POSSÍVEL INTERFERÊNCIA DA ANTITOXINA TETÂNICA PRÉ ...

6
POSSÍVEL INTERFERÊNCIA DA ANTITOXINA TETÂNICA PRÉ-EXISTENTE, NA VACINAÇÃO ANTITETÂNICA Rosalvo Guidolin * Flávio Zelante * Elide H. G. Rocha Medeiros** Paulo Roberto Vitali Lacreta *** GUIDOLIN, R. et al. Possível interferência da antitoxina tetânica pré-existente, na vacinação antitetânica. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 15:205-10, 1981. RESUMO: Estudou-se qual a possível interferência no desenvolvimento da imunidade antitetânica ativa em cobaias e camundongos, filhos de fêmeas vacinadas contra o tétano em diferentes épocas durante o período da prenhês. Verificou-se que a vacinação das fêmeas, em gestação não interferiu, nega- tivamente, no desenvolvimento da imunidade ativa dos animais filhos, quan- do submetidos à vacinação ao redor de 60 dias após o nascimento. A pre- sença de baixos níveis de anticorpos circulantes, recebidos congenitamente, parece ter, em determinadas condições, estimulado a resposta imunitária quando, posteriormente, os animais filhos foram vacinados contra o tétano. Sugere-se que o complexo antígeno-anticorpo formado seja capaz de me- lhorar a resposta imunitária induzida pelo toxóide. UNITERMOS: Tétano, cobaias e camundongos. Antitoxina tetânica. To- xóide tetânico. * Do Departamento de Microbiologia e Imunologia do Instituto de Ciência de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo Cidade Universitária Caixa Postal 4365 01000 São Paulo, SP — Brasil. ** Do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina — Rua Botucatu, 720 — 04023 — São Paulo, SP — Brasil. *** Do Departamento de Produção Biológica da Syntex do Brasil Indústria e Comércio Ltda. Rua Maria Candida, 1813 02071 — São Paulo, SP — Brasil. INTRODUÇÃO Quando da reinoculação de um antígeno, os anticorpos circulantes autógenos corres- pondentes irão, normalmente, inativá-lo total ou parcialmente. Todavia, Regamey 11 verificou que a administração simultânea de antitoxina tetânica heteróloga e toxóide tetânico raramente determina falhas na indução da imunidade ativa. No entanto, a antitoxina sendo homologa e adquirida passivamente, parece, segundo o autor, determinar uma inativação parcial do to- xóide com mais freqüência. Moloney 9 , pelo contrário, acredita que o complexo antígeno-anticorpo formado com o anticorpo heterólogo ou mesmo homólogo, potencializaria a ação do toxóide. Este fenômeno poderia estar condicionado a um aproveitamento imunogênico mais eficiente do antígeno. Sell e col. 14 , acredi- tam numa possível ação estimulante de anti- corpos pré-existentes, em baixos títulos. Moloney 9 sugere que a administração de 50 U de antitoxina tetânica homóloga, inje- tada em seqüência à primeira dose do to-

Transcript of POSSÍVEL INTERFERÊNCIA DA ANTITOXINA TETÂNICA PRÉ ...

Page 1: POSSÍVEL INTERFERÊNCIA DA ANTITOXINA TETÂNICA PRÉ ...

POSSÍVEL INTERFERÊNCIA DA ANTITOXINA TETÂNICAPRÉ-EXISTENTE, NA VACINAÇÃO ANTITETÂNICA

Rosalvo Guidolin *Flávio Zelante *Elide H. G. Rocha Medeiros**Paulo Roberto Vitali Lacreta ***

GUIDOLIN, R. et al. Possível interferência da antitoxina tetânica pré-existente, navacinação antitetânica. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 15:205-10, 1981.

RESUMO: Estudou-se qual a possível interferência no desenvolvimentoda imunidade antitetânica ativa em cobaias e camundongos, filhos de fêmeasvacinadas contra o tétano em diferentes épocas durante o período da prenhês.Verificou-se que a vacinação das fêmeas, em gestação não interferiu, nega-tivamente, no desenvolvimento da imunidade ativa dos animais filhos, quan-do submetidos à vacinação ao redor de 60 dias após o nascimento. A pre-sença de baixos níveis de anticorpos circulantes, recebidos congenitamente,parece ter, em determinadas condições, estimulado a resposta imunitáriaquando, posteriormente, os animais filhos foram vacinados contra o tétano.Sugere-se que o complexo antígeno-anticorpo formado seja capaz de me-lhorar a resposta imunitária induzida pelo toxóide.

UNITERMOS: Tétano, cobaias e camundongos. Antitoxina tetânica. To-xóide tetânico.

* Do Departamento de Microbiologia e Imunologia do Instituto de Ciência de Ciências Biomédicasda Universidade de São Paulo — Cidade Universitária — Caixa Postal 4365 — 01000 — SãoPaulo, SP — Brasil.

** Do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina — Rua Botucatu, 720 —04023 — São Paulo, SP — Brasil.

*** Do Departamento de Produção Biológica da Syntex do Brasil Indústria e Comércio Ltda. —Rua Maria Candida, 1813 — 02071 — São Paulo, SP — Brasil.

INTRODUÇÃO

Quando da reinoculação de um antígeno,os anticorpos circulantes autógenos corres-pondentes irão, normalmente, inativá-lototal ou parcialmente. Todavia, Regamey11

verificou que a administração simultâneade antitoxina tetânica heteróloga e toxóidetetânico raramente determina falhas naindução da imunidade ativa. No entanto,a antitoxina sendo homologa e adquiridapassivamente, parece, segundo o autor,determinar uma inativação parcial do to-xóide com mais freqüência.

Moloney9 , pelo contrário, acredita queo complexo antígeno-anticorpo formado como anticorpo heterólogo ou mesmo homólogo,potencializaria a ação do toxóide.

Este fenômeno poderia estar condicionadoa um aproveitamento imunogênico maiseficiente do antígeno. Sell e col.14, acredi-tam numa possível ação estimulante de anti-corpos pré-existentes, em baixos títulos.

Moloney9 sugere que a administração de50 U de antitoxina tetânica homóloga, inje-tada em seqüência à primeira dose do to-

Page 2: POSSÍVEL INTERFERÊNCIA DA ANTITOXINA TETÂNICA PRÉ ...

xóide, melhora os títulos de anticorposautólogos.

Baseados nestas considerações, resolvemosverificar, experimentalmente, qual a possívelinterferência no desenvolvimento da imu-nidade antitetânica ativa em cobaias e ca-mundongos, filhos de fêmeas vacinadascontra o tétano em diferentes épocas du-rante o período de prenhês.

MATERIAL E MÉTODOS

Toxóide tetânico *Foi purificado pelo ácido tricloroacético 1

e adsorvido ao fosfato de alumínio 7, tendosido testado, obedecendo aos requisitos daFarmacopéia Brasileira 4.

AnimaisCobaias — 64 fêmeas, nunca antes aca-

saladas, pesando 500 ± 50 g. Após o aca-salamento, foram divididas em quatrogrupos de 16 animais e inoculadas por viasubcutânea com o toxóide tetânico, segundoo esquema seguinte:

Grupo I: 20 dias após o acasalamentoreceberam 1 ml do toxóide. O mesmoesquema foi repetido no 27.° dia após apr imei ra dose.

Grupo II: 35 dias após o acasalamentoreceberam 1 ml do toxóide, seguindo-seo mesmo esquema no 13.° dia após a pri-meira dose.

Grupo III: 50 dias após o acasalamentoreceberam 1 ml do toxóide e o mesmoesquema foi repetido no 7.° dia após a pri-meira dose.

Grupo IV (controle): 16 fêmeas não vaci-nadas contra o tétano que foram simples-mente acasaladas e os seus f i lhos uti l izadoscomo controle.

Cobaias filhosA média de f i lhotes por parto foi de

dois, e foram aproveitados os filhos quenasceram até o 72.° dia após o acasala-

mento. Ao 65.° dia de idade, duas cobaiasfi lhas de cada grupo foram sangradas porpunção cardíaca, e a mistura de partesiguais de seus soros foi testada para pes-quisa de anticorpos antitetânicos pelo mé-todo de Rosenau e Anderson 12. As cobaiasfi lhas restantes, em número variável de umgrupo para outro, entre 15 e 25 animais,receberam por via subcutânea, 1 ml domesmo toxóide tetânico. No 30.° dia apósa vacinação, os animais ao redor de 400 gforam todos sangrados por punção cardíaca.Os seus soros foram misturados em partesiguais, respeitando-se os grupos pré-estabe-lecidos, e as misturas foram testadas quantoà presença de anticorpos antitetânicos12.

Os f i lhos das fêmeas não vacinadas(grupo IV) foram submetidos ao mesmotratamento anterior e testados da mesmaforma.

CamundongosForam uti l izadas 50 fêmeas adultas jo-

vens, pesando 20 ± 2 g. Após o acasala-mento, foram divididas em dois grupos de25 animais e inoculadas, por via subcutânea,com 0,5 ml do toxóide, de acordo com oque se segue:Grupo I : inoculados um dia após o acasala-mento.Grupo II: inoculados 10 dias após o acasala-mento.Grupo controle da atividade da toxina(GCT) — 5 f i lhos de mães não vacinadas,com 30, 44 e 49 dias de idade, tambémreceberam 1 DMM camundongo de toxinatetânica por via subcutânea, a fim de sercomprovada a atividade tóxica.Grupo controle da resposta imune (GCR)— 20 camundongos, com 60 dias de idade,f i lhos de mães não vacinadas, receberam porvia subcutânea, 0,5 ml do toxóide. No 30°dia após a vacinação, os animais foramsangrados por punção cardíaca e, na mis-tura de partes iguais de seus soros, forampesquisados anticorpos tetânicos12.

* Preparado pela Syntex do Brasil Ind. e Com. Ltda.

Page 3: POSSÍVEL INTERFERÊNCIA DA ANTITOXINA TETÂNICA PRÉ ...

RESULTADOS

Pelos resultados da Tabela 1, verifica-seque a vacinação das fêmeas durante operíodo de gestação não in ter fer iu , nega-tivamente, no desenvolvimento da imunidadeativa, induzida por uma dose de 1 ml dotoxóide nas cobaias fi lhas, quando a vacina

foi administrada 65 dias após o nascimento.Estes resultados parecem indicar, ainda, quea vacinação das fêmeas no período aproxi-madamente mediano da gestação seria capazde melhorar o título antitóxico dos filhossubmetidos à vacinação posterior.

Os dados constantes da Tabela 2 mostramque a vacinação dos camundongos fêmeasnão interfer iu, negativamente, com a capa-cidade produtora de anticorpos dos f i lhosquando submetidos à vacinação com o to-xóide tetânico 60 dias após o nascimento.Pelo contrário, esta situação parece esti-mular o desenvolvimento da imunidade ativados camundongos fi lhos.

DISCUSSÃO

Na profi laxia do tétano, a aplicação datécnica de soro-vacinação é recomendadadesde que certos princípios sejam obede-cidos 2 ,3 ,5 ,8 ,10 ,13 .

Alguns autores9 , 1 1 mostraram variadosgraus de inibição da resposta antitetânica

ativa com o emprego da soro-vacinação.No entanto, títulos protetores consideradossatisfatórios são obtidos com a inoculaçãoda segunda dose de toxóide. Apesar daexistência de anticorpos autólogos, estamedida é sempre recomendada na profilaxiado tétano, principalmente quando da apli-cação do soro simultaneamente. Nestas con-dições, os anticorpos antitetânicos adqui-ridos congenitamente, segundo as nossaspresentes observações, parecem não inter-fer i rem no desenvolvimento da imunidadeativa induzida posteriormente pelo toxóidetetânico.

Por outro lado, deve ser destacado emnossos resultados que tanto cobaias comocamundongos, filhos de mães vacinadascontra o tétano, em determinadas fases da

Page 4: POSSÍVEL INTERFERÊNCIA DA ANTITOXINA TETÂNICA PRÉ ...

gestação, quando inocu lados com o toxóidetetânico, apresentaram títulos de anticorposespecíficos iguais ou mais elevados, secomparados com aqueles obtidos pela ino-culação do mesmo antígeno em animais con-troles, f i lhos de mães não vacinadas. Nestasespécies de roedores, como também nohomem 6, ocorre a passagem de IgG trans-placentária confer indo ao recém-nascidoanticorpos antitetânicos circulantes emníveis considerados protetores, duran tealgum tempo.

Quando a vacinação das cobaias fêmeasfoi realizada na fase in te rmediár ia da ges-tação — vacinação p r imár ia no 35° diada gestação e a dose de reforço no 48°dia — apresentou resultados mais satisfa-tórios. Os f i l hos destas fêmeas, quandovacinados no 65° dia após o nascimento

(per íodo em que o t í t u l o de ant icorposcirculantes era igual ou menor que 0,001U), apresentam título médio praticamenteduas vezes superior àqueles apresentadospelos controles.

Quanto aos camundongos, um fenômenosemelhante foi também observado, isto é,os fi lhos de mães vacinadas responderammelhor ao estímulo imunogênico i nduz idopelo toxóide. No entanto, quer nos parecernão ter havido uma variação semelhanteaquela observada nas cobaias. Todavia,deve ser destacado que as fêmeas receberamapenas uma dose de toxóide te tânico.

A explicação do fenômeno pareceu-nosestar contida no t rabalho de Sell e col . 1 4

que afirmaram que a ocorrência de umaresposta imune mais elevada, pa r t i cu l a r -mente quando se trata de antígenos solúveis,

Page 5: POSSÍVEL INTERFERÊNCIA DA ANTITOXINA TETÂNICA PRÉ ...

estaria condicionada à presença de anti-corpos remanescentes devidos à respostaprimária . Estes anticorpos formariam umcomplexo com o antígeno reintroduzido,potencializando a sua ação.

Especificamente para o tétano, a obser-vação de Moloney 9 em humanos, mostrouque a inoculação de 50 U de antitoxinatetânica homóloga foi capaz de melhorara resposta imuni tár ia induzida pelo toxóide.

A técnica por nós utilizada, embora nãonos habi l i tando a comprovar ausência de

anticorpos circulantes de origem maternanas cobaias f i lhas , mostrou serem elesinfer iores a 0,001 U; mesmo assim, seriamsuficientes para a formação do complexoantígeno-anticorpo 14.

Fato semelhante parece ter ocorrido comos camundongos pois, com exceção dosfilhos de mães vacinadas, no 10.° dia apóso acasalamento e no 30.° dia após a admi-nistração do toxóide (Tabela 2), os demaisanimais não resistiram à intoxicação deter-minada pela inoculação de 1 DMM de toxinatetânica.

GUIDOLIN, R. et al. [Possible interference of pre-existing tetanus antitoxin in anti-tetanus immunization]. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 15:205-10, 1981.

ABSTRACT: Possibility of interference in the development of activeantitetanic immunity was studied in the offspring of guinea pigs and micewhose mothers had received antitetanic vaccine during different periods ofpregnancy. Vaccination of the females during pregnancy did not interferenegatively in the development of active immunity in their offspring whenthe latter were vaccinated about 60 days after birth. The presence of smallamounts of circulating antibodies, congenitally received, seems, under certainconditions, to stimulate the immune response upon posterior vaccinationagainst tetanus. This suggests that the acquired antigen-antibody complexheightens the immune response induced by the toxoid.

UNITERMS: Tetanus, guinea pigs and mice. Tetanus antitoxin. Tetanustoxoid.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. BOIVIN, A. & IZARD, Y. Méthode pour lapurification à l'acide trichloracétique destoxines et anatoxines diphtériques, téta-niques et estaphylococciques. C. R. Soc.Biol., Paris, 124:25. 1937.

2. CORRÊA, A. & TAVARES, J. Prevençãodo tétano. Ensaio experimental emcobaias com soro, toxóide e soro-toxóide.Rev. Inst. Med. trop. S. Paulo, 14 :246-8,1972.

3. CORRÊA, A. et al. Observações sobre asoro-vacinação na profilaxia do tétano.Rev. Tnst. M e d . trop. S. Paulo, 14:55-8,1972.

4. FARMACOPÉIA dos Estados Unidos doBrasil, 2a ed, São Paulo, 1959. p. 836-7

5. FURSTE, W. Short-term prevention oftetanus in the injured. In: ConferenceInternationale sur le Tétanos, 4eme,Dakar, 1975. Comptes rendus. Dakar,1975. p. 911-25.

6. HEMMINGS, W. A. & BRAMBELL, F.W. R. Protein transfer across the foetalmembranes. Brit med. Bull., 17:96-101,1961.

7. HOLT, L. B. Developments in diphtheriaprophylaxis. London, W. HeinemannMedical Books, 1950.

8. McCOMB. J. A. The combined use ofhomologous tetanus immune globulin andtoxoid in man. In: Eckman, L., ed.Principles on tetanus. Bern, Hans HuberPublisher, 1967. p. 377-84.

Page 6: POSSÍVEL INTERFERÊNCIA DA ANTITOXINA TETÂNICA PRÉ ...

9. MOLONEY, P. J. Active-passive immuni-zation against tetanus in man. In:Eckman, L., ed. Principles on tetanus.Bern, Hans Huber Publisher, 1967. p.393-6.

10. PATEL, S. C. et al. Problem of tetanusprophylaxis in India. In: Eckman, L.,ed. Principles on tetanus. Bern, HansHuber Publisher. 1967. p. 393-6.

11. REGAMEY, R. H. Inhibition of the activetetanus immunity by specific antitoxin.In: Eckman, L., ed. Principles ontetanus. Bern, Hans Huber Publisher,1967. p. 377-84.

12. ROSENAU, M. J. & ANDERSON, J. F.The standardization of tetanus antitoxin.Hyg . Lab. Bull., 43:5-55, 1908.

13. RUBBO, S. D. Prophylaxis against tetanus.In: Eckman, L., ed. Principles on tetanus.Bern, Hans Huber Publisher, 1967. p.341-54.

14. SELL, S. & WEIGLE, W. O. The rela-tionship between delayed hipersensitityand circulating antibody induced byprotein antigens in guinea-pigs. J.Immunol., 83:257-63. 1959.

Recebido para publicação em 31/10/1980Aprovado para publicação em 08/12/1980