER, Noel. “Algumas „Proposições Fulcrais‟ acerca do Direito: O Debate Jusnaturalismo vs. Juspositivismo” in Perspectivas Atuais da Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 399-415. 8 Cf. BIX, Brian. “Legal Positivism”. In GOLDING e EDMUNDSON (org) The Blackwell Guide to the
Philosophy of Law and Legal Theory. Victoria: Blackwell, 2006, p. 29-49; HART, Herbert. “Positivism and the separation of Law and morals” Harvard Law Review, 71, 1958, p. 593: BOBBIO, Norberto. El problema del positivismo juridico. México: Fontamara, 1999, p. 37-64: CARRIÓ, Genaro. “Princípios Jurídicos y Positivismo Juridico” in Notas sobre Derecho y Lenguaje. Buenos Aires: Abeledo Perrot, 2006, p. 203 et seq. 9 É recorrente na doutrina nacional a vinculação entre positivismo filosófico e positivismo jurídico.
Por todos, cf Luis Roberto Barroso, para quem “o positivismo jurídico foi a importação do positivismo filosófico para o mundo do direito”. ”Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro” in BARROSO (Org) A Nova Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p.24. No entanto, embora possa ter havido algum tipo de influência de um em outro, trata-se de correntes distintas de pensamento. Cf. DIMOULIS, Dimitri, op. cit., p. 66 “É inegável que os partidários do PJ foram influenciados pelo positivismo filosófico, como se percebe na tendência de rejeitar teses metafísicas e/ou idealistas sobre a natureza do direito, concentrando-se em fatos demonstráveis, tais como a criação de normas jurídicas pelo legislador político.” Neste sentido, positivismo seria o “sistema filosófico formulado por Auguste Comte, tendo como núcleo sua teoria dos três estados, segundo a qual o espírito humano, ou seja, a sociedade, a cultura, passa por três etapas: a teleológica, a metafísica e a positiva. As chamadas ciências positivas surgem apenas quando a humanidade atinge a terceira etapa, sua maioridade, rompendo com as anteriores. As ciências se ordenariam hierarquicamente, cada uma tomando por base a anterior e atingindo um nível mais elevado de complexidade. A finalidade ultima do sistema é política: organizar a sociedade cientificamente com base nos princípios estabelecidos pelas ciências positivistas”. (JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 217.) Ainda de acordo com os autores, num sentido mais
14
deriva do movimento filosófico, mas do termo ius positivum ou ius positum,
indicando a preocupação com o estudo do direito posto.10
Termos ligados à positividade do direito passam a ser correntemente
utilizados a partir da terceira década do século XII na Europa, indicando o direito
criado e imposto pelo legislador. Já na obra de Hugo de Saint-Victor do ano de
1127 – Didascalicon – há menção ao termo iustitia positiva. 11 No entanto,
Pattaro identifica a origem remota do uso do termo no século IV d.C., na
tradução de Calcídio de diálogos platônicos para o Latim12. Já na compilação do
Imperador Romano Justiniano, o Corpus Iuris Civilis, publicado entre os anos
529 e 534, a expressão legem ponere aparece pela primeira vez como termo
jurídico.13
Segundo Fassò, é na obra de Pedro Abelardo (1079-1142), filósofo tido
como o mais racionalista dos escolásticos, e em outros escritos anônimos da
época que a expressão ius positivum é encontrada, revelando que a
“positividade” a que o positivismo jurídico se referia era a concepção formal das
normas, o estar estabelecidas por um ente a que se atribuía o poder exclusivo
de criar o direito, e, em definitivo, em referência àquela qualidade sua pela qual
desde os últimos anos do período medieval, o direito formalmente vigente se
chamava positivo, por haver sido precisamente posto, positum, por uma
autoridade.14 15
Todavia, é na obra do francês Jean Bodin (1529-1596) – Os Seis Livros da
República – que idéias positivistas começam a ganhar densidade, já que o autor
considera que as leis existem única e exclusivamente por força da vontade do
soberano, embora, para Bodin, o soberano estivesse submetido a leis divinas e
naturais16. No entanto, Bodin apresenta as leis da sociedade como fruto da
amplo e vago, “positivismo” pode ainda designar outras teorias do século XIX como a de Mill, Spencer e Mach que se caracterizam pela valorização de um método empirista e quantitativo, pela defesa da experiência sensível como fonte principal do conhecimento, pela hostilidade em relação ao idealismo, e pela consideração das ciências empírico-formais como paradigmas de cientificidade. (Idem) 10
DIMOULIS, op. cit. , p. 68. 11
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1999, p. 239. 12
PATTARO, Enrico (org). A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence, Dordrecht: Springer, 2005, p. 80 13
Idem. 14
FASSÒ, Guido. História de la Filosofia del Derecho. Madrid: Pirámide, 1996, vol. 1 p. 172-173 e vol. 3 p. 151-152. 15
Apesar da origem do termo ser milenar, o positivismo jurídico como uma abordagem quanto à natureza do direito, podendo ser assim considerado uma “teoria”, tem cerca de dois séculos de existência, a partir da Jurisprudence inglesa, como se verá adiante. 16
BODIN, Jean. Six Books on the Commonwealth. Trad. M. J. Tooley. Oxford: Basil Blackwell Oxford, 1955. Disponibilizado no endereço eletrônico: http://www.constitution.org/bodin/bodin_.htm
15
vontade do legislador, ao contrário do pensamento dominante da Idade Média
que adotava um pluralismo de fontes, entendendo as leis como decorrentes da
vontade do povo, da Igreja, dos senhores feudais e dos juristas.17
Thomas Hobbes (1588-1679) também ocupa elevado destaque na
consolidação do pensamento positivista18. Ele não abre mão da crença na
existência de um direito natural, mas faz fortes críticas a ele, centradas,
sobretudo, na insegurança gerada. De acordo com Hobbes, o conceito de direito
poderia ser estabelecido de forma convencional, ao invés de se partir da
observação da realidade.19
Apesar de existir certa recusa em classificá-lo como um positivista, muitas
das idéias de Hobbes estão intimamente ligadas a esta corrente, apresentando
algumas características típicas do positivismo como o formalismo e o
imperativismo20. Ao vincular o direito ao mandato de um soberano, subscreve a
tese das fontes sociais. Além disto, o autor nega a existência de alguma forma
de justiça objetiva independente do direito. Portanto, em nome da necessidade
de garantir os valores pelos quais existem a comunidade política, sobretudo a
ordem, a segurança pessoal e a vida dos cidadãos é que se deve refutar uma
idéia de direito que o vincule com a de justiça ou injustiça.21 Assim, mesmo que
não se possa considerar Hobbes como um autor positivista na inteireza do
termo, uma vez que admite a existência de um direito natural ao lado do direito
positivo, certamente é um autor de transição entre as duas correntes e de suma
importância para o pensamento positivista.22
Todas estas premissas teóricas vêm a se consolidar paralelamente ao
estabelecimento do Estado Moderno e a correspondente monopolização do
poder político pelos aparelhos estatais, aliados a ideais racionalistas de
produção do direito. As codificações do século XIX refletem a materialização
deste pensamento.
No século XIX, as raízes da análise positivista do direito podem ser
encontradas nas obras de juristas franceses e belgas da École de l’Exégèse,
que compreendiam o direito como aquilo e apenas aquilo criado pelo legislador.
17
DIMOULIS, op. cit., p. 69. 18
PALÁ, Pedro Rivas. El retorno a los orígines de la tradición positivista. Madrid: Civitas, 2007, p. 17; BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit, p. 36; DIMOULIS, Positivismo Jurídico, op.cit., p.69. 19
PALÁ, El retorno a los orígines de la tradición positivista , op. cit., p.17 et seq . 20
Bobbio, por exemplo, considera estes alguns dos “pontos fundamentais” da doutrina juspositivista. Cf. BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit., p. 131 et seq. 21
PALÁ, El retorno a los orígines de la tradición positivista , op. cit., p.18 22
BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 146-147.
16
O marco histórico dessa corrente foi o Código de Napoleão de 1804. A idéia da
codificação surge na segunda metade do século XVIII como fruto do
pensamento iluminista, e representa uma experiência jurídica dos dois últimos
séculos típica da Europa continental.23 Nesse contexto, surge a Escola da
Exegese, centrada numa interpretação passiva e mecânica do Código. A técnica
adotada assume pelo trato científico a mesma distribuição da matéria adotada
pelo legislador, resumindo-se tal tratamento a um comentário, artigo por artigo,
do Código.24 Seus autores se fundavam na primazia do direito positivo sobre o
direito natural 25, a concepção rigidamente estatal do direito, a interpretação da
lei fundada na vontade do legislador, o culto ao texto da lei e o respeito pelo
princípio da autoridade.26
Na Alemanha, o primado do pensamento positivista é atribuído à Escola
Histórica do Direito, com forte rejeição ao jusnaturalismo e ao universalismo,
centrado suas análises no direito vigente de seu país. Seu maior expoente foi
Friedrich Carl von Savigny, e o ponto central da referida Escola era encarar o
direito não como um fruto da idéia da razão, mas como um produto da história.27
Nos países do commom law, onde o movimento codificador tem traços
totalmente distintos da Europa continental, a concepção positiva do direito está
ligada ao desenvolvimento da Jurisprudence, termo utilizado para designar a
teoria geral do direito. É a partir deste momento que se pode falar numa
verdadeira “teoria” do direito positivo, que buscava delimitar a sua natureza e
objeto. Nesse contexto, dois nomes foram decisivos: Jeremy Bentham e John
Austin.
Jeremy Bentham publica em 1789 a obra An introduction to the principles
of morals and legislation (Introdução aos princípios da moral e da legislação),
ponto de referência na sua concepção jusfilosófica. Bentham desenvolve uma
23
BOBBIO, O Positivismo Jurídico, op. cit. p. 63 24
Ibid, p. 78 25
Em virtude da bimilenar tradição cultural do direito natural, os expoentes da escola exegética não ousaram negar tal direito, mas desvalorizaram sua importância e significado prático. 26
Ibid, p. 83-89. Dentre os principais autores da corrente destacam-se: Alexandre Duranton, Charles Aubry, Frédéric Charles Rau, Jean Demolombe e Tropolong. Há quem discorde da visão usualmente atribuída á Escola da Exegese. Cf. REMY, Philippe. “Éloge de L‟Exégèse”. Revue de Recherche Juridique, n.1, 1982, p. 254-266. Para Remy, não se tratou verdadeiramente de uma “escola”, mas de uma “grande obra”, cuja filosofia característica é a da liberdade. Se ao invés de se ater apenas aos prefácios das obras da “escola” busca-se a sua essência, vê-se que elas vão além da exegese da letra da lei e encontrar-se-ão afirmações de opiniões políticas pessoais, como a de Duranton, que sustentara que “uma lei injusta é antes uma anomalia que uma lei”. 27
Em oposição ao “culto ao código” da Escola da Exegese, Savigny era contrário à codificação do direito da Alemanha de sua época por considerar que este se encontrava em um período de decadência, carecendo assim da maturidade necessária à codificação, que ao invés de resolver os males do direito alemão, poderia agravá-los. ( BOBBIO, 1999, p. 57-62)
17
concepção utilitarista e a aplica na produção legislativa, partindo de uma visão
antinaturalista e antiracionalista. Sua publicação é fruto da compilação dos textos
escritos em 1780 com uma nota sobre a Declaração Americana dos Direitos do
Homem. A obra se abre com a colocação do princípio da utilidade: o bem-estar
(felicidade) é o fim último do homem, e, por conseguinte, a busca do prazer e a
fuga da dor constituem os motivos de todas as ações. 28
O princípio da utilidade tem origem no epicurismo. Não sendo o objetivo
deste trabalho uma análise do utilitarismo enquanto postura filosófica, podemos
apenas indicar três teses que são compartilhadas pelos diversos pensadores
desta corrente. A primeira delas sustenta que direito e Estado se baseiam na
busca do útil, e não em um princípio superior de justiça. Em segundo lugar, não
haveria um direito nem um estado sem fim. Esse fim é exatamente a busca do
maior bem estar pelo maior número de pessoas. Finalmente, direito e Estado
são concebidos como sistemas de equilíbrio social de interesses individuais para
assegurar o interesse coletivo.
Particularmente, o utilitarismo de Bentham é centrado na concepção
realista do útil, e assim, toda norma jurídica deve ser analisada sob o aspecto do
quanto ela é capaz de aumentar o bem estar coletivo, tido como a soma dos
interesses individuais. Ele enuncia o princípio da utilidade, afirmando que “a
natureza colocou o homem sob domínio de dois senhores soberanos: a dor e o
prazer” 29. Assim, o “princípio da utilidade recorre à sujeição e a coloca como
fundamento do sistema, cujo objetivo consiste em construir o edifício da
felicidade através da razão e da lei”. 30
Bentham tece duras críticas a William Blackstone, que fora discípulo de
John Locke e representava um ícone do pensamento jusnaturalista no Reino
Unido, concebendo a lei como a vontade de Deus manifestada sobre todas as
coisas. Para Bentham, o direito é um instrumento para atingir fins. O direito
natural não existiria, sendo apenas expressões vazias de sentido. O common
law representa incerteza e insegurança.31
A figura do soberano deveria se sustentar sobre dois poderes distintos: o
poder imperativo, isto é, o poder de produzir normas; e de outro lado, um poder
28
Cf. SGARBI, Adrian. A Teoria do Direito de Jeremy Bentham , 2009, mimeo; FASÒ, História de La Filosofia Del Derecho, op. cit., p. 30 et se.q 29
BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 3 30
Idem. 31
Cf. HART, Herbert. “The demystification of the law”. In Essays on Betham. Jurisprudence and Political Theory. Oxford: Clarendon, 2001, p. 26.
18
físico de infligir sanções. A sanção era tida como o instrumento jurídico de
realização do utilitarismo
Além da influência direta de Hobbes, pode-se notar uma forte influência do
pensamento de Helvetius, ao fazer da “lei do interesse” a analogia, para o
universo moral, das leis do movimento do universo prático; e de Beccaria, que
havia retomado a analogia extraindo conseqüências para legislação32, sobretudo
penal, confiando-lhe a tarefa de “conduzir os homens ao máximo de felicidade
ou ao mínimo de infelicidade possível para aludir a todos os cálculos dos bens e
dos males da vida.” 33
A originalidade do pensamento de Bentham não está tanto no
estabelecimento de uma teoria utilitarista simplesmente, mas nas severas
críticas às teorias do direito natural e seus prolongamentos políticos. Opõe-se
diretamente às teses que pretendem fazer da lei natural, e não da utilidade, o
princípio da legislação: dizer que há uma regra eterna e imutável do direito,
evocar o direito natural, a eqüidade natural, os direitos do homem, é, com efeito,
julgar arbitrariamente que tal ação é boa ou má não porque ela aprove ou
contrarie o interesse daqueles em questão, mas porque ela agrada ou
desagrada àquele que julga.34 O princípio de direito natural é, na verdade, um
princípio de “simpatia ou antipatia” - já que aqueles que se valem do direito
natural só fazem, graças a noções abstratas que são puras ficções (necessidade
do empirismo), ditar seus sentimentos como leis e se arrogar o privilégio da
infalibilidade.
São, portanto, as leis positivas, arrumadas pelo legislador com o intuito de
maximizar ou minimizar os prazeres, as únicas que dão existência aos direitos.
As leis reais dão nascimento aos direitos reais, enquanto o direito natural é
apenas uma criação da lei natural, que nada mais é do que uma ficção, logo,
como nada vem do nada, o direito natural não é nada.
Declarações de direitos do homem são jargões vazios de sentido, pois não
há direitos anteriores às leis. No entender de Bentham, o pretenso benefício das
Declarações seria, segundo seus autores, prevenir toda invasão das leis
positivas sobre a liberdade dos cidadãos, ou toda ameaça dessas mesmas leis à
sua igualdade. Ora, não só essas Declarações são ineficazes e não impedem de
maneira nenhuma tais ameaças e tais invasões, como também são geradoras da
32
FASSÒ, Op. Cit, p. 30. 33
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2006, p. 109. 34
Cf. BENTHAM, Jeremy. A fragment on government. London: T Payne, 1776, p. 8 et seq
19
anarquia por causa da imprecisão de suas noções: dizer que os homens têm
direitos naturais à igualdade e à liberdade, sem maiores esclarecimentos, é
convidar o individuo a se levantar, em nome destes valores abstratos, contra as
leis existentes, a negar estas leis reais em nome de uma fictícia lei natural,
convida-se assim cada um a erigir seu capricho em uma pretensa lei diante da
qual as leis positivas deveriam se destruir.35
Pouco mais de quarenta anos depois, Austin busca definir o objeto do
estudo do direito em sua principal obra, The province of jurisprudence
determined (A Delimitação do Objeto do Direito - 1832)36, e o faz o limitando ao
estudo do direito positivo, isto é o direito imposto por superiores aos seus
súditos. Diversos autores apontam Austin como o fundador do positivismo
jurídico.37
Para Austin, antes de se entender a aplicação do direito se fazia
necessário entender a dimensão do direito, separando-o de tudo aquilo que
assim não o era.
O fim ou o propósito das seis lições seguintes consiste em distinguir as leis positivas ( o objeto do direito) das coisas antes enunciadas: coisas com as quais se relacionam por semelhanças e analogias, por seu nome comum de „leis‟ e com as quais, por conseguinte, se mesclam e se confundem com freqüência. Portanto, em virtude de que este é o propósito principal das seis lições seguintes, as denomino, considerando-as em seu conjunto, „o objeto do direito‟. Já que este é o seu principal propósito, as seis lições intentam trazer o limite que separa o campo do direito das zonas que se encontram em seus confins.
38
Austin é pioneiro em distinguir com clareza a existência de uma norma do
seu conteúdo.
A existência de uma lei é uma coisa; seu mérito ou demérito, outra. Se existe ou não, é uma questão; se acomoda ou não a um presumido modelo, é questão diferente. Uma lei que realmente exista é uma lei, ainda que desgostemos dela, ou ainda seja disforme quando a respeito de critério com o qual governamos nossa aprovação ou desaprovação. Esta verdade, quando se afirma em abstrato, é tão simples e evidente como parece ocioso insistir nela. Porém, apesar de simples e evidente como parece em abstrato, tem sido esquecida em muitos casos concretos, e a enumeração de exemplos chegaria a um volume completo
39
35
BENTHAM, Jeremy. “La estructura del derecho” in CASANOVAS, P. e MORESO J. J.(org) , El ámbito de lo jurídico: Lecturas del pensamiento jurídico contemporáneo . Barcelona: Crítica, 1994 p. 132-146. Cf. BENTHAM, Jeremy. “Anarchichal Fallacies” in BOWRING, John (org). Works of Jeremy Bentham, vol. II. Edimburgh: William Tait, 1843. 36
Para uma análise sistemática da obra, cf. SGARBI, Clássicos de Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 37
BIX, Brian “Legal Positivism”, op. cit. p. 29. 38
AUSTIN, Jonh. El objeto de la jurisprudencia. Madrid : Marcial Pons , 2002, p.26. 39
Ibid, p. 188
20
O conceito de lei, para Austin, é dado pelo trinômio desejo, dano e
comunicação do desejo, numa estrutura de forte cunho utilitarista, na esteira de
Bentham, segundo a qual para evitar uma dor indivíduos racionais se
comportariam de acordo com as leis. O desejo a que se refere Austin é a
manifestação de vontade de um ser racional, o soberano, a outro ser racional
para que faça ou omita algo. Soberano é aquele habitualmente obedecido e
fonte de todo o direito. As leis que não se enquadram neste trinômio são
consideradas leis anômalas, porque são interpretativas, revogadoras ou
imperfeitas.
Austin rejeita as teorias contratualistas, pois constituem uma construção
não empírica, tratando-se de uma ficção, uma hipótese desnecessária e
supérflua. “o pacto dificilmente obrigaria os súditos originários ou sucessivos (..)
toda convenção jurídicamente vinculativa (ou qualquer convenção propriamente
dita) deriva sua eficácia jurídica de uma lei positiva.”40
Confrontando a postura de Bentham com a de Austin vemos que ambos
desenvolvem uma teoria de cunho utilitarista e delimitam o direito como um
conjunto de leis, sendo estas aquelas feitas pelo soberano. No entanto, Bentham
defende a codificação como forma de dar segurança ao sistema, e Austin não
considera o common law irracional, pois é delegado pelo soberano. Ademais,
Bentham se preocupa em tecer críticas ao direito natural através da negação da
existência de leis naturais, enquanto o foco de Austin é uma preocupação
metodológica de distinção entre direito e moral.
Uma vez concretizado um primeiro trabalho do positivismo jurídico de
delimitar o objeto do direito, vinculando-o ao direito posto pelo soberano,
refutando o pensamento jusnaturalista de um lado, e estabelecendo a distinção
entre a existência e o conteúdo das normas de outro, foi possível a teoria
juspositivista do século XX avançar sobre novos aspectos.
O principal pensador do positivismo jurídico da primeira metade do século
XX foi sem sombra de dúvida Hans Kelsen (1881 – 1973). A Teoria Pura do
Direito, mais do que a sua principal obra escrita, é um projeto de definição do
direito enquanto ciência.
Um esclarecimento inicial necessário em relação à pureza referida. O que
Kelsen pretende elaborar é uma teoria pura do direito, e não uma teoria do
40
Ibid, p. 301.
21
direito puro.41 Isto é, a pureza se refere à teoria, à doutrina, à ciência do direito, e
não ao direito em si. Kelsen não aceita a existência de direito sem valores42
Aclarado este ponto, vale destacar que teoria kelseniana se baseia na
existência de dois mundos distintos: o mundo do ser e o do dever ser. O mundo
do ser, que é, por exemplo, o da natureza, há uma ligação direta entre um fato e
uma conseqüência. Se eu solto um corpo no ar, ele cai atraído pela gravidade.
Já no mundo do dever ser, como a moral, a religião, o direito, há, entre o fato e a
conseqüência, uma imputação. Assim, para os fenômenos da natureza, vale o
princípio da causalidade: se “A”, então “B”. Esse é o campo da proposição, da
descrição, da ciência. Por outro lado, para os fenômenos normativos, o princípio
aplicável é o da imputação, tipo da norma e fruto da vontade.
Kelsen aprimora a definição de direito do legado positivista, estabelecendo
três critérios de delimitação do seu objeto: direito é uma técnica social
específica, direito usa a força monopolizada pelo Estado e direito pertence ao
mundo do dever43
Direito não tem uma finalidade em si; é uma técnica de controle social, e
como técnica, serve a quem a utiliza. O direito é uma técnica de motivação
indireta das condutas humanas. Indireta porque o comportamento conforme é
obtido através do uso de sanções punitivas socialmente organizadas.
A conduta em conformidade com a ordem é conseguida por uma sanção proporcionada pela própria ordem. O princípio de recompensa e punição – o princípio da retribuição - , fundamental para a vida social, consiste em associar uma conduta em conformidade com a ordem e a conduta contraria à ordem com a promessa de uma vantagem ou com a ameaça de uma desvantagem, respectivamente, na condição de sanções.
44
Disso decorre que a paz produzida pelo direito apenas pode ser
relativa, porque ao se entender paz como “ausência de força”, utilizando-se o
direito necessariamente da força a paz obtida não pode ser absoluta.
41
Para este ponto, cf. SGARBI, Adrian. Hans Kelsen. Ensaios Introdutórios (2001-2005). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 2 et seq. 42
Kelsen refuta a possibilidade de valores morais absolutos, não se podendo determinar um elemento comum aos conteúdos das diferentes ordens morais. Nem mesmo valores como “paz” seriam absolutos: “Mas já Heráclito ensinou que a guerra não só é o “pai”, isto é, a origem de tudo, mas também o “rei”, isto é, a mais alta autoridade normativa, o mais alto valor, sendo, portanto, boa, que o Direito é luta e que a luta, por isso, é justa. E até Jesus diz: “Eu não vim para trazer a paz à terra, mas a discórdia” e, portanto, não proclama de forma alguma, pelo menos para a ordem moral deste mundo, a paz como o valor mais alto.” KELSEN, [1961], p. 46. No entanto, reconhece que todo direito constitui um valor moral relativo “Sob estes pressupostos, a afirmação de que o Direito é, por sua essência, moral, não significa que ele tenha um determinado conteúdo, mas que ele é norma e uma norma social que estabelece, com o caráter de devida (como devendo-ser), uma determinada conduta humana. Então, neste sentido relativo, todo o Direito tem caráter moral, todo o Direito constitui um valor moral (relativo).” Idem. 43
SGARBI, Clássicos de Teoria do Direito…, op. cit. p. 35. 44
KELSEN, Hans. O que é justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. [1941] São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 225-226.
22
A paz é uma condição em que a força não é usada. Nesse sentido da palavra, o Direito provê apenas a paz relativa, não absoluta – ele priva o individuo do direito de empregar a força, mas reserva-o à comunidade. A paz do Direito não é uma condição de ausência absoluta de força, um estado de anarquia; é uma condição de um monopólio de força da comunidade
45
A segunda característica do direito informa que a sanção não é exclusiva
do direito, mas ele monopoliza a força. Se a religião monopoliza a força ela se
confunde com o direito como em Estados fundamentalistas. A ordem jurídica se
diferencia da ordem normativa moral pelo modo mediante o qual prescreve ou
proíbe certa conduta.
A questão da necessidade do Direito é idêntica à questão da necessidade do Estado. Pois o estado é uma ordem coercitiva, uma ordem jurídica, relativamente centralizada, relativamente soberana – uma comunidade constituída por tal ordem jurídica. Se o estado for definido como uma organização política, isso significará uma ordem coercitiva. O elemento especificamente político consiste em nada mais que o elemento de coerção.
46
Pelo terceiro critério, o mundo do ser significa realidade natural (mundo
físico), plano existencial determinado pela ocorrência de um nexo naturalístico
necessário, o qual o pensamento humano meramente constata. O mundo do
dever é o mundo normativo, explicado pelo princípio da imputação.
A forma verbal em que são apresentados tanto o princípio da causalidade como o da imputação é um juízo hipotético em que um determinado pressuposto é ligado a uma determinada conseqüência. O sentido da ligação, porém, é – como já vimos – diferente nos dois casos. O princípio da causalidade afirma que, quando é A, B também é (ou será). O princípio da imputação afirma que quando A é, B deve ser. Como exemplo de uma aplicação do princípio da causalidade numa lei natural concreta, remeto para lei já referida, que descreve a ação do calor sobre os metais. Exemplos de aplicação do princípio da imputação no domínio das ciências sociais normativas são: quando alguém te fez algum bem, deves mostrar-te agradecido; quando alguém sacrifica a sua vida pela pátria, sua memória deve ser honrada; quando alguém pecou, deve fazer penitência.
47
Apresentada a sua própria teoria de delimitação do direito, Kelsen passa a
apresentar sua estruturação de aplicação do direito, definindo validade e
apresentado a dinâmica de aplicação das normas sintetizada na figura da
pirâmide normativa e no conceito de norma fundamental.
Validade expressa a compreensão de que determinada norma existe e
que, por existir, é juridicamente obrigatória. Para Kelsen há dois tipos de
45
Ibid, p. 232 46
Ibid, p. 233 47
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito [1960]. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2003.p. 100.
23
derivação possíveis: o estático e o dinâmico.48 Sistemas jurídicos são dinâmicos
porque as normas têm origem em uma complexa organização de produção
normativa por competência e delegação de competência. Nos sistemas
estáticos, como os morais, a derivação normativa é dada por uma seqüência de
deduções lógicas (ilações)
As normas de um ordenamento do primeiro tipo [estático], quer dizer, a conduta dos indivíduos por ela determinada, é considerada como devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. Assim, por exemplo, as normas: não devemos mentir, não devemos fraudar, devemos respeitar os compromissos tomados, não devemos prestar falsos testemunhos, podem ser deduzidas de uma norma que prescreve a veracidade. Da norma segundo a qual devemos amar o nosso próximo, não devemos, especialmente, causar-lhe a morte, não devemos prejudicá-lo moral ou fisicamente, devemos ajudá-lo quando precise de ajuda. Talvez se pense que a norma da veracidade e a norma do amor ao próximo se podem reconduzir a uma norma ainda mais geral e mais alta., porventura a norma: estar em harmonia com o universo. Sobre ela poderia então fundar-se uma ordem moral compreensiva. Como todas as normas de um ordenamento deste tipo já estão contidas no conteúdo de uma norma pressuposta, elas podem ser deduzidas daquela pela via de uma operação lógica, através de uma conclusão geral para o particular. Esta norma, pressuposta como norma fundamental, fornece não só o fundamento de validade como o conteúdo de validade das normas dela deduzidas através de uma operação lógica. Um sistema de normas cujo fundamento de validade e conteúdo de validade são deduzidos de uma norma pressuposta como norma fundamental é um sistema estático de normas. O princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um princípio estático. (...)
O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou - o que significa o mesmo - uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental..
49
Seguindo o sistema dinâmico apresentado, a validade de uma norma pode
ser rastreada até se alcançar a Constituição histórica primeira, a primeira
constituição daquela ordem jurídica, usualmente marcada por um ato de
independência de um Estado frente a outro. Neste final do caminho, poder-se-ia,
outra vez, questionar qual seria o fundamento de validade desta constituição
histórica primeira, porque, na falta de alguma fundamentação normativa, todas
as demais normas perderiam seus respectivos suportes de validade. Essa busca
sem fim constitui o “problema da fundamentação normativa”.
É para dar a resposta a este regresso provocado pelo imperativo de se
indicar, sempre, a “norma validamente superior” que Kelsen elabora a “teoria da
48
Ibid, p. 217-221 49
Idem.
24
norma fundamental”. Segundo Kelsen, a norma fundamental corresponde à
postura necessária e intelectual de se considerar válida como marco jurídico-
positivo inicial a constituição histórica primeira não mais em disputa, pois esta é
uma pressuposição imprescindível para poderem se identificar as normas da
ordem jurídica.50
Todavia, a “teoria da norma fundamental” não é uma construção
totalmente original de Kelsen. Embora já houvesse aparecido com contornos
mais definidos em 1920, no seu livro “O Problema da Soberania e a Teoria do
Direito Internacional”, a idéia já fora desenvolvida anteriormente por Alfred
Verdross51, que reconheceu a norma fundamental como uma hipótese
relacionada ao material do direito positivo analogamente à hipótese da ciência
natural. De toda sorte, importa destacar que, apesar de não ter sido Kelsen o
precursor da exposição do tema da norma fundamental em termos iniciais, tendo
dela feito uso em seus trabalhos, imprimiu-lhe elaboração pessoal.
Se queremos conhecer a natureza da norma fundamental, devemos sobretudo ter em mente que ela se refere imediatamente a uma Constituição determinada, efetivamente estabelecida, produzida através do costume ou da elaboração de um estatuto, eficaz em termos globais; e mediatamente se refere à ordem coercitiva criada de acordo com essa Constituição, também eficaz em termos globais, enquanto fundamenta a validade da mesma Constituição e a ordem coercitiva de acordo com ela criada. A norma fundamental não é, portanto, o produto de uma descoberta livre. A sua pressuposição não se opera arbitrariamente, no sentido de que temos a possibilidade de escolha entre diferentes normas fundamentais quando interpretamos o sentido subjetivo de um ato constituinte e dos atos postos de acordo com a Constituição por ele criada como seu sentido objetivo, quer dizer: como normas jurídicas objetivamente válidas. Somente quando pressuponhamos esta norma fundamental referida a uma Constituição inteiramente determinada, quer dizer, somente quando pressuponhamos que nos devemos conduzir de acordo com esta Constituição concretamente determinada, é que podemos interpretar o sentido subjetivo do ato constituinte e dos atos constitucionalmente postos como sendo o seu sentido objetivo, quer dizer, como normas jurídicas objetivamente válidas, e as relações constituídas através destas normas como relações jurídicas.
52
Assim, deve-se pressupor em determinado momento a validade da norma
fundamental que estivesse atribuindo validade à constituição histórica não mais
em disputa. E a consideração de não estar mais em disputa se vincula ao
pertencimento a uma ordem jurídica globalmente eficaz, o que ocorre quando
preenchidos dois requisitos: a comprovação de que as normas estão servindo de
50
SGARBI, Hans Kelsen. Ensaios…, op. cit. , p. 13. 51
Cf. KELSEN, Hans. Problemi fondamentali della dottrina del diritto pubblico. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1997, p. VI. 52
KELSEN, Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 224-228.
25
parâmetro de obediência e; nos casos de não estarem sendo obedecidas, se é
possível se observar que os funcionários as estão aplicando.
No primeiro teste, a questão é respondida quando se informa se a norma N
está servindo de referência para as condutas. O segundo teste encontra
satisfação se responde que os funcionários estão punindo aqueles que não
obedeceram à norma N. Se a resposta for positiva, o ordenamento jurídico é
eficaz neste caso particular. 53
Kelsen dedicou o último capítulo de sua Teoria Pura para interpretação do
direito, entendendo a interpretação como a operação mental que acompanha a
aplicação do direito.
Quando o Direito é aplicado por um órgão jurídico, este necessita de fixar o sentido das normas que vai aplicar, tem de interpretar estas normas. A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. Na hipótese em que geralmente se pensa quando se fala de interpretação, na hipótese da interpretação da lei, deve responder-se à questão de saber qual o conteúdo que se há de dar à norma individual de uma sentença judicial ou de uma resolução administrativa, norma essa a deduzir da norma geral da lei na sua aplicação a um caso concreto. Mas há também uma interpretação da Constituição, na medida em que de igual modo se trate de aplicar esta - no processo legislativo, ao editar decretos ou outros atos constitucionalmente imediatos - a um escalão inferior; e uma interpretação dos tratados internacionais ou das normas do Direito internacional geral consuetudinário, quando estas e aqueles têm de ser aplicados, num caso concreto, por um governo ou por um tribunal ou órgão administrativo, internacional ou nacional. E há igualmente uma interpretação de normas individuais, de sentenças judiciais, de ordens administrativas, de negócios jurídicos, etc., em suma, de todas as normas jurídicas, na medida em que hajam de ser aplicadas”.
54
Kelsen aponta então para o fato de todo ato jurídico de aplicação do direito
ser um ato de criação jurídica, sendo em parte determinado pelo direito, em
parte, indeterminado. A indeterminação pode ser intencional, quando se fixa um
limite máximo e mínimo para uma multa, por exemplo; ou não intencional, já que
o sentido verbal de uma norma não é inequívoco.55
Assim, em todos os casos de indeterminação, seja ela intencional ou não,
há sempre um leque de possibilidades de aplicação jurídica. O direito a aplicar
formaria assim uma moldura dentro da qual estariam inseridas as possibilidades
de aplicação.
O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito
53
SGARBI, Hans Kelsen. Ensaios.. op. cit. p.20 54
KELSEN,Teoria Pura do Direito, op. cit. p. 245 55
Ibid, p 246.
26
todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível. (...)
Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito.
56
Dessa forma Kelsen refuta a visão da teoria tradicional segundo a qual a
interpretação poderia produzir uma única solução correta, ajustada. O aplicador
escolhe uma dentre as diversas soluções possíveis dentro da moldura.
A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a “justeza” (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo.
57
O outro grande nome da doutrina juspositivista do século XX, ao lado de
Kelsen, é Herbert Hart (1907-1992). Sua principal obra, The Concept of the Law
(O Conceito de Direito), foi publicada no ano de 1961, fazendo uma revisão das
teses de Austin. Hart considerava insuficientes conceitos chaves da obra de
Austin como a definição de direito tida por “ordens baseadas em ameaças”,
assim como o “hábito de obediência ao soberano”.
Em um contraste com a idéia kelseniana de “moldura da norma”, vemos
que ambos afirmam a discricionariedade do aplicador, embora Kelsen tenha se
preocupado com o leque de opções que o direito pode produzir para um
determinado caso, e a análise hartiana se centra na vagueza da linguagem, fruto
da textura aberta da norma.
A partir do debate gerado por O Conceito de Direito com as idéias de
Ronald Dworkin, a teoria do direito passa por profundas transformações, levando
a edição de uma segunda edição da obra de Hart em 1994 que incorpora um
56
Ibid, p.247. 57
Ibid, p.248.
27
pós-escrito trazendo substanciais inovações e esclarecimentos, como se verá
adiante58.
Pode-se notar até aqui como evoluiu a tradição positivista. Inicialmente
focada na refutação de teses jusnaturalistas – Bentham – incorpora
preocupações metodológicas de delimitação de seu objeto, distinguindo-o da
moral – Austin – para então se dedicar às suas formas de elaboração e
aplicação – Kelsen. Veremos agora a contribuição que Hart deu a tradição e que
passou a figurar como um marco nas discussões contemporâneas sobre
positivismo jurídico.
2.2
O refinamento do positivismo jurídico de Herbert Hart
O objetivo de Hart em O Conceito de Direito é expresso desde suas
primeiras páginas: aprofundar a compreensão do direito, da coerção e da moral
como fenômenos sociais diferentes, mas relacionados59. Para isso, apresenta
inicialmente as perplexidades com as quais a teoria do direito tem se deparado
na definição de seu objeto e quais seriam suas questões recorrentes. Estas
seriam três: a distinção entre direito e ordens baseadas em ameaças, a
diferenciação entre obrigação jurídica e obrigação moral, e qual seria o papel
das regras no direito.
Hart reconhece a dificuldade de se obter uma definição satisfatória para
estas inquietudes, mas sustenta ser possível isolar e caracterizar determinados
elementos que seriam comuns a estas respostas60. Assim, pretende traçar um
“mapa” da teoria jurídica, partindo dos erros da que denomina “teoria imperativa
simples”, que tem como Austin como seu principal representante, para então
analisar sua principal rival, a teoria de uma conexão necessária entre o direito e
a moral.
Desta forma, Hart não pretende dar uma definição de direito, mas “fazer
avançar a teoria jurídica, facultando uma análise melhorada da estrutura
distintiva de um sistema jurídico interno e fornecendo uma melhor compreensão
58
Antes mesmo da publicação da edição de 1994, Hart já reconhecia ser um autor um tanto “descuidado” que havia produzido em seus escritos diversas ambigüidades e imprecisões. Cf. PÁRAMO, Juan Ramon. “Entrevista a H. L. Hart”. Doxa, n. 5, 1998, p. 343. 59
HART, Herbert. O conceito de direito. [1961] Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 01 60
Ibid, p.21
28
das semelhanças e diferenças entre o direito, a coerção e a moral, enquanto
tipos de fenômenos sociais”61
Hart dedica então os três capítulos seguintes a analisar a teoria
imperativa simples, elegendo Austin e sua obra Province of Jurisprudence
Determined como principal alvo, embora reconheça que em certos pontos, para
intensificar a crítica, desenvolve alguns de seus argumentos na linha de teóricos
posteriores, notadamente Hans Kelsen.62 Tal teoria “simples” concebe o direito
como ordens coercivas do soberano e Hart vê nela quatro pontos principais de
falha.63
Primeiramente, mesmo leis penais - as que mais se assemelham a ordens
baseadas em ameaças - com estas não se confundem, já que leis penais
também se aplicam àqueles que as criam, e não apenas aos demais. Em
segundo lugar, existem outros tipos de direito, como os que conferem poderes
para criar e alterar direitos, que não podem ser concebidos como ordens
baseadas em ameaças. Além disso, algumas regras jurídicas se diferenciam de
ordens desde sua origem, por não possuírem nenhuma prescrição explícita; e,
finalmente, a descrição do direito com base num soberano habitualmente
obedecido e isento de limitações não é capaz de explicar a continuidade da
produção legislativa característica do Estado Moderno.64
Algumas soluções apresentadas pela teoria imperativa simples para
superar os referidos problemas também não se mostraram satisfatórias. A
primeira delas tenta resolver a incompatibilidade entre regras que conferem
poderes com a noção de ordens coercivas. Ou bem se alarga o conceito de
sanção para nele incluir a nulidade de um negócio jurídico que não observasse
tais regras, ou bem se restringe o significado de “lei” para excluir de seu âmbito
este tipo de regra, sendo as regras que conferem poderes apenas fragmentos
incompletos de ordens coercivas, e não genuínas regras jurídicas.65 Hart
considera que tal tentativa de reduzir a variedade de regras a uma única forma –
ordens baseadas em sanções – paga o elevado preço de distorcer as diversas
funções sociais que os distintos tipos de regra jurídica cumprem.66
61
Ibid, p.22 62
Ibid, p. 23 63
Ibid, p.27 et seq 64
Ibid, p.89. 65
Ibid, p.43. 66
Ibid, p.46.
29
Com relação ao conceito de soberano, colocá-lo como elemento central da
idéia de direito traz problemas de identificação e continuidade da produção
legislativa. Mesmo considerando que o soberano equivalha ao legislador
moderno, o mero hábito de obediência não dá nenhum direito de sucessão a um
novo legislador, e não se pode presumir que as ordens de um novo legislador
serão obedecidas.67
Por fim, embora existam semelhanças entre regras e hábitos, como a idéia
de um comportamento geral repetido, um conceito não se reduz ao outro já que
a regra não é uma mera convergência de comportamento, mas exige uma
atitude crítica reflexiva, um sentimento assumido de obrigação.68
Hart conclui, portanto, que a exposição da teoria imperativa simples é o
“relato de uma derrota e há obviamente a necessidade de um novo começo”69. E
completa:
A causa de raiz dessa derrota reside no fato de que os elementos a partir dos quais essa teoria foi construída, nomeadamente as idéias de ordens, obediência, hábitos e ameaças, não incluem e não podem originar, pela sua combinação, a idéia de uma regra, sem a qual não podemos esperar elucidar mesmo as formas mais elementares de direito.
70
O novo começo proposto por Hart parte da introdução de um novo tipo de
regra. Um sistema jurídico complexo é composto por normas de conduta,
denominadas primárias, e normas atributivas de poderes ou secundárias.
Por força das regras de um tipo, que bem pode ser considerado o tipo básico ou primário, dos seres humanos é exigido que façam ou se abstenham de fazer certas ações, quer queiram ou não. As regras do outro tipo são em certo sentido parasitas ou secundárias em relação às primeiras: porque asseguram que os seres humanos possam criar, ao fazer ou dizer certas coisas, novas regras do tipo primário, extinguir ou modificar as regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar sua aplicação. As regras do primeiro tipo impõem deveres, as regras do segundo tipo atribuem poderes, públicos ou privados. As regras do primeiro tipo dizem respeito a ações que envolvem movimento ou mudanças físicos; as regras do segundo tipo tornam possíveis atos que conduzem não só a movimento ou mudanças físicos, mas à criação ou alteração de deveres ou obrigações
71
A noção de sistema jurídico como união de regras primárias e
secundárias está vinculada a outros dois elementos na teoria de Hart: a noção
de obrigação jurídica e os aspectos internos e externos ao direito. Em relação à
67
Ibid, p.64. 68
Ibid, p.66. 69
Ibid, p.90 70
Idem. 71
Ibid, p.91.
30
noção de obrigação jurídica, o autor traça uma linha distintiva entre alguém “ser
obrigado a fazer algo” e alguém “ter a obrigação de fazer algo”72.
A primeira afirmação está ligada às crenças e motivos que guiam a
conduta do sujeito. Assim, quando alguém é obrigado a entregar seu dinheiro a
um assaltante, o faz porque crê que algum mal aconteceria a ele caso não o
fizesse. Mas não podemos dizer que a vítima tinha a obrigação de entregar o
dinheiro. Ter a obrigação de fazer algo independe das crenças e motivos do
destinatário, mas traz consigo implícita a existência de uma regra. Assim, o fato
da pessoa ter a obrigação de pagar tributos independe de suas crenças, mas da
existência de um regra que assim determina.
Diretamente vinculada a esta distinção está outra, que diferencia pontos de
vista interno e externo. O ponto de vista externo é aquele do observador, que
pode simplesmente descrever condutas faticamente comprováveis. O ponto de
vista interno se vincula ao sentimento assumido de obrigação. Este seria o ponto
de vista dos que “não se limitam a anotar e predizer o comportamento conforme
as regras, mas que usam as regras como padrões de apreciação do
comportamento próprio e dos outros”.73 Assim, o observador pode, sem precisar
aceitar as regras, afirmar que determinado grupo as aceita e assim referir do
exterior ao modo pelo qual eles são afetados por elas, de um ponto de vista
interno.74
Portanto, a constatação empírica de convergências fáticas é tida como o
aspecto externo ao direito, já a relação crítica e a adesão dos participantes
representariam seu caráter interno. Assim, por aspecto interno, não compreende
uma simples questão de sentimentos, por oposição ao comportamento físico
observável externamente, mas uma atitude crítica reflexiva em relação a certos
tipos de comportamento enquanto padrões comuns.75
Uma vez superadas as críticas ao modelo de Austin e caracterizado como
elemento central do direito a combinação de normas primárias e secundárias,
Hart introduz a sua teoria elementos de fundamento do sistema jurídico, cuja
chave de leitura está na regra de reconhecimento.
A regra de reconhecimento é um tipo especial de regra secundária que é
aceita e utilizada para identificação de regras primárias de obrigação. Tal regra
72
Ibid, p. 92 et seq 73
Ibid, p. 108. Grifo do original. 74
Ibid, p. 99 75
Ibid.
31
raramente é formulada de forma expressa, enunciada. “Sua existência
manifesta-se no modo como as regras concretas são identificadas, tanto pelos
tribunais ou outros funcionários, como pelos particulares ou seus consultores.”76
É portanto uma regra última, que fornece os critérios pelos quais a validade das
demais regras do sistema é avaliada.
Este conceito não se confunde com o de “norma fundamental” cunhado por
Kelsen77. A regra de reconhecimento é um fato, enquanto a norma fundamental
constitui uma pressuposição lógica necessária, já que sua validade é suposta
mas não demonstrada78. Desta forma, a regra de reconhecimento não pode ser
considerada nem suposta válida ou inválida; ela é aceita. A noção de validade é
utilizada para regras que se colocam dentro do sistema que satisfazem ou não
os critérios estabelecidos pela regra de reconhecimento. Mas não se pode
questionar a validade da própria regra que faculta os critérios de validade. Ela é
simplesmente aceita e praticada como tal.
(...) a regra de reconhecimento é diferente de outras regras do sistema. A asserção de que existe só pode ser uma afirmação externa de fato. Porque enquanto uma regra subordinada de um sistema pode ser válida e, nesse sentido „existir‟, mesmo se for geralmente ignorada, a regra de reconhecimento apenas existe como uma prática complexa, mas normalmente concordante, dos tribunais, dos funcionários e dos particulares, ao identificarem o direito por referencia a certos critérios. A sua existência é uma questão de fato.
79
Hart assim conclui que a existência de um sistema é uma afirmação de
duas faces, sendo uma delas a obediência dos cidadãos comuns e a outra a
aceitação pelos funcionários como padrões críticos comuns. Tal dualidade é o
reflexo da união de regras primárias e secundárias, num sistema jurídico em que
a aceitação das regras como padrões comuns para o grupo pode se desligar da
aquiescência passiva dos indivíduos em relação às regras.80
Outra contribuição hartiana ao direito foi, com base nas lições de
Wittgenstein, identificar uma “textura aberta” da norma no âmbito de sua
interpretação. Não há uma formulação de uma teoria completa da interpretação,
mas o fornecimento de elementos essenciais para compreensão do problema da
linguagem no direito. Há, no entender de Hart, tanto no direito como em todos os
campos da experiência, um limite à natureza da linguagem. Há casos simples,
76
Ibid, p.113 77
Cf. SGARBI, Clássicos de Teoria do Direito, op. cit. p. 135 et seq. 78
KELSEN, Teoria Pura do Direito, op. cit., p. 141. 79
HART, O Conceito de Direito, op. cit. p. 120 80
Hart alerta para possibilidade de patologias num sistema jurídico, situação na qual já não existe obediência geral às regras que são válidas segundo critérios usados pelos tribunais Cf. HART, O Conceito de Direito, op. cit., p. 129 et seq
32
que ocorrem em contextos semelhantes, aos quais as expressões gerais são
claramente aplicáveis, mas há outros casos em que esta clareza inexiste.81
Assim, a textura aberta do direito significa que há, na realidade,
determinadas áreas de condutas em que certos elementos devem ser deixados
para serem resolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais
determinam o equilíbrio, à luz do caso concreto, entre interesses conflitantes.82
Distingue-se assim, uma “zona clara” de aplicação do direito de uma “zona de
penumbra”. Os casos da zona de penumbra são aqueles em que o texto legal
oferece apenas alguma diretriz, mas de modo incerto, exigindo uma
discricionariedade do aplicador, fruto da vagueza da linguagem. 83 A incerteza na
linha de fronteira é o preço que deve ser pago pelo uso de termos gerais.84
Neste cenário, haveria dois pontos extremos. Um deles seria o ceticismo
sobre regras, segundo o qual as regras seriam meros mitos que camuflam o fato
de consistir o direito apenas naquilo que os tribunais predicam; noutro extremo
estaria o formalismo, que busca disfarçar a necessidade de escolha na aplicação
da regra uma vez fixados os termos gerais.85 Para Hart, ambos são exageros
que se corrigem e a verdade está no meio, numa posição intermediária na qual
as regras cumprem um papel embora em diversos casos deixem uma zona de
penumbra para discricionariedade do aplicador, em função de sua textura
aberta.86
Uma vez derrotada a teoria imperativa simples, reconstruída a sua teoria
do direito a partir da união de regras primárias e secundárias, regra de
reconhecimento e textura aberta, Hart dedica dois capítulos para analisar aquela
que ele considerou como principal rival da primeira teoria, a teoria que considera
necessária uma conexão entre direito e moral.
81
Ibid, p. 139. 82
Ibid, p. 148. 83
A vinculação de discricionariedade e zona de penumbra aparece com certa nitidez na edição inicial de O Conceito de Direito (1961), mas é apresentada em termos mais flexíveis em outros escritos como em “Positivism and the separation of Law and Morals”. Nesse sentido, veja-se WALUCHOW, [1994], p.247 e seg. Voltaremos ao ponto no capítulo seguinte. 84
O exemplo dado por Hart é a célebre analogia da proibição de veículos no parque, na qual se tem clareza que se inclui um automóvel no âmbito da proibição, mas restam dúvidas se um patinete ou uma bicicleta estariam ou não incluídos no conceito de „veículo‟. Cf. HART, O Conceito de Direito, op. cit., p. 139 85
Cf. HART, Herbert. “American Jurisprudence through English Eyes: The Nightmare and the Noble Dream”. In Essays in jurisprudence and philosophy. Oxford University Press, 1983 , p. 123-
144. 86
Haveria, no entanto, certa circularidade no pensamento de Hart, uma vez que a regra de reconhecimento depende da prática dos tribunais, que são estabelecidos de acordo com regras secundárias que conferem poderes. Só que estas regras são identificadas a partir da regra de reconhecimento. Assim temos um quadro no qual a regra de reconhecimento depende de regras secundárias que por sua vez dependem da regra de reconhecimento. Nesse sentido cf. SGARBI, Clássicos de Teoria do Direito, op.cit. p. 134.
33
Hart esclarece inicialmente que há uma grande confusão de termos ao se
referir a uma “conexão necessária” entre direito e moral. Para Hart “há muitas
interpretações possíveis dos termos-chave „necessário‟ e „moral‟ e estas nem
sempre têm sido distinguidas e consideradas separadamente”.87 Uma avaliação
completa de tais termos levaria a análise a questões profundas de filosofia
moral, mas a pretensão de Hart é fazer algo menos ambicioso, mas que faculte
ao leitor elementos suficientes para formar sua opinião acerca de tais temas.
Para isso, propõe uma analise da idéia de justiça, bem como das características
distintivas e da relação entre regras jurídicas e morais.
Hart apresenta as noções de “justo” e “injusto” como formas específicas de
crítica moral, para, em seguida, indicar as semelhanças e distinções entre direito
e moral. Ambos se assemelham na medida em que são vinculantes, independem
do consentimento individual e são sustentados por pressão social.88 No entanto,
regras morais necessitam de importância para se manterem, o que não é
necessário para regras jurídicas; aquelas não podem ser deliberadamente
alteradas, como estas podem. As violações morais dependem da culpa do
agente, enquanto que se concebem violações jurídicas independente de culpa; e
por último, a forma da pressão moral normalmente é dada pelo apelo à
consciência do individuo, sustentados pela culpa e pelo remorso, enquanto o
direito se baseia muitas vezes em ameaças.89
Feitas as distinções, o autor busca então determinar a forma como ambos
se articulam. Conclui haver um conteúdo mínimo de direito natural em todas as
ordens jurídicas. Este seria composto por “princípios de conduta reconhecidos
universalmente, que têm como base as verdades elementares respeitantes aos
seres humanos, ao seu ambiente natural, e às suas finalidades.”90. Desta forma,
uma vez reconhecida a sobrevivência como finalidade, direito e moral devem ter
um conteúdo mínimo, afirmado a partir de cinco truísmos (vulnerabilidade
humana; igualdade aproximada; altruísmo limitado; recursos limitados e
compreensão e força de vontade limitados)91 Por fim, Hart identifica, para além
destas verdades óbvias, algumas coincidências fáticas entre direito e moral, que
87
HART, O Conceito de Direito, op. cit., p. 170. 88
E acrescenta: o cumprimento de uma obrigação jurídica bem como de uma obrigação moral não é digno de elogio, mas é tomado como „coisa corrente‟. Ademais, ambas regem os comportamentos dos indivíduos em situações constantes da vida. Cf. HART, O Conceito de Direito, op. cit., p. 187. 89
Ibid, p. 188 et seq. Apesar de refutar a teoria imperativa simples, Hart não desconsidera o papel
da ameaça na caracterização do direito. 90
Ibid, p. 209. 91
Ibid, p. 210 et seq
34
embora não sejam verdades, são comumente encontradas nos sistemas
jurídicos.92
2.3
As primeiras críticas de Dworkin e o início do debate
Seis anos após a publicação de O Conceito do Direito, o positivismo
jurídico, agora na sua versão hartiana, volta a ser posto no centro do debate com
a publicação de The Model of Rules I (1967), de Ronald Dworkin. Como destaca
Etcheverry, em função do renome que gozava a proposta hartiana e a agudez
das críticas dworkianas, estas obras representam o início de um debate sobre o
qual correriam rios de tinta e no qual desde então participaram, com maior ou
menor intensidade, uma boa parte dos filósofos do direito.93
Dworkin estrutura sua crítica partindo dos conceitos de direito e obrigação
jurídica para então traçar aquilo que considera o esqueleto do positivismo,
tomando a versão de Hart como referência não só por sua “clareza e elegância”,
mas por considerar que em quase todas as áreas de filosofia do direito “o
pensamento que visa construir deve começar com um exame das concepções
de Hart.”94
Dworkin traça então o esqueleto positivista a partir de três elementos: 1) a
definição do direito como um conjunto de regras, identificáveis não pelo seu
conteúdo, mas por sua origem (pedigree); 2) os casos não cobertos por estas
regras não podem ser resolvidos pelo direito, devendo ser decidido por alguma
autoridade pública com o exercício de discricionariedade; e 3) existe uma
vinculação entre obrigação jurídica e o enquadramento numa regra jurídica
válida, não havendo tal regra, também inexiste uma obrigação jurídica. 95
A este esqueleto, adiciona os elementos incorporados por Hart, como a
união de regras primárias e secundárias, a distinção entre aceitação e validade e
a existência de uma regra de reconhecimento. Conclui então que a versão
hartiana é mais complexa do que a oferecida por Austin e seu teste de validade
92
Estas seriam seis: Poder e autoridade; influência moral sobre o direito; interpretação; crítica do direito; princípios de legalidade e justiça; e validade jurídica e resistência contra o direito. Cf. HART, 2001, p 218 et seq 93
ETCHEVERRY, Positivismo Juridico Incluyente, op. cit., p.8. 94
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo:Martins Fontes, 2007, p.27 95
Ibid, p. 28 et seq.
35
de regras é mais sofisticado, mas ambos os teóricos se aproximam ao identificar
a existência de limites imprecisos das regras e explicam os casos problemáticos
a partir do exercício de poder discricionário do aplicador.
Apresentado seu desenho do positivismo, Dworkin inicia um “ataque
geral”96 contra ele, e reitera que usará a versão hartiana como alvo. O cerne do
ataque está no fato do direito, na visão de Dworkin, ser composto não apenas
por regras, como sustentam os positivistas, mas por outros padrões como
princípios e políticas.97 E para demonstrar a relevância destes padrões, cita dois
casos julgados por tribunais americanos nos quais os padrões aplicados para
resolver o litígio não foram regras, mas princípios.98
A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e nesse caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida e neste caso em nada contribui para a decisão.
99
Além desta distinção, Dworkin apresenta outra dimensão diferenciadora
das regras e princípios: a dimensão de peso. Os princípios possuiriam uma
dimensão de peso que as regras não possuem. Na aplicação de princípios é
importante perguntar-se qual peso ele possui num determinado caso ou o quão
importante ele é. Já em um conflito de regras, uma delas necessariamente não
pode ser válida e deve ser abandonada.100
A partir de então, Dworkin busca relacionar a idéia de princípio com a de
discricionariedade do aplicador, para determinar até que ponto este está
vinculado ou não à aplicação de princípios. Para tanto distingue dois sentidos de
discricionariedade. Num sentido fraco, ter discricionariedade significa usar o
discernimento para aplicar padrões estabelecidos ou o fato de ninguém rever
certa decisão. Num sentido forte, significa que o aplicador não está limitado
96
Ibid, p. 35. 97
Dworkin esclarece que apesar de se referir a “princípios, políticas e outros tipos de padrões”, utilizará freqüentemente apenas a expressão “princípios” para se referir a todo este conjunto, salvo quando necessário estabelecer algum tipo de distinção entre eles. Política seria o padrão que estabelece um fim a ser alcançado, enquanto princípio seria um padrão que deve ser observado por uma exigência de justiça, equidade ou outra dimensão moral. DWORKIN, 2007, p. 36. 98
Os exemplos referidos são os casos Riggs vs. Palmer (115 N.Y. 506, 22) , no qual se negou o
direito de herança ao neto que havia assassinado o avô em nome do princípio de que ninguém pode se valer da sua própria torpeza; e Henningsen vs. Bloomfield Motors Inc (32 N.J. 358, 161), no qual se condenou a fabricante de veículos a indenizar o consumidor das despesas decorrentes de um acidente de carro a despeito de cláusula contratual dispondo em sentido contrário, em nome da peculiaridades do caso e exigência de equidade. 99
DWORKIN, Levando os direitos a sério,op. cit. p. 39. 100
Ibid, p. 43.
36
pelos padrões estabelecidos, e desta forma, nunca pode ser considerado
desobediente.101
Dworkin retoma então seu ataque ao positivismo, afirmando que o
relevante para o estudo dos princípios é o uso do sentido forte de
discricionariedade pelos positivistas. Para estes, os princípios não imporiam
obrigações aos juízes, apenas regras o fariam.102 Os positivistas devem
apresentar alguma razão para sustentar que os princípios não podem contar
como parte do direito.103 Juristas tenderiam a associar direito a regras
principalmente pela educação jurídica, que consiste há décadas em ensinar o
exame de regras estabelecidas.
Em outro passo, se entendemos os princípios, tal qual propõe Dworkin,
como fazendo parte do direito e sendo vinculantes aos aplicadores, teríamos de
abandonar a tese forte da discricionariedade e a possibilidade da existência de
um teste de pedigree a partir de uma regra suprema para identificação do direito,
como a regra de reconhecimento de Hart.
Dworkin finaliza seu primeiro ataque deixando uma série de perguntas em
aberto relativas à identificação e aplicação do direito que conte não apenas com
regras, mas também com princípios, e sustenta que o enfrentamento destas
questões extrapola o positivismo.
“Essas questões devem ser enfrentadas, mas mesmo as questões prometem mais do que o positivismo tem a oferecer. Nos termos de sua própria tese, o positivismo não chega a enfrentar esses casos difíceis e enigmáticos que nos levam à procura de teorias do direito. Quando lemos esses casos, o positivista nos remete a uma teoria do poder discricionário que não leva a lugar algum e nada nos diz. Sua representação do direito como um sistema de regras tem exercido um domínio tenaz sobre nossa imaginação, talvez graças a sua própria simplicidade. Se nos livrarmos desse modelo de regras, poderemos ser capazes de construir um modelo mais fiel à complexidade e sofisticação de nossas próprias práticas.”
104
Este é o cenário no qual o debate vai se desenrolar. No centro da questão,
o papel dos princípios no direito e a capacidade do positivismo jurídico lidar com
eles de maneira satisfatória. Não tardaram a aparecer réplicas a Model of Rules
I, fazendo com que o debate extrapolasse a questão entre os dois autores e
ocupasse os debates de boa parte dos teóricos do direito.
101
O autor ressalva que essa liberdade do aplicador não equivale à licenciosidade nem exclui a crítica. Ibid, p. 53. Para uma análise do conceito de discricionariedade em Dworkin, cf. SGARBI, Clássicos de Teoria do Direito, op. cit. p. 157-162 102
Ibid, p. 55. 103
Ibid, p. 58. 104
Ibid, p. 71-72
37
A primeira resposta às críticas de Dworkin vem em 1970 em um artigo do
professor argentino Genaro Carrió, considerada por alguns a primeira defesa do
que seria chamado anos depois de positivismo inclusivo105. Em Princípios
Jurídicos y Positivismo Jurídico106, Carrió defendia a posição de Hart frente aos
ataques de Dworkin.
Nada no conceito de “regras de reconhecimento” obsta, em conseqüência, para que aceitemos o fato de que critérios efetivamente usados pelos juízes para identificar as regras subordinadas do sistema possam incluir referencias ao conteúdo destas. Pode ocorrer que, em uma comunidade dada, os únicos costumes considerados jurídicos ou juridicamente obrigatórios sejam aqueles compatíveis com as exigências da moral. Ou seja, os juízes podem aceitar como válidas somente aquelas leis que, além de terem sido corretamente aprovadas por um corpo com competência para isto, não violem um catálogo escrito de direitos e liberdades individuais.
107
Para ele, a regra de reconhecimento tal qual proposta poderia englobar
critérios morais, sem, no entanto, afirmar que determinada norma é jurídica
porque está de acordo com moral, e sim por estar de acordo com a regra de
reconhecimento que incorpora tal valor. Assim conclui
Seja qual for a força desta objeção, o certo é que a crítica antipositivista que examinamos dirige sua artilharia a um chamado “modelo de regras” que difere substancialmente da teoria que pretende abater. Ainda que se questionem os títulos que esta última tem para ser chamada positivista, não há dúvidas que ela sobrevive indene ao ataque, pela simples razão que este errou o alvo.”
108
Joseph Raz e Rolf Sartorius também buscaram explicar a existência dos
princípios a partir da teoria positivista. Raz (1972) sustenta que os positivistas
nunca negaram a existência de princípios, porém estes não afastam a
discricionariedade judicial como propõe Dworkin, já que ela é inerente à vagueza
da linguagem. Raz tenta aclarar a noção de princípio e concorda com Dworkin
que há uma distinção lógica entre regra e princípio, já que a primeira prescreve
atos relativamente específicos, enquanto o segundo prescreve atos altamente
inespecíficos.109 No entanto, tal fato não esgota a distinção, e por isso Raz
oferece um breve guia das diferentes tarefas que os princípios podem cumprir,
105
ATIENZA e MANERO, “Dejemos atrás el positivismo jurídico” in Isonomía : Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, n. 27, 2007, México : Instituto Tecnológico Autónomo de México, p. 7-28 106
CARRIÓ, Genaro. “Princípios Jurídicos y Positivismo Juridico” in Notas sobre Derecho y Lenguaje. op. cit., p. 197-235 107
CARRIÓ, Genaro. “Dworkin y el positivismo jurídico” in Notas sobre Derecho y Lenguaje, op. cit.
p. 354; 108
Ibid, p. 234 109
RAZ, Joseph. “Legal Principles and the Limits of Law”, in Yale Law Journal, n.81, 1972, p. 838.
38
como servir de base para interpretação de leis, para sua alteração, ou para
excepcioná-las.110
O ponto principal de divergência entre Raz e Dworkin está na possibilidade
de construção de um teste para distinguir o que é direito daquilo que não o é, ou
seja, estabelecer os limites do direito. Para Raz, os princípios jurídicos não
excluem a discricionariedade judicial, pelo contrário, eles pressupõem sua
existência, além de dirigirem-na e guiarem-na. O que há para além disso é uma
retórica judicial danosa que muitas vezes faz crer que a discricionariedade está
baseada em metas comuns ou valores compartilhados. Raz adverte que tal
retórica não deve ser interpretada literalmente, e que esta pode levar a opressão
de minorias. O direito deve ser entendido para abarcar a realidade, não a
retórica.111
Raz propõe ainda uma revisão no critério de identificação do direito de
Hart. Um sistema jurídico consiste não apenas de uma regra costumeira dos
órgãos de imposição do direito e todas as leis reconhecidas por ela, mas de
todas as regras e princípios consuetudinários dos órgãos de imposição do direito
e todas as leis reconhecidas por elas112. Assim, a identificação do direito não se
basearia em apenas uma regra de reconhecimento, mas num conjunto de regras
e princípios.
Sartorius, por sua vez, se aproxima de Dworkin ao negar a
discricionariedade judicial, afirmando que o papel do juiz, enquanto juiz, é aplicar
o direito. Ele não pode, em nome de princípios democráticos, ser um legislador.
“Um legislador que não tem o direito de apelar a nenhuma outra coisa que não
sejam padrões jurídicos dotados de autoridade e pré-estabelecidos para justificar
suas decisões, simplesmente não é um legislador.”113
Por outro lado, tal qual Raz, discorda de Dworkin quanto a possibilidade de
existência de um critério de identificação do direito. A solução para o que ele
chama de “problema do reconhecimento” (the problem of recognition) está numa
redefinição da regra proposta por Hart. Ela estaria composta por três níveis
distintos
Nós podemos realmente ter três fases aqui, como pode ser visto se considerarmos que o teste final poderá identificar como leis válidas (1) os estatutos promulgados por um determinado órgão legislativo (2), os princípios e políticas
110
Ibid, p. 839 et seq. 111
Ibid, p. 850-851. 112
Ibid, p. 853. 113
SARTORIUS, Rolf. “Social Policy and Judicial Legislation” American Philosophical Quarterly, n.8, 1971, p. 160.
39
incorporados nas leis válidas de acordo com (1), (3) princípios e políticas "extra-legais" tornados relevantes por leis válidas de acordo com (1) ou (2). Embora o real preenchimento de tal critério seja uma tarefa final complexa e exigente para qualquer sistema jurídico maduro, se é de fato uma possibilidade prática a todos, a única alegação de que precisa ser feita é que é em princípio possível, e que é precisamente essa possibilidade que, em princípio, subjaz à identificação de algo como um padrão jurídico dotado de autoridade.
Embora talvez esteja a uma boa distância da versão de Hart do positivismo, ela está de acordo com o princípio fundamental positivista, tal qual descrito por Dworkin: "O direito de uma comunidade... pode ser identificado e diferenciado por critérios específicos, por testes ligados não com conteúdo... mas com pedigree" É também bastante coerente com penetrantes observações de Dworkin sobre a maneira em que defendem a existência de peso de um princípio jurídico, e sua rejeição da estrita dicotomia entre aceitação e validade que resulta do conceito de Hart de uma regra de reconhecimento aceita situada sobre o topo de uma pirâmide de normas válidas.”
114
Pode-se notar que as primeiras críticas sofridas por Dworkin tentavam
demonstrar a possibilidade do positivismo jurídico dar conta da existência e
importância dos princípios sem abrir mão de um teste de identificação do direito.
Num segundo momento, no final da década de 70, surgem os primeiros
trabalhos preocupados não só com a afirmação da possibilidade de um teste de
identificação do direito, mas com a forma pela qual os valores são incorporados
ao direito.
2.4 As defesas iniciais de um positivismo inclusivo
Em 1977 são apresentadas duas defesas do positivismo hartiano que
buscam dar conta da incorporação de valores no direito: as de Philip Soper e
David Lyons. Ambos buscam desmontar a tese da incompatibilidade
apresentada por Dworkin.
Soper busca demonstrar a possibilidade de se estender o teste de
identificação do direito para identificar os princípios aplicáveis aos casos difíceis,
aqueles nos quais o direito não fornece uma resposta precisa e clara, ou que
Soper prefere chamar de “casos realmente difíceis” (really hard cases): aqueles
nos quais a decisão deve ser alcançada com base em padrões que são, por
114
Ibid
40
definição, inerentemente não convencionais e controversos.115 Após superar
uma questão entre os tipos de padrões existentes, Soper enfrenta sua questão
central: o que juízes devem fazer nestes casos difíceis e como acomodar o
modelo positivista a estas situações? Uma solução apontada pelo autor é
recorrer a uma prática social para interpretar a norma, expandido a investigação
de uma regra particular e seus objetivos para a observação da totalidade de
cada instituição incluindo ai as normas, práticas relevantes e seus objetivos, a
partir dos padrões utilizados para obter a melhor solução de um caso concreto.
O teste final para identificar assim se determinado padrão tem o apoio
institucional necessário e conta como direito seria bastante complexo, reconhece
Soper, mas “simplicidade nunca foi tida como uma das características do modelo
teórico positivista”116
Por seu turno, Lyons lança crítica semelhante ao trabalho de Dworkin, por
entender que o positivismo jurídico não afasta os padrões morais do dirieto
porque não nega a possibilidade de testes de conteúdo. Para ele, a definição de
positivismo dada por Dworkin estaria equivocada. Positivistas não sustentariam
que a identificação do direito só se daria por testes de pedigree. A tese
positivista é que não é necessário que uma regra satisfaça determinado padrão
moral para ser considerada direito. Todavia, não é porque não seja necessária
uma qualificação de conteúdo, não significa que ela não possa ocorrer.117
A tese de Lyons é que a interpretação de termos morais pelos juízes pode
gerar uma prática que determina aquilo que é ou não direito, e que isso é
plenamente compatível com o modelo proposto por Hart. Ele identifica o erro de
Dworkin da seguinte forma: apesar de identificar corretamente que positivistas
consideram fatos sociais (tal qual a prática dos tribunais e funcionários), os
testes de identificação do direito não se confundem com a prática em si dos
funcionários. A prática dos funcionários pode incluir quaisquer testes, inclusive
os que levem em conta algum conteúdo específico.118
Se Dworkin quer negar o positivismo, ele deve demonstrar que sistemas jurídicos atuais ou possíveis têm características incompatíveis com o desenho apresentado por essa teoria, ou que algum sistema jurídico tenha características que o positivismo negligencia. Apesar de Dworkin tentar demonstrar algumas vezes uma dessas duas coisas, fica claro ao final que sua crítica falha para demonstrar qualquer uma delas. Sua descrição de nosso sistema jurídico não tem
115
SOPER, Philip. “Legal Theory and the Obligation of a Judge. The Hart/Dworkin Dispute” in Michigan Law Review, n. 75, 1977, p. 488. Também publicado em COHEN, Marshal. (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence, New York: Rowman & Allanheld, 1984, p. 3-27. 116
Ibid, p. 510. 117
LYONS, David. “Principles, Positivism and Legal Theory“, Yale Law Journal, n.87, 1977, p. 426. 118
Ibid, p. 425
41
implicações para sistemas jurídicos em geral, e, como visto, é compatível com a
tese positivista.119
Assim, tanto Lyons como Soper recorrem a uma prática social para
identificação do direito, ainda que tal prática remeta a valores morais. Tal
remissão não seria incompatível com as teses positivistas, embora não possa
ser considerada nunca como necessária a identificação do direito. Nesse ponto
reside a idéia central do positivismo inclusivo, que se desenvolveu ao longo das
décadas de 80 e 90.
119
Idem.
3. A Consolidação do Positivismo Jurídico Inclusivo
3.1 Os embates dos inclusivos: entre Raz e Dworkin
Como visto no capítulo anterior, alguns artigos publicados na década de
setenta e inicio dos anos oitenta propunham uma superação das críticas
dworkianas ao positivismos jurídico de Hart, assumindo a possibilidade de
incorporação de valores nos critérios de identificação do direito.
Desta forma, o positivismo jurídico inclusivo passa a ser enfrentado por
duas teorias do direito. De um lado, o positivismo jurídico de Raz, e por outro a
teoria do direito de Dworkin. Como destaca Etcheverry, das suas defesas contra
ambas as frentes o positivismo jurídico inclusivo vai desenvolvendo e
amadurecendo sua proposta. “Por esta razão, o grande desafio do positivismo
inclusivo – ao menos o desafio que percebem seus defensores – é demonstrar
que existe um positivismo possível entre a teoria do direito dworkiana e o
positivismo exclusivo de Raz”120. Neste item buscaremos expor as duas
principais frentes de ataque que a versão inclusiva sofre, para em seguida
apresentarmos as duas principais defesas da teoria, que representariam sua
consolidação.
3.2 O positivismo exclusivo de Raz
Joseph Raz coloca como marco distintivo do direito a sua pretensão de
autoridade. Isso o diferenciaria de outras ordens ou ameaças.
Se o Direito se adéqua à tese das fontes, então dizer que há uma obrigação de obedecer ao Direito é o mesmo que dizer que o órgão produtor do Direito tem autoridade (moralmente legitima) para produzir Direito. Desta forma, a tese equivale a dizer que o Direito pretende autoridade. (...) A tese crucial é que o Direito pretende autoridade moral. Esta me parece ser a única opinião consistente com o fato de que o Direito não é (aos olhos das instituições jurídicas) somente força organizada. O Direito não deve se confundir com regras de bandos de gângsters. A diferença está na pretensão de autoridade moral que acompanha
todas as exigências jurídicas. 121
120
ETCHEVERRY, Juan, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op.cit. p.31. 121
MANERO, Juan. “Entrevista con Joseph Raz”. Doxa, n. 9, 1991, p. 343.
43
O ponto inicial de distinção entre Raz e Hart está na maneira de encarar
as regras. Ao invés de tomá-las como práticas como faz este, Raz as encara
como razões operativas para ação, isto é, uma razão que implique numa atitude
prática. Raz traça então uma distinção entre duas ordens de razões. Razões de
primeira ordem seriam motivos para agir, enquanto razões de segunda ordem
são motivos para atuar ou deixar de atuar por outra razão. Uma razão
excludente é um tipo de razão de segunda ordem, sempre superior a razões de
primeira ordem. Uma razão excludente exclui as razões que estavam por trás de
sua tomada.
Raz chama razões de primeira ordem as razões para realizar ou não realizar uma ação. As razões de segunda ordem seriam razões para atuar ou não atuar por uma razão de primeira ordem: no primeiro caso se trataria de uma „razão de segunda ordem positiva‟: no segundo, de uma „razão de segunda ordem negativa‟ ou razão excludente
122
Uma regra prescreve algo e exige que sejam deixadas outras
considerações relevantes. Por isso, a força do direito não depende de sua
capacidade para facilitar o cumprimento dos objetivos do sujeito, mas de estar
constituído por razões excludentes.123
Quando uma razão de primeira ordem entra em conflito com uma razão excludente de segunda ordem, não se resolve tal conflito pela força das razões que competem, mas por um princípio geral que estabelece que triunfam sempre as razões excludentes. Ou seja, ante uma razão excludente não se faz ponderação de razões, não se julga os méritos do caso. Por isso, a razão excludente pode excluir uma razão que havia sido superada em todo caso, mas pode também excluir uma razão que teria inclinado a ponderação de razões.
Pode-se dizer que não supera outras razões, mas as derrota. 124
Para ilustrar sua concepção de autoridade, Raz se utiliza do “exemplo do
árbitro”. O papel do árbitro é emitir uma decisão dotada de autoridade que é
vinculante para as partes de uma disputa. A decisão deve se basear nas razões
para ação que se aplicam às partes e sobre as quais surgiu a controvérsia. Estas
são as razões dependentes. Seria um erro o árbitro decidir baseando-se em
razões que não aquelas dependentes aplicáveis ao caso. Além disso, a decisão
deve substituir as demais razões de deliberação das partes. Se as partes não
rechaçarem as razões dependentes para ação, frustram a razão de ser da
122
Cf. BAYON, Juan Carlos. “Razones y Reglas”. Doxa, n. 10, 1991, p.25 et seq. 123
ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op.cit., p.34. 124
SEOANE, José e RIVAS, Pedro. El último eslabón del positivismo jurídico. Colmares, Granada, 2005 p. 176
44
arbitragem. Para Raz, as diretivas jurídicas são como a decisão do árbitro, pois
estão destinadas a desempenhar um papel mediador, excludente. Determinam o
que fazer, excluindo razões dependentes controvertidas para ação. Uma diretiva
jurídica que requer X pretende não apenas ser uma boa razão para fazer X, mas
também excluir todas as outras razões dependentes que poderiam existir para
fazer X ou abster-se de fazê-lo.125
Em relação a delineamento do positivismo jurídico de Raz, este
reconhece que a confusão terminológica em torno do termo “positivismo jurídico”
faz com que a melhor aproximação ao tema seja partir de um determinado grupo
de teses.126 Por trás destas teses, estariam três “áreas de disputa” que estariam
no centro da controvérsia: 1) a identificação do direito, 2) seu valor moral, e 3) o
significado dos seus termos-chave.127 Essas três áreas se vinculariam a três
teses: a tese social, a tese moral e a tese semântica, respectivamente.
A primeira das teses, a tesa social, afirma que o que é direito e o que não
é direito é uma questão de fatos sociais. Todas as variedades de teses sociais
sustentadas pelos positivistas seriam refinamentos e elaborações desta
formulação crua. A tese moral sustenta que o valor moral do direito ou seu
mérito são questões contingentes, dependentes do conteúdo do direito e das
circunstancias da sociedade a qual se aplica. E finalmente, a única tese
semântica que pode ser identificada como comum a maioria das teorias
positivistas é uma negativa, segundo a qual termos como “direitos” e “deveres”
não podem ser usados com o mesmo significado em contextos morais e
jurídicos.128
Das três teses, Raz aponta a tese social como mais importante e nega
que as outras duas sejam decorrências desta.129 Sua versão da tese social é tida
por ele mesmo como “forte”, pois pressupõe que qualquer teoria completa do
direito inclua um teste de identificação do direito; que há um vocabulário
suficientemente rico de termos valorativamente neutros; e não exige uma
inobservância das intenções e valores morais das pessoas, já que neutralidade
valorativa não implica behaviorismo. 130
125
RAZ, Joseph. “Authority, Law and Morality”. The Monist, vol. 68, n.3,1985, p. 298 et seq. Cf.WALUCHOW, Wilfrid. Positivismo Jurídico Incluyente, Madrid: Marcial Pons, p. 140 126
RAZ, Joseph. The Authority of the Law, Oxford: Clarendon Press, 1979 , p. 37. 127
Idem. 128
Idem. 129
Cf. RAZ, Joseph, Practical Reason and Norms, London: Hutchinson, 1975, p. 162. 130
RAZ, The Authority of the Law, op. cit., p. 40.
45
Dentre as razões para se sustentar a tese social, Raz aponta o bom
reflexo do uso ordinário do termo “direito”; a clara separação entre descrição e
avaliação do direito; o favorecimento da imparcialidade, e, sobretudo, ressalta o
caráter do direito como instituição social.131
Tendo delineado sua tese social forte, Raz passa a atacar então a versão
“fraca” da tese social, que seria a defendida por autores inclusivos como Soper e
Lyons. A diferença entre ambas as versões da tese social estaria em que a forte
insiste, ao contrario da fraca, que a existência e o conteúdo do direito são
totalmente determinados por fontes sociais.132
O autor passa a denominar então de “tese das fontes” (sources thesis) a
sua tese forte. Duas seriam suas vantagens: “refletir e sistematizar diversas
distinções interconectadas incorporadas em nossa concepção de direito” e
“identificar uma função básica do direito de fornecer padrões publicamente
comprováveis que vinculam os membros da sociedade de tal forma que não
possam escusar sua desobediência a estes padrões desafiando sua
justificação”133. Assim, Raz não nega a utilização de argumentos morais pelos
tribunais, mas a tese das fontes permite ter claro quando se está aplicando e
quando se esta criando direito.
Raz recusa desta forma a “tese da incorporação” que amplia a noção de
direito, compreendendo não só aquilo que ordena uma autoridade, mas também
o que deriva ou implica dela.134 Isso incluiria padrões que nunca foram
confirmados pelas instituições criadoras do direito. Raz recusa com isso a
existência ou validade de “normas derivadas”135. Portanto, não se deve confundir
estar “implicado” pelo direito com estar “corroborado” pelo direito, confusão esta
que acomete a tese da incorporação. Outra tese rechaçada por Raz é a da
“coerência”, que agrega às fontes a justificação moralmente mais razoável do
direito. Esta seria a tese de Dworkin, mas que não seria capaz de explicar a
pretensão de autoridade do direito, e conseqüentemente, explicar o próprio
direito.136
De fato, em uma entrevista em 2001, Raz sustentou estar de certa forma
em um ponto intermediário entre Hart e Dworkin no que diz respeito à autoridade
131
Ibid, p. 41-42. 132
Ibid, p. 46. 133
Ibid, p. 52. 134
RIVAS, El último eslabón del positivismo jurídico, op. cit., p. 191 135
Para uma discussão sobre a aceitação das normas derivadas na jurisprudência analítica, cf. RIVAS, El último eslabón del positivismo jurídico, op. cit, p. 191, nota 82. 136
Cf. RIVAS, El último eslabón del positivismo jurídico, op. cit, p. 192.
46
moral do direito. Isto porque o primeiro nega que o direito pretenda autoridade
moral, e o segundo insiste que o direito não só pretende tal autoridade como que
realmente o possui em todos os regimes, exceto os mais bárbaros.
A este respeito você pode dizer com veracidade que minha opinião é um meio termo entre Hart, que nega que o Direito pretenda autoridade moral, e Dworkin, que insiste em que o direito não apenas pretende tal autoridade, como que realmente a possui em todos os regimes exceto os mais extremamente bárbaros. Eu julgo isto impossível de aceitar. Situo-me junto aqueles que trataram de mostrar que os argumentos tradicionais a favor da autoridade do direito não lograram fundamentar tal conclusão. Mas a teoria de Dworkin não pode se sustentar sem se comprometer com a
moralidade do direito. 137
Raz reitera também que a posição de Hart não é a da negação de que se
possa identificar o direito recorrendo a algum critério moral. A regra de
reconhecimento é que pode ser identificada sem referência a tais critérios.
Todavia, Raz vê razões para ir mais além da tese de Hart, reafirmando assim
sua “tese das fontes”.138
A argumentação se dá em três níveis. Primeiramente, a cultura jurídica
do common law reconheceria a distinção entre aplicar o direito existente e
desenvolvê-lo para além do direito atual. E tal distinção estaria ligada a usar
considerações morais para identificar o direito e usar considerações morais para
criá-lo. Mas isto não é suficiente.
Um segundo nível de argumentação é traçado a partir do exemplo da
criação pelo parlamento de um imposto sobre a renda. Para que necessitamos
de uma lei, ao invés de deixarmos cada um contribua com os recursos que
moralmente deva aportar? Porque concluímos que a autoridade do parlamento
para determinar um imposto sobre a renda se apóia, no terreno da moral, na
idéia de que a proporção é mais bem determinada por uma autoridade central do
que individualmente por cada contribuinte. Isso significa que a identificação do
conteúdo do direito deve estar livre de considerações morais, que foram feitas
previamente pelo parlamento para definir seu conteúdo. A idéia de autoridade do
parlamento implica que a sua decisão sobre os valores envolvidos deve
prevalecer sobre o juízo individual da justiça de cada caso.
Nestes termos, a determinação do conteúdo do direito deve ser uma
questão de fato, ou seja, aquilo que decidiu o parlamento. Qualquer outra forma
de determinação, sobretudo a que invoque considerações sobre a proporção
137
MANERO, “Entrevista con Joseph Raz”, op. cit., p. 343 138
Ibid, p. 341 et seq.
47
justa do tributo, frustra o propósito de confiar o assunto ao parlamento.139 Isto
não implica que os tribunais não possam utilizar argumentos morais para decidir
casos de direito tributário, mas marca a linha divisória entre aplicar o direito
existente e desenvolve-lo para mais além.
O terceiro nível está na concepção de que o direito como um todo, e não
apenas o direito legislado, é “autoritativo”140. Assim, leis, costumes, precedentes
e outras fontes normais do direito o esgotam. Isto deixa clara a distinção entre
aquilo que posso fazer porque é o correto que devo fazer e o que não posso
fazer, porque o direito o proíbe, ainda que por todo resto fosse correto.
O próprio Lyons rebate as críticas de Raz, afirmando que a tese social
forte é pouco plausível e não pode derivar da concepção social do direito.141
Lyons concebe que a separação entre o direito e a moral não pode derivar da
tese social, pois esta é silente no tocante à relação entre os fatos e sua
valoração moral. Lyons desmembra a tese social forte em duas: a afirmação de
que o direito está determinado por fatos sociais e a afirmação de que ele não
está determinado por considerações morais. Para o autor, elas são
independentes. Ademais, aqueles que sustentam que a separação entre direito e
moral deriva da concepção social do direito, o fariam por considerar,
equivocadamente, que, sendo o direito fruto de condutas humanas, e sendo as
condutas humanas moralmente falíveis, tal separação seria uma decorrência
necessária. Lyons rebate essa linha de raciocínio se valendo do exemplo das
máquinas, que também são produto do homem, e não parecem ser moralmente
falíveis. Assim, a simples idéia de que o direito é um fato social, não implica que
seja moralmente falível.
Em relação à segunda parte da tese, que sustenta que o direito não pode
ser determinado por valores morais, em realidade apenas implica que a
moralidade do direito é uma questão em aberto. Além disto, nem sempre que se
aplica uma clausula constitucional com carga valorativa os juízes criam direito
como supõe Raz, eles podem estar aplicando uma interpretação correta do
direito, criando assim direito apenas quando tomarem uma decisão errada.
139
Ibid, p. 342. 140
O registro formal da Língua Portuguesa não encontra tradução para o termo em Inglês
“autoritative”, ou “autoritativo” em Espanhol. Por esta razão, e pela falta de termo equivalente em nosso idioma, empregaremos a palavra “autoritativo”, sempre entre aspas, para designar aquilo que inclui ou supõe autoridade. 141
LYONS, “Moral Aspects of Legal Theory” in COHEN, Marshal. (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence, New York: Rowman & Allanheld, 1984, p. 49-72. O artigo havia sido originalmente publicado em 1982 em Midwest Studies in Philosophy, n. 7.
48
A discussão sobre a existência de uma resposta correta no direito ainda
geraria acirrados debates na teoria do direito. O que restava claro neste
momento era a afirmação de uma corrente doutrinaria que negava os intentos
dos inclusivos de conciliar as teses positivistas com a possibilidade de
identificação do direito a partir de critérios morais. No extremo oposto, a corrente
inclusiva se via enfrentada também por novas críticas de Dworkin, desta vez
dirigidas a esta versão de “positivismo jurídico menos positivo”.142
3.3 Os novos ataques de Dworkin
Ao final dos anos setenta e ao longo dos anos oitenta, novos trabalhos
foram publicados sobre o tema e a corrente do positivismo inclusivo floresceu
consideravelmente.
Dentre estes trabalhos, a coletânea sobre Dworkin, publicada em 1983
sob coordenação de Marshal Cohen, tem elevado destaque, por reunir trabalhos
que apresentam uma continuação das primeiras defesas da proposta inclusiva e,
ao final, uma réplica de Dworkin a todas as críticas.143 Dos treze trabalhos
reunidos, três tratam especificamente do positivismo inclusivo: o de Soper144, já
analisado no capítulo anterior, juntamente com artigos de Lyons e Coleman, aos
quais dedicaremos uma breve análise. Em seguida, analisaremos as novas
críticas apresentadas por Dworkin em O Império do Direito.
Em seu novo artigo145, além de rebater, como visto, as críticas de Raz,
Lyons apresenta aquela que seria a nota distintiva do positivismo jurídico: a “tese
da separação entre direito e moral” Como o sentido desta tese não é tão claro
quanto parece, Lyons a desmembra a fim de determinar melhor seu alcance:
uma tese mínima da separação, sustentando que o direito é moralmente falível;
e uma tese do “conteúdo moral explícito”, segundo a qual o direito só possui
condições morais que estejam expressamente estabelecidas em lei.
142
ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op.cit., p. 52. 143
COHEN, Marshal (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence. op. cit. 144
SOPER, Philip “Legal Theory and the Obligation of a Judge: the Hart/Dworkin Dispute” in COHEN, M. Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence. op. cit. 145
LYONS, David. “Moral Aspects of Legal Theory”, op. cit.
49
Lyons considera a tese da separação entre direito e moral um axioma, e
não um corolário do pensamento positivista.146Não obstante, a tese mínima não
seria uma exclusividade dos positivistas. A tese sustentada por boa parte dos
positivistas será a do conteúdo explícito.
“Alguém pode crer que a linguagem moral deveria ser excluída das leis para que elas tenham maior clareza e precisão. Mas esta linha de raciocínio é irrelevante para a presente questão. Termos morais são encontrados na linguagem legislativa e judicial, e a questão aqui é se sua aplicação envolve interpretar ou criar direito”
147
Lyons não chega a oferecer uma resposta definitiva, mas conclui que as
teorias do direito analítica e a normativa estão inseparavelmente conectadas, e a
chave da questão estaria na justificação das decisões judiciais, o que envolveria
necessariamente valorações morais.148
Em outro passo, Jules Coleman, partindo de algumas observações de
Dworkin sobre a natureza controversa de certos padrões jurídicos, nos apresenta
sua tese incorporacionista, que se desdobraria em uma tese positiva e negativa.
A tese negativa sustenta que os sistemas jurídicos não precisam reconhecer
como direito padrões morais controvertidos, embora possam fazê-lo.
“A tese da separabilidade vincula o positivismo à tese de que existe pelo menos um sistema jurídico concebível no qual a regra de reconhecimento não especifica ser um princípio de moralidade dentre as reais condições de nenhuma proposição jurídica. O positivismo é verdadeiro, então, apenas no caso em que se possa imaginar um sistema jurídico no qual ser um princípio de moralidade não seja condição de legalidade de nenhuma norma: ou seja, apenas no caso da idéia de um sistema jurídico no qual a verdade moral não figure como condição de validade jurídica não seja contraditória.”
149
Esta idéia é tida como uma concepção negativa de positivismo pois
afirma apenas aquilo que o direito necessariamente não é, não podendo assim
ser derrubada por contra exemplos, que no máximo demonstrarão que em
algumas circunstancias a moralidade pode figurar como critério de identificação
do direito. 150 Mas por afirmar tão pouco, seria uma tese trivial.
A tese positiva do positivismo de Coleman, que pretende afirmar aquilo
que de fato o positivismo jurídico é, pode ter duas feições: a dos “fatos duros”
146
Ibid, p. 58. 147
Ibid, p. 66. 148
Ibid, p. 68. 149
COLEMAN, “Negative and Positive Positivism” in COHEN, Marshal. (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence, New York: Rowman & Allanheld, 1984, p. 31. O artigo fora originalmente publicado em The Journal of Legal Studies, 11, n.1, 1982, p 139-164. 150
Idem
50
(hard facts) ou da convenção social (social convention). Ambas dialogam
diretamente com as críticas de Dworkin à regra de reconhecimento hartiana. O
positivismo dos fatos duros sustenta que padrões controvertidos não podem
valer como direito. Esta seria a tese que Dworkin teria atribuído corretamente à
Hart, mas erroneamente ao positivismo jurídico como um todo.
A forma de positivismo positivo que Coleman vai sustentar é o
positivismo que encara o direito como uma convenção social. Coleman
apresenta inicialmente uma simples forma de rebater as objeções de Dworkin
em “Modelo de Regras I”: construir uma regra de reconhecimento que inclua
princípios morais e não somente regras.151 No entanto, Dworkin diria que tal
regra de reconhecimento seria inerentemente controvertida, não sendo assim
considerada uma regra social ou convencional.
Coleman busca então apresentar uma tese que desenvolva uma forma de
positivismo que aceite a natureza controvertida de alguns elementos do direito,
mas que ao mesmo tempo negue que isto seja incompatível com a natureza
convencional do direito.152 Para isso, desenha uma distinção entre três versões
de positivismo:
(1) “Positivismo Negativo, a visão de que o sistema jurídico não precisa reconhecer como direito padrões morais controversos; (2) “positivismo positivo, dos fatos duros”, a visão que padrões controversos não podem ser vistos como direito, e, conseqüentemente, rejeita os pontos de Dworkin; (3) “positivismo positivo, da regra social”, que insiste apenas no status convencional da regra de reconhecimento mais aceita os pontos de Dworkin. Já que a inclusão de princípios morais controversos não é uma característica necessária do conceito de direito, os argumentos de Dworkin (...) são inadequados para derrubar a tese fraca do positivismo negativo.
153
Assim, a atuação judicial em casos controversos seria mais bem explicada
a partir da aceitação crítica da prática de resolução de conflitos do que a partir
de princípios morais.154
Dworkin elabora então um conjunto de réplicas às críticas que recebeu e
apresenta novas críticas ao positivismo. As réplicas são apresentadas na obra
coletiva sobre seu pensamento155, as novas críticas, em sua obra publicada em
1986, “O Império do Direito” (Law`s Empire).
151
Ibid, p. 35 152
Ibid, p. 47. 153
Ibid, p. 46 154
Idem 155
Cf. COHEN, Marshal. (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence, op. cit, p. 247-300.
51
Parte das respostas aos críticos já havia sido publicada em um artigo de
1977, Seven Critics156, especialmente as dirigidas a Soper157. Estas dariam conta
da vinculação do positivismo jurídico a duas importantes afirmações que não
estariam presentes nas afirmações iniciais do positivismo inclusivo: a
necessidade de um critério mais ou menos mecânico de identificação do direito,
retomando assim a idéia de pedigree já apresentada158; e a idéia de que uma
proposição do direito, quando é verdadeira, “consiste em fatos históricos comuns
sobre comportamentos individuais ou sociais, incluindo talvez fatos referentes a
crenças e a atitudes, mas não em fatos metafisicamente suspeitos.”159
Com relação à primeira afirmação, esta se vincula à função do direito, que
seria fornecer um conjunto estabelecido público e confiável de padrões de
conduta. Assim, ficaria clara a distinção das situações nas quais o direito ditaria
uma decisão e situações nas quais o juiz utilizaria seu poder discricionário. Um
positivismo flexível como o proposto por Soper e Lyons enfraqueceria tal
afirmação e o argumento de Dworkin estaria reforçado.
No tocante à segunda afirmação, o “positivismo ao estilo Soper-Lyons” não
conseguiria sustentá-la, pois a verdade das proposições do direito dependeriam
sistematicamente da verdade das proposições de moralidade, o que inviabilizaria
a “separação ontológica prometida entre direito e moral”160
Dworkin faz ainda alusão à distinção de Soper entre teorias descritivas e
conceituais. Para Soper, o positivismo seria uma teoria conceitual, enquanto a
teoria de Dworkin seria descritiva, já que as afirmações positivistas seriam
válidas para qualquer sistema jurídico, enquanto as dworkianas, apenas para um
sistema específico. Para Dworkin, o positivismo defende uma concepção
específica do conceito de direito e ele defende uma concorrente. Ao percorrer
sistemas jurídicos modernos e complexos “para demonstrar que, uma vez que
nesses sistemas a verdade de uma proposição sobre direitos jurídicos pode
consistir em algum fato moral, a concepção positivista de direitos jurídicos deve
ser falsa”161. Portanto, Dworkin conclui que se deve abandonar a concepção
156
DWORKIN, Ronald. “Seven Critics”, Georgia Law Review, 11, n. 5, 1977. Tal artigo foi posteriormente incorporado na forma de apêndice a Taking Rights Seriously. 157
Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, op. cit. p. 530-541. Neste mesmo artigo, Dworkin rebate críticas de outros autores, como Nickel, Mackie e Munzer. Como estas fogem ao escopo do presente trabalho, não serão objeto de análise. 158
Ibid, p. 531. 159
Ibid, p. 533. 160
Ibid, p. 534. 161
Ibid, p. 540.
52
positivista em prol de uma que torne a prática institucional e a história de cada
jurisdição importantes para a verdade das proposições jurídicas.
Em resposta a Coleman, Dworkin afirma concordar com suas teses em
relação ao positivismo negativo, que seria uma teoria trivial; e do positivismo dos
“fatos duros”, que seria uma tese falsa.162 Já a tese por Coleman defendida, do
“direito como convenção”, estaria bem próxima à proposta por Soper, mas com
um fundamento distinto.
No entanto, tal qual desenhada por Coleman, esta tese também beiraria a
trivialidade. Ao partir da idéia de que toda comunidade deve possuir uma
convenção fundamental, com certo grau de concretude. Se daí se parte para
uma saída universalista, segunda a qual toda comunidade possui uma
convenção com um grau desejado de concretude, isto é falso, como parece
reconhecer o próprio Coleman. No entanto, caso se parta para uma saída
existencialista, sustentando que existem apenas alguns sistemas jurídicos
apresentam convenções deste tipo, voltamos ao positivismo negativo, que como
dito, é trivial.
Com relação às teses de Lyons, Dworkin debate seu ceticismo sobre a
teoria do direito. Para Dworkin, toda teoria do direito estaria baseada numa teoria
política normativa, inclusive a positivista. Lyons aceita que isso possa se dar com
alguns positivistas, como Bentham ou Raz, mas outros entendem que o direito é
fruto apenas de fatos sociais, não porque isso seja desejável, mas porque é
assim que as coisas são.163 Para fundamentar sua idéia, Lyons recorre a Hart,
citando-o. Para Dworkin, no entanto, a teoria de Hart não estaria baseada
apenas em análises lingüísticas, como faz parecer no inicio do seu livro. Ao
apresentar as regras secundárias como capazes de resolver defeitos de um
sistema composto apenas por regras primárias, Hart teria feito uma opção
política, e não meramente descritiva. Direito é um conceito político não apenas
por ser controverso, mas, sobretudo, pelo modo pelo qual é controvertido, num
contexto profunda e densamente político.164
Os novos ataques ao positivismo apresentados em O Império do Direito
parecem estar centrados em dois argumentos principais: aquele que Dworkin
denominou de “aguilhão semântico”, e críticas em torno da idéia de
convencionalismo. Examinemos cada um deles.
162
DWORKIN, Ronald. “A Reply”, in COHEN, Marshal. (org) Ronald Dworkin and Contemporary Jurisprudence. op.cit., p. 252 163
Ibidp. 254. 164
Ibid, p. 256.
53
Dworkin tece críticas inicias às teorias semânticas do direito, que seriam
aquelas baseadas em “certos critérios lingüísticos para avaliar as proposições
jurídicas”165, e que pressuporiam que os operadores do direito estejam de acordo
quanto aos seus fundamentos. O positivismo jurídico seria uma teoria semântica
que “sustenta o ponto de vista do direito como simples questão de fato e a
alegação de que o verdadeiro argumento sobre o direito deve ser empírico, não
teórico.”166. Para ele, muitas divergências no direito são teóricas, e não apenas
empíricas, e o aguilhão estaria nessa visão demasiadamente tosca do que seria
a divergência no direito.167 Ao focarem-se apenas em desacordos verbais, os
juristas deixam de observar as disputas genuínas no direito.
Os desacordos genuínos não estariam apenas em uma “zona de
penumbra”, mas, sobretudo, nos casos centrais, já que são atinentes aos
critérios que determinam os significados dos termos.168 Os conceitos não
decorrem apenas de convenções, mas de interpretações, e por essa razão
Dworkin apresenta uma “teoria interpretativa” como solução para a cegueira das
teorias semânticas aos reais desacordos jurídicos. Vê, portanto, as controvérsias
como sendo de caráter interpretativo, já que versariam sobre a melhor forma de
interpretar uma prática social determinada.
Dworkin reitera assim a impossibilidade de se definir o direito a partir de
uma regra de reconhecimento, já que uma característica fundamental do direito é
ser uma prática social de natureza argumentativa. A interpretação desta pratica
deve ser um tipo de interpretação criativa
Interpretar uma pratica social é apenas uma forma ou ocasião de interpretação. As pessoas interpretam em muitos contextos diferentes e, para começar, devemos procurar entender em que esses contextos se diferem. A ocasião mais conhecida de interpretação – tão reconhecida que mal a reconhecemos como tal – é a conversação. Para decidir o que uma outra pessoa disse, interpretamos os sons ou sinais que ela faz. A chamada interpretação científica tem outro contexto: dizemos que um cientista começa por coletar dados, para depois interpretá-los. Outro, ainda, tem a interpretação artística: os críticos interpretam poemas, peças e pinturas a fim de justificar algum ponto de vista acerca de seu significado, tema ou propósito. A forma de interpretação que estamos estudando – a interpretação de uma pratica social – é semelhante à interpretação artística no seguinte sentido: ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas, e não o que as pessoas dizem, como uma interpretação da conversação, ou fatos não criados pelas
pessoas, como no caso da interpretação científica.169
165
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 40. 166
Ibid, p. 45-46. 167
Ibid, p. 56. 168
Para uma classificação de Dworkin quanto aos desacordos jurídicos, cf. O Império do Direito, op. cit. p. 5-10. 169
Ibid, p. 60-61.
54
A interpretação jurídica proposta por Dworkin é criativa, pois ela busca
“decifrar os propósitos e intenções do autor ao escrever determinado romance
ou consertar uma tradição social específica, do mesmo modo que, na
conversação, pretendemos perceber as intenções de um amigo ao falar como
fala.”170 No entanto, a interpretação criativa não é conversacional, e sim
construtiva, por se preocupar substancialmente com o propósito, e não com a
causa. Através dela deve-se impor um propósito a um objeto ou pratica para
torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou gênero às quais ele possa
pertencer.171
Para aclarar sua teoria da interpretação, Dworkin realiza uma divisão
analítica da mesma em três fases: pré-interpretativa, interpretativa e pós-
interpretativa172. Na etapa pré-interpretativa, são identificados as regras e os
padrões que se consideram fornecer o conteúdo experimental da pratica. Apesar
da denominação, o autor reconhece que algum tipo de interpretação se faz
necessário nessa fase. No segundo estágio, o interprete deve focar numa
justificativa geral para os elementos identificados na etapa anterior, atribuindo-
lhes assim sentido. Na ultima etapa, também denominada de reformadora, na
qual é feito um ajuste da idéia do interprete daquilo que a pratica realmente
requer para melhor servir à justificativa aceita na etapa interpretativa, buscando-
se assim uma aplicação coerente da melhor justificativa prática.
Dworkin ainda adiciona à sua teoria interpretativa a necessidade de
coerência, a ser alcançada pelo intérprete como parte de um processo que deve
ter uma consistência narrativa. Através da metáfora do romance em cadeia,
Dworkin busca explicar sua tese, afirmando que tal qual um romancista de uma
cadeia interpreta os capítulos recebidos para escrever o próximo, o juiz ao
decidir uma demanda deve escolher a melhor leitura da cadeia de precedentes
para dar-lhe continuidade. Trata-se de um aprimoramento da idéia de “teia
inconsútil” apresentada anteriormente em Levando os Direitos a Sério173.
A teoria interpretativa de Dworkin pretende então livrar o direito do
aguilhão que teorias semânticas o colocaram, ajustando o foco do jurista para o
real problema do direito, que não é semântico, mas sim interpretativo. A pratica
social na qual consiste o direito deve ser interpretada segundo a melhor leitura
170
Ibid, p. 62. 171
Ibid, p. 63-64. 172
Ibid, p. 81-84. 173
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério, op. cit. p. 181-183.
55
possível que possua coerência e consistência narrativa, buscando-se assim o
ideal de integridade ao direito.
Com relação ao convencionalismo, Dworkin começa por apontar as
semelhanças entre as teorias convencionalistas e as semânticas, já que ambas
pretendem dar solução para questões jurídicas recorrendo a decisões do
passado. Ambas também reconhecem que estas decisões nem sempre são
suficientes, e ao surgirem novas questões para serem decididas, os juízes
devem atuar com algum grau de discricionariedade.174 No entanto, haveria uma
importante diferença entre elas: enquanto as teorias semânticas sustentam que
o vocabulário jurídico concretizam o próprio direito, as teorias convencionalistas
são interpretativas, mas assumem posturas ambivalente de qualquer
interpretação.175
O convencionalismo teria assim duas pretensões: uma positiva, segundo a
qual os juízes devem respeitar as convenções jurídicas, salvo em circunstancias
excepcionais; e uma negativa, sustentando que não existe direito além do que
se extrai de decisões políticas do passado segundo técnicas convencionadas.
Não havendo direito pré-existente os juízes devem exercer sua
discricionariedade.
Haveria também duas formas de convencionalismo: uma “estrita”, que
restringe o direito de uma comunidade à extensão explícita de suas convenções
jurídicas, tais quais a lei e o precedente176; e uma “moderada”, que sustenta que
o direito de uma comunidade inclui tudo que estiver contido na extensão implícita
dessas convenções. Esta última versão estaria exercendo uma atração “sobre
uma geração recente de filósofos do direito”, fazendo referências expressas a
Coleman, Soper e Lyons, que adotariam esta perspectiva ao defenderem que o
direito pode depender de juízos morais polêmicos se assim define uma
convenção legal.
No entanto, o convencionalismo moderado fracassaria em ser uma versão
autêntica de convencionalismo. Seria uma versão muito abstrata e
subdesenvolvida de direito como integridade que representaria um tipo espúrio
de convencionalismo, uma vez que, apesar de rejeitar a separação entre direito
e política, não impede o juiz de envolver suas próprias convicções morais na
174
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito, op. cit. p. 141-143. 175
Ibid, p. 144. 176
Ibid, p. 152.
56
decisão de um caso. Assim, o convencionalismo moderado não seria, em
verdade, convencionalismo
Espero que agora esteja evidente que o convencionalismo moderado não é,
em absoluto, uma forma de convencionalismo (...) Trata-se, na verdade, de uma
forma muito abstrata e subdesenvolvida de direito como integridade. Rejeita o
divórcio entre o direito e a política que uma teoria convencionalista, pelos motivos
que descrevi tenta assegurar.. Esse tipo espúrio de convencionalismo não impede
que um juiz convencionalista supostamente moderado envolva suas próprias
convicções morais e políticas em sua decisão. 177
Já o “formalismo estrito” fracassaria por não se ajustar às práticas
judiciais.178 Um juiz que atuasse sob essa forma de convencionalismo deveria
perder interesse na legislação e nos precedentes quando constatasse que o
sentido explícito dos mesmos não dá conta de resolver o caso e criaria um novo
direito. No entanto, não é isso que a prática demonstra, já que os juízes apelam
muitas vezes para o sentido implícito das leis e precedentes para dar solução a
um caso.
Portanto, em síntese, o convencionalismo fracassaria por não ser uma
versão autêntica de convencionalismo, no caso de sua versão moderada, ou por
se ajustar mal à prática judicial (e por não haver razões para que a prática se
ajuste a esta concepção) no caso de sua versão estrita.
Conforme o surgimento de novas réplicas contra os intentos inclusivos de
superar as críticas de Dworkin ao positivismo jurídico hartiano, o Positivismo
Jurídico Inclusivo foi se consolidando como teoria jurídica. Como exposto
anteriormente, duas são as principais teorias que enfrentam a proposta inclusiva:
por um lado, a versão do positivismo jurídico de Raz; e por outro, a visão de
direito como integridade de Dworkin. Do enfretamento contra estes opositores
surge o desenvolvimento e consolidação do positivismo inclusivo.
O ano de 1994 é emblemático para o desenvolvimento desta teoria, pois
nele se publicam as duas principais obras de sua consolidação: o pós-escrito de
Hart ao seu Conceito de Direito de 1961 e a obra Inclusive Legal Positivism de
Wilfrid Waluchow, que reúne a aprimora diversos artigos publicados pelo autor
nos anos anteriores. Faremos uma análise de cada uma delas.
177
Ibid, p. 156. 178
Ao se referir à “práticas judiciais” Dworkin tem em mente as práticas dos países de common law, especialmente Estados Unidos e Reino Unido. Nesse sentido, cf. ETCHEVERRY, Op. Cit., p. 48.
57
3.4 O soft positivism de Hart
A defesa do positivismo frente às críticas de Dworkin foi levada a cabo até
o final da década de noventa principalmente por autores próximos a Hart, ou por
autores que, não obstante serem opositores deste, discrepam em maior medida
das propostas de Dworkin.
Hart teve durante vários anos o projeto de desenvolver uma resposta
compreensiva às críticas de Dworkin e refinar sua própria teoria para superar as
dificuldades colocadas pelo teórico norte-americano. Com este fim, trabalhou em
um pós-escrito a O Conceito de Direito que ainda não estava concluído quando
de sua morte. Todavia, a seção dedicada a Dworkin se encontrava quase
concluída, sendo editada e publicada no mesmo ano de seu falecimento.179
Nele, Hart elabora três tipos de defesa180: em primeiro lugar oferece razões
para demonstrar que várias das teses que Dworkin lhe atribui não se
depreendem de sua obra, e pelo contrario, estão explicitamente excluídos dela.
Neste ponto, a defesa de Hart consiste, em outras palavras, em afirmar que
Dworkin interpretou erroneamente sua teoria (3.4.1).
Em segundo lugar, Hart argumenta a favor de algumas de suas teses, e
procura demonstrar que estas não sucumbem diante das críticas dworkinianas.
Neste ponto a defesa não está em demonstrar erros de leitura, mas mostrar que,
apesar de interpretar corretamente, as teses positivistas são mais consistentes
do que as propostas de Dworkin (3.4.2).
Por último, Hart aceita algumas “inconsistências” e “vazios” de sua teoria e
sugere adaptações para solucioná-las. Esta última estratégia trata de refinar as
formulações de sua teoria inicial. (3.4.3) 181
O ponto central da defesa de Hart é a reivindicação da possibilidade de
elaborar uma teoria descritiva do direito que, inobstante possuir este caráter, dê
179
RODRIGUEZ, Cesar. La decision judicial. El debate Hart-Dowrkin. Bogota: Siglo de los Hombres, 2008, p. 43. 180
A apresentação do pós escrito de Hart em três grupos de argumentos segue metodologia proposta por ETCHEVERRY (2007) e RODRIGUEZ (2008) 181
Ibid, p. 44
58
conta da existência de juízos valorativos no direito. Apesar das práticas dos
operadores do direito demonstrarem que se apela a regras para criticar condutas
ou fazer exigências, isto não impede a elaboração de uma teoria descritiva, sem
ser ela mesma crítica ou justificadora. Hart sustenta que a sua teoria é um
“positivismo suave”, já que procura descrever o funcionamento do direito
reconhecendo a existência de valores na regra de reconhecimento, sem com
isso passar a ser uma teoria valorativa no estilo dworkiniano182
3.4.1 Críticas de Hart à teoria dworkiana
Inicialmente, com relação à tese da conexão necessária entre direito e
moral, Hart considera a teoria de Dworkin muito próxima ao jusnaturalismo. As
críticas de Dworkin contra a tese hartiana da discricionariedade dependeriam de
uma teoria moral objetivista. Como esta inexiste, o juiz Hércules, na sua busca
da melhor justificação moral do direito não poderia escapar da
discricionariedade.
De outro lado, Hart também questiona a possibilidade de uma única
resposta certa como elemento superador da discricionariedade. Exemplifica o
problema ao supor que num caso de dois juízes competentes para um
determinado caso, resulta impossível afirmar quem está com a razão.
No tocante à consideração de Dworkin de acordo com a qual os direitos
jurídicos devem ser lidos como direitos morais, Hart considera que tal afirmação
deve ser abandonada ou não passa de uma trivialidade.183 Esclarece Hart
os direitos e deveres jurídicos são o ponto em que o direito, com seus recursos coercivos, respectivamente protege a liberdade individual e a restringe, ou confere aos indivíduos, ou lhes nega, o poder de, eles próprios, recorrerem ao aparelho coercivo do direito. Assim, quer as leis sejam moralmente boas ou más, justas ou injustas, os direitos e os deveres requerem atenção como pontos focais nas atuações do direito, que se revestem de importância fundamental para os seres humanos, e isto independentemente dos méritos morais do direito. Por isso, é falso que as afirmações de direitos e deveres jurídicos só possam fazer sentido no mundo real se houver algum fundamento moral para sustentar a formação de sua existência.
184
182
Ibid, p. 45. 183
HART, Herbert. Essays on Bentham Oxford: Clarendon, 1982, p. 147-149 184
HART, Herbert. “Pós-escrito”, in O Conceito de Direito, op. cit. p. 332
59
Finalmente, Hart afirma que Dworkin tece uma crítica baseada apenas em
exemplos contra as teses positivistas, e não numa teoria jurídica geral, portanto,
baseia-se em fatos contingentes e não representa um verdadeiro desafio ao
positivismo jurídico.185 Não obstante, a teoria proposta por Dworkin é normativa,
sendo incapaz de responder à pergunta “o que é o direito”, mas tão somente
dando conta de um sistema jurídico específico, calcada numa perspectiva
interna. Hart sustenta a possibilidade de uma teoria descritiva do direito
elaborada a partir de um observador externo
Mas nada há, de fato, no projeto de uma Teoria Geral do Direito (Jurisprudence) descritiva, tal como está exemplificado no meu livro, que impeça um observador externo não participante de descrever os modos por que os participantes encaram o direito, de tal ponto de vista interno. (…) o teorizador jurídico descritivo deve compreender o que é adotar o ponto de vista interno, e, nesse sentido limitado, deve estar apto a pôr-se, ele próprio, no lugar de uma pessoa dentro do sistema, mas isso não é aceitar o direito, ou partilhar, ou sustentar o ponto de vista interno da pessoa de dentro, ou, de qualquer outro modo, renunciar à sua postura descritiva. (…) Uma descrição pode ainda continuar sendo descrição mesmo quando o que é descrito constitui uma avaliação.
186
3.4.2 Aclarações de Hart às críticas de Dworkin
Três são os pontos centrais de esclarecimentos feitos por Hart: a noção de
obrigatoriedade no direito, a natureza da teoria jurídica e discricionariedade da
atividade judicial.
Com relação à obrigatoriedade do direito, Hart vê nela o principal problema
de O Conceito de Direito.187 Isto porque tal conceito era equivocadamente
apresentado como fruto de uma regra social. Assim, todo tipo de obrigação
surgiria de regras sociais. Sua teoria fora chamada de “teoria da prática” porque
encarava as regras sociais de um grupo como uma prática social que abrangeria
tanto modelos de conduta regularmente seguidos pela maior parte dos membros
do grupo, como uma atitude de normativa de aceitação.188 No entanto, tal
explicação se amoldaria bem apenas para regras convencionais de caráter
consuetudinário, mas não para regras emanadas do Poder Legislativo,
necessitando, portanto, de uma revisão.
185
HART, Herbert. “El nuevo desafio del positivismo jurídico”, op. cit. p. 14 et seq. 186
HART, Herbert. “Pós-escrito”, op. cit. p. 303-306. 187
PARAMO, J. “Entrevista a H L A Hart” , Doxa, 5, 1998, p. 343. 188
HART, Herbert. “Pós-escrito”, p. 317.
60
A nova teoria de Hart sustenta que as normas não precisam ser aceitas
pela maioria de uma comunidade para serem reconhecidas como válidas. A
teoria de Hart permaneceria fiel apenas em relação a regras sociais
convencionais, nas quais se incluem os costumes sociais comuns e certas
regras jurídicas importantes como a regra de reconhecimento, que sendo de
fato, uma forma de regra judicial costumeira, somente existe se for aceita e
executada pelos tribunais. Já as regras legisladas, embora sejam identificáveis
pelos critérios fornecidos pela regra de reconhecimento, podem existir enquanto
regras desde seu surgimento, mesmo antes de verificada qualquer ocasião para
sua prática.189
Com relação à natureza da teoria jurídica, Hart reitera a possibilidade já
exposta de elaborar-se uma teoria geral e descritiva. Cabe ressaltar nesse ponto
que Hart e Dworkin partem assim de premissas metodológicas distintas. Isto faz
com que o debate Hart x Dworkin se pareça em muitos pontos mais com um
“conjunto de conexões perdidas do que de respostas encontradas”.190
Retomaremos o ponto no capítulo seguinte.
Por derradeiro, no tocante à discricionariedade judicial, Hart reafirma a
possibilidade de casos de indeterminação ou incompletude do direito, casos nos
quais o juiz exerceria seu poder discricionário. Dworkin rejeita esta tese por se
tratar de uma concepção enganadora tanto do direito como da atividade judicial.
Não seria o direito incompleto, mas a visão que os positivistas têm deste. O
direito nunca seria incompleto, pois estaria composto além do direito
estabelecido explícito, por princípios jurídicos implícitos, isto é, aqueles
princípios que melhor se ajustam ao direito explícito ou com ele mantenham
coerência, conferindo a melhor justificação moral dele.191
Dworkin considera a concepção de Hart descritivamente falsa, pois a
retórica do processo judicial transmite a idéia de que inexistem casos não
regulados pelo direito. Hart adverte que “é importante distinguir a linguagem
ritual utilizada por juízes e juristas, quando os primeiros decidem os casos nos
tribunais, das suas afirmações mais reflexivas sobre o processo judicial”.192 A
referência recorrente a princípios por parte dos julgadores não elimina a criação
do direito, apenas a retarda em alguns casos, pois ao se deparar com princípios
189
Ibid, p. 318. 190
ETCHEVERRY, El Positivismo Jurídico Incluyente, op. cit. p. 88 191
HART, Herbert. “Pós-escrito” op. cit., p. 335.. 192
Ibid, p. 337.
61
concorrentes, o juiz terá que agir como um legislador, confiando no seu senso de
escolha, e não se baseando em algo previamente estabelecido.
A concepção do poder discricionário não poderia também ser tida como
antidemocrática, tal qual Dworkin sustentara. Apesar de não serem em regra
eleitos, reconhecer o poder dos juízes de criar direito seria um preço necessário
a se pagar para evitar inconvenientes ainda maiores de soluções alternativas,
como a remessa da causa ao órgão legislativo.193 Trata-se de uma característica
das modernas democracias. Tampouco seria injusta tal concepção, pois mesmo
ao criar direito ex post facto, inexistindo direito previamente estabelecido, não se
pode dizer que alguém teve expectativas legítimas frustradas com o novo direito
criado.
3.4.3 Teses do soft positivism hartiano
Hart pretendia com seu Pós-escrito responder as críticas que sua teoria
durante mais de trinta anos. Todavia, só conseguiu completar parte deste
trabalho, já que faleceu antes de concluir a segunda seção, na qual dialogava
com outros autores que não Dworkin.194
O primeiro passo de Hart foi esclarecer a natureza do positivismo jurídico.
Para ele, sua teoria não é semântica, e, portanto, não é atingida pelo “aguilhão”
apontado por Dworkin. Ele não nega em momento nenhum da obra a
possibilidade de desacordos teóricos no direito, e acrescenta
Embora os meus exemplos principais dos critérios fornecidos pela regra de reconhecimento, sejam questões daquilo a que Dworkin tem chamado de pedigree, dizendo respeito apenas ao modo como as leis são adotadas ou criadas por instituições jurídicas, e não ao seu conteúdo, eu expressamente afirmo os dois seguintes pontos neste livro e no meu artigo intitulado “Positivism and the Separation of Law and Morals”, que em muitos sistemas de direito, tal como nos Estados Unidos, os critérios últimos de validade jurídica podiam incorporar explicitamente, para além de pedigree, princípios de justiça ou valores morais substantivos, e estes podem integrar o conteúdo de restrições jurídico-constitucionais.
195
No que se refere especificamente à regra de reconhecimento e sua
insuficiência ou incapacidade de lidar com princípios, Hart afirma inexistir razão
193
Ibid, p. 338. 194
Cf. Nota dos editores a O Conceito de Direito. 195
HART, Herbert. “Pós-escrito”,op.cit. p. 309.
62
alguma para que a regra de reconhecimento não possa diretamente identificar
alguns princípios por seu conteúdo, sendo assim parte do critério de
identificação de validade jurídica.196 Assim, a regra de reconhecimento pode
incorporar critérios de validade em conformidade com princípios morais
substantivos. Para Hart, Dworkin teria sido levado a um duplo erro: “em primeiro
lugar, a crença de que princípios jurídicos não podem identificar-se pelo seu
pedigree, e, em segundo lugar, a crença de que a regra de reconhecimento só
pode fornecer critério de pedigree”197
Hart sustenta que nenhum dos aspectos dos princípios que impede sua
identificação por critérios de pedigree. Como exemplo, estariam os princípios
previstos nas constituições e atos legislativos, ou ainda princípios do common
law, como o da vedação de beneficiar-se da própria torpeza, que podem ser
identificados por pedigree na medida em que são invocados de forma recorrente
e coerente pelos tribunais. Com relação aos demais princípios, não identificáveis
por pedigree, quer seja por sua fugacidade ou indeterminação, isto não propõe
uma alternativa à regra de reconhecimento, mas à necessidade, como Soper,
Coleman e Lyons advertiram, de delineamento de uma regra de reconhecimento
capaz de identificar os princípios por seu conteúdo, e não por seu pedigree.198
Ainda de acordo com Hart, a regra de reconhecimento seria não só
possível, como necessária. Isto porque o ponto de identificação de qualquer
princípio jurídico seria uma área específica do direito constituído, ao qual o
princípio se amolda e justifica, o que exigiria necessariamente uma regra de
reconhecimento. Isto estaria ligado ao que Dwkorkin determinou “etapa pré-
interpretativa”, cuja identificação sustenta a existência de uma regra de
reconhecimento, que identifique de forma autorizada as fontes do direito.199
No tocante à incerteza ou à margem de controvérsia que tal regra de
reconhecimento, ao aceitar que a identificação do direito dependa de questões
controvertidas, possa gerar, isto não abala em nada as pretensões positivistas.
Tal crítica sobrevalora não só a importância que os positivistas dariam ao grão
de certeza dos padrões jurídicos, como o de incerteza que resultaria dos valores
ou princípios morais. A exclusão total da incerteza não é um objetivo da regra de
reconhecimento, e isto estaria expressamente afirmado na zona de penumbra
196
HART, Herbert. “Positivism and the Separation of Law and Morals” Harvard Law Review, Vol. 71, No. 4. 1958, p. 593 et seq; “El nuevo desafio del positivismo jurídico”,op. cit. p. 8. Cf. ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo incluyente, op.cit. p. 94. 197
HART, Herbert. “Pós-escrito” op. cit. , p. 327. 198
Ibid, p. 328. 199
Ibid, p. 329.
63
gerada por ela. A incerteza deve ser tolerada e até é bem-vinda, a questão está
em se estabelecer qual é o grau de incerteza tolerado por determinado sistema
jurídico.
Hart aborda ainda a distinção entre princípios e regras, reconhecendo suas
próprias falhas na abordagem inicial do tema, mas afirmando ser possível
repará-las com pequenos ajustes. As distinções entre princípios e regras se
centrariam em pelo menos dois aspectos: um de grau, já que, em relação às
regras, os princípios seriam extensos, gerais ou não específicos; e outro ligado à
finalidade, já que ao se referirem a um objetivo ou valor, os princípios são
desejáveis de se manter ou se aderir, contribuindo para justificação das regras.
No entanto, não há porque rejeitar certa dimensão de peso das regras,
considerando sua aplicação como “tudo ou nada”.
Não há razão para que um sistema jurídico não deva reconhecer que uma regra válida determina o resultado nos casos em que é aplicável,m exceto quando outra regra, julgada como sendo mais importante, seja também aplicável ao mesmo caso. Por isso, uma regra que seja superada em concorrência com uma regra mais importante num caso dado, pode, tal como um princípio, sobreviver para determinar o resultado em outros casos, em que seja julgada como mais importante do que outra regra concorrente.
Desta forma, a distinção seria apenas uma questão de grau, e não uma
oposição disjuntiva como apresentada por Dworkin. O próprio caso referido
Riggs vs Palmer, na qual aplicou-se um princípio em detrimento de uma regra
legislada, demonstra que a regra não possui uma dimensão “tudo ou nada” já
que é passível de entrar em conflito com um princípio.
Em uma apertada síntese, pode-se resumir em três teses o núcleo do
positivismo hartiano.200
1) A tese das fontes sociais do direito: a existência e o conteúdo do direito
de uma determinada sociedade dependem de um conjunto de fatos
sociais, ou seja, de um conjunto de ações dos membros desta
sociedade.
2) A tese da separação conceitual entre direito e moral: a validade jurídica
de uma norma (ou seja, a o pertencimento de uma norma a um sistema
jurídico) não implica de maneira necessária seu acordo com a
200
MORESO, José Juan. “En defensa del positivismo jurídico inclusivo” NAVARRO, Pablo e REDONDO, M Cristina. La relevância del derecho: ensayos de filosofia moral, jurídica y política. Barcelona: Gedisa, 2002, p. 94.
64
moralidade, e a validade moral de uma norma não comporta
necessariamente sua validade jurídica:
3) A tese dos limites do direito ou da discricionariedade judicial: o
conteúdo das normas jurídicamente válidas não determina a
qualificação normativa de todas as ações. Nestes casos, então, os
juízes possuem discricionariedade na hora de decidir controvérsias.
3.5 O positivismo inclusivo de Waluchow
Publicada no mesmo ano do Pós-escrito de Hart, Inclusive Legal Positivism
reúne e aprimora diversos artigos publicados por Wilfrid Waluchow ao longo dos
anos 80 e 90.201
Waluchow destaca inicialmente as fronteiras incertas da teoria jurídica,
colocando-a num estado de perplexidade. Teóricos que se dizem partidários de
uma mesma corrente sustentam teses que aparentemente são contraditórias. É
o caso, por exemplo, de positivistas como Raz e MacCormick que sustentam ser
plenamente compatível com o positivismo a idéia de que o direito tem algum
valor moral, e de outro lado, o também positivista Austin, que sustentava, como
visto, que a existência do direito é uma coisa, seu mérito ou demérito moral
outra.202 O mesmo ocorre com jusnaturalistas como Finnis203, afirmando que
nunca foi uma preocupação central do jusnaturalismo a negação da validade de
uma lei injusta e, em sentido oposto, a famosa afirmação de Santo Agostinho
segundo a qual o direito injusto não parece direito em absoluto204. O objetivo de
Waluchow é retirar a teoria do direito do caos em que ela foi recentemente
colocada, e o caminho será partir da teoria de Hart, efetuando as alterações
necessárias, sem abandonar seu impulso essencial.205
201
São eles: “The Forces of Law”, The Canadian Journal of Law and Jurisprudence, 1990; “The Weak Social Thesis”, 9 Oxford Journal of Legal Studies, 1989; “Charter Challenges: A Test For Theories of Law”, 29 Osgoode Hall Law Journal, 1990; “Herculean Positivism”, 5 Oxford Journal of Legal Studies, 1985; “Strong Discretion”, 33 The Philosophical Quarterly, 1983 e “Hart, legal Rules and Palm Tree Justice”, 4 Law and Philosophy, 1985. 202
WALUCHOW, Wilfrid. Positivismo Jurídico Incluyente, Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 15. 203
Finnis talvez seja mais bem classificado como “neojusnaturalista”; Nesse ponto, cf. SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito, op. cit. p. 197 et seq. 204
WALUCHOW, Wilfrid. Positivismo Jurídico Incluyente op. cit., p. 16 205
Ibid, p. 17.
65
Portanto, o que Waluchow pretende fazer é “refinar” e “aclarar” as posições
de Hart, defendendo sua posição do positivismo inclusivo frente aos seus
principais oponentes, Raz e Dworkin. Essa será, seguindo os demais teóricos da
corrente, a estratégia de Waluchow: afirmar sua versão de positivismo rebatendo
argumentos contrários de ambos os lados.
Waluchow não descuida do fato que muitas das discussões em teoria do
direito têm sua origem em pontos de partida distintos. É o que acontece entre
Hart e Dworkin. O primeiro apresenta uma teoria descritiva que é moral e
politicamente neutra, acerca de todo ou ao menos da maioria dos sistemas
jurídicos. Já o segundo apresenta uma teoria normativa, totalmente
comprometida (ou interpretativa, como ele denomina) com as práticas
adjudicativas dos sistemas anglo-saxões. Há que se perguntar se em realidade
eles não estariam discutindo “em idiomas distintos”. No entanto, ao invés de
desqualificar o debate, isto só aumenta a necessidade de cuidado ao analisá-lo.
3.5.1 Rebatendo os argumentos de Dworkin
O autor identifica na obra de Dworkin quatro argumentos centrais contra a
tese inclusiva e busca contestar cada um deles (validade, pedigree, função e
discricionariedade)
3.5.1.1
O argumento da validade
Waluchow sintetiza o argumento de Dworkin da seguinte forma206:
1. De acordo com o positivismo, uma lei é uma classe especial de
padrões, distinguível de todas as outras classes de padrões não jurídicos
por superar certos testes de validade jurídica;
2. De acordo com Hart, os testes de validade jurídica se encontram
delineados ou exibidos na regra de reconhecimento, a regra social mestra
que outorga validade a todos os outros padrões jurídicos do sistema;
206
Ibid, p. 183.
66
3. Assim, para o positivista Hart, todo o direito é direito válido;
4. “Validade”, no entanto, é um conceito “tudo-ou-nada”, apropriado para
regras, mas inconsistente com a dimensão de peso dos princípios;
5. Princípios de moral política do tipo que figuram em casos como
Riggs, Henningsen, não podem, por ter peso, ser válidos;
6. Portanto, princípios não podem contar como direito válido;
7. Conclusão: o positivismo é inconsistente com o papel dos princípios e
deve ser rechaçado.
As três premissas iniciais apontam com um grau de generalidade a tese do
pedigree. A controvérsia se instaura na premissa 4, pois para Waluchow “não há
razão alguma para supor que uma lei válida não possa também ter peso. Mais
especificamente, não há razão para pensar que aqueles princípios que possuem
peso não possam também satisfazer os testes de validade que se encontram na
regra de reconhecimento”207
Portanto, o autor foca na premissa 4, buscando invalidá-la para invalidar o
argumento como um todo. Para isso, parte da afirmação de Dworkin sobre as
regras, segundo a qual “regras são aplicadas à maneira “tudo-ou-nada”. Se
estão dados os fatos que a regra estipula, então ou a regra é válida, em cujo
caso a resposta por ela oferecida deve ser aceita, ou não o é, em cujo caso
nada contribui para decisão.”208
Para falsear tal afirmação, Waluchow recorre à doutrina canadense sobre
direito local. No caso de conflito entre uma lei federal e uma lei local sobre uma
mesma matéria, a lei federal deve prevalecer no caso concreto, mas isso não
implica que a lei local deixou de ser válida. Isto é, mesmo válida, a lei local não
terá aplicabilidade no caso, mas continua sendo válida e possuindo força
institucional.
Assim, como uma lei pode ser válida e a resposta por ela oferecida não ser
aceita, a afirmação de Dworkin é falsa, e conseqüentemente a premissa 4 e o
argumento como um todo.
207
Ibid, p. 185. 208
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, op.cit.p. 39.
67
3.5.1.2
O argumento do pedigree
O argumento seguinte analisado por Waluchow se vincula a assertiva de
que o positivismo jurídico só está comprometido com testes de fonte para
determinação da validade jurídica, e não com testes de conteúdo. Pode-se
sintetizar o argumento desta forma209:
1. O direito pode ser identificado e distinguido por critérios específicos,
por testes que em nada tem a ver com conteúdo, mas com o seu pedigree
ou a maneira pelo qual foi adotado ou desenvolvido;
2. Um princípio, no entanto, é um princípio jurídico somente se for um
princípio da moralidade política que figura na melhor teoria herculeana
interpretativa e construtiva do direito dado;
3. A tentativa de determinar qual é a melhor teoria, e, em conseqüência,
que princípios se convertem em jurídicos, deve submergir o jurista muito
profundamente na teoria política e moral, e mais além do ponto em que
seria correto dizer que exista algum teste de pedigree para decidir qual de
duas justificações distintas é superior; e, portanto, que princípios são
jurídicos;
4. Portanto, princípios jurídicos não podem satisfazer os testes
positivistas de pedigree, neutros em relação ao conteúdo, baseado em
critérios de fonte;
5. Assim, os princípios jurídicos não podem, de acordo com o
positivismo jurídico, contar como padrões jurídicos válidos.
Neste caso, Waluchow afirma que Dworkin identifica, equivocadamente, o
positivismo com o positivismo exclusivo210, e, portanto foca seu ataque na
premissa 1, segundo a qual positivistas só estariam centrados em testes
exclusivamente de pedigree. Para isso, ele oferece dois argumentos.
209
Ibid, p. 190. 210
Ibid, p. 191.
68
Primeiramente, afirma que diversos positivistas como Hart e Bentham
aceitariam a possibilidade de testes de conteúdo para determinação da validade
jurídica. Hart afirmara que em alguns sistemas jurídicos como o norte-americano,
os critérios últimos de validade jurídica incorporam explicitamente valores morais
substantivos. Anteriormente, Bentham já afirmara que até o poder legislativo
supremo poderia ser limitado por uma constituição, não tendo negado que
princípios morais como o da Quinta Emenda poderiam conformar o conteúdo de
tais restrições morais. Até mesmo Austin havia admitido que um estatuto poderia
conferir poder para legislar e restringir a área de seu exercício com referência a
princípios morais211
Em segundo lugar, Waluchow sinaliza que alguns sistemas jurídicos de
fato apresentam testes de conteúdo como determinantes da validade jurídica,
como o Canadá. Assim, ao menos que queiramos excluir Hart, Bentham e Austin
do rol dos positivistas e negar realidades fáticas como a do Canadá, deve-se
rechaçar a afirmação segundo a qual o positivismo só trabalha com testes
neutros em relação ao conteúdo, focando-se apenas nas fontes.
3.5.1.3
O argumento da função
A terceira “confusão” que Dworkin teria feito na sua avaliação do
positivismo jurídico, reduzindo-o a sua versão exclusiva, poderia ser expressa no
argumento da função, assim sintetizado:212
1. Dworkin afirma que os positivistas concebem o direito como uma
instituição pública que tem como uma de suas funções primárias
proporcionar padrões públicos e seguros para guiar a conduta dos juízes e
pessoas em geral;
2. Hart sustenta que isto é atendido com a incorporação de uma regra
de reconhecimento. Esta incorporação marca a distinção entre sociedades
pré-jurídicas e sociedades de direito, salvando as primeiras do defeito da
incerteza latente;
211
Ibid, p. 192. Cf. HART, Herbert. “Positivism and the Separation of Law and Morals”, op. cit. 212
Ibid, p. 198-199.
69
3. Para que se cumpra esta função do direito são necessários que a
satisfação dos testes de juridicidade seja de fácil identificação; como
também devem ser fáceis a determinação de que norma aplicar a
determinado caso e o que requer determinada norma em um caso
concreto;
4. Desta forma, positivistas devem recusar a incorporação de critérios
morais para determinação de validade jurídica para que a finalidade do
direito seja alcançada. Devem excluir também os princípios como
possíveis candidatos a direito válido, por não oferecerem respostas claras,
sendo necessário ponderá-los;
5. A regra de reconhecimento que incorpora testes morais de validade
jurídica, como proposto pelo positivismo inclusivo, introduz indeterminação
no direito, e, portanto, esta não é uma forma possível de positivismo
jurídico.
Waluchow afirma que tal argumento exacerba a necessidade de certeza e
determinação que os positivistas clamam. Vários positivistas, como Hart,
afirmam que o direito deve se utilizar de termos flexíveis e possuir uma textura
aberta. Ademais, o contraste do grau de certeza de normas identificadas por
pedigree e por razão de conteúdo é falso. Isto porque normas obtidas por critério
de fonte podem apresentar infindáveis controvérsias quanto a sua interpretação
e aplicação, podendo apresentar ambigüidades e conflitos com outras normas.
Por outro lado, normas identificadas por critérios de conteúdo, envolvendo
questões de moral política, podem apresentar alto grau de concordância em
determinada sociedade política.
Não obstante a isto, nem sempre a determinação de validade dependerá
de um critério moral. O positivismo inclusivo não está comprometido com uma
regra de reconhecimento tão profundamente indeterminada como, por exemplo,
“direito é aquilo que é justo”, que certamente levaria a um grande grau de
instabilidade. Isto é um exagero do grau de incerteza da regra de
reconhecimento.
Finalmente, não se deve confundir aquilo que é desejável a um sistema
jurídico com aquilo que é essencial à sua existência. Assim, positivistas podem
considerar que estabilidade e determinação sejam avaliados em um sistema
jurídico, mas não conformam uma característica essencial do direito. Remonta-
70
se assim a tão referida distinção entre o que o direito é, e aquilo que ele deveria
ser. Conclui assim que a “teoria do direito descritivo-explicativa do positivista não
deveria transformar-se, contra sua vontade, numa teoria normativa sobre o que é
desejável encontrar nos sistemas jurídicos.”213
3.5.1.4
O argumento da discricionariedade
Como visto anteriormente, a crítica de Dworkin a Hart no tocante à
discricionariedade judicial pode ser resumida a dois pontos principais: juízes,
especificamente os anglo-saxões, não possuem discricionariedade em sentido
forte; e ao se apelar para critérios morais, sempre se estará agindo com
discricionariedade, o que seria incompatível com as teses positivistas.
Inicialmente, Waluchow retoma a discussão de Dworkin em Levando os
Direitos a Sério sobre os sentidos da palavra “discrição” para concluir que existe
imprecisão no sentido forte do termo. Isto porque não parece claro na proposta
de Dworkin se somente não haveria discricionariedade em sentido forte quando
as pautas impostas pela autoridade se propõem a controlar a decisão do juiz ou
quando de fato elas logram controlar a decisão do juiz. Waluchow sustenta que
Dworkin adota a primeira hipótese, o que seria um equívoco para ele.214
Para Waluchow a visão de Dworkin não se sustenta, pois diversos juízes
anglo-saxões têm a clareza de terem decidido para além dos controles
“autoritativos” impostos, e para isso cita testemunhos de Holmes, Radcliffe,
Macmillan e Cardozo.215 Ademais, há que se diferenciarem os casos em que o
juiz possui discricionariedade dos casos em que ele a exerce. Isto porque não
basta que os juízes pensem que não possuem discricionariedade para que de
fato eles não a exerçam: eles podem estar equivocados. Por isso Waluchow
sustenta que existe discricionariedade forte no sistema anglo-saxão, e que isso
independente da existência de uma única resposta correta.
213
Ibid, p. 205. 214
Ibid, p. 215. 215
Ibid, p. 229.
71
Em relação à suposta incompatibilidade do positivismo inclusivo com o
reconhecimento da discricionariedade judicial, Waluchow conclui que não há
razão para que ambos não sejam compatíveis. Quando testes morais estão em
jogo, pode ser necessário o uso de discricionariedade em sentido forte, porem
ao menos que se pense que nunca há respostas para perguntas morais, não há
razões para supor que tal juízo discricionário seja sempre exigido. A aplicação
de determinado valor constitucionalmente consagrado pode não despertar
controvérsias nem criação de direito novo, logo não existiria inconsistência no
positivismo inclusivo.
3.5.2
Rebatendo os argumentos de outras versões de positivismo
Uma vez considerada defendida sua teoria frente às críticas
dworkianas216, Waluchow volta-se então a outras versões do positivismo, por
excelência a versão exclusiva, centrada na figura de Joseph Raz. Até então a
mesma estratégia de outros teóricos da corrente. O fato curioso é que Waluchow
dedica diversas páginas de seu livro a rebater argumentos do próprio Hart, cuja
teoria pretende defender. Embora Hart nunca tenha feito críticas contra o
positivismo inclusivo, pelo contrário, tenha se afirmado defensor desta corrente
(sob a denominação de soft positivism), Waluchow vê por bem rebater alguns de
seus argumentos apresentados em O Conceito de Direito. Isto porque certos
argumentos contrários os jusnaturalismo poderiam ser estendidas a versões
inclusivas do positivismo.217 O questionamento a estes pontos pode ser
encarado como o refinamento proposto por Waluchow em suas páginas iniciais.
3.5.2.1
Rebatendo os argumentos de Hart
216
Não seguimos aqui a ordem de apresentação dos argumentos adotada por Waluchow em seu livro. Por se tratar de uma “reunião aprimorada” de diversos artigos, a exposição dos seus pontos não é sistemática, retornando por diversas vezes ao mesmo ponto. Optamos por apresentar inicialmente as críticas aos argumentos de Dworkin para então aquelas em relação a Hart e Raz por entendermos dar mais clareza à exposição. A estratégia dotada segue a ETCHEVERRY, 2007. 217
Cf. ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente op. cit. p. 125
72
Um dos argumentos de Hart “refinados” por Waluchow é o “causal”- que
também seria compartilhado por Bentham - igualmente chamado de “argumento
moral”. De acordo com tal argumento, afirmações como “lei injusta não é direito”
e outras afirmações jusnaturalistas impediriam a crítica ao direito. Para Bentham,
poderia levar a uma conexão duvidosa entre direito e moral e a pensamentos
perigosos, revolucionários ou anarquistas. Este argumento poderia servir para
desqualificar também versões do positivismo inclusivo em favor do exclusivo, e
por isso Waluchow vê por bem combatê-lo.
Waluchow encara esse argumento como “causal” por ser
conseqüencialista, e não parece muito coerente tentar refutar uma teoria
descritivo-explicativa com base em suas possíveis conseqüências. A verdade de
uma proposição e suas conseqüências práticas são coisas distintas. O
argumento de Bentham e Hart só faria sentido se buscasse desafiar uma teoria
normativa que desenhasse pautas de conduta, o que, definitivamente, não é o
caso do positivismo inclusivo. E, citando Hume, afirma: “Não é certo que uma
opinião seja falsa em virtude de suas conseqüências”218
De outro lado, caberia perguntar-se por que essa possível conexão entre
direito e moral leve a extremos de anarquia e revolução. Em uma sociedade em
que as restrições morais ao poder estão oficial e publicamente reconhecidas,
com garantias para os cidadãos é muito menos susceptível a sofrer esses tipos
de ameaças extremas do que um sistema em que a restrições morais não o são.
Waluchow, valendo-se de um argumento de Fuller, conclui subscrevendo a
afirmação de que “um sistema de direito suficientemente aberto a argumentos
morais tem maior probabilidade de ser moralmente aceitável e assim servir a
causa da paz e à ordem”.219 Portanto, não haveria mérito em argumentos
causais / morais como os de Hart e Bentham por repousarem em premissas
falsas.220
Outro argumento de Hart que Waluchow busca rebater é o da “clareza
intelectual”, que Hart apresenta tomando por base a atuação de tribunais
alemães no pós-guerra. Teorias jusnaturalistas obscureceriam ou simplificariam
218
Ibid, p. 109 219
Ibid, p. 113. Cf. FULLER, Lon. “Positivism and fidelity to law" in BIX, Brian (org) Philosophy of Law: critical concepts in philosophy, vol. II, NY: NY, 2006, pp. 318-352 220
Waluchow afirma em seu livro que em correspondências privadas com Hart este revelara que não mais aceita a validade de argumentos causais/morais a favor do positivismo, desejando empregar apenas argumentos que repousem em considerações valorativas metateóricas, não morais. Cf. Ibid, p. 113, nota 29.
73
por demasiado questões complexas. O positivismo jurídico colocaria um “feixe
de luz” sobre estas questões, trazendo a clareza necessária para deliberações
morais. A conclusão a que Waluchow chega é que este argumento é fraco para
se preferir o positivismo ao jusnaturalismo por se tratar de uma petição de
princípio. Neste ponto, põe-se de acordo com Raz, para quem isto significa
pressupor a tese mais do que apoiá-la, ou seja, para afirmar a clareza do
positivismo, a pressupõe.
3.5.2.2
Rebatendo os argumentos de Raz
Waluchow divide os argumentos de Raz em dois grupos: os argumentos
populares e os originais. Isto porque parte dos argumentos de Raz não são
originais dele, ele apenas os reutiliza contra o positivismo inclusivo. São eles: o
argumento lingüístico, o da parcialidade e o da conexão institucional.
O argumento lingüístico sustenta que o positivismo jurídico reflete com
maior precisão o significado do termo “direito” e termos análogos da linguagem
ordinária221 A partir desses termos, conclui-se que o direito pode ser injusto ou
imoral, e a linguagem ordinária seria uma demonstração da virtude do
positivismo exclusivo. Waluchow se pergunta se o uso ordinário da palavra
“direito” de fato contribui para compreender a sociedade e suas instituições, se
devemos ser “escravo das palavras”. Conclui, na esteira de Hart, que este não é
um bom argumento em favor do positivismo
O argumento da parcialidade (bias) sustenta que a preferência pela
versão exclusiva do positivismo se funda na possibilidade que este cria de
descrever o direito sem se deixar contaminar por valorações impuras. Ao se
admitir que a validade jurídica possa depender de valores morais, como fazem
os inclusivos, a parcialidade do investigador será muito maior, comprometendo
assim sua descrição. Waluchow afirma que o problema deste argumento está no
fato que, queiramos ou não, a existência do direito depende algumas vezes de
221
Ibid, p.119.
74
considerações morais, e negar este fato só gera distorções e erros. “O que há de
bom numa teoria pura se o fenômeno investigado é totalmente impuro?”222
Por fim, o último dos argumentos populares, o da conexão institucional
repousa no fato do direito ser um fenômeno social, e não uma construção ideal.
O conteúdo do direito é definido pelo próprio direito. É uma instituição social.
Isto, para Waluchow, em nada afeta o positivismo inclusivo, posto que, para ele,
as considerações morais podem ser relevantes para identificação do direito
apenas se o próprio sistema jurídico reconheça que estas considerações
cumprem este papel. Assim, concluir que ao contrário do direito natural, o
positivismo inclusivo é totalmente compatível com o caráter institucional do
direito.
Três também seriam os argumentos próprios de Raz: o do poder
explicativo, o da função e o da autoridade do direito. De acordo com o
argumento do poder explicativo, a versão exclusiva do positivismo seria
preferível por explicar melhor nossa concepção de direito, sistematizando
distinções relevantes, como valorações jurídicas e morais: direito estabelecido
ou não: aplicar e criar direito, dentre outras distinções pré-teóricas. Waluchow
questiona se as distinções apontadas por Raz são as que uma teoria descritivo-
explicativa do direito exitosa deva buscar.223 Mesmo que Raz tivesse razão
nesse ponto, não haveria motivos para crer que o positivismo inclusivo não
conseguiria enfrentar estes pontos. Em uma sociedade cuja constituição possua
critérios morais para determinação do direito expressamente incorporados (
denominadas por ele de “sociedades de carta”), as distinções referidas podem
ser observadas, ainda que com matizes.224
O argumento da função é bem semelhante ao já apresentado quando da
análise dos pontos de Dworkin. Raz sustenta que a função do direito é
apresentar de modo claro os padrões de comportamento necessários à
cooperação social. Por isso, os padrões fornecidos pelo direito devem ser claros,
caso contrário, sua função não seria cumprida. A resposta de Waluchow também
é bastante semelhante, sustentando que o argumento exagera a necessidade de
222
Ibid, p. 121 223
Neste ponto Waluchow faz referência explicita às críticas de Stephen Perry. Cf. PERRY, Stephen. “Judicial Obligation, Precedent and the Common Law” Oxford Journal of Legal Studies, 7, 1987, p. 215-257. 224
Ibid, p.130.
75
certeza do direito, bem como da certeza obtida a partir de normas que só
dependam de critérios de pedigree para sua validade225.
Por fim, o último dos argumentos abordados por Waluchow é o da
autoridade, ponto central na obra de Raz, e por isso considerado como o mais
poderoso. Como já apresentamos no inicio do capítulo o argumento da
autoridade, passamos diretamente as críticas de Waluchow. Para nosso autor,
apesar de ser inegável o caráter autoritativo do direito, isso não implica que
todas as diretivas jurídicas possam e devam ser estabelecidas independente de
considerações morais. Aceitar a autoridade não implicaria em excluir todas as
demais razões dependentes, simplesmente que tal razão deve ter algum peso.
Waluchow contesta também o exemplo do arbitro, utilizado por Raz para
exemplificar sua tese, pois algumas características da arbitragem não se aplicam
ao direito226 Decisões dotadas de autoridade afetam o peso de outras razões
para ação, diferentemente de decisões não dotadas de autoridade, que carecem
desta propriedade normativa. Raz estaria equivocado ao identificar a força
institucional do direito com um único tipo de força, a excludente.
Portanto, para Waluchow, nem é uma função essencial do direito resolver
conclusiva e “autoritativamente” as disputas sobre razões dependentes, bem
como essa função não se frustra completamente por qualquer consideração de
razões morais e dependentes. Aceitar certo grau de indeterminação do direito é
um preço razoável que as “sociedades de carta” devem pagar para salvar outros
valores.
Ademais, em uma sociedade de carta, ao realizar considerações morais,
não se está necessariamente voltando às razões excluídas pelo direito. Tratam-
se normalmente de razões distintas. Os direitos morais invocados não precisam
ter relação alguma com as razões excluídas. A validade de uma lei poderia ser
questionada sobre bases morais que em nada guardam relação com as razões
dependentes que aquela se propõe determinar.
Um último ponto relevante é abordado por Waluchow: a
discricionariedade judicial. Segundo Raz, uma teoria coerente deveria oferecer
225
O argumento é reapresentado por autores exclusivos, como Scott Shapiro, sob o nome de “argumento da diferença prática”. Com base nos mesmos fundamentos entende que versões inclusivas do positivismo impedem que as regras possam cumprir sua função de guia de conduta dos juízes e demais indivíduos, ou seja, não geram nenhum tipo de diferença prática nas pessoas. Se tivermos que consultar princípios morais, como razoes de primeira ordem que a regra deveria substituir, ela não estará provendo nem um guia epistêmico nem motivacional, e portanto, não gera nenhuma diferença prática. 226
Ibid., p. 138 et seq.
76
algum critério para distinção das hipóteses nas quais a referência a um valor
moral implica aplicação de direito pré-existente dos casos nos quais se estaria
criando direito novo.227 Waluchow rebate a crítica afirmando que para se saber
se um juiz age ou não com discricionariedade, deve-se observar sua atuação.
Caso baseiem sua decisão na premissa que sua interpretação da carta
constitucional é a correta e a exigida pelo direito, a aplicação não é
discricionária. Caso contrário, se a decisão se baseia na interpretação não é tida
pelo juiz como univocamente correta ou requerida pelo direito, há
discricionariedade. Neste último caso, a decisão é tomada com base em padrões
não “autoritativos” que parecem razoáveis para as circunstâncias do caso.
Para distinguir os casos nos quais a apelação à moral equivalem a, ou implicam, o exercício de discricionariedade no sentido forte, dos casos em que isto não é assim, devemos observar os juízes e o modo como eles decidem. Se um juiz baseia sua decisão na premissa de que sua interpretação de um direito da Carta é correta e é, portanto, a requerida pelo direito, então a sua apelação a tal direito não é discricionária. E isto é assim inclusive se ele está equivocado a respeito, e efetivamente possui discricionariedade forte porque há, ao menos, duas interpretações possíveis entre as que se pode realizar uma escolha determinada. Se, por outro lado, sua decisão não está baseada na premissa de que sua interpretação do direito da Carta aplicável é a única correta e portanto a requerida pelo direito, então temos aqui uma referencia discricionária à moral. Sua escolha entre as interpretações alternativas que acredita que deixam abertas as
pautas “autoritativas” estará baseada em outras pautas “não autoritativas”. 228
3.5.3
As conclusões de Waluchow
A partir de todos os argumentos expostos e rebatidos anteriormente,
Waluchow conclui que o positivismo inclusivo é uma teoria do direito viável,
dedicada a responder todos os desafios que se lhe apresentam.
A grande vantagem dessa teoria em relação ao positivismo exclusivo é
sua capacidade explicativa daquilo que o autor denominou sociedades de carta,
isto é, sistemas jurídicos que reconheceram explicitamente teste morais para
validade e conteúdo do direito, como grande parte das constituições dos
sistemas jurídicos ocidentais.
A estratégia de Waluchow parece, em seu conjunto, bem sucedida, pois
consegue conciliar a possibilidade da existência de um teste de juridicidade que
227
RAZ, Joseph. La autoridad del derecho, op.cit. p. 67 228
WALUCHOW, Positivismo Jurídico Incluyente, op. cit. p. 242-243
77
leve em conta critérios de conteúdo com a manutenção das teses básicas
positivistas, ou seja, é capaz de superar o “desafio da carta” propiciado pelos
estados constitucionais contemporâneos. No próximo capítulo analisaremos
manifestações contemporâneas do positivismo inclusivo e a relevância da
persistência do debate com os exclusivos.
4.
O que resta do debate sobre o positivismo inclusivo
A década de 90 representou a consolidação da teoria do positivismo
inclusivo, com destaque, como visto, ao Pós-escrito de Hart e a obra de
Waluchow. O debate, todavia, não se encerrou por aí, estendendo-se até os dias
atuais. Pode-se observar que além da nova contribuição de novos autores ao
debate, tem-se também um debate interno ao próprio positivismo inclusivo, posto
que, se há um consenso entre seus autores sobre a possibilidade de
incorporação da moral como critério de identificação do direito, isto é, que a
moralidade pode ser uma condição de legalidade, a forma como essa
incorporação se dá é bastante controversa.
Com o amadurecimento do debate, surgiram também questionamentos
sobre a sua própria relevância, fazendo com que autores afirmassem a
superação do debate entre inclusivos e exclusivos. Há autores que entendem ser
apenas uma disputa de rótulos, sem maiores implicações, enquanto outros
afirmam que nenhuma das duas correntes consegue ser satisfatória. Neste
capítulo, abordaremos as contribuições recentes ao tema, para então
analisarmos o debate interno e fazermos um balanço final do positivismo
inclusivo, para buscar o que resta dele depois de quase quarenta anos de
embates.
4.1
Contribuições contemporâneas ao positivismo inclusivo
Dedicaremos esta seção à apresentação das principais contribuições
feitas ao positivismo inclusivo na última década. Como boa parte das
publicações sobre o tema aponta e discute argumentos já expostos e analisados
neste trabalho, vamos nos ater àquilo que cada um dos autores em comento traz
de inovador ao debate.
79
Jules Coleman, como visto, foi um dos pioneiros na defesa do positivismo
inclusivo, publicando artigos sobre o tema desde finais da década de setenta.229
No início desta década, publica um livro – The Practice of Principles – no qual
consolida boa parte de suas idéias antes expostas, em especial, uma visão
“robusta” do positivismo inclusivo.230
Embora sustente que ninguém hoje em dia considere os argumentos
apresentados por Dworkin em Modelo de Regras I convincentes231, a relevância
deste trabalho foi provocar explicações alternativas para o lugar do argumento
moral no discurso jurídico. Destaca assim os dois principais campos de
competição na tradição positivista: exclusivos e inclusivos. Os primeiros teriam
como ponto nodal a tese das fontes, e crêem que a moral pode vincular os
aplicadores do direito, mas sem ser direito.232 Já os inclusivos233 sustentariam,
ao contrário de Dworkin, que o fato da moral ser ou não condição de legalidade
em um sistema jurídico específico depende de uma convenção social, isto é, a
regra de reconhecimento.234 A distinção entre as duas formas de positivismo
poderia ser sintetizada da seguinte forma: enquanto ambas compartilham a tese
básica do positivismo da convencionalidade da legalidade, os inclusivos
sustentam que o positivismo não impõe nenhuma limitação adicional ao
conteúdo deste critério, enquanto os exclusivos sustentam que a legalidade deve
ser uma questão de fontes sociais, não de conteúdo. 235
A nota distintiva do pensamento de Coleman em relação aos demais
teóricos da corrente, especialmente Waluchow, está em ver que a disputa em
torno do positivismo não é descritiva, mas interpretativa236. Isto o leva a sustentar
229
Cf. “Taking Rights Seriously”, California Law Review, 66, 1978; “Negative and Positive Positivism”, Law Journal of Legal Studies, 11, n.1, 1982; “On the relationship between Law and Morality”, Ratio Juris, 2, n.1, 1989; “Rules and Social Facts”, Harvard Journal of Law and Public Policy, 14, n.3, 1991; “Authority and Reason”, in GEORGE, Robert, The Autonomy of Law: Essays on Legal Positivism, Oxford University Press, 1996. 230
Embora represente a consolidação de grande parte das teses expostas em artigos precedentes, The Practice of Principles traz algumas reconsiderações. É o que acontece, por exemplo, com a tese da diferença prática. Em artigos anteriores, como “Incorporationism, Conventionality and the Practical Difference Thesis” sustentara que, como a tese incorporacionista e a da diferença prática entram em conflito, esta última deve ser abandonada. Já em The Practice of Principles não vê
necessidade de se abandonar tal tese, apenas considera que as regras em sua maioria, ou o direito como um todo deve ser capaz de fazer uma diferença prática, e não uma regra isoladamente. Cf. COLEMAN, Jules. The Practice of Principles. In Defense of a Pragmatist Approach to Legal Theory: Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 147 231
Ibid, p. 105. 232
Ibid, p. 107. 233
Coleman considera o termo “incorporacionismo” mais adequado a essa corrente, mas para não desfocar o debate em uma multiplicação de termos, adota aquele mais comumente usado. (Ibid, p. 105, nota 9) 234
Ibid, p.108. 235
Idem. 236
Ibid, p. 109.
80
uma versão mais “forte” da regra de reconhecimento, na qual a moralidade
possa figurar como condição suficiente de legalidade, e não apenas como
condição necessária como sustentam outros autores.237 Retomaremos este
ponto quando abordarmos o debate interno.
Jose Juan Moreso também realiza uma defesa do positivismo inclusivo,
por ele considerada a noção de positivismo jurídico mais adequada para dar
conta de certas características dos ordenamentos jurídicos das democracias
constitucionais contemporâneas.238 De outro lado, a imagem do direito
proporcionada pela versão exclusiva é distorcida, pois exacerba a
discricionariedade dos aplicadores. Moreso se vale da mesma estratégia de
outros autores: apresentar argumentos contrários ao positivismo inclusivo para
em seguida rebatê-los. Seu caráter inovador está na abordagem que dá ao que
denomina “argumento do colapso”.
O argumento do colapso está baseado na critica que Dowrkin faz ao
positivismo inclusivo – soft convencionalism, nas palavras de Dworkin –
considerando-o como uma “versão subdesenvolvida da teoria da integridade”.239
Esta seria uma tese altamente instável e conduziria a destruição das teses
centrais do positivismo, que colapsaria em um antipositivismo.240
Moreso busca demonstrar que a tese dworkiana de direito como
integridade está de acordo com a tese das fontes sociais e da separação
conceitual entre direito e moral. Dworkin aceitaria um mínimo de
convencionalismo na etapa de identificação do direito; e ao reconhecer que
apesar de injusto o direito nazista possa ser considerado direito, o mesmo
ocorreria com a tese da separação. A distinção ficaria por conta da
discricionariedade já que Dworkin sustenta a tese da reposta correta, mas
Moreso considera que a posição de Dworkin é apenas uma versão otimista do
positivismo inclusivo. Assim, não é o positivismo inclusivo que colapsa em um
antipositivismo, mas a versão do direito como integridade é que acaba por ser
tornar em um tipo de positivismo inclusivo.
Angeles Ródenas apresenta em seu artigo ¿Qué queda del positivismo
jurídico? uma versão peculiar de positivismo inclusivo. Ao invés de rebater
237
Ibid, p. 114. 238
MORESO, José Juan. “En defensa del positivismo jurídico inclusivo” NAVARRO, Pablo e REDONDO, M Cristina. La relevancia del derecho: ensayos de filosofía moral, jurídica y política.
Barcelona: Gedisa, 2002, p. 93. 239
Cf. DWORKIN, Ronald. O império do direito. op. cit. p. 157 240
Ibid, p. 101. Cf. DWORKIN, Ronald O império do direito, op.cit, p. 107.
81
argumentos contrario à teoria, Ródenas parte das existência de tensões internas
ao direito. Desta forma, identifica três principais eixos da denominada “crise do
positivismo”241. O primeiro deles seria a polêmica entre Hart e Dowkin sobre a
relevância dos juízos de valor para identificação do direito. Em segundo lugar,
peculiaridades do common law demonstrariam a insuficiência da versão forte da
tese das fontes sociais, já que seria recorrente na pratica judicial norte
americana a aceitação de argumentos substantivos, não baseados na autoridade
da fonte. Finalmente, o auge do constitucionalismo moderno, que representou a
incorporação de um amplo catálogo de valores ao direito positivo, obriga o
interprete a realizar constantes ponderações para concretização de tais valores
de acordo com as circunstâncias do caso. Desta forma, estaria minada a tese
forte das fontes sociais, vinculada ao positivismo exclusivo, que afirma que a
identificação do direito independe do seu conteúdo. Esta seria válida apenas se
os sistemas jurídicos fossem capazes de entrincheirar regras com perfeita
autonomia semântica em relação às razões subjacentes. Como sustenta a
autora, “um sistema jurídico que tomasse sempre as regras como
completamente opacas em relação às razões que lhes servem de justificação
padeceria de certas insuficiências e estaria arriscado a cometer determinados
excessos.”242 E a razão para tais insuficiências da tese forte reside precisamente
na existência de tensões internas ao direito.
Tais tensões fazem com que todo sistema jurídico padeça de
insuficiências, e isso se dá pela dupla natureza das razões que incorpora: razões
“autoritativas” e valores jurídicos. Os valores jurídicos por sua vez atuariam em
um “jogo duplo” de contração e expansão do direito, permitindo por um lado que
normas que de acordo com critérios “autoritativos” de fonte não seriam
identificáveis como direito, apesar disto resultem aplicáveis; e por outro que
normas identificáveis “autoritativamente” como direito resultem inaplicáveis.243
No primeiro caso teríamos uma expansão do direito e os valores funcionariam
como condição suficiente de juridicidade, tal como ocorre com os conceitos
jurídicos indeterminados e nos casos de interpretação extensiva. No segundo
caso, os valores seriam condição necessária de juridicidade e ocorreria uma
241
RÓDENAS, Ángeles. “Qué queda del positivismo jurídico?” Doxa, n.26, 2003, p. 417-419. 242
Ibid, p. 420. 243
Idem.
82
contração do direito. É o que se dá nos casos de interpretação restritiva ou de
“ilícitos atípicos”244, como o abuso de direito.
As soluções criadas pelo positivismo poderiam ser agrupadas de acordo
com seu “grau de radicalidade”.245 A versão mais extrema apresentaria o
problema das tensões internas como imperfeições dos ordenamentos jurídicos
que não podem ser superadas por mecanismos racionais, já que um sistema é
mais perfeito na medida em que deixa menos espaços para arbitrariedades.246 O
problema desta versão é que tal inclusão de valores no direito não parece ser
fruto de uma irracionalidade, mas de uma pretensão de torná-lo mais racional.
Uma saída menos extremada é o positivismo jurídico exclusivo tal qual
proposto por Joseph Raz, cuja solução para as tensões internas seria a outorga
de discricionariedade ao aplicador. A questão que se coloca à esta tentativa de
salvação da tese forte do positivismo jurídico é qual o preço que se paga pela
renúncia do direito a julgar estes casos. A existência de categorias como a
interpretação extensiva podem ser vistas como a possibilidade de introdução de
convicções morais do aplicador quando julgue conveniente, e, caso isso ocorra,
a idéia de autoridade do direito, tão cara a essa corrente, se desvaneceria.
Assim, por exemplo, quando o legislador utiliza conceitos como o de “honra” ou “tratamento degradante”, é possível vê-los como uma mera renúncia a julgar estes casos, outorgando plena discricionariedade ao aplicador? Ou, ainda mais grave, categorias como as da interpretação extensiva e restritiva podem ser vistas como construções doutrinárias que possibilitam a introdução sub-reptícia no Direito das próprias convicções morais do aplicador quando o julgue procedente? Parece duvidoso que a resposta a estas questões possa ser afirmativa. Se os juízes tivesse discricionariedade para se afastarem das fontes prescritas nas circunstancias e na direção que estimassem moralmente
procedentes, a idéia de autoridade do Direito se desvaneceria.” 247
Uma terceira solução seria do positivismo inclusivo, sustentando que o
direito de uma comunidade pode remeter a padrões morais. A questão que se
coloca aqui á a que tipo de padrões morais está se referindo: um raciocínio
moral autônomo do interprete ou um raciocínio baseado em algum critério
convencional de racionalidade? A primeira hipótese resultaria ao fim em uma
concepção bem próxima à discricionariedade proposta pelo positivismo
244
Para um aprofundamento acerca dos ilícitos atípicos, cf. ATIENZA, Manuel e MANERO Juan Ruiz. Ilícitos atípicos. Madrid: Trotta, 2000. 245
RÓDENAS, “Qué queda del positivismo jurídico”, op. cit., p. 426. 246
Embora isto não fique explícito, a autora atribui essa linha de pensamento a autores como Riccardo Guastini e Eugenio Bulygin. tal postura coincide em grande parte com aquilo que Bayón denomina de “positivismo simples”. Cf. BAYÓN, “Derecho, convencionalismo y controversia” in La relevancia del derecho: ensayos de filosofía moral, jurídica y política. Barcelona: Gedisa, 2002. p. 60. 247
RÓDENAS, “Qué queda del positivismo jurídico”, op. cit., p. 427.
83
exclusivo. A autora então aposta em uma reconstrução baseada em um critério
de racionalidade.
Tal reconstrução se baseia em uma taxonomia tricotômica das razões que
o direito incorpora: além de princípios e regras, o direito também incorpora
compromissos, que seriam ponderações entre razões ou juízos de prevalência.
Os princípios expressam diretamente valores, enquanto os compromissos
expressam compromissos entre valores. A noção de compromisso, por sua vez,
se vincula diretamente à distinção entre duas formas de convencionalismo.
Seguindo a Juan Carlos Bayón248 a autora traça uma diferenciação entre dois
tipos de convencionalismos: um convencionalismo superficial, no qual os
critérios de correção de um conceito vão até onde chega o acordo explícito por
parte da comunidade; e o convencionalismo profundo, segundo o qual podem
existir convenções apesar de haver controvérsias quanto ao seu conteúdo.
Adotar esta última perspectiva de convencionalismo implica que, mesmo nos
casos que se encontram na zona de penumbra, há sentido em se falar que o
aplicador carece de discricionariedade.
A partir de todos estes elementos apresentados, Ródenas traça então a
sua versão de positivismo inclusivo: aquele que assume que os princípios morais
podem ser condição necessária de juridicidade e apenas subsidiariamente
suficiente, e, ademais, assenta-se no convencionalismo profundo.249 Traduz
ainda sua proposta em três regras procedimentais: 1) salvo prova em contrario,
as regras de mandato operarão no raciocínio dos aplicadores do direito como
razões peremptórias e independentes do conteúdo; 2) corresponde a quem o
alega mostrar que uma regra não identificável “autoritativamente” deve ser
aplicada a um caso, ou que uma regra assim identificada não deve ser aplicada
(ou bem porque o caso em questão constitui uma exceção a regra, estando fora
de seu alcance, ou porque a regra torna-se invalidada); e 3) quem pretenda a
aplicação de uma regra não identificável “autoritativamente”, ou a não aplicação
de uma regra assim identificada deverá realizar uma ponderação tendente a
demonstrar que, de acordo com as convenções interpretativas vigentes
(expressas ou tácitas), há razões suficientes para incorporar uma nova regra ao
sistema ou afastar-se do que elas estabelecem.250
248
Para a distinção de Bayón entre dois tipos de convencionalismo, v. BAYÓN, Juan Carlos. “Derecho, convencionalismo y controversia” op.cit., p. 57-92. 249
RÓDENAS, “Qué queda del positivismo jurídico”, op. cit., p. 446. 250
Ibid, p. 448.
84
Vittorio Villa realiza também uma defesa peculiar do positivismo inclusivo,
de caráter construtivista251. A tese central do autor é que o positivismo inclusivo
representa em certas condições uma proposta mais frutífera e interessante que o
positivismo exclusivo, e isto ocorre basicamente por duas razões: 1) o
positivismo inclusivo é mais hábil para dar conta de algumas características dos
estados constitucionais contemporâneos 2) é possível que se combine com
consistência esta versão de positivismo com outras concepções valiosas na
teoria do direito, como a que concebe o direito como prática social e a que
propõe uma reconstrução da interpretação jurídica pragmaticamente
orientada.252
Inicialmente, o autor faz uma definição conceitual de positivismo jurídico
que possibilite incorporar tanto a versão inclusiva quanto a exclusiva como duas
concepções distintas de um mesmo conceito. Tal conceito consiste em duas
teses que, apesar de não serem logicamente conectadas, conjuntamente
expressam o núcleo conceitual do positivismo jurídico. A primeira delas é
ontológica, e a segunda, metodológica. De acordo coma primeira, o direito é um
fenômeno positivo, normativo, convencional e contingente. Com relação à
segunda, descrever o direito é inteiramente distinto de tomar uma posição em
relação a ele. 253 Para Villa, o nível ontológico é particularmente importante neste
contexto, pois é precisamente ai que as propostas teóricas do positivismo
inclusivo e exclusivo estão localizadas e constituem duas interpretações
divergentes de um dos corolários da tese ontológica: a tese da separabilidade.
Com relação às referidas vantagens da versão inclusiva, o maior poder
explicativo deve-se à sua capacidade conjugar o reconhecimento da plena
peculiaridade do conteúdo moral dos princípios constitucionais com relação a
outras normas e a manutenção das teses positivistas, possibilitando uma
ampliação da regra de reconhecimento.
Até aqui, nada de particularmente novo na proposta de Villa. É na
segunda vantagem do positivismo inclusivo de Villa que reside seu caráter
inovador - a possibilidade de articulação com uma teoria construtivista. Esta
versão construtivista do positivismo inclusivo pode ser resumida assim: traçando
uma via intermediária entre a objetividade metafísica e uma objetividade
251
Cf. VILLA, Vittorio. “Inclusive Legal Positivism e Neo-giusnaturalismo: lineamenti di una analisi comparativa.” Persona y Derecho, vol. 43, 2000, pp. 33-97, cujas idéias centrais são reapresentadas em “Inclusive Legal Positivism, Legal Interpretation and Value-Judgments”. Ratio Juris, v. 22, 2009, p. 110-127 252
VILLA, “Inclusive Legal Positivism, Legal Interpretation and Value-Judgments”, op. cit., p 111. 253
Ibid, p. 113. Cf. ETCHEVERRY, op. cit., p. 367.
85
epistêmica, abandona-se a concepção descritiva da linguagem jurídica, segundo
a qual é possível formular assertivas que espelhem com fidelidade porções da
realidade, e, reconhecendo a presença de juízos de valor neste tipo de discurso,
sustenta-se que a linguagem cognitiva sempre possui uma função construtiva.
Desta forma, a linguagem estrutura e organiza o campo da experiência
de que trata, reconstruindo-o e recortando-o de acordo com coordenadas
lingüísticas ditadas pelas categorias e critérios incorporados ao esquema
conceitual do qual parte.254 Villa aponta algumas implicações desta abordagem,
uma delas, considerar que a existência do direito positivo é o resultado coletivo
de práticas sociais, e não a decisão única de sujeitos particulares. Outra é que,
similarmente, a inclusão de valores morais no direito não se dá em um único ato,
mas através de um fluxo continuo de práticas complexas. Desta forma, a teoria
da interpretação poderia se libertar da escolha entre formalismo e anti-
formalismo e reconhecer em uma orientação dinâmica e pragmática que a
interpretação é uma mistura de descoberta e criação, que ocorrem em fases
distintas do processo interpretativo. 255
Em suma, a teoria de Villa nos convida a abandonar o princípio da
neutralidade valorativa como guia do conhecimento e reconhecer a necessidade
inevitável de formular juízos de valor se nos situamos na perspectiva dos
discursos sobre conteúdos valorativos.256
Outros dois autores tiveram grande destaque pelos diversos artigos
referentes ao positivismo inclusivo publicados recentemente: Matthew Kramer e
Kenneth Himma. Matthew Kramer em suas publicações257 adotou a mesma
estratégia de grande parte de seus partidários, isto é, reafirmou as teses do
positivismo inclusivo buscando oferecer respostas tanto a argumentos de
autores exclusivos – Raz, Marmor, Shapiro - como os de Dworkin. O mesmo se
deu em seu mais recente trabalho258, no qual prolongou o debate com
seguidores de Joseph Raz – David Lafkowitz259 e Michael Giudice260 – buscando
oferecer respostas às suas defesas do positivismo exclusivo raziano. A proposta
254
Ibid, p. 121. 255
Ibid, p. 122. 256
SERNA, Pedro. “Sobre el Inclusive Legal Positivism. Una respuesta al Prof. Vittorio Villa”, Persona y derecho, 43, 2000, p. 109. 257
Cf. KRAMER, Matthew. In Defense of Legal Positivism: Law without trimmings, Oxford: Oxford University Press, 1998; “How moral principles can enter into Law”, Legal Theory, 5, n. 1, 2000; Where Law and Morality Meet, Oxford: Oxford University Press, 2004. 258
KRAMER, Matthew. “Moral Principles and Legal Validity” Ratio Juris, 22, n.1, 2009, p. 44-61. 259
Cf. LEFKOWITZ, David. “Customary Law and the Case for Incorporationism” Legal Theory, 11, 2005, p. 405-420. 260
Cf. GIUDICE, Michael. “The Regular Practice of Morality in Law” Ratio Juris 21, 2008, p.94-106
86
de Krammer é um incorporacionismo moderado, em oposição a uma tese
“robusta” como a de Coleman, que fosse capaz de assegurar que a moral
pudesse ser condição necessária de validade jurídica e ao mesmo tempo
garantisse um grau de regularidade que permitisse a manutenção de um sistema
jurídico.
Kenneth Himma também consagra a mesma estratégia de sustentação
da viabilidade teórica do positivismo inclusivo frente às suas principais linhas de
oposição261, no entanto, somente pode ser considerado um verdadeiro defensor
do positivismo inclusivo em um sentido matizado. Embora refute argumentos
contrários à tese incorporacionista, tem sustentado, em seus trabalhos mais
recentes, que a incorporação, embora conceitualmente possível, possui pouca
aplicação prática. Segundo Himma:
(...) a caracterização de qualquer sistema jurídico particular como genuinamente inclusivo depende de três rigorosas condições que não podem ser satisfeitas nesse mundo dadas as nossas limitações. Em primeiro lugar, os aplicadores do sistema jurídico que tem que ter um meio confiável para identificar a correta resposta moral a questões difíceis (e, naturalmente, eles têm de ser orientados em suas decisões por aqueles casos difíceis). Em segundo lugar, temos de ter um meio confiável para determinar que a primeira condição é satisfeita. Em terceiro lugar, e igualmente importante, temos que crer, e isso justificadamente, que temos um meio confiável para determinar que a primeira condição é satisfeita, isto é, temos de ser epistemicamente justificados em pensar que temos uma metodologia que geralmente resulta em nosso alcance das respostas corretas sobre as difíceis questões morais.
262
Todavia, reitera que a escassez relativa de sistemas objetivamente
inclusivos não pode refutar o positivismo inclusivo, pois, estritamente construída,
a tese da incorporação sustenta apenas que é conceitualmente possível que
sistemas jurídicos incorporem critérios morais de legalidade. Isto é, para Himma,
o positivismo inclusivo é teoricamente possível, devendo argumentos em sentido
contrario como os de Raz e Dworkin serem refutados, mas em termos empíricos,
possui “pouco, se é que algum, valor prático”263 pois, tudo considerado, não são
os valores morais em si que determinam o direito, mas a interpretação que as
cortes supremas dão a eles.264
261
Cf. HIMMA, Kenneth. “Incorporationism and the objectivity of moral norms”, Legal Theory, 5, n. 4, 1999; “H. L. A. Hart and the Practical Difference Thesis”, Legal Theory, 6, n.1, 2000; “Bringing Hart and Raz to the Table: Coleman`s compatibility thesis”, Oxford Journal of Legal Studies, 20, n.4, 2001. Ver também ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op. cit., p. 371. 262
HIMMA, Kenneth. “Final authority to bind with moral mistakes” Law and Philosophy, 24, 2005, p.
44. 263
Ibid, p. 45. 264
Ibid, p. 2.
87
Como vemos, o debate em torno do positivismo inclusivo segue vivo até os
dias atuais, mas podemos notar fortes divergências internas entre os partidários
da corrente. Passaremos então a uma breve análise sistemática destas
divergências.
4.2
O debate interno
A partir do exposto, talvez se possam traçar três eixos principias de
divergência interna no positivismo inclusivo.265 O primeiro e principal deles gira
em torno do papel que a moral desempenha na identificação do direito. Parece
haver consenso entre todos os defensores da teoria que é conceitualmente
possível que o direito incorpore a moral como critério de validade. A questão é
como esta incorporação se dá.266
Waluchow e Kramer sustentam que a moral pode ser incorporada apenas
como uma condição necessária de validade jurídica, enquanto que para
Coleman, ela pode ser tanto uma condição necessária como também suficiente.
Coleman busca aclarar a distinção:
A regra de reconhecimento pode fazer da moralidade uma condição de legalidade tanto como uma condição necessária quanto como uma condição suficiente (ou como ambas). Se a moralidade de uma norma é condição necessária de sua legalidade, então as normas possuidoras do requisito do critério de fonte não conseguirão atingir o status jurídico se elas falharem no teste relevante de moralidade. Neste caso, todos os padrões jurídicos terão o requisito das fontes sociais, mas nem todas as normas que tenham este requisito serão direito. De outro lado, se a moralidade de uma norma é condição suficiente de sua legalidade, então a norma pode ser direito mesmo que falte sua fonte social.”
267
Kramer pontua nessa questão uma diferença entre “incorporacionismo” e
“positivismo jurídico inclusivo”. Incorporacionismo poderia vir em duas versões: a
“robusta” e a “modesta”. A versão robusta é aquela em que não ha limitações ao
critério de validade jurídica; a versão modesta sustenta que a moralidade pode
ser condição suficiente de moralidade, mas apenas em casos difíceis; enquanto
265
Quanto à sistematização do debate interno, seguiremos uma vez mais a proposta de ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op. cit. p. 375 et seq. 266
ETCHEVERRY, El debate sobre el positivismo jurídico incluyente, op. cit. p. 376. 267
COLEMAN, Jules. “Constraints on the criteria of legality” Legal Theory, 6, 2000, p. 175. (grifos do original)
88
positivismo inclusivo sustentaria que a moral pode ser condição necessária de
legalidade.268
A disputa de rótulos não é o relevante e maioria dos autores tem usado os
termos “incorporacionismo” e “positivismo inclusivo” indiscriminadamente. O que
leva Coleman a defender seu ponto de vista é que, segundo ele, a versão de
Waluchow parece estar desconectada com a crítica de Dworkin que suscitou o
debate, e busca responder apenas às críticas de autores exclusivos que
levantaram o alto grau de incerteza que uma regra de reconhecimento que
incorpore a moral possa gerar. Assim, para Coleman, estar-se-ia invocando um
argumento empírico - os possíveis problemas de coordenação que seriam
gerados - para rebater um conceitual - a possibilidade destes critérios guiarem
condutas.
Controvérsia não é a questão para o positivismo jurídico exclusivo; apenas confusões naturais porém sérias levaram alguns positivistas inclusivos a pensarem de maneira distinta. A questão é a compatibilidade de certo critério de legalidade com a possibilidade conceitual de autoridade legal, não a possibilidade de facto de legalidade. E é por isso que eu continuo a defender as formas mais “robustas” de regra de reconhecimento, nas quais a moralidade possa ser condição suficiente de legalidade.
269
De outro lado Waluchow sustenta ter conseguido dar conta da crítica
dworkiana, pois os princípios em debate, como o aplicado no emblemático caso
Riggs vs. Palmer são critérios de validade incluídos em uma regra de
reconhecimento. Assim o simples fato de serem morais não torna os princípios
jurídicos sem algum ato que os cristalize.270 Desta forma, o referido princípio de
que “ninguém pode se valer da própria torpeza” só pode funcionar como critério
necessário de validade jurídica, pois existe um número potencialmente ilimitado
de padrões que satisfazem esse critério de validade.
A mesma disputa se instaura entre Coleman e Kramer, que debatem sobre
a versão forte e moderada de incorporacionismo. Coleman afirma se ver forçado
a salvar o positivismo inclusivo da defesa de Kramer. Coleman sustenta que a
afirmação de Kramer segundo a qual uma regra de reconhecimento “robusta” é
extremamente controvertida para sustentar uma pratica jurídica não consegue
afetar sua teoria pela mesma razão, isto é, se tratar de um caráter empírico, e
não conceitual. E acrescenta
268
Ibid, p. 177; KRAMER, Mathew. “How Moral Principles Can Enter Into Law”. Legal Theory, 6, 2000, p. 83 et seq 269
COLEMAN, Jules. The practice of principles, op. cit. p. 113 270
WALUCHOW, Wilfrid. “Authority and the Practical Diffrence Thesis: A Defense of Inclusive Legal Positivism” Legal Theory, 6, n. 1, 2000, p. 76.
89
Acho que é inexplicável que Kramer me associe ao que ele chama "Incorporacionismo Robusto", porque a minha opinião é muito mais ampla do que isso. Ela é a visão de que não existem restrições sobre as condições de legalidade impostas, quer pela teses básicas do positivismo jurídico ou pelo nosso conceito de direito. Se não existirem tais restrições, então a fortiori é possível até mesmo a existência de uma regra de reconhecimento que faz da moralidade uma condição necessária e suficiente da legalidade, mas essa possibilidade marca o caso limite deste tipo de sistema jurídico possibilitados pelo meu ponto de vista. Eu certamente não espero que tais critérios possam sustentar uma efetiva prática jurídica sob nenhum conjunto particular de circunstancias empíricas.
271
Kramer rebate, afirmando que, apesar do incorporacionismo forte ser
conceitualmente possível, parece ser apenas aplicável a sociedades muito
homogêneas, enquanto sua versão moderada pode ser aplicável em grande
escala.
(...) enquanto a tese do Incorporacionismo extremo é verdadeira - como eu sempre aceitei prontamente - ela é inutilmente distrativa e não iluminadora e desnecessariamente problemática. Suas virtudes são totalmente compartilhadas e suas deficiências evitadas por uma versão moderada do Incorporacionismo. Seguramente, um filósofo tão ágil como Coleman pode lograr desenvolver uma série de idéias para defender a tese robusta do incorporacionismo contra vários desafios conceituais. No entanto, os mesmos desafios podem ser repelidos pelo Incorporacionismo moderado, e, na verdade, esta última doutrina pode lidar com eles de maneira mais suave. (...) Para compreender plenamente a aptidão da tese moderada do Incorporacionismo, neste contexto, devemos refletir brevemente sobre o que ela afirma. Essa tese não nega nada do afirmado pela tese robusta do Incorporacionismo, mas simplesmente afirma menos.
272
Outra questão de divergência entre os autores é como Hart, que pode ser
considerado o “pai” do debate e que faleceu em 1994, antes de concluir seu Pós-
escrito, se encaixaria nas discussões, isto é, em que lado do debate está o
positivismo suave hartiano. Como a proposta inicial do positivismo inclusivo é
partir do positivismo hartiano, a maioria dos autores da corrente reiteradamente
afirme que sua versão é com ele compatível. Waluchow sustenta
expressamente que Hart adere a sua versão de positivismo inclusivo. Isto porque
o exemplo de regra de reconhecimento que inclua valores morais oferecido por
Hart é o da Quinta Emenda da Constituição norte-americana, o que para ele,
deve ser interpretado como uma condição necessária de validade. 273 De outro
lado, Himma e Coleman sustentam o oposto, isto é, que o soft positivism de Hart
busca demonstrar como o positivismo pode se adequar ao pensamento de
271
COLEMAN, Jules. “Constraints on the criteria of legality” Legal Theory, 6, 2000, p. 183. 272
KRAMER, Matthew. “Throwing light on the role of moral principles in the Law: further reflections”. Legal Theory, 8, 2002, p. 129. 273
WALUCHOW, Wilfrid. “Authority and the Practical Difference Thesis: A Defense of Inclusive Legal Positivism” Legal Theory, 6, n. 1, 2000,, p. 79.
90
Dworkin, e isto só pode se dar se a obrigatoriedade dos princípios não for
dependente de um fonte “autoritativa”.
Enquanto alguns positivistas inclusivos endossam apenas o componente necessário da tese da incorporação, Hart mais plausivelmente esta comprometido com ambos componentes. Como Jules Coleman pontuou, o objetivo de Hart ao adotar a tese da incorporação foi mostrar como o positivismo poderia acomodar a visão de Dworkin que o princípio do caso Riggs era juridicamente vinculante, não porque possuía uma fonte “autoritativa”, mas porque seu conteúdo era um requisito fundamental de justiça.
274
Um terceiro ponto de tensão é em relação à metodologia utilizada na
abordagem do fenômeno jurídico. Como visto, Coleman rejeita a aproximação
descritivo-explicativa de Waluchow, o que traz reflexos maiores nos projetos
empreendidos por cada um dos autores. Isso implica que Coleman não se atem
ao “desafio da carta” que é um dos temas centrais da defesa do positivismo
inclusivo de Waluchow e de seus artigos mais recentes e que se funda na
capacidade explicativa do positivismo inclusivo.275
Coleman até reconhece que a capacidade explicativa pode ser uma
virtude, mas o cerne da disputa com a versão exclusiva do positivismo não é
uma questão de explicação, mas de interpretação. O ponto nodal para Coleman
não é qual teoria tem maior precisão descritiva, mas qual oferece a melhor
interpretação da presença de linguagem moral em cláusulas constitucionais.
Obviamente, ninguém nega que precisão descritiva é uma virtude de uma teoria, mas a disputa entre positivismo exclusivo e inclusivo não pode ser resolvida com bases descritivas, pela simples razão que a disputa não é descritiva.É uma disputa interpretativa. (...) A questão não é se o positivismo exclusivo ou inclusivo satisfaz este critério de precisão descritiva, ao contrário, a questão é qual visão proporciona a melhor explicação para o fato da linguagem moral aparecer em
cláusulas constitucionais.276
Em resposta, Waluchow afirma que sua teoria fora mal interpretada,
destacando que o uso da palavra “descritiva” teve por objetivo distinguir sua
teoria de uma teoria “interpretativa” como a de Dworkin. Por isso, buscava
explicar sem se comprometer com a moral ou objetivos justificatórios.
(...) é possível reconhecer o papel do valor, incluindo o valor moral, na teoria do direito sem necessidade de estar totalmente de acordo com Dworkin. Pode se encontrar uma papel central para o valor sem propor que deliberadamente tratemos de fazer dos dados investigados “o melhor que moralmente possam ser”. Pode se permitir que o valor influa em, inclusive em alguns casos governe, a
274
HIMMA, Kenneth. “H. L. A. Hart and the Practical Difference Thesis” op. cit. p. 3-4. 275
WALUCHOW, Wilfrid. "Four Concepts of Validity: Reflections on Inclusive and Exclusive Positivism", in HIMMA, K. e ADLER, M. The Rule of Recognition and the United States Constitution Oxford: Oxford University Press, 2009 276
COLEMAN, J. The Practice of Principles, op. cit. p. 109.
91
descrição teoria sem arriscar-se a cair no engano moral e intelectual que se observa nas concepções dworkinianas
277
Ademais, Waluchow não concorda com Coleman que o argumento do
“desafio da carta” não seja uma boa refutação ao positivismo exclusivo.
Waluchow demonstra que, quer se encare a versão exclusiva como conceitual
ou como descritiva, a existência de um sistema jurídico que determine o direito
com base em considerações morais é capaz de refutá-lo
O positivismo exclusivo, em ambas as suas formas – conceitual ou descritiva, é falseado pela existência de sistemas jurídicos nos quais a determinação do direito algumas vezes dependa de valores morais. O positivismo inclusivo, em ambas as suas formas, é sustentado pela existência destes sistemas. Talvez seja útil notar que ate mesmo se não existissem sistemas como este, isto não invalidaria ou falsearia a versão conceitual de positivismo inclusivo. Como Jules Coleman observa, sua versão é defensável desde que consigamos
conceber pelo menos um mundo possível onde este sistema exista. 278
Além destes três eixos centrais do debate interno – o papel efetivo da
moral, o lugar do soft positivism hartiano no debate e a metodologia empregada
– existem outras divergências menores. Himma também manifestou suas
divergências com a proposta de Waluchow, apontando falhas na articulação de
seus argumentos. A principal crítica de Himma é que Waluchow não se esforça
em oferecer uma versão positivista sobre a obrigatoriedade dos princípios,
preferindo focar-se em falhas argumentativas de Dworkin. 279
De outro lado Kramer busca oferecer resposta a critica de Himma,
segundo a qual o PJI não ajuda a compreender a prática jurídica em sociedades
nas quais é a Corte Suprema quem tem a autoridade final. Para Kramer, embora
a Corte Suprema tenha autoridade final em algumas sociedades, as críticas e
elogios das decisões tomadas estabelecem de forma coletiva o dever da Corte
Em suma, Himma afasta-se consideravelmente para abastecer as linhas de pensamento com a sua crítica ao positivismo inclusivo e ao incorporacionismo. Tendo debatido algumas questões de grande importância, ele averigua muitos de seus subtítulos; neste processo, em certa medida, ele contraria a sua própria perspectiva sobre eles. De qualquer forma, apesar de seus picantes argumentos, ele não conseguiu refutar a idéia de que a lei e a moralidade podem, de maneira convincente, reunir-se na forma prevista pelo positivismo inclusivo ou pelo incorporacionismo
280
277
WALUCHOW, W. Positivismo Juridico Incluyente. op. cit. p 33 278
WALUCHOW, Wilfrid. ”The many faces of legal positivism”. University of Torornto Law Journal, nº48,1998, p. 394-396. 279
HIMMA, Kenneth. ”Waluchow „s defense of Inclusive Legal Positivism” Legal Theory , 5, 1999, p. 115. 280
KRAMER, M. Where Law and morality meet, Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 140.
92
4.3
Balanço final do debate
Tendo em vista o caminho percorrido – da gênesis do positivismo inclusivo
aos debates atuais, incluindo debates internos – resta-nos perguntar o que resta
depois de tantas réplicas e tréplicas. Em muitos momentos o debate parece um
diálogo de surdos, no qual cada autor fica mais preocupado em afirmar sua
posição do que compreender a do próximo. Em outros, parece que a discussão
se resume a uma disputa de rótulos, sem maiores relevâncias práticas.
4.3.1
O conteúdo mínimo do positivismo jurídico
Um ponto que parece ter ficado claro é como termo “positivismo jurídico”
suscita dúvidas e ambigüidades, e é utilizado para designar teses logicamente
independentes. Apesar de antiga, a lição de Bobbio parece não ter sido
plenamente assimilada, e como destaca Bayón281, um caminho para melhor
compreensão da questão passa por uma breve discussão sobre as teses
presentes sob o titulo “positivismo jurídico” e por aqui deve começar nosso
balanço final.
O esforço inicial de clarificar a tese positivista passa normalmente pela
tese da “separação conceitual entre o direito e a moral”. Todavia os mesmos
problemas que acontecem com o termo “positivismo jurídico” acabam por se
repetir com o da “separação conceitual”, isto é, sob essa expressão encontram-
se teses logicamente independentes. Bayón aponta que grande parte do debate
aqui exposto é fruto da aceitação seletiva de algumas destas teses, e não sua
aceitação ou recusa em bloco, o que faz com que essa teoria do direito se situe
em uma “inóspita terra de ninguém” entre positivismo e não positivismo, para a
281
BAYÓN, Juan Carlos. “El contenido mínimo del positivismo jurídico” in ZAPATERO, V. (Ed.) Horizontes de La Filosofía del Derecho. Homenaje a Luis García San Miguel. Ediciones de Universidad de Alcalá de Henares, 2002, vol. II, p. 33-54.
93
qual já se chegou a improvisar etiquetas de circunstancia de nulo poder
explicativo como pós-positivismo. Uma teoria do direito saudável deve
concentrar seus esforços nas idéias e não nas etiquetas, por isso é necessário
traçar um bom mapa desta terra de ninguém.282
Decompondo-se a “tese da separação conceitual entre direito e moral”
chega-se a seu aspecto básico e central que é a “tese das fontes sociais”, que
também pode ser desmembrada em elementos logicamente independentes até
se chegar a um denominador comum entre todos eles, obtendo-se assim o
núcleo básico do positivismo que seria a “tese convencionalista”, podendo ser
considerado desta forma o conteúdo mínimo do positivismo jurídico.
A tese social, embora enunciada de maneiras distintas, costuma ser
caracterizada da seguinte forma: a existência e o conteúdo do direito é algo que
depende de fatos sociais complexos. Assim encarada, cuida-se de uma tese
conceitual, não podendo ser verdadeira nem falsa; é uma estipulação de um
critério para o uso do termo direito. Ocorre que, como visto, tem-se sustentado
nos embates teóricos a existência de duas versões possíveis da tese das fontes
sociais: uma forte, ou excludente; outra fraca, inclusiva ou incorporacionista.
Segundo a tese forte, a identificação do direito depende exclusivamente de fatos
sociais, o que implica que a não conexão identificatória entre o direito e a moral
é uma verdade necessária. Para a tese fraca, no entanto, o que é
necessariamente de natureza convencional é a identificação dos critérios de
identificação do direito, e não necessariamente estes últimos, o que torna a tese
da não conexão identificatória entre o direito e a moral meramente contingente.
Portanto, torne-se ambíguo afirmar que o núcleo básico do positivismo está na
tese das fontes sociais – já que esta se apresenta em duas versões . Para se
alcançar realmente uma tese unitária, deve se retroceder a um núcleo comum
das duas versões da tese social - a tese convencionalista – segundo a qual o
direito é uma função de práticas sociais, sem se comprometer com nenhum
ponto de vista sobre que classe de função seria esta.283
Chegamos então, nessa regressão a partir de teses ambíguas, ao que
seria o núcleo comum das teses positivistas – a tese convencionalista. Note-se
que este núcleo comum não pretende ser um conceito de direito, apenas a real
interseção entre as diversas teses denominadas positivistas. Assim considerado
– como uma convenção, como fruto de práticas sociais – o direito não seria
282
Ibid p. 35. 283
Ibid, p. 46-47.
94
discernível da moral, que também pode ser encarada como uma prática social
fruto de convenções. Mas não poderia ser diferente, já que as divergências
centrais das várias versões de positivismo estão exatamente na relação entre
direito e moral – separação, separabilidade, incorporação, etc. – não se podendo
falar em tese compartilhada por todos a este respeito.
O passo seguinte é examinar se essa desvinculação da tese das fontes
com a não conexão necessária entre o direito e a moral é viável, ou se a única
versão plausível da tese social é a sua versão forte. Essa é a afirmação feita,
como vimos, desde extremos opostos como Raz e Dworkin.
4.3.2
A viabilidade teórica do positivismo inclusivo
Raz afirma que os que sustentam a tese social fraca deveriam
proporcionar algum critério para distinguir quando, a partir de referências morais,
ocorre a aplicação de direito pré existente de quando há criação de direito novo,
mas no entanto, não proporciona.284 Dworkin, baseando-se sobretudo na versão
incorporacionista de Coleman, afirma que a tese fraca não passa de um
“positivismo fingido” (pickwickian positivism), sendo melhor descrita como um
anti-positivismo285. E mesmo autores, que não se situam em nenhum dos dois
extremos, como o próprio Bayón, sustentam a inviabilidade teórica do
positivismo inclusivo, pois o discurso de identificação do direito, ao estar
constrangido por nossas convenções, não pode ser um genuíno discurso moral.
O positivismo inclusivo enfrentaria assim um dilema: ou bem abandona o
convencionalismo ou resulta indiscernível da versão exclusiva. Desta forma, uma
suposta convenção de seguir critérios não convencionais ou é uma convenção
meramente aparente ou seu conteúdo não é seguir critérios não
convencionais.286
Nenhuma destas críticas parece prosperar, isto é, o positivismo jurídico
inclusivo configura-se teoricamente viável. Waluchow logrou dar uma resposta
satisfatória ao desafio lançado por Raz, isto é, para saber quando os juízes
284
RAZ, Joseph. La autoridad del derecho, op. cit. p. 67 285
Cf. DWORKIN, Ronald. “Thirty years on”. Harvard Law Review, 115, n. 6, 2002. 286
BAYÓN, J. “El contenido mínimo del positivismo jurídico” op. cit. p. 48.
95
atuam ou não com discricionariedade, devemos observar seu comportamento.
(vide capítulo 3). Recorrer a um valor moral e recorrer à discricionariedade não
são equivalentes.
Quanto à crítica de Dworkin, segundo a qual a versão inclusiva colapsa em
um anti-positivismo, ela somente possui algum sentido se vinculada à
(problemática) versão inclusiva de Coleman, que sustenta que a moral pode ser
condição suficiente de legalidade. Levando-se em conta versões, como de
Waluchow ou Kramer, segundo as quais a moral pode funcionar apenas como
condição necessária de legalidade, a crítica de Dworkin não prospera, e fora
bem rebatida por Moreso – isto é, a visão de Dworkin é apenas uma visão
otimista de positivismo inclusivo.
Por fim, com relação a inviabilidade de um genuíno discurso moral ser
compatível com os limites de uma convenção, como sustenta Bayón, parece
assistir razão à Angeles Ródenas, ao afirmar que quando da aplicação de
diversas cláusulas constitucionais, temos um raciocínio que é ao mesmo tempo
restringido por convenções – como a constituição – e é baseado num raciocínio
moral. É o que se dá, por exemplo, quando da aplicação do princípio
constitucionalmente positivado da dignidade da pessoa humana. Temos ai um
discurso moral dentro dos limites de uma convenção.
Tal solução parece ser preferível àquela oferecida por teorias exclusivas,
em todas as suas versões, que resolve a aplicação de valores morais em termos
de discricionariedade, em uma discussão que é alheia ao direito. Isto discrepa
profundamente da prática jurídica que vivemos, na qual cada vez é mais
freqüente que se tenha juristas, dentro de tribunais, discutindo os limites de
aplicação da dignidade da pessoas humana – para nos atermos ao mesmo
exemplo dado. Encarar tal menção a valores como uma mera delegação de
poder ao aplicador para decidir, decisão esta que não está regulada pelo direito,
é oferecer uma visão distorcida das práticas jurídicas.
Ao encararmos estas referências morais como meras delegações de poder
discricionário ao aplicador, elas poderiam ser vistas como intercambiáveis, já
que o efeito de todas elas seria o mesmo: transferir a decisão para o aplicador.
Mas mesmo termos com alto grau de vagueza como “dignidade humana” ou
“boa-fé” não parecem ser intercambiáveis e parecem exercer algum tipo de
limitação jurídica ao aplicador. Ao tratar essas questões como jurídicas, o
positivismo inclusivo se mostra mais próximo da realidade, uma solução mais
96
adequada do que varrer as incertezas para baixo do tapete da
discricionariedade, relegando-as ao campo da moral, da política ou de alguma
outra esfera que não o direito.
Assim, não vemos razão para se considerar inviável do ponto de vista
conceitual, a existência de uma versão inclusiva de positivismo jurídico. Os
outros argumentos levantados contra o positivismo inclusivo também não se
demonstraram hábeis a refutá-lo. Argumentos como o da autoridade, do
pedigree, ou da função parecem, como visto, exacerbar estas características do
direito. O direito não deixa de cumprir sua função nem abre mão de sua
pretensão de autoridade pelo simples fato de incorporar determinados valores
morais controversos. O direito como um todo deve exercer alguma diferença
prática, e não as normas individualmente consideradas.
Podemos encontrar algumas inconsistências na refutação de algumas
teses apresentadas por Waluchow. Com relação ao argumento da validade, por
exemplo, a afirmação que um padrão que possua peso possa ser tido como
legalmente válido não decorre da discussão do autor sobre lei local e federal.
Trata-se de questões distintas. Num conflito entre lei local e lei federal podem
estar presentes uma série de circunstâncias e critérios hierárquicos e de
repartição de competências que não são aplicáveis a questões gerais de
coexistência de peso e validade jurídica. Com relação ao argumento do
pedigree, Waluchow oferece argumentos empíricos, enquanto a afirmação de
Dworkin sobre a inconsistência de testes de conteúdo para validade jurídica é
conceitual287
Apesar disto, a estratégia de Waluchow parece, em seu conjunto, bem
sucedida, pois consegue conciliar a possibilidade da existência de um teste de
juridicidade que leve em conta critérios de conteúdo com a manutenção das
teses básicas positivistas. O debate com Raz parece demonstrar certo exagero
nas afirmações exclusivas quanto ao grau de certeza de padrões identificáveis
por um critério de fonte e o de incerteza dos identificáveis por critérios de
conteúdo, assim como do caráter autoritativo do direito. A preferência pela
versão exclusiva com bases nestes fatores perde de fato força. Portanto, o
positivismo inclusivo consegue escapar ileso das críticas externas que recebe
287
Todavia é fácil encontrar padrões legalmente válidos e possuidores de peso; a demonstração da falsidade da premissa 4 do argumento é bem mais simples. Cf HIMMA, Kenneth. “Waluchow‟s defense of inclusive positivism”. Legal Theory, 5, 1999, p. 101-116
97
4.3.3
A moral como condição necessária ou suficiente
Voltando agora ao debate interno, se deixamos de lado questões
meramente nominais, de rótulos e etiquetas, a principal questão que fica é a do
papel da moral na identificação do direito: condição necessária ou suficiente?
Parece ter razão Wilfrid Waluchow, segundo o qual a moral somente pode
funcionar como condição necessária, pois precisa haver sido cristalizada pelo
ordenamento, e o exemplo maior é a incorporação de alguns valores, e não
outros, em nosso ordenamento. Esta necessidade de cristalização de
determinado valor previamente no ordenamento, inviabiliza que ele funcione
como condição suficiente de legalidade.
A defesa de Coleman no sentido contrário – isto é, de que a moral pode
funcionar como critério suficiente de juridicidade – é restrita, como ele mesmo
deixa claro, ao campo conceitual, pois seria incapaz de sustentar uma pratica
jurídica concreta. Kramer sustenta com razão que a versão moderada da tese
incorporacionista é capaz de proporcionar as virtudes da tese robusta sem os
problemas que esta pode causar – colapsar num antipositivismo ou ter valor
meramente conceitual. A tese moderada tem aplicação em diversos sistemas
jurídicos existentes, e neste ponto se justifica a sua preferência. Uma regra de
reconhecimento que afirme que “direito é tudo aquilo que for justo” pode ser até
conceitualmente possível, mas praticamente inviável.
Waluchow oferece alguns exemplos de casos envolvendo valores no
ordenamento canadense. O debate em si começou a partir de exemplos de
Dworkin de casos nos quais valores morais eram aplicados por juízes. Podemos
também, a título de exemplo, buscar um caso recente e polêmico do
ordenamento brasileiro: o “Caso Richarlyson”288. Em breves linhas, Richarlyson,
um jogador de futebol do clube São Paulo, ajuizou queixa-crime em face de um
dirigente de outro clube, Palmeiras, que haveria insinuado que o jogador era
homossexual. O juiz do caso arquivou a referida queixa-crime por entender não
ter havido nenhum tipo de ofensa à honra do jogador evocando uma série de
288
Processo nº 936/07 da Comarca da Capital do Estado de São Paulo. A decisão, na íntegra, pode ser encontrada em http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/20070803-caso_richarlysson.pdf
98
valores morais para isso. Transcrevo:
“futebol é jogo vil, varonil, não homossexual. (...) Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas forme o seu time e inicia uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si. (...) O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal. (...) Precisa portanto, a estrofe popular que consagra – Cada macaco no seu galho, cada galo em seu terreiro, cada rei em seu baralho. É assim que eu penso... e porque penso assim, na condição de Magistrado, digo! Rejeito a presente Queixa-Crime. Arquivem-se os autos.”
Não cabe aqui analisar o mérito do caso nem a eventual culpabilidade
dos agentes. O que importa é notar que, ao afastar a ilicitude da conduta,
descaracterizando assim crime contra a honra, com base no valor moral da
“virilidade no futebol” o juiz lançou mão de um valor que definitivamente não está
consagrado no ordenamento jurídico brasileiro. Mesmo que “virilidade
futebolística” faça parte da moralidade positiva – se é que o faz – não se
encontra positivada constitucional nem infra-constitucionalmente. 289 Temos aqui
um típico caso de aplicação de um valor moral, talvez até compartilhado pela
maioria dos indivíduos da sociedade, mas que definitivamente não é jurídico.
Apesar de se tratar de um valor moral, não pode funcionar como condição
suficiente de juridicidade. E assim reconhece o próprio magistrado, que afirma
estar aplicando discricionariamente uma convicção pessoal – e não aplicando
direito pré-existente. O exemplo demonstra a necessidade de cristalização de
determinados valores morais para que possam funcionar como critério de
juridicidade e demonstra também como é possível, ao se recorrer a um valor
moral, distinguir o exercício de discricionariedade da aplicação de direito pré-
existente.
4.3.4
A superação do debate
289
Aliás, o valor da “virilidade futebolística” choca-se frontalmente com outros valores positivados – ou cristalizados, nos dizeres de Waluchow – constitucionalmente, como a isonomia, (5º, caput) ou a “promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV)
99
Um último ponto que merece abordagem é a atual relevância do debate
entre inclusivos e exclusivos, isto é, depois de quase quarenta anos de debates,
que colocaram o positivismo jurídico numa verdadeira “encruzilhada”, cabe-se
questionar se ainda faz sentido permanecer nesta discussão.
Três seriam os caminhos possíveis290. Um deles é negar o positivismo – e
entender assim que Dworkin foi o vencedor da disputa com Hart – afirmando,
portanto, uma teoria não-positivista do direito. É o que faz Alexy, por exemplo.291
Alexy entende que o direito possui uma natureza dual – real e ideal – que
conjuga coerção com correção, e o positivismo jurídico não seria capaz de
apreender essa segunda faceta do direito; somente uma visão compreensiva
seria capaz de fazê-lo.
Um segundo caminho, dando razão a Hart no debate com Dworkin,
compreender que o positivismo jurídico é capaz de dar conta dos desafios que
lhe foram postos nos últimos anos. Restaria então uma disputa interna ao
positivismo, entre exclusivos e inclusivos – e como vimos, até mesmo entre
estes últimos.
Autores como Fernando Atria consideram a disputa uma mera “briga de
família”292, outros, como Danny Priel consideram, o debate superado pelo fato de
ambos os lados estarem errados. Segundo Priel, embora termos morais
freqüentemente apareçam em textos legais, elas se referem ao seus conceitos
jurídicos, e não aos seus conceitos morais. Desta forma, quando há menção ao
termo “justiça” em algum texto legal, se está fazendo referência não ao conceito
moral “justiça”, mas ao seu conceito jurídico293. Portanto, a questão da
incorporação da moral no direito deve ser evitada e o debate deixado de lado. A
solução não parece satisfatória, pois de fato se está lidando com uma classe de
conceitos que são jurídicos e morais. Tais conceitos, embora consolidados em
algum texto legal, não parecem guardar autonomia semântica com o valor moral
290
Evitamos fazer menção a termos que, apesar de largamente utilizados nos debates sobre teoria do direito, especialmente no Brasil, são altamente vagos e muitas vezes de nulo poder explicativo, como “neoconstitucionalismo” e “pós-positivismo”. Muitas vezes as expressões são empregadas pela doutrina nacional como sinônimas, mas um exame da obra que serve como marco teórico do tema – Neoconstitucionalismo(s), organizada por Miguel Carbonel – dá conta que o termo abarca teorias de cunho positivista, como Ferrajoli, Guastini e até mesmo Jose Juan Moreso; e outras antipositivistas – como Alexy. Já o termo “pós-positivismo” é ainda mais problemático e de pequeno (ou nulo) valor explicativo, por ser empregue com as mais distintas finalidades – como por Mario Jori, MacCormick ou Calsamiglia. Cf. BAYON, J “El contenido mínimo del positivismo jurídico” op. cit; DIMOULIS, D. Positivismo Juridico, op. cit. 291
ALEXY, Robert. “On the concept and the nature of Law” Ratio Juris, 21, n. 3, 2008, p. 281-299. 292
ATRIA, Fernando. “La ironía del positivismo jurídico” Doxa, 27, 2004, p. 83. 293
PRIEL, Danny. “Farewell to the Exclusive-Inclusive Debate” Oxford Journal of Legal Studies, v. 25, n. 4, 2005, p. 675-696.
100
correspondente, isto é, o conceito jurídico de “justiça” parece estar intimamente
ligado ao conceito moral de “justiça”, e o problema assim persiste.
Wilfrid Waluchow, um dos protagonistas do debate, propôs em recente
artigo294 uma solução alternativa, mas que também representaria de certa forma
a superação da questão inclusiva/exclusiva. Partindo da discussão entre Himma
e Kramer, conclui que cada um deles logrou observar corretamente
determinados aspectos, e uma solução possível de compatibilização é
desmembrar o conceito de validade, separando-o do conceito de existência. A
idéia de tentar acomodar as teorias, buscando valorizar os pontos corretamente
observados pelos opositores é louvável, e parece ser o caminho a seguir, mas
não se pode dizer que o debate tenha sido de fato superado, ainda persistem
muitos pontos de divergência.
Um terceiro caminho seria não apenas uma superação do debate entre
inclusivos e exclusivos, mas a superação do positivismo jurídico como um todo.
É o que propõe, por exemplo, Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero em seu
trabalho Dejemos atrás el positivismo jurídico. Ambos consideram corretas as
teses básicas do positivismo, não havendo porque negá-las. Deve-se dar
continuidade ao legado positivista, mas para deixá-lo para trás. As teses
positivistas, apesar de corretas, não são capazes de dar conta do estado
constitucional em que vivemos, pois o direito não é apenas um conjunto de
regras e princípios, mas uma prática social complexa, focada no aspecto
argumentativo do direito.295
Dos três caminhos possíveis, entendemos, como já vínhamos alinhavando,
ser o positivismo jurídico inclusivo – na versão proposta por Waluchow, Kramer,
Moreso - o mais adequado a dar conta do estado constitucional contemporâneo,
pois consegue oferecer uma descrição valorativamente neutra dos sistemas
jurídicos e ao mesmo tempo dar conta do conteúdo moral neles incorporados.
Em outras palavras, aceita e resolve o “desafio da carta” sem precisar se tornar
uma teoria normativa nem reduzir a aplicação de valores à discricionariedade do
aplicador.
Não há porque “deixar para trás” a tradição positivista – sob o risco de se
“jogar fora a criança com a água do banho” – mas esta pode seguir avançando,
como o fez ao longo dos últimos dois séculos, buscando-se priorizar a
294
WALUCHOW, W. "Four Concepts of Validity: Reflections on Inclusive and Exclusive Positivism", op.cit. 295
ATIENZA, M. e MANERO, J. “Dejemos atrás el positivismo jurídico” op. cit.; ATIENZA, Manuel. El derecho como argumentación. Barcelona: Ariel, 2006
101
acomodação de corretas percepções do fenômeno normativo em detrimento de
disputas de rótulos e “mal entendidos” que marcaram boa parte do recente
debate. Mantendo-se a “vigilância” proposta por Brian Bix para que as disputas
teóricas não sejam apenas aparentes296, pode-se evitar a previsão critica e bem-
humorada de Schauer segundo a qual a teoria analítica em geral, e em especial
os debates sobre positivismo jurídico são grandes preocupações irrelevantes de
um pequeno grupo de pedantes obsessivos por questões filosóficas, muitos dos
quais são ingleses, e a maioria dos quais já estão mortos.297
296
BIX, Brian. “Patroling the Boundaries: Inclusive Legal Positivism and the Nature of Jurisprudence Debate” Canadian Journal of Law and Jurisprudence, 12, 1999, p 33. 297
SCHAUER, Frederick. “Positivism trough thick and thin” in BIX, Brian. Analyzing Law: New Essays in Legal Theory, Oxford: Clarendon Press, 1998.
5.
Conclusão
Ao longo dos capítulos anteriores, buscou-se apresentar o positivismo
jurídico como uma tradição que tem como origens remotas a afirmação de leis
positivas – já desde os Diálogos platônicos – e como origem imediata a
Jurisprudence inglesa no mundo anglo-saxônico e as “escolas” Histórica e da
Exegese na Europa continental. A partir daí, examinou-se sua evolução, que
procurava aprimorar os critérios de identificação e aplicação do direito, com
destaque aos dois principais nomes do juspositivismo do século XX – Kelsen e
Hart.
O refinamento do positivismo proposto por Hart – baseado centralmente
na idéia de textura aberta da norma e de duas classes de regras – sofreu um
profundo questionamento quando criticado por Ronald Dworkin. Mais do que
revelar inconsistências viscerais do positivismo jurídico, a principal virtude da
crítica dworkiana foi estimular a produção de alternativas à explicação da relação
existente entre direito e moral.
Paralelamente, os sistemas jurídicos do segundo pós-guerra passaram a
apresentar textos constitucionais cada vez mais recheados de valores morais
que foram incorporados ao seu texto. Estas cartas constitucionais com diversas
cláusulas valorativas geraram o “desafio da carta” ao qual se refere Waluchow –
isto é, dar conta de regras de reconhecimento que possuam valores substanciais
como critérios de identificação do direito – característica de boa parte dos
estados constitucionais contemporâneos.
O positivismo jurídico vê-se então em uma encruzilhada, e numerosos
são os esforços para demonstrar que a teoria juspositivista é capaz de oferecer
respostas adequadas à aplicação de princípios morais no âmbito jurídico. No
extremo oposto às críticas de Dworkin, surge a versão exclusiva do positivismo
jurídico, que, tendo Joseph Raz como maior expoente, refuta que a identificação
do direito possa depender de considerações morais, pois isto inviabilizaria a
função primordial do direito: possuir autoridade para guiar condutas, fazendo
assim uma diferença prática no agir tanto dos aplicadores do direito, como nos
cidadãos comuns. A identificação do direito se dá por um critério exclusivamente
de fonte, não de conteúdo. As previsões valorativas do direito representariam,
103
em linhas gerais, não um critério de identificação do direito, mas uma delegação
de poder ao aplicador para agir discricionariamente em determinados casos.
O positivismo jurídico inclusivo surge para demonstrar a viabilidade de
uma teoria positivista que se encontra entre o positivismo exclusivo de Raz e a
teoria do direito como integridade de Dworkin. Essa proposta inicial da teoria
inclusiva marcou todo seu desenvolvimento e marca até hoje o desenrolar dos
debates. Tem-se assim uma teoria de cunho eminentemente defensivo, que só
pode ser entendida, portanto, a partir das críticas dworkianas e refutações da
versão exclusiva.
Por ter sido este o foco de todo amadurecimento da teoria inclusiva,
optou-se por manter a mesma abordagem no presente trabalho, tentando dar
conta dos principais ataques que ela recebeu e das respostas que logrou
proporcionar. Passados cerca de quarenta anos do início do debate, objetivou-se
traçar um balanço do que restou após rios de tinta que correram sobre o tema.
De todo o exposto, creio que podemos enumerar em quatro pontos as
conclusões principais a que chegamos:
1) O positivismo jurídico é uma tradição de pensamento que engloba
teses logicamente independentes e muitas vezes contraditórias. Ao
se perquirir qual seria então um núcleo comum que permita
denominar estas teses “positivistas”, esbarra-se em outras teses
confusas e ambíguas como a “tese da separação entre direito e
moral” e a “tese das fontes sociais”. Portanto, concluímos que o
verdadeiro ponto em comum de todas as correntes positivistas é
encarar o direito como fruto de convenções, de práticas sociais
complexas. Esta não pretende ser uma definição de direito, mas
apenas um núcleo comum sobre a qual as diversas correntes
positivistas adicionam suas notas distintivas, em especial como se
relacionam e se diferenciam estas práticas e convenções jurídicas
das práticas e convenções morais.
2) Dentre estas diversas teorias positivistas, centramos nossa análise
no positivismo inclusivo, cujas origens remontam à década de 70 do
século passado. Apesar da peculiar natureza defensiva da teoria,
que fez com que em muitos momentos o debate se centrasse sobre
a viabilidade de uma teoria e não sobre a realidade do direito, e
apesar da questão por muitas vezes parecer um diálogo de surdos
104
centrado apenas em etiquetas e debates nominais, o positivismo
jurídico inclusivo logrou apresentar respostas convincentes aos
desafios que se lhe colocaram, provando ser uma teoria
conceitualmente viável, capaz de manter a pretensão hartiana de se
tratar de uma teoria descritivo-explicativa e de dar conta dos padrões
morais inseridos nos ordenamentos jurídicos dos estados
constitucionais.
3) Mesmo dentro da corrente inclusiva, vimos que também existem
fortes divergências, sendo a principal delas em relação ao caráter
necessário ou suficiente que a moral pode desempenhar na
identificação do direito. Ambas as versões são conceitualmente
viáveis, mas apenas aquelas teorias que encaram a moral como
condição necessária e não suficiente – Waluchow, Moreso, Kramer -
possuem viabilidade e aplicação prática, sendo portanto
consideradas por nós preferíveis em relação a outras teorias
inclusivas que admitem a suficiência da moral para determinação do
direito.
4) Qual será o desfecho para o referido debate não se pode precisar.
Trata-se de uma disputa ainda candente e sobre a qual ainda se
despenderá muita energia, tanto na teoria do direito como no direito
constitucional. De certo resta apenas que o positivismo jurídico não
é uma teoria decadente e ultrapassada, incompatível com o estágio
do processo civilizatório e que deva ser abandonada em nome de
teorias “neos” e “pós”. Cuida-se de uma teoria viva, que, com ou sem
qualificativos, continua buscando a teorização descritivo-explicativa
dos ordenamentos jurídicos, inclusive aqueles permeados por
cláusulas valorativas, como os estados constitucionais
contemporâneos.
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