potencializado diálogo série · PDF fileTerreiros de Candomblé - Saberes...

301
série HISTÓRIA, SAÚDE E CULTURAS EM ÁFRICA E BRASIL Jacimara Souza Santana (organizadora) COLEÇÃO PESQUISAS 4

Transcript of potencializado diálogo série · PDF fileTerreiros de Candomblé - Saberes...

série

HISTÓRIA, SAÚDE E CULTURAS EM ÁFRICA E BRASIL

Jacimara Souza Santana (organizadora)

COLE

ÇÃO

PESQ

UISA

S 4

Um dos grandes problemas para o entendimento da África e sua multiplicidade de povos e culturas, no Brasil, é o conhecimento estereotipado e preconceituoso, construído ao longo dos séculos, vigente na mídia e mesmo nos meios acadêmicos. A persistência deste viés resulta de desconhecimento puro e simples decorrente quer do restrito número de centros de estudo e difusão de saber, quer da parca bibliografia produzida nos países africanos e no Brasil. O saber tem historicamente circulado unidirecionalmente de Norte para Sul gerando distorções uma vez que raramente o olhar escapa das condicionantes a partir do local de onde se olha. A criação do Instituto de Estudos da África (IEAf) da Universidade Federal de Pernambuco e a incorporação das publicações da Série Brasil &África somam forças para mudar este quadro.

Subdividida em 3 coleções – Clássicos, Pesquisas e Ensaios –, já foram publicadas importantes obras abordando temas como nacionalismo, relações de gênero em Moçambique e Cabo Verde e mortalidade feminina na Guiné-Bissau. Outras tantas virão enriquecer este quadro, dotando os brasileiros de instrumentos concretos para um profícuo e potencializado diálogo Sul-Sul direto com intelectuais africanos. O mar do desconhecimento que nos separa assim se converterá no mar que nos unirá; livre de preconceitos e libertador.

HISTÓRIA, SAÚDE E CULTURAS EM ÁFRICA E BRASIL

HISTÓRIA, SAÚDE E CULTURAS EM ÁFRICA E BRASIL

Organizadora: Jacimara Souza Santana

COLEÇÃO PESQUISAS

4

Recife/2016

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO Reitor:Profº Drº Anísio Brasileiro de Freitas Dourado COMISSÃO EDITORIAL Coordenador: Profº Drº Marco Mondaini (DSS/UFPE)Vice coordenador: Profº Drº José Bento Rosa da Silva (DH/UFPE)

CONSELHO EDITORIAL:Ana Cristina Vieira (UFPE/Brasil), Ana Piedade Monteiro (Unizambeze/Moçambique), Carlos Arnaldo (Universidade Eduardo Mondlane/ Moçambique), Colin Darch (University of Cape Town/África do Sul), David Hedges (Universidade Eduardo Mondlane/Moçambique), Dayse Cabral de Moura (UFPE/Brasil), Edilson Fernandes de Souza (UFPE/Brasil), Eliane Veras Soares (UFPE/Brasil), Eurídice Monteiro (Universidade de Cabo Verde/Cabo Verde), Gustavo Gomes da Costa Silva (UFPE/Brasil), Isabel Casimiro (Universidade Eduardo Mondlane/Moçambique), Jacimara Souza Santana (UNEB/Brasil), João Carlos Trindade (Centro de Estudos Sociais Aquino de Bragança/Moçambique), José Bento Rosa da Silva (UFPE/Brasil), Judith Head (University of Cape Town/África do Sul), Maram Mané (Escola Nacional de Saúde/Guiné Bissau), Marco Mondaini (UFPE/Brasil), Marcos Costa Lima (UFPE/Brasil), Remo Mutzbemberg (UFPE/Brasil), Robert Slanes (UNICAMP/Brasil), Solange Rocha (University of Cape Town/África do Sul), Teresa Amal (Universidade de Coimbra/Portugal), Tereza Cruz e Silva (Universidade Eduardo Mondlane/Moçambique), Valdemir Zamparoni (UFBA/Brasil).

Projeto Gráfico: Daniel L. Apolinário e Xenya Bucchioni Diagramação: Fabiola Mendonça e Karla Tenório

H673 História, saúde e culturas em África e Brasil [recurso eletrônico] / Organizadora : Jacimara Souza Santana. – Recife: Editora UFPE, 2016. (Série Brasil & África. Coleção Pesquisas, 4).

Inclui referências ISBN 978-85-415-0842-1 (online)

1. Política de Saúde – Brasil. 2. Moçambique – História – Período colonial, 1927-1970. 3. Medicina popular – Influências africanas. 4. Cultura afro-brasileira. I. Santana, Jacimara Souza (Org.). II. Título da série.

362.10981 CDD (23.ed.) UFPE (BC2016-094)

Catalogação na fonte: Bibliotecária Liliane Campos Gonzaga de Noronha, CRB4-1702

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO DA SÉRIE

RELAÇÃO DOS LIVROS PUBLICADOS DA SÉRIE BRASIL & ÁFRICA

PREFÁCIO

APRESENTAÇÃO

Cura & mandinga: a leitura de dois processos crimes envolvendo

africanos e afro-brasileiros no pós-abolição (SC-1890)

José Bento Rosa da Silva

A Saúde da População Africana ao Sul de Moçambique no Tempo

Colonial (C.1927-1970)

Jacimara Souza Santana

Medicina, segregação e assimilação urbana

na Cidade do Cabo, 1901

Giovani Grillo de Salve

“DE BOCA A OUVIDO”- Aprendizagens, práticas de curas e

7

9

11

15

23

51

109

religiosidades entre as parteiras da Bahia

Silene Arcanja Franco

Saberes de Cura e a Arte de Partejar: Brasil e Guiné Bissau

Danieli Siqueira

Terreiros de Candomblé - Saberes e práticas de cuidado e

tratamento: contribuições para a saúde mental

Kelma Luzia Nunes Otaviano

Narrativas sobre saúde na visão de adeptos do Candomblé

de Angola na Bahia

João Reis da Cruz Santos

Medicina Tradicional Africana e Segurança Alimentar

e Nutricional nos Terreiros de Candomblé da Bahia

Denize de Almeida Ribeiro

AS AUTORAS E OS AUTORES

153

187

211

249

271

293

APRESENTAÇÃO DA SÉRIE

Constituída por 3 Coleções (Pesquisas, Ensaios e Clássicos), a Série Brasil & África

expressa duas ordens de fatos fundamentais: por um lado, a virada geopolítica

ocorrida no Brasil no início do século XXI, que aponta para a mudança na ordem

de prioridades no campo das relações internacionais, com a passagem de

ênfase do diálogo “Norte-Sul” para o diálogo “Sul-Sul”; por outro lado, a tomada

de consciência da necessidade de construção de laços mais estreitos no campo

acadêmico-intelectual entre os saberes que são construídos no Brasil e no

continente africano — especialmente, mas não de maneira exclusiva, nos países

africanos de língua oficial portuguesa (PALOPs).

Fundada em tal princípio, a Série Brasil & África nasce assumindo o compromisso

ético de edificação de novos olhares que sejam suficientemente capazes de

reconhecer as novas experiências sociais e políticas antissistêmicas emergentes

no Brasil e em África, direcionadas à construção de uma nova ordem referenciada

na afirmação da democracia e dos direitos humanos compreendidos na sua

radicalidade, como forças voltadas à socialização do poder.

Dentro desse contexto, a Série Brasil & África propõe alinhar-se ao conjunto de

iniciativas surgidas na última década no sentido de aproximar universidades e

centros de pesquisa engajados no processo de reflexão crítica sobre os traços

8

universais que identificam os Estados e sociedades do Sul do mundo num mesmo

quadrante geopolítico, mas, também, sobre as suas particularidades histórico-

sociais, responsáveis pela sua diferenciação.

Inicialmente apoiada pela Pró-Reitoria de Extensão, a Série Brasil & África vincula-

se agora ao recém criado Instituto de Estudos da África (IEAf) da UFPE, uma nova

unidade acadêmica que nasce como expressão dos compromissos assumidos

pela instituição na direção da sua internacionalização.

Marco Mondaini

(Professor da UFPE e Coordenador da Série Brasil & África

e do Instituto de Estudos da África da UFPE)

RELAÇÃO DOS LIVROS PUBLICADOS DA SÉRIE BRASIL & ÁFRICA

COLEÇÃO CLÁSSICOS

Sonhar é preciso - Aquino de Bragança: Independência e

revolução na África portuguesa (1980-1986)

Marco Mondaini (organizador)

O mineiro moçambicano: Um estudo sobre a exportação

de mão de obra em Inhambane

Ruth First (coordenadora)

Cultura em tempos de libertação nacional e revolução social:

Amílcar Cabral, Samora Machel e Mário de Andrade

Marco Mondaini (organizador)

COLEÇÃO PESQUISAS

Paz na terra, guerra em casa. Feminismo e

organizações de mulheres em Moçambique

Isabel Casimiro

10

Entre os senhores das ilhas e as descontentes. Identidade, classe e gênero na

estruturação do campo político em Cabo Verde

Eurídice Furtado Monteiro

HIV AIDS e as teias do capitalismo, patriarcado e racismo:

África do Sul, Brasil e Moçambique

Solange Rocha, Ana Cristina de Souza Vieira, Evandro Alves Barbosa Filho

(organizadores)

História, saúde e culturas em África e Brasil

Jacimara Souza Santana (organizadora)

COLEÇÃO ENSAIOS

Mortalidade das mulheres em idade fértil e mortalidade materna:

Tendências, determinantes e causas numa coorte comunitária

na Guiné Bissau de 1996 a 2007

Maram Mané

“Voluntários forçados”: Discurso e contradiscurso

acerca do trabalho nas colônias lusas – (1925-1935)

José Bento Rosa da Silva

O continente demasiado grande:

Reflexões sobre temáticas africanas contemporâneas

Colin Darch

PREFÁCIO

Denize Ribeiro dos Santos

Professora de Políticas Públicas de Saúde da UFRB

Esta publicação nos chega num momento bastante oportuno, uma vez que

temos uma Política Nacional de Saúde Integral da População Negra aprovada

pelo Ministério da Saúde desde 13 de maio de 2009, que tem como uma

de suas diretrizes a valorização dos saberes sobre saúde das religiões de

matriz africana. Também é preciso considerar que já existem iniciativas de

pesquisadores de diferentes áreas, gestores, estudantes, profissionais de

saúde em diferentes partes do Brasil que apoiam a tarefa de executar tal

política.

Acrescente-se a isso as demandas dos Movimentos Sociais Negros que

reivindicam avanços na produção de estudos para o aprofundamento das

políticas afirmativas de um modo geral e no campo da saúde em particular,

valendo, portanto, todos os esforços no sentido de contribuir com análises

sobre essa temática, ainda tão pouco estudada no país.

Algumas limitações apontadas por gestores e membros de movimentos

sociais esbarram exatamente na insuficiência de produções acadêmicas,

12

de pesquisas de diferentes áreas, que se preocupem com o fenômeno da

saúde numa perspectiva interseccional, transcultural e transdisciplinar. Essa

necessidade se explica pelo simples fato de ser a saúde um fenômeno que

afeta a todos/as de diferentes perspectivas, de modo a fazer com que grupos

humanos lidem com a promoção da saúde, através de variadas práticas de

prevenção, proteção, cura e cuidados.

Os conhecimentos ancestrais de matriz africana, por exemplo, são

imprescindíveis para o campo da saúde da população negra no Brasil e

outros países da diáspora, assim como o são no continente africano. Muitos

desses conhecimentos estão preservados no campo religioso. Por isso,

líderes espirituais são comumente procurados por pessoas de diferentes

níveis sociais para cuidar da saúde, o que inclui o alcance do Estado de bem

estar social.

Isso, muito embora - apesar da comprovada eficácia do conhecimento

ervanário no tratamento de certas doenças, entre outras práticas - tais

saberes fossem historicamente subalternizados, tratados ao longo do tempo

como supersticiosos, populares, sem comprovação científica, discriminados

e negados pelo racismo institucional e pelo epistemicídio acadêmico. Urge,

portanto, estudos comprometidos com tais temáticas que reposicionem os

conhecimentos sobre saúde numa outra perspectiva.

Esta coletânea demonstra que a compreensão sobre saúde/doença/cuidado

é um produto da cultura de cada povo. Em se tratando da população negra no

Brasil, no continente africano ou outros países da diáspora essa construção

cultural também se reflete nos modelos de agência existente. Isso nos faz

13

perceber que muito ainda temos que pesquisar, recorrendo a diferentes

epistemologias pela relevância e dinâmica importância deste processo.

Nesta publicação, temos reunidos pesquisadores e pesquisadoras de várias

áreas que analisaram experiências, trajetória história e saberes sobre a saúde

da população negra que podem colaborar na implementação de políticas

públicas de saúde, de promoção da igualdade racial e ampliar o diálogo com

outras áreas do conhecimento.

14

APRESENTAÇÃO

Diferentes campos de estudos vêm enfatizando cada vez mais a compreensão

do termo saúde, assim como doença, na sua relação com a história e vivências

socioculturais dos indivíduos. Isso implica reconhecer que tais concepções

são sujeitas a mudanças e variações, não cabendo ostentar a atribuição de

supremacia do saber científico/laboratorial em detrimento de outros saberes

pré-existentes nas sociedades.

A prevalência do pensamento ocidental de mundo relegou à marginalidade

e ao desprestígio social maneiras distintas das suas de cuidar das doenças

e promover a cura. Tentativas de supressão de práticas populares de cura

e perseguição aos seus agentes pelo Estado foram atitudes comuns em

diferentes partes do mundo. No que diz respeito à experiência em África

e sua diáspora, a tendência foi estigmatizar tais conhecimentos como

feiticeiro, supersticioso e primitivo. Entretanto, isso não garantiu a extinção

de tais práticas, cujos agentes prosseguem sendo requisitados até os dias

atuais por clientes de nível econômico e opção religiosa variada, habitantes

de zonas rurais ou urbanas, muitos dos quais buscam solucionar problemas

não resolvidos pela medicina alopática.

16

Desde 1978 que a visão relacionada às práticas populares e os seus agentes

vêm sendo repensada no cenário internacional. Destacam-se nesse sentido,

os incentivos da Organização Mundial de Saúde (OMS) para que governos

passassem a valorizar aqueles saberes na execução das políticas de saúde

de seus Estados. Em atenção a esse pedido muitos governos africanos, na

altura dos anos 1980, buscaram desenvolver estudos específicos acerca dos

conhecimentos endógenos de saúde existentes em seus países, além de

identificar e reunir em conferências, grupos de agentes responsáveis por sua

administração. Alguns Estados africanos anteciparam-se ao pedido da OMS

por influência da ideia pan-africana de valorização do que era africano, como

uma forma de superar a colonização cultural imposta pela Europa.

No Brasil, a incorporação de novos saberes e práticas de saúde na assistência

pública tornou-se um tema de discussão de suas conferências de saúde. Os

resultados obtidos a partir do ano de 1985 indicam a ampliação de estudos

sobre o assunto, bem como o uso ainda que parcial da homeopatia, da

acupuntura e da fitoterapia. Em 2005, o Ministério da Saúde criou uma Política

Nacional de Medicina Natural e Práticas Complementares com o objetivo de

superar o caráter esporádico e informal de tais experiências. No entanto, até

os dias atuais não se encontram incluídos nesse mesmo patamar de valor

experiências de promoção de saúde vivenciadas nos espaços religiosos de

matriz africana (Candomblés e Umbanda). Trata-se de uma discussão ainda

incipiente e nova no âmbito do Ministério de Saúde.

Essa coletânea, intitulada Saúde e Cultura na África e no Brasil, reúne

contribuições que analisam concepções e maneiras de promoção de saúde

17

na perspectiva africana e afro-brasileira, assim como experiências de seus

agentes na garantia de sua existência social e do controle de seus próprios

recursos de cura.

Os capítulos também apresentam análises da assistência em saúde

disponibilizada pelo Estado para as populações na África e diáspora brasileira,

evidenciando sua configuração em termos de acesso, disponibilidade de

serviços, cuidados prioritários e iniciativas próprias dos indivíduos na busca

de resolver seus problemas de saúde ao longo do tempo.

Nas páginas deste livro podemos encontrar abordagens de distintas áreas

do conhecimento, resultado de pesquisas sobre África e Brasil, mas que se

intercruzam.

José Bento Rosa da Silva mostra a atuação de dois africanos na assistência de

saúde de moradores da região sul do Brasil, Santa Catarina: José Cabinda, de

cerca de 100 anos e oriundo da região chamada bantu, e Pedro Rocha, de 60

anos, oriundo da Costa da África (região ocidental). Ambos processados em

1890 por práticas de curandeirismo e feitiçaria.

Pesquisas já demonstraram que os tumbeiros saídos de diferentes partes do

continente africano não somente transportaram um volume de corpos em

consequência do tráfico de escravos. Junto com diferentes agrupamentos

étnicos, atravessaram a “Kalunga” (Oceano/morte/indeterminado...), línguas,

visões de mundo, religiosidades, saberes, entre outras coisas, de diferentes

culturas africanas e que na diáspora foram reinventadas. Os saberes de

cura e maneiras de cuidados africanos foi um dos legados culturais destas

18

travessias de “malungos” (irmãos de mesmo barco).

Jacimara Souza Santana fala das mudanças sofridas na assistência de saúde

usada pela população africana com a conquista e colonização portuguesa

no sul de Moçambique. O costume de cuidar da saúde com os geracionais

médicos-sacerdotes, também conhecidos nesta região pelo nome de Nyanga, foi

combatido por missionários, administradores e governo português. A orientação

de procurar os hospitais, maternidades e postos sanitários para curar e prevenir

doenças e realizar partos com médicos e enfermeiros portugueses, ainda que

auxiliados por parteiras e enfermeiros africanos, foi amplamente defendida no

período colonial. De modo concomitante, agentes coloniais buscaram rechaçar

e desprestigiar os saberes e maneiras de cura dos Tinyanga.

Santana aborda a relação entre o saber médico lusitano, arrogado de científico

e o saber médico dos Tinyanga, alcunhado por supersticioso, feiticeiro e

charlatão. Para além dos conflitos e contradições, ela mostra que tal relação

também foi marcada por iniciativas de complementariedade por parte dos

Tinyanga, alguns médicos e clientes, uma vez que, embora a população

fosse influenciada a abandonar o tratamento com Tinyanga, não o fizera. Ao

contrário, muitos passaram a transitar os dois espaços de conhecimentos

e práticas, fazendo uso de ambos segundo suas necessidades e noções de

saúde/doença, mostrando que determinadas doenças e sofrimentos somente

o Nyanga tinha a capacidade de curar porque suas origens tinha relação com

os costumes, com a ancestralidade, com forças sobrenaturais, invisíveis, que

os médicos europeus não sabiam e nem podiam manejar. A eficácia deste

tipo de tratamento era atestada até mesmo por alguns europeus.

19

Giovni Grillo de Salve problematiza a relação medicina e emergência de

políticas segregacionistas na Cidade do Cabo/ África do Sul, destacando

a agência de dois médicos (Alfred Gregory e Abdullah Abdurahman) na

reordenação dos interesses de sanitaristas, médicos e políticos coloniais

de segregar populações coloureds dos espaços urbanos sob justificativa da

necessidade de prevenir a propagação de doenças.

Tal intervenção resultaria na proteção do grupo populacional malaio daquele

processo de exclusão, apesar dos dados estatísticos no período revelarem

aquele grupo como os mais diretamente atingidos por contaminações,

portanto, com maior possibilidade de desencadear o contágio. Um caso

contrário teria ocorrido com as populações africanas no período, expulsas

dos espaços citadinos em massa.

Silene Franco analisa narrativas de mulheres parteiras, residentes em

bairros de periferia da cidade de Salvador e Lauro de Freitas, acerca de seu

aprendizado da arte de partejar, buscando dar destaque à relação existente

entre seus saberes de cura e suas experiências religiosas, em geral, marcadas

pelo universo religioso do Candomblé e da Umbanda. Franco demonstra

através das narrativas das parteiras entrevistadas o quanto o trabalho de dar

parto está intimamente conjugado com o universo cultural religioso e familiar

das mulheres. Em geral, o aprendizado de ser parteira deu-se em companhia

de mulheres mais velhas, avós, mães, tias, vizinhas e outras parteiras e o

sucesso de sua atuação mostrou-se atribuída aos seus orixás, guias e santos.

A experiência dessas parteiras fala de humanização do parto e das formas de

cuidados da saúde da mulher gestante e de seus filhos. Impacta na formação

20

de uma família alargada. As parteiras também se tornam mães das crianças

que “aparam”, ao contrário do individualismo e impessoalidade do parto e

assistência à gestante que se tornou comum nas maternidades, hospitais e

centros de saúde.

Danieli Siqueira discute numa perspectiva sociológica e comparativa

concepções e maneiras que envolvem o parto e o nascimento no Brasil e

Guiné Bissau. Em sua análise mostra como a atuação das mulheres mais

velhas, também conhecidas por comadres ou ainda aquelas que aparam

crianças e matronas no Brasil e em Guine Bissau, são atuantes na assistência

às mulheres em suas comunidades. Muito embora, no caso do Brasil, os

dados da Pesquisa Nacional Domiciliar (PNAD) subestimem sua presença

em termos numéricos e o Ministério de Saúde, bem como o arrogado saber

científico da medicina acadêmica, as vejam como veículos de danos ao invés

de produtoras e transmissoras de conhecimentos geracionais.

Seu artigo chama atenção para um repensar do lugar reservado a estas

mulheres nas políticas de saúde, alcunhadas por parteiras e reduzidas ao

corpo auxiliar de saúde para realizar tarefas onde o Estado não possui

atendimento. Destaca a forma pela qual seus saberes são tratados pelo

Estado, sobretudo revelados na atitude de formação das parteiras com

conhecimentos que não dialogam com as práticas que estas mulheres

exercem em seu cotidiano.

Kelma Otaviano mostra como as noções de saúde/doença são compreendidas

no universo do Candomblé de Nação Ketu e algumas maneiras de

cuidados com a saúde, especificamente no tratamento de doentes mentais

21

(acometidos por psicose e neurose). Através da experiência de trabalho

conjunto entre Terreiros de Candomblés e serviço de saúde, desenvolvido

no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Iracema na cidade de Fortaleza, no

estado do Ceará, Kelma Otaviano demonstra o impacto e a importância da

aplicação destes saberes de saúde de base africana e religiosa nas ações da

saúde pública. Tais maneiras de cuidados e saberes ministrados por líderes

religiosos de Candomblés contribuem para a reintegração social, criação de

autonomia e de corresponsabilidade da pessoa acometida de doença mental,

ao contrário do que ocorre nos tratamentos exclusivamente alopáticos e

demais ações manicomiais.

João Reis da Cruz Santos apresenta em seu artigo visões dos líderes religiosos

do Candomblé de Angola em Salvador/Bahia sobre saúde e doença, a partir

de narrativas colhidas em entrevistas. João Santos mostra que o saber e

o fazer de tais líderes em benefício da vida, da saúde e do bem-estar das

pessoas estão intimamente relacionados com a cultura religiosa do grupo

marcada por heranças africanas transmitidas por tradição oral de geração a

geração e adaptadas ao contexto afro-brasileiro com mudanças ao longo do

tempo.

Denize de Almeida Ribeiro fala da Medicina Tradicional de matriz afro-

indígena praticada nos terreiros de Candomblés da Bahia. Neste artigo

ela apresenta parte de suas pesquisas junto aos terreiros de Salvador,

demonstrando que tais instituições desenvolvem variadas práticas de saúde

e funcionam como espaços de cuidados tanto para adeptos/as quanto para

pessoas de diferentes classes sociais, raça/etnia e religiões. Mas, chama a

22

atenção de que tais práticas foram postas à margem do sistema oficial de

saúde, deslegitimadas por serem sem comprovação “científica”.

Esperamos com essa coletânea instigar maiores investigações e conversas

sobre o assunto.

Jacimara Souza Santana

Professora de História da África da UNEB

CURA & MANDINGA: A LEITURA DE DOIS

PROCESSOS CRIMES ENVOLVENDO AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS

NO PÓS-ABOLIÇÃO (SC-1890).

José Bento Rosa da Silva

PRELÚDIO REPUBLICANO: À GUISA DE INTRODUÇÃO

Estamos no ano de 1890, às vésperas do primeiro ano do novo regime nos

trópicos, as mudanças se faziam sentir desde a década de sessenta e setenta

do oitocentos, em decorrência dos movimentos que consideramos o ocaso

do império: leis abolicionistas, liberalismo econômico, republicanismo, e

sobretudo, o cientificismo representado pelos ‘homens de ciência’: a geração

de setenta, segundo Lila Moritz Schawarcz1. Mas as mudanças, ainda que em

ritmo acelerado, não se fizeram do dia para a noite. Uma prova disso foi que

estava em vigor até o dia onze de outubro do corrente ano, o Código Criminal

de 1830; e mais, mesmo após a publicação do Código Penal (republicano),

em 11 de outubro, muitos crimes foram julgados a partir do Código Criminal

do Império, mesmo este regime já tendo sucumbido. Os dois processos que

analisamos sobre curandeirismo estão nesta relação. Cabe aqui a alusão

1 Referimo-nos à obra: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

24

clássica: “o morto agarrava-se ao vivo”2, pois que as permanências do

império se faziam presentes nas práticas, nas mentalidades e sobretudo nas

estruturas da sociedade e do estado, não por acaso, os primeiros anos da

República brasileira foi denominada de República Velha pela historiografia e

pelas força políticas após a década de trinta do século XX.

A ‘matéria prima’ que utilizamos para analisar o período pós-abolição e início

da República, foram dois processos crimes envolvendo ex-escravos africanos

e ex-escravos crioulos, no então Estado Federal de Santa Catarina, conforme

grafado no preâmbulo de um dos processos3. Os processos como fontes de

investigação nos apontam faces da sociedade, ou seja, vão além das tramas

arroladas nos depoimentos, inquéritos e demais peças. No caso específico,

apontam para práticas curativas proibidas pelo código jurídico, mas que, no

entanto resistiam, sobretudo entre as camadas ‘subalternas’, aliás, ‘as vítimas

preferenciais’da ordem republicana estabelecida a 15 de novembro de 1889,

implantando o que a historiografia denominou de República de Espada,

seguida pela República Oligárquica, fechando o ‘ciclo da República Velha’.

AS PLANTAS QUE CURAM TAMBÉM MATAM’: OS CURANDEIROS

COMO AGENTES.

Na História do Brasil, a arte de curar tem uma relação profunda com a

2 MARX, K. “ Préface à la première édition allemande du première livre du Capital”. Cit. MARX & ENGELS. Oeuvres choisis. Moscou: Progrès, 1970, tomo III,p.483. Apud. HARDMAN, Foot e LEONARDI, Victor. História Da Indústria E Do Trabalho No Brasil. SP: Ática,1991,2a.Ed,p.112.

3 O processo no qual foi réu José Cabinda, de novembro de 1890; já no processo anterior, no qual foram réus José Marcelino, vulgo, Zé crioulo; a preta Luiz Isabel e o africano Pedro Rocha; a denominação é Estado de Santa Catarina, portanto, suprimido o Estado Federal. Mas é bom lembrar que o Brasil era conhecido como: República dos Estados Unidos do Brasil.

25

presença dos africanos, as iconografias que remontam a colônia e império

são pródigas em exemplos, basta observarmos as produções de Rugendas,

Debret, dentre outros estrangeiros que por aqui estiveram em condições

diversas. A tradicional xilografia de cirurgiões barbeiros em plena via pública

praticando as sangrias nos dão conta disso. Se na África havia distinção entre

o curandeiro e o feiticeiro, no Brasil isso não nos parece muito evidente:

aquele que fazia o bem (a cura), também podia fazer o mal (feitiço); dependia

do desejo do cliente ou do paciente4. Nos dois processos analisados

encontramos vestígios do limiar muito tênue entre curandeirismo e feitiçaria

no Brasil, mais exatamente, nos primeiros anos da república, no litoral norte

do estado de Santa Catarina.

José Cabinda, ex-escravo que dizia ter nascido em Cabinda, na Costa da África

e com cem anos de idade, foi processado por curandeirismo e feitiçarias no

ano de 1890, ao menos nas representações que dele fizeram as testemunhas

arroladas no processo, Cabinda era considerado um agente do bem e do

mal. Na denúncia do promotor público, Henrique Carlos Boiteux, datada de

7 de novembro, na cidade de Tijucas, lia-se:

[...]Há bastante tempo que o denunciado José Cabinda, inculcando-se –

curandeiro – explora a credulidade dos incautos e ignorantes, fornecendo-

lhes para diversos fins drogas e ingredientes por ele conhecidos e por ele

preparados. Para esse fim fazia reuniões noturnas em seu casebre no qual

foi encontrado e apreendida uma pequena caixa de madeira contendo

várias raízes, cascas, caramujos e outros objetos que empregava em sua

manipulações.

4 “[...] Na África tradicional, há uma clara distinção entre o manipulador de forças maléficas e os sacerdotes ou curandeiro, responsáveis pelo equilíbrio físico e espiritual do grupo. Entre alguns povos bantos, por exemplo, aquele é o ndoki, o muloji, malfeitor e proscrito, enquanto estes são o nganga e o kimbndu, merecedores de respeito e consideração”. In. LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira Da Diáspora Africana. SP: Selo Negro, 2004, p.273.

26

Pelo depoimento das testemunhas Manoel Joaquim Jacintho, Luiz Ramos

de Oliveira e Thomaz Daniel da Boaventura, constantes do dito inquérito

junto e ofícios de folhas 2 e 3 do subdelegado de polícia e inspector do 10º.

Quarteirão, evidencia-se que, diversas pessoas daquela localidade, entre elas

Antônio dos Santos, Manoel João e diversos membros de famílias de Ramos,

de Oliveira, sucumbiram vítimas da malvadeza do denunciado, o qual com as

substâncias tóxicas de que faz uso, tem conseguido desfazer-se de pessoas

que lhe são desafetas![...]5

Os crimes de Cabinda, segundo o promotor Boiteux vinham de longa data,

possivelmente anterior à república, no entanto, só denunciados neste

contexto. Não sabemos os reais motivos, mas parece-nos que havia uma

cumplicidade entre os clientes/ pacientes e o curandeiro. Já os que não

simpatizavam com as práticas de Cabinda não o denunciaram anteriormente

por medo, como ficou expresso no depoimento de uma autoridade6, Cabinda

5 Arquivo Do Fórum Da Comarca De Tijucas. Sumário Crime 1890 (Réu: José Cabinda), folhas: 02 v. Citaremos como: A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK.

6 A missiva do sub-delegado de polícia é reveladora do medo que algumas autoridades tinham de Zé Cabinda:“[...]O cidadão Doutor juiz municipal da comarca de São Sebastião de Tijucas.Procedendo na forma da lei, pelos guardas policial Martinho Lourenço de Souza e João Batista Sobrinho, remeto-vos as suas ordens o preso José Cabinda, por ter incorrido nas penas do crime, acompanha os autos de culpa, remetido ao respectivo escrivão desse juiz, quem a vós fará conclusos, acompanha também uma caixa de mandingagem do dito preso, para melhor prosseguir o que de direito for, peço-vos fazer a devida justiça de modo que o dito preso não volte nesta paróquia especialmente no Zimbros, é contido por um malvado, o que é justo e acresce mais, que a malvadeza do dito Cabinda, é conhecida também nessa comarca, Camboriú, e até no Desterro, e autoridades daqui já não fizeram a devida justiça não que não merecesse, todos os dias mas sim com receio .Saúde e Fraternidade.Porto Belo, 10 de outubro de 1890.O sub-delegado de polícia.João Eufrázio de Souza Climaco[...]”. In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 04Estas representações não ficaram no passado, ainda hoje, as práticas e ritos relacionados com a religiosidade afro-brasileira são estigmatizadas. Na música por exemplo:“[...]Não mexe comigo que eu ponho o seu nome lá no meu terreiroEu sou macumbeiro lê lêEu sou macumbeiroMeu santo é do forteCaboclo do norte que só faz o bemEle não faz o malEle só faz o bemÉ flecha encarnada, mãe santa me deuMas...Não mexe comigo que eu ponho o seu nome lá no meu terreiroEu sou macumbeiro lê lêEu sou macumbeiro[...]”Santo Forte. Autor: Cláudio Fontana. Fez sucesso nas emissoras de rádio no Brasil nos anos 70.

27

era amado por uns e temido por outros em virtude dos poderes que lhe

eram atribuídos: ‘de fazer curar’ e de ‘fazer matar’.

Boiteux, como homem de ciência que era, atribuiu às mortes provocadas por

Cabinda, aos malefícios das ervas, qual seja, não era ele que teria o poder de

fazer o mal, mas puramente o conhecimento que tinha das ervas; neste sentido

o poder estaria não em Cabinda, mas na natureza, independentemente

das potencialidades do africano. Mas há um depoimento que mostra que

Cabinda não matava apenas com as palavras, revelando outra perspectiva,

para além daquela dos ‘homens de ciência’ da época. Esta, de Boiteux,

representando a visão cartesiana, ocidentalizada; a outra, a do depoente,

simbolizando aspectos da cosmovisão advindo da África, onde a fala humana

(ou de determinados homens):

Coloca em movimento forças latentes, que são ativadas e suscitadas por

ela – como um homem que se levanta e se volta ao ouvir seu nome. A fala

pode criar a paz, assim como pode destruí-la. É como fogo. Uma única palavra

imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto

em chamas pode provocar um grande incêndio [...] ‘O que é que coloca uma

coisa nas devidas condições? A fala. O que é que estraga uma coisa? A fala. O

que é que mantém uma coisa em seu estado? A fala’[...] A palavra, não só [tem]

um poder criador, mas também a dupla função de conservar e destruir. Por

essa razão a fala, por excelência, é o grande agente ativo da magia africana7.

Manoel Joaquim Jacintho, morador dos Zimbros, foi um dos que testemunhou

no processo em que José Cabinda fora réu, dentre outras acusações atribuiu

a Cabinda a morte de um oponente do africano por disputa de madeiras,

neste está implícito o poder da palavra de Cabinda ao sentenciar: ‘hás de me

7 A fala humana como poder de criação. HAMPATÊ BA, A. In. KI-ZERBO, Joseph (Editor) História Geral Da África- Vol. I. Metodologia e pré-história da África. SP: Cortez: Brasília: UNESCO, 2011,3a.Ed., p.172-173.

28

pagar!’ Eis que dias depois... mas ouçamos do próprio Manoel o acontecido,

posto que ele fora testemunha ocular:

[...] em uma ocasião, há isto um ano mais ou menos, o réu presente procurara

a ele testemunha para ir buscar um pouco de madeiras que havia cortado no

mato do falecido Manoel João, ao que ele respondeu que sim, porém passados

alguns dias, ele réu lhe disse que o dito Manoel João lhe havia negado a dita

madeira, mas que ele lhe havia de pagar; tendo poucos dias depois falecido o

dito Manoel João[...]8

Cabinda ficou irado em virtude de o dito Manoel João haver faltado com a

palavra: prometera as madeiras ao africano e depois negara, desta forma,

deve ter atrapalhado os planos de Cabinda. O que estragara a vida de

Manoel João, se seguirmos a cosmovisão africana acima mencionada, não foi

a ‘praga’ de Cabinda, mas a própria fala de João: “O que estraga uma coisa?

A fala. O que é que mantem uma coisa em seu estado? Afala”. Nesta linha de

raciocínio fora o próprio Manoel João o causador de seu infortúnio por não

ter mantido a palavra empenhada.

Manoel Jacintho não se limitou a denunciar o crime de Cabinda contra

Manoel João, disse que era voz pública, que outras pessoas foram vítimas de

Cabinda, inclusive vários de uma mesma família. Ao responder ao juiz acerca

das demais mortes atribuídas ao africano, e quanto tempo ficou Manoel João

moribundo:

[...] Respondeu que Manoel João queixava-se de dores de estômago e

que falecera antes de um mês depois da questão dos caibros ou madeiras,

ignorando quantos aos demais, sendo porém certo que os da família Ramos

faleceram um cepas o outro até que tendo um de nome Fermiano José Alves

8 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 28v-29.

29

procurado um curandeiro de carreira: Dissera por nome Francisco Rodrigues

do Nascimento de cor preta a qual curou os que ainda estavam doentes[...]9

O que se depreende do depoimento é que as ‘mandingas’ do Cabinda eram

certeiras, não deixava ninguém sofrendo por muito tempo10: o primeiro

morrera com menos de um mês, e na família vitimada pelo mesmo, ‘faleceram

um cepas ’(sic), qual seja, foram morrendo um após outro11. Não fosse um

membro da família recorrer à um curandeiro de carreira, morreria toda a

família. Outra evidência revelada: havia na região outro curandeiro, e ao que

nos parece, mais competente, pois que tido como ‘de carreira’; também um

descendente de africanos, pois que ‘de cor preta’. A arte do curandeirismo

parece-nos ligada à identidade africana e afro-brasileira; na linguagem de

época: coisa de pretos. Na legislação republicana: prática ilegal da medicina,

charlatanismo. Motivos suficientes para serem inclusos no artigo 158 do

Código Penal de 1890; mas como José Cabinda, por ter sido julgado pelo

Código Criminal de 1830, o artigo relativo ao seu crime era o 192, leia-

9 Idem. Folhas:29v.

10 Em outro depoimento, Manoel Jacintho foi mais enfático quanto às ações de Cabinda:“[...] Perguntado se não sabe se o dito Cabinda com sua mandinga tem matado alguém?Respondeu que tem ouvido algumas pessoas naquele arraial, assim como o finado Antônio Santos, que dizem que foi ele quem matou, e é fato que o dito Cabinda tratou do finado Antônio Santos, e o dito Cabinda tem por costume, qualquer dúvida que tenha com alguém, logo diz pela forma seguinte: tu me hás de pagar. Assim como há poucos meses aconteceu, que Cabinda sem consentimento de Manoel João, foi aos matos do dito finado Manoel João e tirou uns caibros, Manoel João carregou os ditos caibros para sua casa, e o dito Cabinda disse, para Manoel João esta forma seguinte: me hás de pagar cedo . E como de fato o homem a fim de quinze dias mais ou menos morreu[...]”.In. Idem. Folhas:15.

11 Outra versão das ‘maldades’ de Zé Cabinda a partir dos depoimentos:“[...] Perguntado se o dito Cabinda tinha feito mal a ele testemunha ou outras pessoas qualquer? Respondeu que sim, tinha o dito Cabinda feito mal a toda a família de sua casa, por que há tempos passados Cabinda dava-se em casa dele testemunha e por nada retirou-se ficando todos da família doentes ignorando os médicos a moléstia e assim foi morrendo seu pai, seu irmão José , seu irmão João e afinal sua irmã Josefa, não havendo espaço um do outro maior de três meses e afinal um outro curador deu remédio ao resto da família que todos melhoraram e disse que quem fez o mal foi o Cabinda.Perguntado o que sabe mais sobre o comportamento dele, e se não causa estimação da vizinhança? Respondeu que o comportamento é péssimo e que não goza estimação de ninguém. [...]” In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas 12

30

se, relativo a homicídio12. Apesar da lei, nos chama a atenção a categoria

curandeiro de carreira. Havia ao que nos parece, a tolerância com alguns

curandeiros, sobretudo os considerados ‘de carreira’; portanto, seguindo

esta lógica, havia ‘curandeiros & curandeiros’. Zé Cabinda estaria em qual

destas categorias?

Seja lá como for ele não tinha como fim o enriquecimento ilícito, mas era

necessário sobreviver, já que não possuía bens materiais, - tão caro aos

cidadãos da jovem república -, precisava sobreviver, por isso aceitava

donativos em razão das curas que fazia: galinhas, perus e qualquer outra

coisa que porventura os clientes lhe oferecessem em ‘gratidão’ pela cura;

mas nem todos viam por este prisma. A opinião de uma autoridade sobre

Cabinda nos mostra como ele não era bem visto pela ordem estabelecida.

No caso específico, uma missiva do Inspetor do 10º Quarteirão, para o sub-

delegado de polícia:

[...] Participo a Vossa Senhoria em que a informação que me pede respeito

a José Cabinda, africano, são estas que lhe posso informar, que no dia 5

do corrente, o cidadão Guilherme Santos, na minha casa disse em que ele

foi o cabo com o irmão Manoel João e que o dito negro não tem senão um

chão de casa, não tem roça, não tem renda. Só de fazer mal para ganhar

nas coxa, não presta para melhor do que qualquer de nós, dizem que

vem passando a galinhas e perus como um grande, atacando os brancos.

Zimbros, 9 de outubro de 1890[...]13

Vale ressaltar que alguns depoimentos remontam acontecimentos passados

12 Idem. Folhas: 07.

13 Idem, Ibidem. Folhas: 06.

31

há um ou mais anos, evidenciando a reputação de José Cabinda na região, e

mais, pessoas viajavam léguas e léguas em busca das curas proporcionadas

pelo velho africano, sua casa era uma referência, um lugar de ‘peregrinações’14.

A segunda testemunha, Luiz Ramos de Oliveira corroborou Manoel Joaquim

Jacintho acrescentando que foi outro curandeiro quem salvou uma família

vitimada pelos malefícios do Cabinda, declinando o nome do dito curandeiro:

Francisco Rodrigues. O fato teria acorrido há mais ou menos doze anos

passados, e foi Francisco Rodrigues, que após curar os sobreviventes da família,

acusara o Cabinda de ter feito o malefício. Ou seja, além de curar, Rodrigues

identificou o agente da doença. Haveria ‘uma demanda’15, uma disputa de

poder entre estes dois curandeiros? Seja lá como for, o certo é que perguntado

sobre o que sabia sobre os crimes de Cabinda, Luiz Ramos respondeu:

[...] que é exato que o acusado é ali tido por curandeiro e que deu um dia chá

de uma erva que denominam timbó a um seu irmão José o qual veio a falecer

pouco depois com as “guelas” queimadas . Disse mais, que misteriosamente

seu pai adoecera e que o acusado dirigindo-se ao leito de seu pai o prevenia

que cuidasse em si, pois que seria bastante doente, que falecera pouco tempo

depois, seguindo-se seu irmão João, José e Josepha, todos em menos de um

ano [...]que atribui ser o acusado em vista de ter sido chamado um curandeiro

de nome Francisco Rodrigues o qual declarou que era o acusado José Cabinda

o autor daquelas mortes[...]16

Segundo Luiz Ramos, parente das vítimas, o próprio Cabinda lhe havia dito

14 Do depoimento de Manoel Joaquim Jacintho: “[...]Perguntado se sabe que o dito Cabinda, faz ajuntamentos em sua casa? Respondeu que sim, tem visto muita gente junta em casa dele, e destas gentes de mais de um dia de viagem, e os ditos ajuntamentos tem por costume ser de noite[...]” Idem. Ibidem. Folhas: 10v-11.

15 A expressão ‘tocar demanda’ é muito usada em algumas regiões do Brasil para caracterizar disputas no campo da religiosidade afro-brasileira.

16 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 31v-32.

32

quem nem toda a família morreria, porque ele, Cabinda não queria. Então

o juiz quis saber do depoente quais eram os sintomas que apresentavam

os doentes, e se as vítimas haviam consultado médicos da região. Luiz

respondeu afirmativamente, que procuraram o profissional Jose da Cunha

Porto, o qual os medicou sendo também consultado um médico que

esteve na região em comissão. Segundo o médico, tratava-se de beriberi e

receitou aguardente canforada. A receita não nos parece muito diferente

das garrafadas dos curandeiros tradicionais da região, no entanto, estava

‘revestida do saber médico’. Um tema muito caro aos estudos foucaultianos17.

A testemunha, talvez desconfiada do receituário, diz não ter tomado da

bebida recomendada. Quanto aos sintomas da doença eram: “dormências

nas pernas e prostração geral, dores no estômago, corpo quente, pernas

inchadas, havendo entre os doentes sintomas diferentes”18.

O negociante Francisco José dos Santos, de trinta e quatro anos de idade,

negociante, casado, morador no lugar Zimbros, em seu depoimento

acusou Cabinda de produzir um remédio abortivo, ou seja, trabalho para

uso maléfico, uma vez que atentando contra a vida de inocentes; mas por

outro lado, poderia ser visto como benéfico, uma vez que se tratava de

uma gravidez indesejada. Reside uma dicotomia entre bem e mal, entre

curandeiro e feiticeiro, constituindo campos de saberes religiosos e artes de

fazer: trabalhos de uso benéfico (ÀWÚRE), trabalhos de uso maléfico (ÀBÌLÙ)

e trabalhos de proteção contra trabalhos maléficos (ÌDÁÀBÒBÒ), conforme

17 Sobre esta questão. Ver: O nascimento da medicina social. In. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.RJ: Graal, 1979,8a.Ed.

18 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 32.

33

as pesquisas de Pierre Verger19. Voltemos ao depoimento de Francisco José

dos Santos, incriminando o Cabinda pelos seus atos:

[...] ele, testemunha sabe de certeza, que uma filha solteira de José Martins,

tendo ficado grávida de João Quintino dos Santos, este falou com o dito

Cabinda, afim de matar a dita branca e o dito, - digo -, e consta que o dito

Cabinda fez a dita garrafada, porém parece a ele testemunha, que a dita

moça não chegou a tomar a dita garrafada por ter medo, e julga-se que não

tomasse por que a dita moça deu a luz a dita branca[...]20

A fama de Cabinda era que, além de cuidar dos males do corpo também

cuidava dos ‘males de amor’, fazendo com que pessoas apaixonadas pudessem

‘agarrar’ seus pretendentes. Aliás, Verger ‘classifica’ entre os trabalhos de uso

benéfico: trabalho para dominar alguém, trabalho para persuadir as pessoas,

trabalho para conquistar de imediato uma mulher, trabalho para ter relações

sexuais com uma mulher, para ter relações sexuais com um homem, dentre

outros21. Pois bem, José Antônio Vieira não só confirmou que Cabinda tinha

a pretensão de interromper a gravidez indesejada da filha de José Martins,

como se vangloriava de elaborar ‘filtros amorosos’ para quem o desejasse:

[...]que o dito Cabinda é contido no arraial do Zimbros por mandingagem, e a

poucos dias soube mais, que o dito Cabinda respondeu que gabou-se que tinha

dado, - digo -, feito uma garrafada de remédio para João dos Santos, afim de

que não viesse vir a luz o recém nascido que uma filha dele testemunha estava

para dar a luz, porém que sua filha apesar de estar grávida não quis tomar o

remédio, e independente disso acresce que no Canto Grande uma moça não

querendo casar com um moço, conta-se que o dito Cabinda se ofereceu para

dar remédio a dita moça a fim de a dita moça resolvesse casar com o dito moço,

19 VERGER, Pierre Fatumbi. EWÉ: o uso das plantas na sociedade Iorubá. SP: Cia. Das Letras, 2009.

20 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 12v-13.

21 VERGER, Pierre Fatumbi. Op. Cit.

34

porém se fez ou não a dita garrafada, ele testemunha não sabe[...]22

O lavrador Thomas Daniel da Boaventura descreveu aspectos do medicamento,

bem como o comportamento do curandeiro e mandingueiro José Cabinda.

Segundo ele, o remédio que um Cabinda receitara a Antônio dos Santos,

tinha uma cor esverdeada. Na verdade ele ficara sabendo a partir do relato

de sua mãe, que certo dia, cuidando do doente, presenciou-o ‘medicando’ o

enfermo, e que logo após ter bebido o dito remédio, o doente quase veio a

falecer. E de fato veio a falecer posteriormente, embora o Cabinda havia dito

anteriormente que só ele tinha capacidade de curar Antônio; talvez por isso

permitiram, ou porque já não havia mesmo o que fazer:

[...] que na moléstia do finado Antônio dos Santos, o dito Cabinda dizia que só ele Cabinda podia curar Antônio dos Santos, em como fosse assim consentido, o dito Cabinda pegou a tratar do dito doente, porém um dia levou uma garrafada de remédio, na ocasião que a mãe dele testemunha estava servindo o dito doente, e depois de ter dado uma colher do dito remédio e o doente quase morrer feito o resto do remédio (ilegível) e tinha uma cor esverdeada[...]23

Terminado o inquérito foi decretada a prisão preventiva do africano. A

‘prova material do crime’ foi um bauzinho contendo as mandingas, que foi

levado para que os peritos fizessem um rigoroso exame, averiguando o seu

conteúdo24. O exame foi realizado no dia vinte e três de outubro daquele ano

22 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas:16 -16v.

23 Idem. Folhas:15v.

24 “[...] Em vista do inquérito constantes destes autos, requeiro a prisão preventiva contra o acusado José Cabinda africano, e que se proceda perante a delegacia de polícia o rigoroso exame nos objetos contidos na caixa remetida pela sub-delegacia de polícia de Porto Belo à referida delegacia desta Vila, depois do que esta promotoria requererá o mais que julgar conveniente, à bem dos interesses da justiça.Tijucas, 13 de outubro de 1890.O Promotor PúblicoHenrique Carlos Boiteux[...]” In.A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 18.

35

de 1890, sob os olhares atentos dos peritos: Zeferino Antônio Rodrigues de

Carvalho e José Romualdo de Caldas. Foram testemunhas: Joaquim José das

Flores e Cirillo Ávilla dos Santos.

Findo o exame, os peritos, - entendidos em medicina -, segundo consta do

documento. Declararam o seguinte:

[...] que tendo examinado os ingredientes que se achavam dentro de uma

caixinha que se achava aberta, constava esses ingredientes de um caramujo

hermeticamente fechado contendo dentro do mesmo, fragmentos de cascas

de vegetais; encontraram mais um pedaço de lixa de cação; um breve

cosido(sic) e que continha fragmentos de cascas de pau- para- tudo, um

pedaço de uma vela de sebo; encontraram mais, um cálice quebrado e grande

quantidade de raízes de vegetais que eles peritos desconhecem a ação[...]25

Os ‘homens de ciência’, os peritos, não foram capazes de saber a finalidade

dos objetos constantes dentro do bauzinho. Elementos da natureza do

reino vegetal: pedaço de madeira, raízes de vegetais. Elementos do mundo

animal: lixa de peixe (cação), caramujo. A união entre reino animal e

vegetal: caramujo ‘hermeticamente fechado’ contendo dentro fragmentos

de vegetais. Pedaço de vela e um cálice: presença de objetos da religião

cristã-católica. E ainda um breve cozido: possivelmente a proteção de

José Cabinda. Daniela Calainho ao investigar os Mandingas na metrópole

portuguesa, identificou:

[...] A força das mandingas ligava-se no mais das vezes ao tratamento que

recebiam depois de preparadas. Cozidas dentro de bolsas e usadas penduradas

ao pescoço ou amarradas no braço, eram defumadas com ervas e incensos,

benzidas, enterradas à meia-noite em encruzilhadas ou postas debaixo da

pedra d’ara no altar de uma igreja para em cima delas serem rezadas três

25 Idem. Folhas: 23-23v.

36

missas, adquirindo assim mais potência e eficácia[...]26

Parece-nos que esta ‘prova material’ não foi o suficiente para incriminar o

Cabinda, como concluiu o juiz municipal Izidoro José Marques27. Malgrado

esta decisão, José Cabinda ficara dois meses preso inocentemente acusado de

mandingagem e ainda de roubo de galinhas. As custas do processo recaiu sobre

a municipalidade, talvez José Cabinda tenha saído fortalecido desta acusação,

caso ele alegasse que fora defendido pelo sobrenatural que o protegia através

das bolsa de mandinga que carregava como proteção. Ele andava com o corpo

fechado, apesar de viver em período em que o cativeiro já havia sio extinto, a

liberdade para os sujeitos egressos da escravidão ainda era muito precária,

então melhor recorrer à proteção do sobrenatural mediada pelos elementos

da natureza, que curavam e protegiam os que neles acreditavam.

Sorte melhor teve Pedro Rocha, também africano e envolvido em um processo

crime juntamente com José Marcelino, vulgo, José Crioula e sua filha, Luiza

Isabel. Era o mês de outubro do mesmo ano de 1890. Não se tratava de

mandingagem ou feitiçaria, mas crime tão correlato, uma vez que envolvia

práticas de curandeirismo.

Pedro Rocha, nascido na Costa da África, segundo o registro do escrivão, na

região de Bahó,- mas acreditamos tratar-se de Boké -, filho de Carlos Bambu,

26 CALAINHO, Daniela Bueno. Metrópoles Das Mandingas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo regime. RJ: Gramond/Faperj, 2008,p.98.

27 “[...] Vistos e examinados estes autos, julgo improcedente a denúncia de folhas 2,contra o réu José Cabinda. Em posse dos depoimentos das testemunhas, 1a., na falta das respectivos exames cadavéricos e não sendo claras e contestar aos mesmos depoimentos de folhas à folhas, diante de nenhuma prova de pode colher da culpabilidade do acusado é claro que não existe fundamento, prova, autorizo o justo despacho de pronúncia, recorro deste meu despacho para o meritíssimo doutor juiz de direito da comarca a quem o escrivão remeta o presente, por isso, pague as custas a intendência municipal.Tijucas, 12 de dezembro de 1890.Izidoro José Marques [...].In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 51.

37

que em nossa opinião é possível tratar-se de um membro da etnia Bambara,

com setenta anos de idade (mais ou menos), casado, lavrador. Pedro fora,

no passado recente, escravo de João Antônio da Rocha, de quem ‘herdara’

o sobrenome. Aliás, José Marcelino também ex-escravo, deve ter ‘herdado’ o

sobrenome do ex-senhor, Manoel Marcelino da Silva. Neste sentido, mesmo

findada a escravidão, a identidade do ex-escravo estava presa à do ex-senhor

‘até que a morte os separasse’; caso o ex-escravo não renegasse o sobrenome

por algum motivo, conforme observamos em um estudo de caso no litoral norte

do estado de Santa Catarina, mas isso não nos parece um processo comum,

tanto é que há muitos descendentes de escravizados no Brasil, carregando o

sobrenome dos descendentes dos antigos senhores dos seus antepassados28.

Fonte: http://www.africa-turismo.com/mapas/guine.htm. Acessado em : 09.12.2014.

Pedro Rocha, além de agricultor, era um exímio conhecedor das plantas que

28 Encontramos um destes casos ao investigamos o período pós-abolição na região sul do Brasil, mais exatamente no litoral norte do estado de Santa Catarina. Sobre esta questão ver. SILVA, José Bento Rosa da. Caetanos & Caetanos: tradição oral e história(em preto & branco). Itajaí: Ed. do autor, 2008.

38

curavam certamente um conhecimento herdado dos seus antepassados.

Sabia por exemplo que: matangas sweswe era um abortivo, que pau-cobra

era um bom remédio para achaques, que para apostemas era aconselhado

butua e engala, que butua também era boa para o baço e para inchaços,

para dores de ouvido cobra-carneira e gergelim, para o mal de gotas mututu,

para gonorreia muria-nhoka; sabia mais, que engaria era também excelente

contra: diarreia, disenteria, varicosidadese cólicas29. Enfim, era um curandeiro.

Na época, a gonorreia era uma das doenças venéreas que mais atormentavam

os jovens varões, sobretudo os ávidos por iniciarem-se na vida sexual, afim

de testar sua virilidade. Pessoas como: Francisco Carvalho, Miguel Lucidorio e

João Maria Paranhos, filho de Maria Lemos; já haviam recorrido a curandeiros

para se curarem; aliás, o próprio Pedro Rocha já havia feito uso de seus

próprios remédios para curar-se de uma gonorreia30.

Certo dia, José Crioulo procurou Pedro Rocha e “pediu para arranjar-lhe

um remédio para curar uma gonorreia, não lhe dizendo porém quem era

o doente”; como Pedro conhecia o ofício, não se fez de rogado, pesar dos

volumes de pedidos, atendeu ao Crioulo. Pelo trabalho, José Marcelino, vulgo,

José Crioulo, pagou-lhe a quantia de um mil réis31. Não sabia o africano que

29 Sobre as sociedades africanas e as formas de tratamentos medicinais. Ver. DIAS, José Pedro de Souza. Índice de drogas medicinais angolas em documentos dos séculos XVI a XVIII. Revista Portuguesa de Famárcia. N. 45, 4, 1995,p.174-184. Apud. DEL PRIORE, Mary e VENÂNCIO, Renato Pinto. Ancestrais: uma introdução à história da África Atlântica. RJ: campus, 2004,p.15.

30 Segundo o auto de perguntas feitas a Pedro Rocha. In. Arquivo Do Forum Da Comarca De Tijucas. Sumário Crime 1890(Réus: José Marcelino da Silva, Luiza Isabel e Pedro Rocha. Folhas: 18v.Citaremos como: A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR.

31 No depoimento de Pedro Rocha disse literalmente: “[...] haverá dois meses, mais ou menos, apareceu em sua casa o preto José Crioulo, o qual lhe pediu para arranjar-lhe um remédio para curar uma gonorreia, não lhe dizendo porém quem era o doente e como ele respondente costumava preparar com ervas um remédio do que ele próprio já fizera uso e tem fornecido a mais de uma pessoa daqui, entre eles Francisco Carvalho, Miguel Lucidorio e João Maria Paranhos, filho de Maria Lemos; prestou-se por isso a preparar meia garrafa de medicamento que o dito José

39

tal ato poderia levá-los às barras do tribunal, pois que o remédio não era

para curar gonorreia alguma, como se verá adiante.

José Crioulo estava na verdade procurando alguém que pudesse ajuda-lo a

‘consertar’ o mal que fizera à sua própria filha, Luiz Isabel. Ele a engravidara

e precisava ‘dar cabo ao mal fruto daquele ventre’. Procurou então o

[...] preto Domingos, ex-escravo de Eleutério Mafra, a este pediu-lhe que lhe

indicasse algum remédio ou droga que servisse para fazer desaparecer o

fruto de sua imprudência, ao que Domingos lhe respondera que não sabia,

inculcando-lhe o preto de nome Pedro, ex-escravo de João Antônio da Rocha,

o qual talvez soubesse ensinar-lhe alguma cousa[...]32

Parece-nos que a arte de curar era dominada pelos africanos e seus

descendentes, posto que José Marcelino foi procurar um outro preto,

Domingos, para certificar-lhe do que necessitava; podia ser também por

cumplicidade, quando os pretos se entendiam por serem todos egressos do

cativeiro, haviam passados pela experiência de ‘malungos’33. Seja lá como for

Domingos indicou o nome de Pedro Rocha, que sabia ser um curandeiro.

Embora José Crioulo não revelasse a finalidade do remédio, Pedro havia

orientado como tomar o medicamento, - a posologia -, segundo a versão

científica do processo curativo:

[...] Tendo procurado ao dito Pedro, a este se dirigiu, e expondo-lhe o que

Crioulo veio buscar depois visto como estando preparando para outros não pudera servi-lo mais depressa sendo que recebeu do mesmo José a quantia de um mil réis[...]” In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas: 18v-19.

32 Do Auto de perguntas feitas a José Marcelino da Silva. In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas:17.

33 Expressão que significava ‘companheiros de jornada’ entre alguns escravizados. Ver. LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto Do Brasil. RJ: Pallas, 2003.

40

pretendia ao que este disse- lhe que arranjaria o que era preciso e que viesse

no dia seguinte, que estaria pronto. Disse mais, que dois ou três dias depois

voltou e recebeu do dito Pedro a garrafa que lhe parece ser a mesma que

lhe foi apresentada, a qual continha um líquido que deveria ser tomado uma

colher antes do almoço, outra antes do jantar e outra antes ou depois da ceia;

por cuja garrafa pagou um mil réis., sendo que levando para sua casa o dito

medicamento, entregou à sua filha a quem recomendou não tomasse mais do

que a dose indicada. [...]34

A elaboração do medicamento requeria um tempo, por isso Pedro não o

forneceu de imediato, só estaria pronto no dia seguinte, mas não sabemos

por quais motivos, talvez em virtude do preço, José Crioulo só retirou a

encomenda três dias depois, malgrado a urgência do remédio. E mais,

Pedro Rocha estava ocupado com outras encomendas, isso mostra o quanto

era solicitado pela vizinhança e pessoas, que talvez como no caso do José

Cabinda, viajava dias para recorrer seus trabalhos curativos. Mesmo com

toda a sua ocupação, preparou meia garrafa do remédio para o solicitante

“[...]prestou-se por isso a preparar meia garrafa de medicamento que o dito

José Crioulo veio buscar depois visto como estando preparando para outros

não pudera servi-lo mais depressa[...]”35

A eficácia do remédio, ou droga, pode ser comprovado no depoimento

de Luiza Izabel; tanto na recomendação que seu pai lhe fizera quanto à

observação do posologia, quanto no perigo que pudesse lhe causar, caso

excedesse na dosagem, comprovando o dito popular já mencionado no caso

anterior: “as plantas que curam também matam”. Bastaram apenas duas

doses. Vejamos as recomendações de José Marcelino à sua filha Luiza Izabel:

34 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas: 17-17v.

35 Idem. Folhas: 18v-19.

41

[...] Perguntada se foi ela respondente quem pediu para lhe ser administrado

o remédio ou abortivo? Respondeu que não, pois ignorava o seu estado,

porém seu pai conhecendo-a grávida, por vê-la gorda, disse-lhe que ela estava

grávida, dizendo-lhe não é nada, eu vou dar as providências que dias depois

conforme já disse, tomara a droga ou medicamento que o mesmo seu pai

lhe trouxera, pensando ela fosse para bem de provocar-lhe a menstruação,

sendo-lhe na ocasião recomendada pelo seu dito pai que tomasse de cada

vez menos de meia xícara, porque se tomasse mais podia morrer [...]o que

ela fez por duas vezes, resultando que no dia 27 de julho ela abortou uma

criança de cor preta, a qual era do sexo masculino, não tendo ainda cabelos

nem penugem, nem tampouco as unhas formadas , o qual nasceu sem vida, o

que ela verificou com atenção[...]36

O exame de corpo de delito realizado no cadáver do recém-nascido, que

deveria ter, - segundo o mesmo exame -, de três a quatro meses gestação;

já em adiantada estado de putrefação corroborou o depoimento de Luiza

Izabel. Ela dissera que havia tomado duas doses da droga na véspera e na anti-

véspera do aborto. Isso comprova mais uma vez a eficácia do medicamento

preparado pelo africano Pedro Rocha. Talvez a eficácia estivesse relacionada

com a finalidade primeira do remédio, qual seja, para a cura da doença de

gonorreia; infelizmente usado com outra finalidade para ocultar o crime de

José Crioulo, incriminando o curandeiro.

Pedro Rocha conhecedor de plantas e ervas medicinais não titubeou

quando perguntado qual a composição do remédio que havia vendido a

José Marcelino, até porque, não tinha nada a temer, estava cumprindo com

a sua função de curandeiro. Entre as ervas encontramos uma já conhecida

no âmbito do curandeirismo do século XIX no litoral norte do Estado de

36 Idem. Ibidem. Folhas: 14v e 15v.

42

Santa Catarina, ela fazia parte do rol de plantas encontradas no bauzinho

de José Cabinda, acusado de ser mandingueiro, como vimos acima: estamos

nos referindo ao pau-para-tudo. Não identificamos todas as potencialidades

do pau-para-tudo, mas sabemos que é afrodisíaco, e que é recomendado

para os que sofrem de diabetes37. Outras ervas citadas pelo africano foram:

cardo branco, arruda, caroba e água. “Recomendou ainda que se houvesse

purgação que acondicionasse um pouco de vinagre na ocasião de tomar”38.

Enganam-se os que pensam que todas estas ervas eram oriundas do

continente africano, a hoje denominada ‘medicina popular’ tem elementos

de várias culturas, apontando para a circularidade que é a cultura. A erva

denominada ‘cardo branco’, por exemplo, “tem origem na Bulgária, conhecida

também como Cardo Mariano planta da família das Arteaceae, é uma planta

imponente originária da Europa e da Rússia que atualmente se encontra

espalhada por todo o mundo”39.

O conhecimento acerca do poder curativo das plantas está relacionado com

o ‘fazer-se humano’, qual seja, com as formas criadas pelas sociedades a

fim de preservar a vida. No decorrer deste processo, algumas sociedades

desenvolveram mecanismos visando a preservação deste conhecimento,

restringindo-os a determinados grupos sociais. Foi a invenção da ciência

médica, como nos adverte Michael Foucault. A partir deste momento, quem

não tivesse os conhecimentos médicos reconhecidos por um determinado

37 Pau-para-tudo:“Cinamodendron axilare” Afrodisíaco, muito indicado contra diabetes.In. http://www.arteblog.net/2008/03/22/ervas-e-plantas-medicinais-e-suas-utilidades/ Acessado em: 26.06.2014.

38 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas:19.

39 http://www.chaecia.com.br/loja/produto-111058-1637-cardo_mariano__silybum_marianum_l_100_grp. Acessado em: 26.06.2014.

43

grupo não o poderia aplicá-lo. Estava inventada a prática ilegal da medicina40.

Para regulamentar tal procedimento, dentre outros, foi necessário criar um

corpo jurídico que controlasse o campo do conhecimento médico: a ciência

jurídica41. Portanto, nesta linha de raciocínio, ciência média e ciência jurídica

são ‘irmãs siamesas’, sobretudo na sociedade ocidental a partir do advento

da idade moderna.

No Brasil este movimento remonta dois momentos do século XIX: em 1808

a fundação da faculdade de medicina na Bahia, a faculdade de direito de

Olinda foi fundada em 182742. Nesta época, o Brasil era majoritariamente

negro, onde os costumes remontavam muito mais as culturas oriundas

do continente africano, do que o europeu, inclusive no âmbito das

relações sociais. Na perspectiva do colonizador, fazia-se necessário um

‘disciplinamento’, ‘remodelação das condutas’, na expressão foucaultiana.

Insistimos que, na perspectiva dos olhares europeus, era uma sociedade

‘moralmente desajustada’; alguns atribuíam este ‘desajustamento’ à

inferioridade genética dos elementos negros, indígenas e o fruto da relação

entre eles: as teorias racialistas sistematizadas na segunda metade do

século XIX advogavam tais concepções43.

40 Sobre esta questão. Ver. FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. O nascimento do hospital. In. Microfísica do Poder. RJ: Graal,8a. Ed., 1989.

41 Sobre ‘o nascimento’ ciência jurídica. Ver. FOUCAULT, Michel. Genealogia do Poder. In. Microfísica do Poder.RJ: Graal,8a. Ed., 1989; FOUCAULT, Michel. A Ordem Do Discurso. SP: Loyola, 21a.Ed., 2011.

42 Sobre as políticas de saúde no Brasil. Ver. Políticas de saúde e instituições médicas. In.MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. A Arte De Curar Nos Tempos Da Colônia: limites e espaços da cura.Recife: Ed. UFPE, 2011,2a.ed. (revista e ampliada)

43 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. Cit.

44

ESCRAVIDÃO E CHAGA SOCIAL44.

Eram poucos os que conseguiam enxergar que a chaga social não era

advinda do ‘gens inferior45’ de quem quer que seja, mas da escravidão que

degradavam os seres humanos ‘metamorfoseados’ em escravos, sofrendo

as consequências de tais condições. Diante desta realidade, alguns estudos

posteriores colocaram em xeque a capacidade de reação dos escravizados,

mas esta é outra questão que não abordaremos aqui. Queremos sim pensar,

em que medida esta condição adoeceu socialmente os escravizados e seus

descendentes, sendo estes vulneráveis à algumas doenças, tais como:

alcoolismo, pressão arterial elevada, diabetes, etc. São ‘as obras deixadas

pela escravidão’46 e que só recentemente o governo brasileiro está propondo

políticas específicas no campo da saúde visando reparar o que as políticas

abolicionistas não fizeram. Diga-se de passagem, para o ‘desespero’ de um

segmento reacionário e conservador da sociedade brasileira. No âmbito da

psicanálise e da psicologia, temos muito que apreender com os estudos de

Frantz Fanon e Neusa Santos Souza47.

As famílias consideradas desajustadas dos africanos e seus descendentes

era um assunto corriqueiro no meio médico e jurídico, sobretudo no início

44 Partimos da premissa que a escravidão constituiu para os escravizados, em relação à sociedade escravista na qual estavam inseridos, uma espécie de morte social, uma vez que eram vistos como portadores de ‘um defeito original’. Sobre esta questão. Ver: As duas concepções de morte social. In. PATTERSON, Orlando. Escravidão e morte social. SP: Edusp., 2008.

45 A própria literatura encarregou-se de criar uma imagem atribuindo à genética o desajustamento moral da população negra e mestiça. Sobre esta questão. Ver: QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo de: Preconceito de Cor e a Mulata na Literatura Brasileira. SP:. Editora Ática. Ensaios 19, 1975; BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. RJ: Mercado Aberto, 1983.

46 Para lembrar o abolicionista Joaquim Nabuco: “Não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir sua obra”.

47 FANON, Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas.Salvador: Edufba, 2008 ; SOUZA, Neuza Santos. Tornar-se Negro. RJ: Graal, 1983.

45

da ‘jovem república’. Tempos em que se buscava a perfectividade dos corpos

através da higienização, época da ‘cruzada’ contra os miasmas sociais, onde

os negros, mestiços e pobres eram ‘as vítimas preferenciais’.

O crime cometido por José Marcelino deve ter servido de argumentos

para juristas e médicos que acreditavam na inferioridade do negro. Crime

bárbaro, animalesco, bestial; talvez tenha sido os adjetivos utilizados na roda

de conversas na São Sebastião do Rio Tijucas, no estado de Santa Catarina,

naquele outubro de 1890. Afinal, que crime cometera José Crioulo? A denúncia

do promotor público, já nosso conhecido, Henrique Carlos Boiteux é revelador:

[...] O promotor público da comarca , em vista do inquérito junto e usando

das atribuições que lhe são conferidas pelo Artigo 74 do Código (do processo)

Criminal, vem perante vós dar denúncia contra José Marcellino da Silva, vulgo

José Crioulo, Luiza Isabel (sua filha) e Pedro Rocha, preto africano, todos

moradores no termo desta vila, pelo fato que passa a expor:

Haverá dois para três anos que o denunciado José que morava nos Morretes

em companhia de Isabel em casa de Manoel Marcellino da Silva, penetrando

à noite em um quarto onde dormia uma de suas filhas por nome Luiza, ali

violentou- a tendo com ela cópula carnal.

Continuando o denunciado suas relações criminosas com Luiza, acha-se esta

grávida de seu próprio pai, o qual se conhecendo o estado da filha, tratou

de acalma-la prometendo-lhe dar as providencias necessárias para que não

aparecesse o vestígio de seu reprovado procedimento e nesse intuito, dirigiu-

se a esta vila onde muniu-se de uma droga que lhe foi fornecida (segundo

declarou) por Pedro Rocha, o qual lhe fora inculcado por Domingos, ex-escravo

de Eleutério Mafra cuja droga entregou a sua dita filha, a qual recomendou

a tomasse em doses determinadas, o que Luiza pôs em prática, resultando

abortar no dia 27 de julho do corrente ano, uma criança morta, de cor preta

e do sexo masculino, cujo feto foi sepultado em ato contínuo pela dita Luiza

em uma touceira de bananeiras próxima à casa onde residem, sendo que em

46

outra touceira foi oculta a garrafa contendo o resto da droga empregada.

Esses crimes teriam passado desapercebidos e impunes, mas a providência

divina permitiu, que no domingo, 21 de setembro, a preta Isabel, mãe de

Luiza e amásia de José, ao voltar para sua casa encontrasse o referido José

em o ato que praticava a cópula carnal com sua própria filha; o que deu lugar

a altercações de palavras as quais passaram às vias de fato e finalmente a

intervenção da autoridade policial que conseguiu descobrir os crimes e os

criminosos.

Presos os acusados José e Luiza, confessaram os crimes cometidos, o que foi

constatado pelos autos de exumação de exame a que se procedeu no feto.

Acresce ainda que o denunciado José tentou também deflorar uma outra sua

filha por nome Lourença, o que não levou a efeito em razão da relutância

desta [..]48.

Primeiramente é conveniente esclarecer aos leitores quem era o réu José49

Marecelino, conhecido como José Crioulo. Considerando a sua alcunha, José

era crioulo, ou seja, nascido no Brasil, ex-escravo, com a idade de cinquenta

anos(mais ou menos), vivia ‘amasiado’50 com Izabel com a qual teve quinze

filhos. E mais, esta convivência foi por aproximadamente trinta anos,

portanto, desde os tempo de escravidão e sob as barbas de seu senhor;

ou seja, Manoel Marcelino da Silva não era um bom cristão nos termos dos

ensinamentos da ‘Santa Madre Igreja’ pois que permitira o ‘amasiamento’

de seus escravos51, contribuindo assim, para a promiscuidade na sociedade,

48 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas:02 -03.

49 No auto de perguntas ele respondeu chamar-se José. O sobrenome era em decorrência de ter sido escravo de Manoel Marcelino da Silva.

50 No referido auto, quando perguntado sobre a razão desavença com sua mulher, Izabel, disse: “[...]que foi por causa de uma brincadeira que teve com ela, que não é sua mulher, mas com a qual vive há trinta e cinco anos, mais ou menos, do qual tem tido quinze filhos entre mortos e vivos, cuja brincadeira costumava ter com a dita Izabel[...]”. In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas:16.

51 O depoimento de Izabel revelou esta convivência, quando perguntada “[...] Qual seu nome, idade, estado, profissão e residência?

47

- segundo os termos de época -, nada aconselhável para uma sociedade

sadia, onde a família(mesma a dos escravos) deveria ser a ‘célula mater’52.

Não sabemos quantos, dos quinze filhos gerados entre Izabel e José estavam

vivos por ocasião do processo, ou seja, em 1890. Sabemos da existência

de duas filhas: Luiza Izabel, de mais ou menos vinte anos de idade, ré (e

vítima) no processo, e Lourença, de dezoito anos (mais ou menos), serviços

de doméstica e que não habitava mais com os pais, há mais ou menos dois

anos; morava com dona Ana Joaquina da Conceição. Com o casal, além dos

filhos, morava também um sobrinho, pelo que se depreende do depoimento

de Lourença53. E mais, o crime aconteceu, segundo o réu, na casa da

senhora Ana Joaquina da Conceição, onde também trabalhava Luiza Isabel

por ocasião do crime. A mesma pernoitava na casa da patroa e dormia na

cozinha da mesma, situação possivelmente muito semelhante às do tempo

da escravidão, ou mesmo da senzala; isso por volta do ano da abolição

formal da escravidão, quando Luiza Izabel tinha mais ou menos dezoito

anos de idade54. Se estas datas subtraídas do processo estiverem corretas,

Respondeu chamar-se Izabel Luiza, com 48 anos de idade, serviços domésticos, residente nos Morretes, solteira, vive há trinta e cinco anos mais ou menos em companhia de José Crioulo e que ambos foram escravos do finado Manoel Marcellino[...] In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas: 27.Sobre os ensinamentos acerca das responsabilidades religiosas dos senhores para com os escravos. Ver. BENCI,Jorge. Economia Cristã Dos Senhores No Governo Dos Escravos (Livro brasileiro de 1700) – Estudo Preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M. M. Mendes. SP: Editorial Grijalbo, 1977.

52 Sobre a polêmica acerca das possibilidades de famílias escravas. Ver. SLENES, Robert W. Na Senzala, Uma Flor : Esperanças E Recordações Na Formação Da Família Escrava – Brasil Sudeste, Século XIX. RJ: Nova Fronteira, 1999.

53 Perguntada do que sabia sobre o crime “[...]Respondeu que sabe ser verdade ter sido seu pai deflorador de sua irmã em razão de ter visto em uma noite que ela respondente dormia na mesma cama em companhia de sua irmã Luiza e de um sobrinho de menor idade, ao acordar-se, o dito seu pai deitado no lugar em que estava seu sobrinho, achando-se este deitado debaixo de uma marquesa ela então envergonhada cobriu a cabeça em cuja ocasião aproveitou-se seu pai de levantar-se e correr, sabendo tão somente agora que ela sua irmã engravidara e que abortara enterrando a criança[...]”In. . A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas:19v.

54 “[...]Perguntado quem foi que deflorara a dita Luiza, sua filha, há quanto tempo, e de quem era o filho o feto desenterrado pela autoridade policial?Respondeu que foi ele próprio quem a deflorara, que isto haveria dois anos, teve lugar em casa de sua senhora

48

Luiza Izabel não era ventre livre, nascera sobre o julgo da escravidão55.

O flagelo da escravidão não possibilitava aos escravizados e seus

descendentes constituírem famílias aos moldes estabelecidos pela

sociedade ocidental nos moldes burgueses, eram, razão pela qual estas

famílias eram consideradas desajustadas, moral e juridicamente. Como já

dissemos anteriormente, as vítimas eram, em muitos casos, como o deste

processo, ‘metamorfoseadas’ em réus. Não queremos com isso isentar

os crimes por eles praticados, apenas destacar que não se tratava de um

problema social tratado como caso de polícia durante toda a primeira

república, e que as ‘vítimas preferenciais’ eram os ex-escravos e seus

descendentes. Mais, nesta sociedade as mulheres negras eram as mais

afetadas pelas mazelas sociais.

Não houve por parte do estado brasileiro nenhuma política ao longo dos

cem anos de República, voltada para sanar as chagas sociais, das quais

os descendentes de escravizados foram os principais vitimizados. Neste

sentido, ainda vivemos problemas colocados pela escravidão que ainda não

foram resolvidos, razões pelas quais os governos dos últimos doze anos

têm construído algumas políticas de saúde voltadas especificamente para

a população negra brasileira; onde inclusive os conhecimentos tradicionais

de curas são valorizados.

Dona Ana Joaquina da Conceição ao tempo que Luiza de noite repousava em sua cama na cozinha da dita casa, sendo que já antes desta ocasião a tinha convidado para o ato desonesto a que a mesma não cedera. E que desta outra vez em que conseguiu seu maligno intento, ela Luiza sempre oferecera alguma resistência. Declarando ainda e por último que o feto desenterrado era seu filho[...]”.In. Idem. Folhas: 17.

55 Estamos nos referindo á lei de n. 2040, de 28 de setembro de 1871, chamada na época como Lei dos Nascituros, ou Lei Rio Branco, mas popularmente conhecida como Lei do Ventre Livre. Sobre esta questão ver. MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão Negra no Brasil.SP: Edusp.,2004,p.237-240.

49

Os processos aqui analisados não se constituem, portanto, um tema

do passado, mas um tema que está relacionado com o tempo presente

de uma sociedade onde mais da metade da população se autodeclara

descendentes de africanos, mas que, no entanto, suas práticas culturais,

incluindo experiências historicamente herdadas dos antepassados, ainda

são perseguidas por alguns segmentos sociais; a exemplo do que aconteceu

ao longo da república brasileira, muitas vezes com o amparo do aparelho

jurídico e repressivo do estado.

50

A SAÚDE DA POPULAÇÃO AFRICANA AO SUL DE MOÇAMBIQUE

NO TEMPO COLONIAL (C.1927-1970)

Jacimara Souza Santana

Padre Daniel da Cruz, ao escrever sobre sua experiência missionária no sul de

Moçambique -“em terras de Gaza”, no início do século XX (1910) - destacou,

dentre outras coisas, que havia considerável rejeição à assistência de saúde

ocidental por parte dos povos africanos deste território. A justificativa

mais comum era que “remédio de branco é bom para branco, mas a gente

é preto, o médico de preto é Yan-souro”, a quem as populações daquela

região costumavam chamar de dotôro e recorrer para solucionar todas as

dificuldades da vida1.

Yan-souro ou Nyamusoro era o nome dado a uma das especialidades dos

médicos-sacerdotes habitantes da região sul de Moçambique dentre outras

como as de Nyanga e Nyagarume. Estes atores sociais trabalham em prol da

cura e do bem-estar das pessoas, possuem amplo conhecimento fitoterápico,

podendo, ainda, realizar advinhas, proteger contra pessoas e forças nocivas

da natureza, bem como intermediar relações entre vivos e mortos. Uma

diferença significativa entre o especialista Nyamusoro e os demais é sua

1 CRUZ, Pe. Daniel. Em Terras de Gaza. Porto: Gazeta das Aldeias, 1910.

52

capacidade mediúnica, que possibilita o transe. Contudo, é preciso ressaltar

que uma mesma pessoa pode agregar diferentes especialidades, sendo

muito comum as pessoas atribuírem a estes atores sociais um termo de

natureza genérica, o de Nyanga (singular) ou Tinyanga(plural)2.

Antes do domínio colonial português, a oferta de assistência de saúde do tipo

ocidental à população africana na região sul de Moçambique era prestada, no

mais das vezes, por missionários, sobretudo da Igreja Presbiteriana (Missão

Suíça). Entretanto, era comum que pacientes africanos abandonassem o

tratamento médico nestas últimas missões em função da procura de serviços

de saúde ministrados por Tinyanga. Isso foi inclusive um dos fatores que

motivou o missionário Henri Alexandre Junod a interessar-se em escrever

sobre estes atores sociais e sua arte médica3.

Para Junod, a superstição superava o talentoso fazer dos Tinyanga. Por isso,

era favorável à ideia de que o governo pusesse fim ao exercício deste grupo

social, substituindo-o por médicos europeus ou ofertando um curso de saúde

para africanos educados na cultura portuguesa, cujo grupo social passou a

ser nominado de assimilado. O missionário suíço e médico George Liengme,

que conviveu e atuou na corte do antigo Império de Gaza entre os anos de

1893-1895, afirmou em seus relatórios que somente era procurado pelos

africanos em caso de insucesso no tratamento com o Nyanga4.

2 Ver maiores detalhes sobre o assunto em SANTANA, Jacimara Souza. Experiências dos Tinyanga,médicos-sacerdotes, ao sul de Moçambique: identidades, culturas e relações de poder (C. 1937-1988). Tese de Doutorado, história, UNICAMP, Campinas, 2014.

3 JUNOD, Henri-A. Usos e Costumes dos Bantu (Tomo 2). Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, 1996, p. 387-503.

4 O regime colonial português instituiu um grupo social formado por pessoas da população africana que eram educados na cultura portuguesa (língua, modos de vida, religião e etc..).Em geral, estas pessoas trabalhavam como funcionários do governo, tendo acesso a uma condição melhor de vida em relação aos demais (apelidados pelos

53

Até as duas primeiras décadas do século XX, a organização da assistência

ocidental de saúde por parte do Estado colonial estava mais voltada para

a garantia do sucesso das campanhas militares de conquista, ocupação e

domínio efetivo da região sul. A partir desta etapa, a referida assistência

tendeu a tornar-se cada vez mais estruturada e seu processo de organização

foi marcado por uma conflitante convivência com a visão dos africanos sobre

saúde e com as maneiras utilizadas pela população para cuidar desta5.

A emergência e a afirmação de um saber médico ocidental, durante o

período colonial, foram acompanhadas de forte rejeição aos saberes

endógenos de cura ministrados por Tinyanga. Médicos e demais autoridades

europeias (missionários, governo, administradores) desqualificaram estes

conhecimentos, enxergando-os como saberes primitivos, supersticiosos

e nocivos à saúde das pessoas, podendo levá-las a óbito. Neste discurso,

a imagem de dotôro atribuída a pessoa do Nyanga por seu público usuário

passou a ser associada à de feiticeiro e charlatão. As pessoas deveriam

cuidar da sua saúde nos hospitais e postos sanitários e as mulheres não

deveriam realizar seus partos em casa. Este discurso também não deixou

de ser reproduzido por um ou outro africano reconhecido como assimilado.

Com o estabelecimento do domínio português, o governo impôs que a oferta

portugueses como “indígenas”). Contudo, o fato de ser assimilado nem sempre significava a recusa das tradições africanas nem que estes seriam tratados como cidadãos portugueses. Maiores discussões sobre o assunto podem ser encontradas nas obras: CABAÇO, José Luís. Moçambique. Identidades, Colonialismo e Libertação. Maputo: Marimbique, 2010; HONWANA, Raúl Bernardo. Memórias. Maputo: Marimbique, 2010; PENVENNE, Jeanne. African Workers and colonial racism: Moçambican strategies and struggles in Lourenço Marques (1877-1962). Portsmouth: Heinemann, 1995.

5 GULUBE, Lucas Langue. Aspectos do Sistema de Organização da rede sanitária colonial na região suldo Save, 1960-1974: problemas e perspectivas. Monografia de Licenciatura, história, Universidade Eduardo Mondlane, 1997.

54

de serviços de saúde à população africana fosse uma atribuição exclusiva

do Estado colonial. Tal decisão deveu-se a alguns fatores, como à extrema

necessidade de garantir mão de obra para a produção colonial, atender às

exigências internacionais acerca das relações de trabalho na colônia, bem

como a premente necessidade de defender Portugal das críticas contra o

regime de exploração em suas colônias, apregoado como escravo no cenário

europeu.

Também não se pode desconsiderar o fator cultural. Autoridades coloniais

e, de modo especial, missionários católicos, reivindicavam que Tinyanga

deixassem de realizar a tarefa de assistência de saúde e/ou religiosa porque

sua ação impedia e/ou dificultava que costumes portugueses – incluindo a

religião cristã – fossem aceitos entre as populações africanas. Além disso, a

desqualificação dos métodos endógenos de cura africana concorria para o

processo de afirmação e legitimidade do saber de saúde lusitana em terras

africanas.

Desde 1923, a assistência em saúde colonial disponibilizada para as populações

africanas incluía o estudo e levantamento estatístico das nosologias e

das condições de morbi-mortalidade prevalentes, em especial, aquelas

contraídas em territórios estrangeiros em decorrência da emigração. A este

trabalho vinculou-se a tarefa de pesquisa etnográfica sobre as formas usuais

de habitação dos povos africanos, seus hábitos alimentares e de higiene,

as modalidades de assistência médica e acompanhamento do número de

óbitos, nascimentos e emigrações. Para a realização deste trabalho, foram

contratados alguns médicos para o cargo de subdelegados e prevista a

55

construção de Postos Sanitários e enfermarias em diferentes distritos, cuja

estrutura e recurso técnico se diferenciavam em termos de qualidade em

relação aos centros destinados ao cuidado da saúde dos europeus6.

Nos relatórios administrativos da colônia de Moçambique não faltavam

queixas sobre a exígua distribuição de postos sanitários e vagas nos hospitais

destinadas aos africanos, às más condições de higiene no atendimento, à

insuficiência de recursos técnicos e humanos. Na maior parte das vezes, os

enfermeiros africanos foram os únicos profissionais de saúde com os quais

as populações podiam contar além dos Tinyanga, especialmente em lugares

mais distantes do interior, o que possibilitava a estes atores agir com mais

autonomia7.

Até o fim dos anos 1920, esta grave situação na assistência foi atribuída ao

déficit financeiro do Estado colonial, muito embora já houvesse arrecadação

de impostos em prol destes serviços. Esta situação não apresentou mudanças

significativas até mesmo após a instauração do governo do Estado Novo que,

em meio a radicais mudanças, permitiu a reserva de uma verba destinada

aos serviços de saúde daquela população e decretou nova reorganização

dos serviços de saúde (decreto nº 34.417), cujo objetivo era o de “amparar,

defender e aumentar a população indígena, melhorando seu estado sanitário

e o nível de vida das populações africanas, bem como promover uma melhor

adaptação dos colonos às regiões tropicais”8.

6 AHM.F.G.G. Cx 383. Assistência Médica aos Indígenas e Processos Práticos de sua Hospitalização. Memórias do 1o Congresso de Medicina Tropical. Loanda, Julho de 1923; AHM.F.R.S. Cx 169. Relatório do delegado de Saúde, 1918.

7 AHM.FRS. Cx 169. Relatório sobre Assistência Indígena de 1917.

8 AHM.F.G.G. Cx 383. Assistência Médica aos Indígenas e Processos Práticos de sua Hospitalização, op.cit.;

56

Neste texto, analiso como o grupo de Tinyanga reagiu à imposição dos serviços

de saúde ocidentais em detrimento de sua assistência e quais influências

podem ter ocorrido entre estes distintos saberes. Também busco analisar

como a política de assistência em saúde destinada à população africana se

configurou em termos de acesso, disponibilidade de serviços e cuidados

prioritários a partir das reformas introduzidas pelo governo do Estado Novo.

UM OLHAR COLONIAL DA SAÚDE DAS POPULAÇÕES AFRICANAS

Na fase do Estado Novo, o modelo de assistência colonial em saúde

direcionado às populações africanas manteve a realização de estudos sobre

o seu perfil nosológico, o incentivo a hospitalização para tratamento e a

aplicação de medidas preventivas, reconhecidas na época como higiênicas e

profiláticas, cuja prioridade consistiu no controle da vacinação e na eventual

destruição de focos insalubres. Um modelo de assistência bem próximo

daquele desenvolvido na Inglaterra do século XIX9.

Nos relatórios, as doenças mais presentes entre africanos foram a tuberculose,

a lepra, a sífilis (introduzida em Moçambique a partir da fixação europeia

no interior) e afecções cutâneas, como micoses. Também possuíam grande

incidência de doenças de ordem parasitária, sobretudo a ancilostomíase e

a esquistossomose (também conhecida pelo termo bilharziose), além do

AHM.F.R.S. Cx 35, Relatório de Inspecção. Assistência de Saúde Indígena, 1928;AHM. F.R.S. Cx 169. Assistência Médica aos Indígenas. Relatório de 1918; AHM.F.R.S. Cx 20, Distrito de Gaza,1922; GULUBE, 1997; AHU.M.U.DGSA. Relatórios das Repartições Províncias dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique. Boletim Sanitário do ano de 1932; SOARES, Tertuliano. Resultados da Política de Saúde Pública em Moçambique. Moçambique. Curso de extensão Universitária. (1964-1965). Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina.

9 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

57

paludismo (malária), da varíola e do alcoolismo10.

A tuberculose e as doenças venéreas como a sífilis foram detectadas de

modo mais frequente entre os trabalhadores das minas em África do Sul,

sendo consideradas como um dos fatores de maior morbimortalidade

desta categoria. Em 1923, o Chefe dos Serviços de Saúde constatou que,

nos hospitais de África do Sul, a tuberculose alcançou a porcentagem de

16,3% de mortalidade geral entre indígenas emigrados e, nos hospitais da

Província, atingiu aproximadamente 27,3%. Este índice ainda se mostrou

elevado nas décadas seguintes. Em 1964, ao menos na cidade de Lourenço

Marques, segundo Rita-Ferreira, os exames de autopsia realizados em 2.044

africanos apontaram a tuberculose como a maior causa de óbito do total de

examinados (429 mortes, o que correspondia a 20,8%11).

Até 1931, autoridades médicas acusaram em seus relatórios como causa

etiológica da tuberculose o alcoolismo e fatores climáticos, ao invés do tipo

de trabalho executado nas minas e suas más condições. Com base nessa

justificativa, a campanha contra o consumo de bebidas (em especial bebidas

africanas) foi reforçada, alcançando importância significativa na política de

saúde criada pelo Estado colonial para indivíduos africanos (assim como o

combate à prostituição como forma de prevenir a sífilis12).

10 Ibid.; AHM.F.G.G.Cx 383. Assistência Médica aos Indígenas e Processos Práticos de sua Hospitalização. Op. cit., 1923; AHU.M.U.DGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique . Boletins Sanitários, 1934-1937.

11 AHU.M.U.DGSA. Relatórios das Repartições Províncias dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique. Relatório do Chefe dos Serviços de Saúde, 1931; RITA-FERREIRA, Antônio. Os Africanos de Lourenço Marques. Memória do Instituto de Investigação Científica de Moçambique. no 9, Série C, 1967-1968, p. 422-441.

12 AHU.M.U.DGSA. Relatórios das Repartições Províncias dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique. Relatório do Chefe dos Serviços de Saúde, 1931; AHU.MU.ISAU. Cota A2.49001/3500210, Circunscrição dos Muchopes, 1941-1957.

58

Outra medida de controle foi a exigência da realização de exame médico

antes da contratação para o trabalho nas minas e ao final do período do

contrato. Aurélio Langa, ao rememorar sua trajetória de vida, afirmou que

em Manjacaze (Gaza) por volta do início dos anos 1950, a maior parte dos

exames médicos destinados ao recrutamento de homens para o trabalho nas

minas do Rand era realizado pela empresa W.N.L.A., e que tal procedimento

restringia-se à verificação do peso e do corpo de cada candidato13.

Trabalhadores empregados na cidade de Lourenço Marques também eram

obrigados a realizar tais exames admissionais. Segundo Aurélio Langa, os

candidatos tinham o dever de se dirigir à Junta Médica Santa Filomena para tirar

um atestado médico, serviço que era descontado do salário do trabalhador

após sua contratação, ainda que se tratasse de empresa pública. Nas zonas

rurais, os serviços de saúde prestados aos trabalhadores de empresas

privadas por funcionários do Estado também eram comercializados. Isto

ajuda a explicar o fato do predomínio de dados masculinos nas estatísticas

dos serviços de saúde coloniais. Realizar tais exames também rendia lucro

aos cofres do Estado colonial e para alguns médicos em particular14.

Pessoas contaminadas por tuberculose, quando identificadas, eram

submetidas a tratamento nos hospitais. Ao menos na cidade de Beira, entre

os anos de 1955-1957, tais pacientes eram medicados com ácido nicotínico

e estreptomicina. O uso obrigatório da vacina BCG somente entrou em vigor

a partir de 1968. A tuberculose era uma das doenças que muitas pessoas

13 LANGA, Aurélio Valente. Memórias de um Ex-combatente da Causa. O passado que levou o verso da minha vida. Maputo: CIEDIMA, SARL, 2011, p. 59-60; AHU.M.U.DGSA. Relatório do Chefe dos Serviços de Saúde, 1931, op.cit.

14 LANGA, 2011.

59

africanas preferiam tratar na palhota do Nyanga, ao invés de se dirigir aos

hospitais. Retomaremos a este assunto mais adiante15.

As campanhas de erradicação do paludismo (malária) também atraíram

singular atenção do governo colonial. Neste sentido, sua política sanitária

incluiu o trabalho das equipes de saúde que eram conhecidas pelo nome

de Brigadas Sanitárias. Esta equipe de saúde tinha como principal tarefa

identificar lugares, alimentação e práticas consideradas insalubres para

garantir o cumprimento de medidas reconhecidas de higiene, condição

considerada necessária para a manutenção do estado de saúde pública.

Nos relatórios dos Boletins Sanitários publicados entre os anos de 1933-1937,

funcionários do governo registraram reclamações contra a falta de limpeza em

lugares habitados por populações africanas, incluindo suas casas (palhotas)

e o terreno em seu entorno, havendo quem ainda reclamasse da falta de

higiene nos mercados onde africanos comercializavam seus produtos16.

É notável, nos relatórios, a flagrante tendência das autoridades médicas

em classificarem as populações africanas residentes em Lourenço Marques

como anti-higiênicas. Apesar do trabalho de vigilância sanitária exercida

por funcionários do Estado colonial e das orientações de higiene dada às

populações, as condições marcantes de insalubridade predominavam

naquele meio. A situação descrita sobre os espaços urbanos de outros

15 AHU.MU.DGSA. Delegacias de Saúde da Colônia de Moçambique, Cx 148. Relatório da Delegacia de Saúde de Inharrime. Delegado Saul Campos Mário Jorge, 1949; AHU.MU.DGSA.Delegacias de Saúde da Colônia de Moçambique, Cx 147. Relatório da Delegacia de Saúde de Manica –Sofala. Delegado Carlos Fernando de Pimentel, 1958; RITA-FERREIRA, 1967-1968, p. 442-441.

16 AHU.M.U.DGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique . Boletim Sanitário do ano de 1934, Lourenço Marques.

60

distritos não parece ter sido diferente. Pensar que esta associação não

estivesse isenta da visão preconceituosa em relação a estes povos e seus

costumes não constitui nenhum exagero.

Na opinião do médico João Baptista Bizarro de Assunção, africanos não se

importavam com a higiene dos espaços onde moravam ou trabalhavam.

Pensamento similar teve o administrador Antônio Rita-Ferreira, ao sugerir

que havia uma falta de aceite das recomendações básicas de higiene pela

maioria dos indivíduos africanos e isto refletia o seu estado de ignorância

a respeito da visão científica de como determinadas doenças eram

transmitidas e a sobrevivência de suas interpretações culturais das causas

das doenças mesmo entre aqueles que habitavam em áreas urbanas, o que

os fazia recorrer aos cuidados de seus Tinyanga e Bangoma para tratarem

da saúde, sobretudo, em casos de doenças graves e/ou de tratamento

prolongado17.

Também se pode pensar, como o supracitado médico, que esta situação tivesse

como agravante a insuficiência de funcionários para o cumprimento da tarefa

de vigilância na recolha de lixo, dejetos, aterro de charcos e etc. Neste caso, é

possível que a área mais habitada por colonos tivesse prioridade. Entretanto,

a teimosa condição insalubre entre as famílias africanas moradoras nos

espaços urbanos ainda pode indicar outras evidências:

a) a tentativa das autoridades coloniais de impor controle à presença africana

nas cidades;

17 AHU.MU.DGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique . Boletim Sanitário do ano de 1934, Lourenço Marques; RITA-FERREIRA, Antônio. 1967-1968, p. 442- 441.

61

b) a condição social e de saúde das populações africanas eram mais

vulneráveis em relação a outros indivíduos (portugueses, indianos, alguns

africanos assimilados, etc.);

c) indivíduos africanos resistiam a obedecer as normas de higiene impostas

pelo governo colonial.

A constante relação entre pessoas africanas e anti-higienismo, ressaltada nos

relatos da Brigada Sanitária, parecia mesmo colaborar com a tentativa das

autoridades administrativas de impor controle à presença dos trabalhadores

africanos e suas famílias nos espaços urbanos. Nas cidades, a população era

majoritariamente europeia. A presença africana restringia-se às funções de

prestação de serviços, havendo uma ou outra exceção no caso de africanos

assimilados de elevada condição social e da população indiana. Para o

subdelegado João Baptista Bizarro de Assunção, os subúrbios não faziam

parte da cidade e eram justamente estes lugares que, de um modo geral,

eram habitados por africanos, muitos oriundos das zonas rurais.

A experiência de convívio de Aurélio Langa naquela cidade, a partir de 1959,

lhe fez ver o quanto a vida do africano era cuidadosamente discriminada

em termos de espaços, direitos e acesso em relação aos colonos brancos

e africanos assimilados. Esta separação era garantida por força policial e

imposição de normas sociais, como, por exemplo, a exigência de distintas

formas de habitação e o consumo de alimentos. Exceção era feita aos

africanos reconhecidos como cidadãos portugueses devido ao processo de

assimilação cultural. Somente a este grupo social de africanos era permitida

a compra de determinados alimentos europeus nas cidades18.

18 LANGA, 2011, p. 67-92.

62

Esta iniciativa do Estado colonial de agregar indivíduos africanos em áreas

específicas – chamadas de bairros, subúrbios ou aldeamentos – e os relocar,

constitui reveladora expressão da tentativa de controle da presença africana

nos espaços citadinos.

Nas zonas rurais, espaços onde viviam a maior parte da população africana que

compunha a mão-de-obra das cidades e das minas, não houve necessidade

de criar espaços específicos. Permanecia entre as autoridades do governo,

contudo, a preocupação com a ameaça de epidemias que pudesse emergir

naquele meio. Chefes africanos eram orientados a incentivar os habitantes

de sua povoação a procurar os serviços médicos ofertados pelo governo

colonial em detrimento do tratamento com o Nyanga.

Os inspetores, alguns deles médicos e delegados de saúde, constantemente

chamavam atenção das autoridades africanas neste sentido. O Inspetor

Francisco de Melo e Costa, em sua visita de inspeção ao distrito de Gaza

no ano de 1941, destacou a seguinte orientação quanto à assistência de

saúde:

Mostrar aos indígenas que o Governo manda prestar gratuitamente

assistência médica, não devendo ter relutância em recorrerem aos médicos

e enfermeiros do Estado, abandonando os curandeiros e feiticeiros, nunca

esquecendo que o médico cura e nada recebe, e o curandeiro não cura, mas

nunca deixa de receber; as mulheres devem recomendar seguir os conselhos

das parteiras oficiais, recorrendo aos seus conhecimentos19.

Administradores, missionários e médicos acreditavam que a otimização

19 AHM. FISANI. Cx 21, Gaza, 1941.

63

dos serviços de saúde, adicionada à difusão da religião cristã e o contato

com a cultura “civilizada” dos portugueses, poderia pôr fim à existência

dos Tinyanga. A ideia do desenvolvimento dos serviços de saúde ocidental

como modo gradual e persuasivo de reprimir o exercício dos Tinyanga é

destacada por alguns administradores em resposta ao questionário de

1947, que indagava acerca da atuação e presença dos “curandeiros” nos

distritos20.

O médico Antônio Policarpo de Souza Santos, em sua visita de inspeção ao

distrito de Gaza, no ano de 1957, orientou as autoridades africanas, entre

outras coisas, a incentivar as populações habitantes de suas povoações a:

[...] Construir casas mais seguras e mais confortáveis, introduzindo-lhe

cadeiras e mesas, habituando os indígenas a comer nestas com colheres e

garfos, incutindo-lhes hábitos de higiene [...] Ensinar os indígenas a vestirem-

se decentemente, mandar os filhos à escola devidamente lavados, limpos21 [...]

O discurso higienista colonial em defesa da saúde pública, mesmo em zonas

rurais, não somente procurou normalizar o corpo dos indivíduos africanos,

mas também seu comportamento social. Costumes como comer com as

mãos, morar em palhotas de caniço e capim ou sentar no chão deveriam ser

abandonados por indicar grau de atraso do estado pessoal de civilização e

condições desfavoráveis à saúde pessoal e pública.

20 AHM. F. Governo do Distrito de Beira. Cx 621. 1961-1965; AHM.FDSNI, Cx 148, Lourenço Marques. 1947; AHM.FDSNI, Cx 148, Circunscrição de Buzi/Manica-Sofala, 1947.

21 AHU.MU.ISAU. Cota A2.49.001/35.00210. Relatório de Inspecção à Extinta Circunscrição dos Muchopes, 1941-1957.

64

Às mulheres era exigido realizar partos nas maternidades do Estado colonial,

suprimindo-se o trabalho autônomo de algumas mulheres africanas que já

faziam esse serviço, algumas delas também Nyanga. Muitas dessas parteiras

foram tornadas funcionárias auxiliares dos serviços de saúde colonial,

passando a assumir a tarefa de incentivar sua antiga clientela e vizinhas

a frequentar os hospitais, assim como auxiliar os médicos na execução do

parto.

Na prática, este controle mostrou-se mais como um desejo do que uma

realidade. No relatório da delegacia de saúde de Inharrime (Inhambane) do

ano de 1949, o delegado de saúde, Saul Campos Mário Jorge, registrou que

as maternidades do Estado naquele local não realizaram nenhum parto,

porque as gestantes manifestavam relutância em parir em hospitais. Igual

reclamação apresentou o delegado de saúde de Bárue, na vizinha região

central do distrito de Manica e Sofala. Segundo o Dr. Mário José Pires, as

mulheres grávidas se negavam a hospitalizarem-se para dar a luz e as

poucas que aí chegavam eram por força das rusgas, transportadas à força.

Além disso, somavam-se dificuldades na prestação da assistência àquelas

que moravam a mais de 200 km da sede. Parece, entretanto, que esta

situação variava de local para local. Provavelmente, o trabalho das parteiras

africanas exercia muita influência entre as mulheres22.

Em1942, o número total de maternidades em toda colônia era de 42, subindo

22 AHU.DGSA.M.U. Delegacia dos Serviços de Saúde de Moçambique, Cx 147. Relatório da Delegacia de Saúde de Inharrime por Saul Campos Mário Jorge; Relatório da Delegacia de Saúde de Manica e Sofala, por Mário José Pires, 1949; AHU.DGSA.M.U. Delegacia dos Serviços de Saúde de Moçambique, Cx 147. Relatório da Delegacia de Saúde de Zavala, por Francisco Castelo Rodrigues, 1949.

65

em 1961 para 17723.

Com o avanço da exploração do domínio colonial na fase do Estado Novo, as

condições de vida e saúde da maioria africana se agravaram gradativamente,

sobretudo nas zonas rurais, com grande repercussão em sua dieta alimentar,

habitação, tempo de vida, qualidade da água para consumo, etc.. 24

A prioridade do plantio de produtos de exportação (trigo, algodão e arroz),

imposta pelo governo colonial e empresas concessionárias em algumas

áreas, se dava em prejuízo do plantio de alimentos de subsistência, por vezes

não somente restrito, mas proibido, sendo cada vez mais recorrente a prática

da compra de alimentos em cantinas a preços desproporcionais ao ganho da

venda do produto do trabalho agrícola25.

Se nas zonas rurais a alimentação tornava-se escassa para as famílias

africanas, nas cidades esta situação não era diferente. Segundo informações

de Rita-Ferreira, em Lourenço Marques, até a primeira metade dos anos

1960, muitos produtos que faziam parte da dieta africana já não eram

consumidos por se encontrarem em falta ou por sua produção estar em

baixa. Predominava o uso de raízes e milho, bem como produtos de origem

europeia, alguns dos quais somente colonos e alguns africanos assimilados

tinham o direito de consumir26.

23 SOARES, 1964-1965.

24 AHM.FGG. Cx 383. Assistência Médica aos Indígenas e Processos Práticos de sua Hospitalização. Op.cit., 1923.

25 AHU.MU.ISAU. Cota A2.49001/3500210, Circunscrição dos Muchopes, 1941-1957.

26 AHM. RITA-FERREIRA, 1967-1968, p. 442-441.

66

Outro agravante das condições de vida e de saúde das populações africanas

naquele distrito era a constante concessão de terrenos em favor dos europeus

que, por vezes, obrigavam, violentamente, famílias africanas a se deslocarem

para outras áreas (em condições menos favoráveis do que aquelas em que

viviam antes) ou a passarem à condição de desterrados. Famílias africanas

sem terras também se tornaram reféns das campanhas de concessão de

terrenos do governo. Muitas destas foram removidas para o Vale do Limpopo

a partir de 1951, quando houve a campanha de colonização desta área27.

As campanhas de vacina antivaríola constituíram-se noutra medida

considerada de higiene pública de grande destaque na política de saúde

colonial destinada à população africana. Nos dados estatísticos de vacinação,

o número de indivíduos africanos mostrou-se bastante elevado em relação

ao de europeus, mixtos28 e demais grupos sociais (como os asiáticos). Na

campanha do 2º trimestre de 1937, por exemplo, de um total de 78.363

vacinados 77.819 eram de africanos. O volume crescente de africanos entre

os vacinados parece sinalizar uma preferência das autoridades coloniais

por este público para o desenvolvimento das campanhas de medicalização

antivaríola. Este mesmo perfil aparece nas estatísticas do atendimento

hospitalar29.

No Boletim Sanitário de 1937, nota-se, no registro de entrada dos doentes no

hospital da Vila de João Belo (Conselho de Gaza), o seguinte levantamento:

27 AHU.MU.ISAU. Cota A2.050.02/01400079, Conselho de Gaza, 1954; COVANE, Luis Antônio. O Trabalho Migratório e a Agricultura no Sul de Moçambique (1920-1992). Maputo: Promédia, 2001, p. 217-223.

28 Filhos de pais portugueses com africanos ou indianos (Arábia, Índia, Turquia etc..) nascidos em Moçambique.

29 AHU.MU.GGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde de Moçambique. Cx 4, 1934-1937.

67

Tabela 1 – Entrada de doentes no hospital do Conselho de Gaza (1937)

Classificação Homens Mulheres TotalAfricanos 634 298 934Europeus 22 9 31Mistos 24 9 33Indo-português 3 0 3Indo-britânicos 9 2 11

AHU.MU.DGSA. Relatório das Repartições.Provinciaisde Saúde, Cx 4, 1909-1939. Boletim Sanitário, 1937.

Conforme indica a tabela do Boletim Sanitário daquele ano, em Gaza, africanos

eram os que mais frequentavam os hospitais, predominando os do sexo

masculino. Desde 1931, o Chefe dos Serviços de Saúde da Colônia já chamava

atenção para este fato, atribuindo à frequência de africanos nos hospitais

em todo o Moçambique o índice de 70 a 80%. Nos relatórios de saúde dos

anos 1932-1934, encontra-se o seguinte levantamento geral para a colônia:

Tabela 2 – Total de entrada e óbitos nos hospitais da Colônia (1931-1932)

Ano Africanos Europeus Entrada Óbito Entrada Óbito

1932 9.757 624 2.633 971934 10.145 674 2.159 105Total 19.902 1.298 4.792 202

Fonte AHU. MU.DGSA.Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, 1932-1934

Se compararmos os dados acima com as informações lançadas no ano de 1937,

68

veremos que, de fato, as estatísticas tenderam a reafirmar aquela ideia de que

o número de doentes africanos tratados em hospitais coloniais era sempre

mais elevado do que o número de europeus. Conforme registro constante do

relatório dos serviços de saúde do referido ano para a colônia de Moçambique:

Tabela 3 – Total de frequência nos hospitais da Colônia por gênero e grupo

social (1937)

1937 Homens MulheresEuropeus 1.122 649Africanos 8.511 5.857Mistos 392 569

Fonte AHU. MU. DGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, 1932-1939

A predominância de africanos como usuários dos serviços de saúde ocidental

constatada na estatística do Conselho de Gaza também se repete nos

levantamentos da colônia como um todo. Apesar dos dados, ao longo do tempo,

enfatizarem essa discrepância numérica de africanos, o que parece insinuar a

ideia de que africanos recorriam mais aos hospitais do que os próprios europeus.

Se ainda fizermos uma comparação aproximada daqueles dados com o total

populacional dos primeiros, veremos que esta procura se mostrou bastante

reduzida. Numa perspectiva local, tomando como referência o recenseamento

de africanos indígenas no Conselho de Gaza para os anos de 1930 e 1940, nota-se

que a entrada dos 900 africanos nos hospitais se configuraria aproximadamente

em torno de 1,5 % e 1,2 % do total populacional (no recenseamento de 1930, a

população neste local era de 58.576 subindo para 74.036 no ano de 1940).

No caso do atendimento em postos sanitários do Estado colonial, bem como

69

das missões estrangeiras e portuguesas, a frequência anual de africanos

sobe de modo considerável no ano de 1937. O relatório do Boletim Sanitário

deste ano mostrou que, em média, eram atendidos anualmente 17.618

africanos nestes serviços, sendo-lhes ministrados 128.662 procedimentos

(curativos, injeções, consultas, etc.). Estes valores, quando comparado ao

total populacional daquele Conselho, no ano de 1930 corresponderia a 30%,

e, em 1940, a 23.7%. Contudo, ao relacionar estes dados do Boletim Sanitário

com as informações fornecidas nos relatórios de inspetores, veremos uma

baixa significativa na porcentagem de frequência dos africanos nos centros

de saúde locais. O inspetor Policarpo dos Santos, por exemplo, informou

que, em 1956, o movimento no posto sanitário de Chidenguele (Circunscrição

dos Muchopes), foi de 6.175 africanos. A população total daquele ano, sem

subtrair o número dos emigrados para o Rand, foi de 107.900. Ou seja,

apenas 0,057% frequentaram este posto de saúde naquele ano30.

Em relação ao alto índice do ano de 1937, é preciso considerar aqui uma

diferença: a de que muitas missões religiosas e alguns postos sanitários

trabalhavam com uma assistência móvel, o que facilitava o deslocamento

dos funcionários de saúde às povoações africanas.

Provavelmente, nas ocasiões de visitas de médicos ou enfermeiros europeus,

os tratamentos eram ministrados a grupos inteiros ao mesmo tempo. Outro

detalhe é que o trabalho cotidiano nos postos sanitários era feito pelos

30 AHU.MU.ISAU. Cota A2.49001/3500210, Circunscrição dos Muchopes, 1941-1957. Em 1937, prestavam assistência de saúde em Gaza as seguintes missões católicas e estrangeiras: Missão de Nossa Senhora de Lourdes de Chongoene, Missão de Chicumbane, Missão de Maciene, Missão de Maússe, Missão Tavane, Missão Nossa Senhora Benedito de Muchopes, além dos Postos Sanitários de Guijá, de Chongoene, de Alto Changane (sendo fechado neste ano o de Machacualane por falta de funcionários.

70

enfermeiros africanos, que costumavam manter uma relação diferenciada

com as populações em comparação àquela tecida por médicos e enfermeiros

europeus. Também não se deve esquecer que, naquela ocasião, o governo

português já tentava defender-se das acusações contra seu regime de exploração

colonial, apregoado como escravo. O registro de elevados índices de assistência

não teria sido mais uma maquiagem de dados para o governo colonial mostrar-

se cumpridor de suas obrigações perante o cenário internacional?

Já em relação à baixa significativa verificada na Circunscrição dos Muchopes,

é preciso atentar para o fato de que o fluxo de doentes nos principais centros

urbanos era totalmente desigual em relação aos localizados no interior.

O Conselho de Gaza era uma das sedes principais do distrito de Gaza.

Ademais, existe dado de que o governo manifestou dificuldades em manter

o funcionamento das instalações sanitárias com o passar do tempo31.

O número de missões religiosas (sobretudo católicas) na assistência de

saúde às populações africanas tendeu a ampliar-se na fase do governo

salazarista. Por influência ou não de pressões internacionais, o governo

colonial reconhecia ser exígua a distribuição territorial de postos sanitários.

Todavia, parece que o fato de disponibilizar maiores possibilidades de

serviços através das missões não foi suficiente para resolver o problema da

assistência de saúde às populações africanas, apesar do número elevado de

pacientes africanos e procedimentos apresentados nas estatísticas sanitárias

coloniais. Exceção se fazia ao atendimento feito por missões estrangeiras32.

31 GULUBE, 1997.

32 O período no qual foi lançado o decreto 34.417 para reorganização da saúde em atenção às populações africanas coincide com a fase em que o governo resolve elevar ao máximo a produção em suas colônias. Nesta ocasião, trabalhadores de ambos os sexos foram sujeitos a uma carga excessiva de trabalho, péssima alimentação

71

A péssima condição das instalações de saúde que atendiam os africanos

tornou-se uma reclamação constante nos relatórios de inspetores e demais

autoridades coloniais. As queixas se referiam desde a inadequação do

espaço físico à falta de transporte e, insuficiente distribuição dos postos

sanitários, medicamentos e demais instrumentos de trabalho, bem como

de funcionários. Os funcionários europeus, com o avanço do movimento

nacionalista no continente africano, tenderam a evadir-se para Portugal,

quando não se negavam a trabalhar no “mato”, alegando sua boa formação.

O inspetor Antônio Policarpo dos Santos listou uma série destas dificuldades

em seu relatório dos anos 1942-1957, inclusive a queixa que recebeu de um

dos Chefes africanos da Circunscrição do Limpopo, segundo o qual havia

morrido, em 1955, 50 pessoas de sua povoação sem a menor assistência33.

Entre os anos de1961-1974, Gaza era o distrito que menos recebia valores

do orçamento governamental reservado para a saúde. Nas zonas rurais, a

distância (até mesmo dos postos sanitários), dificultava o acesso das famílias

africanas aos serviços de saúde colonial. Os habitantes do interior podiam

gastar até dois dias para chegar à sede da delegacia de saúde, fazendo com

que pessoas gravemente enfermas morressem sem receber assistência.

Ademais – acrescentou o autor – em geral, centros de saúde melhor

equipados se localizavam mais nos centros urbanos e principais Vilas onde

e más condições de vida, agravando sensivelmente o quadro de saúde das populações africanas em toda colônia. É também neste período que Portugal tenta defender-se das acusações contra seu regime de exploração colonial, apregoado como escravo.

33 AHM. S.E.a.II P.9 no 114 (a,b). Relatório Io vol. 1966; AHU.MU.ISAU. Cota A2.49001/3500210, Circunscrição dos Muchopes, 1941-1957. AHM.ISANI.Relatórios e Documentos referente a Inspecção da Circunscrição do Limpopo. Postos de Massagena, Saúte e Mavúe. Cx 4 Por Antônio Policarpo de Souza Santos, Guijá, 1957; AHM.ISANI. Relatório de Inspecção do Concelho de Bilene. Cx 21, por Leovigildo Lisboa Santos. Bilene, 1961; AHM. S.E.a.II P.9 no 114 (a,b). Relatório Io vol. 1966.

72

residia a maioria europeia.34

O alto índice nas estatísticas sanitárias e demais registros, até então, mostram

que uma parte da população africana utilizava com certa frequência serviços

de saúde coloniais, sobretudo os homens. Neles, povos africanos aparecem

como os mais anti-higiênicos, doentes e/ou favoráveis ao desenvolvimento de

endemias, também os que mais necessitavam de vacinas, de investigações, das

ações da vigilância sanitária e do atendimento nos hospitais ou postos sanitários.

No entanto, esta maior relevância numérica para populações africanas não

evitava a reincidência de certas doenças entre elas, nem a morte de seus

membros ou que estes adoecessem menos. No levantamento da colônia,

por razões de adoecimento e morte entre africanos e europeus dos mesmos

relatórios, pode-se ainda encontrar:

Tabela 4 – Causas de adoecimento e morte entre europeus e africanos

Gripe Desinteria Tuberculose Menigite Outras

Ano DOENTES (D) MORTOS (M)

D M D M D M D M D M

1932-1934

AFRICANOS 458 57 474 70 320 150 41 28 4.039 112

EUROPEUS 101 0 86 0 109 22 02 0 209 3TOTAL 559 57 564 70 438 172 43 28 4.248 115

Fonte AHU.MU.DGSA.Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, 1932-1934

Nos dados dessa amostra, vemos que, por causas similares, o número de

34 GULUBE, 1997.

73

mortes por adoecimento se mostrou crescente entre os africanos, o que

não se faz notar em relação aos europeus. Entre 1932-1934, nota-se que

europeus não morriam por gripe, meningite ou disenteria. Contudo, entre

os africanos houve um aumento desproporcional dos óbitos, especialmente

aqueles causados por tuberculose e por aquilo que aqui se classifica por

“outras doenças”. A diferença é também significativa em relação à causa de

adoecimento. Conforme dados da tabela acima, enquanto o total de doentes

entre os africanos por “outras doenças” chegava a 4.039, entre os europeus, o

total era de apenas 209. Muito embora se note certa diminuição na incidência

de doença e morte por meningite entre os africanos, esta queda, quando

comparada aos outros dados, perde sua relevância.

As estatísticas e relatórios mostraram um direcionamento massivo e quase que

exclusivo de investigações e procedimentos médicos para o público africano, o

que parece projetar, neste grupo social, a imagem de grande ameaça à saúde

pública na colônia, senão a única. Afinal, o que teria justificado tal predominância

em diferentes procedimentos de saúde ao longo de um tempo?

Para Aurélio Langa, as formas de discriminação imposta aos indígenas

naquela cidade não se justificavam pelo fato de os africanos serem mais sujos,

ignorantes ou desorganizados como os relatórios parecem mostrá-los, e sim

como estratégia das autoridades coloniais para impor seu domínio. Ao longo

do período colonial, o governo tentou controlar a migração africana das zonas

rurais para a cidade Lourenço Marques e outros centros urbanos da colônia,

valendo-se de diferentes leis que exigiam, daqueles que se deslocassem,

o porte de passes, bilhetes de identidade, cadernetas de trabalho onde

74

constasse a devida autorização, o motivo e o prazo de seu trânsito35.

Outro fator a considerar é o valor econômico que certos procedimentos

de saúde, incluindo a medicalização, podiam render aos cofres do Estado

colonial, como por exemplo, a doses de vacinas antivaríola a empresas

particulares36.

Também não se pode desconsiderar que a realização massiva de

procedimentos em pacientes africanos nos hospitais, enfermarias ou

povoações, não deixava de ser uma oportunidade de a classe médica colonial

se especializar na cura de doenças, nominadas de tropicais.

Pode-se imaginar a infinidade de saberes que médicos dispersos pelo

continente africano podiam adquirir e/ou transferir de África para as

academias europeias e Congressos de Medicina. Provavelmente, médicos

granjeavam fama ao circularem os resultados de suas investigações sobre o

que ficou conhecido por “medicina tropical”, contribuindo, desta forma, para a

afirmação da área médica portuguesa no cenário nacional ou internacional37.

O interesse de investigação dos médicos portugueses em terras africanas

não se limitou ao estudo das doenças típicas, mas também das maneiras

endógenas de cura, em especial, aquelas relacionadas com a fitoterapia.

Embora pareça tratar-se de uma iniciativa individual e esparsa ao longo do

35 LANGA, 2011; RITA-FERREIRA, 1967-1968, p. 153-163.

36 AHU.MU.DGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Província de Moçambique, Cx 04, 1909-1939.

37 BARRADAS, Antônio. Aspectos Científicos do Congresso Médico de Lourenço Marques. Moçambique. Documentário Trimestral, no 16, out/nov/dez. Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1938.

75

tempo, médicos portugueses se interessaram em indagar sobre as doenças

que tratavam (e de que forma), produzindo inventários de uma série de

ervas com suas funções curadoras, apesar de, em seus registros, não

deixarem de desqualificar a figura do Nyanga e seus saberes de curador ou

de dotôro. Conforme argumentou o médico Júlio Afonso da Silva Tavares da

Circunscrição de Magude-Gaza, em relatório do ano de 190938:

[..] A par de muitos conhecimentos errôneos, filhos de sua superstição e

ignorância, surpreendem-nos eles de vez em quando com algumas noções

exactas sobre a contagiosidade de algumas afecções (varíola, tuberculose,

lepra, doenças venéreas), do mesmo modo que nos maravilham dados o

desacerto e o desconhecimento absoluto das mais elementares noções

etiológicas e patogênicas, com a idoneidade de certas medidas terapêuticas

de que fazem uso (balneação em doenças febris, revulsivos nas dores

reumatoides e etc) [...] É opinião minha que á parte meia dúzia de drogas são

dignas de ser estudadas as outras não tem valor algum [...] Lamento não ter

aqui os meios necessários para poder ensaiar o valor terapêutico de algumas

drogas, o que só pode ser feito em um hospital movimentado [...]39

Parece que o contato com Tinyanga fez o médico Silva Tavares admitir que

alguma coisa aqueles “outros” sabiam, mas ainda assim tratava-se de um

conhecimento a ser testado, provavelmente com os próprios africanos. Não

teria sido esta a situação nos hospitais posteriormente?

Também o médico Antônio Maria do Soveral, no mesmo ano e distrito, na

cidade de Xai Xai, descreveu uma listagem considerável de ervas e o modo

como eram utilizadas. Essas informações foram fornecidas por Tinyanga.

Inclusive, o Nyanga Caiâne, reconhecido na época dentre a população do lugar

38 TAVARES, Júlio Afonso da Silva. Relatório dos Serviços de Saúde da Circunscrição de Magude, 1909. Documento Trimestral, no 53. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1948.

39 TAVARES,1948.

76

como um dos mais afamados, foi quem chamou a atenção de Soveral para

a dimensão religiosa que o uso das ervas e suas raízes podiam ter. Ele, por

exemplo, utilizava algumas no ritual pós-morte com finalidade de proteção

dos membros da família da pessoa morta, informação que o referido médico

julgou sem importância, não hesitando em subestimá-la. Tal atitude não

deixou de atuar como uma provocação para o Nyanga Caiâne, não hesitando

ele, em manifestar seu pensamento acerca dos médicos europeus, conforme

registro do médico Soveral:

[..] E quando lhes dizíamos que nos parecia não ter as suas mezinhas grande

utilidade, respondeu-nos logo com ares altivos:-que podíamos pensar o que

quiséssemos, mas que ele estivera com Muzila, Manicusse e Gungunhana e

que eles o respeitavam e aos seus feitiços; que bem sabia que os brancos

não os temiam, mas que experimentássemos e observássemos se os pretos

lhe tinham ou não o maior respeito; e com uma gargalhada, acrescentou que

podia parecer pouco o que ele sabia ou fazia, porém que isso chegava para

se governar e foi-se em paz, a exercer sua profissão, que talvez não deixe de

ser rendosa40 [..]

O curioso é que aquele médico resolveu considerar em sua lista a indicação

dada pelo Nyanga Caiâne do uso de raízes “para banho quando falece uma

pessoa na povoação”. Talvez sua atitude possa ter sido influenciada menos

pela segurança com que aquele Nyanga demonstrou exercer sua prática,

apoiado na antiguidade de seus saberes de cura e no respeito que tinha

da população, como acontecia com outros Tinynga, e mais pelo desejo de

mostrar que aquele conhecimento era limitado por incluir uma dimensão

ritualística, sendo por isto, necessária à investigação da eficácia de tais

40 AHM. Ct D500R. SOVERAL, Antônio Maria do. A Arte de Curar entre os Indígenas da Circunscrição de Chai –Chai. Relatório, 1909.

77

drogas em laboratórios e assim desejou fazê-lo na época, contudo impedido

por falta de estrutura para este procedimento.

Ao longo do período colonial, a investigação portuguesa sobre as

potencialidades fitoterápicas do saber de cura dos Tinyanga permaneceu

como foro íntimo de médicos, suas academias e associações. Dos registros

que se teve acesso sobre o assunto, ao menos até o ano de 1950, nota-se na

que alguns administradores se mostraram receptivos a ideia de o governo

incorporar saberes de cura dos Tinyanga na assistência de saúde, inclusive

como uma estratégia política para atrair a ação daquele grupo em favor dos

interesses do Estado colonial. Vejamos alguns desses exemplos, segundo o

inspetor superior dos Negócios Indígenas, Carlos Henrique J. da Silveira:

[...] É sabido que recursos medicamentosos são obtidos e, ainda hoje, alguns

dos mais sensacionais pelo estudo da arte de curar dos povos primitivos e,

quem possui como nós tão vastos domínios ultramarinos deve interessar-se

por essa investigação [...]

O administrador da Circunscrição de Buzi, região central, também se

mostrou favorável a esta proposta, embora não precisasse o lugar, afirmou

este funcionário ter visto algures a ideia do aproveitamento pelos médicos, dos

serviços destes curandeiros indígenas. Cremos que seria de-facto interessante

essa política de atracção de que poderíamos advir extraordinários benefícios.

Também admitia a necessidade de realizar uma observação científica dos

métodos e medicamentos da arte de curar dos indígenas, da influência e dos

meios de atracção usado pelos curandeiros e feiticeiros41.

41 AHM.FDSNI. Cx 148. Confidenciais. Buzi,1947.

78

Nas entrevistas realizadas no distrito de Alto Changane, na atual província

de Gaza, algumas pessoas afirmaram que um e outro médico, em segredo,

trabalhavam com determinados Tinyanga.

Um exemplo disto é o caso que se passou com a mãe do chefe de bairro Alberto

Zacarias Tivane, a qual era Nyanga e se chamava Njoasse Balane, cuja família

residia em Chibuto. Contou-nos Tivane que, por volta do ano de 1963, sua

mãe foi procurada por uma mulher grávida, sofrendo de dores de parto, que

havia fugido do hospital também situado em Chibuto, por desejar que uma

“curandeira” resolvesse o problema de seu parto, pois o médico do hospital

não conseguira fazê-lo: temia morrer grávida. Segundo o chefe Tivane, sua

mãe realizou alguns procedimentos que possibilitou a grávida entrar em

trabalho de parto ainda às portas da palhota sagrada, momento em que ele, o

Tivane, foi obrigado a sair daquele espaço por ordem de sua mãe. Conforme

explicação do Sr. Tivane acerca do que se passara com aquela mulher:

[...] Nós temos uma complicação em termos de espírito. Nós os indígenas, nós

os africanos. Por exemplo, este rapaz (moça) pode conceber para dar parto,

mas quando há conflitos das ideias em casa ou mesmo em companhia dos

pais ou do marido. Introduz-se. Quer dizer ela é uma vÍtima de um espírito

por outra pessoa só para lhe castigar. Então, uma das raparigas saídas de

uma zona chamada (sic), mas quando chega no hospital tudo fica fechado e

os médicos não conseguem ver se ela está perto para o parto ou muito para

o parto42 [...]

O Sr. Tivane insinuava que aquela mulher grávida teria sido vítima de um

“feitiço”, tendo sido enviado um espírito para lhe fazer sofrer, tratando-se de

42 TIVANE, Alberto Zacarias. Alberto Zacarias Tivane: depoimento [jul. 2012]. Entrevistador(a): Jacimara Souza Santana (língua portuguesa), Alto Changane-Chibuto, 2012, Arquivo mp3 (acervo pessoal).

79

coisas que os médicos não compreendiam e nem podiam intervir, ao contrário

dos dotôros ou dotôras da terra. Ademais, acrescentou o Sr. Tivane, que, após

tomar conhecimento do fato, a autoridade médica e administrativa intimou

sua mãe a comparecer na administração, a pedido do médico Manuel Pataca

Dias, ocasião em que sua mãe recebeu uma licença para continuar atuando

nestes casos em colaboração com aquele médico.

Como afirmou Sr. Tivane, isto foi uma grande surpresa. Ele próprio já

tinha solicitado ao pastor africano da Assembléia de Deus, João Balan, que

escrevesse uma carta para o seu pai, que trabalhava nas minas em África do

Sul, de modo a comunicar sobre a prisão de sua mãe. Segundo ele, sua mãe

seguiu sendo consultada pelo serviço médico local numa ocasião de grande

epidemia de tuberculose, sífilis e malária, entretanto, por iniciativa de médicos

em particular, não sendo uma liberação do governo colonial de um modo

geral. Este caso mostra que a relação entre médicos e Tinyanga não somente

fora marcada por experiências rivais, mas também de complementariedade.

Até os dias atuais, em diferentes partes de Moçambique, notam-se conflitos

entre populações e servidores de saúde, muitos alcunhados popularmente

de “chupa sangue”. Isso reflete a experiência passada de massivas campanhas

de vacinação, exames laboratoriais e demais procedimentos direcionados

à população africana. Situações como as descritas nesse texto sobre as

condições de saúde e assistência da população africana no tempo colonial

se mostra contínua no contexto atual de Moçambique, segundo Dra. Isabel

Casimiro. Isto também não soa estranho na história e análises atuais das

condições de saúde da população afro-brasileira.

80

Em todo o mundo, a prevalência do pensamento ocidental relegou à

marginalidade e ao desprestígio social maneiras distintas das suas de cuidar

das doenças e promover a cura, apoiado na pretensa crença na supremacia

do seu saber por sua natureza científica/laboratorial. Em diferentes lugares da

África, assim como ocorreu em sua diáspora, apesar das inúmeras tentativas

de supressão de tais saberes, seus agentes continuaram sendo requisitados

por clientes de variados níveis econômicos e opções religiosas, sejam eles

habitantes de zonas rurais ou urbanas na busca de solucionar problemas

não resolvidos pela medicina alopática.

A MANEIRA NYANGA DE CURAR: “EU NÃO TRATO SÓ DA SAÚDE, MAS

TAMBÉM DAS DIFICULDADES DE CADA UM”.

Muitos africanos ao longo do período colonial e também após a independência

permaneceram utilizando uma assistência plural de saúde. Por julgar tratar-

se de doença incurável por médicos europeus ou por Tinyanga ou em razão

de superar a exígua e deficiente assistência que o Estado colonial lhes

disponibilizava, tanto nos centros urbanos quanto nas zonas rurais, entre

aqueles mais pobres ou de condição social mais elevada. Como afirmou o

Nyanga, Aurélio Moraes, em entrevista no ano de 2010, atualmente já falecido,

todos vêm nos procurar até os ministros, basta acontecer alguma coisa no

Gabinete, eles não vêm de dia, mas vêm de noite43.

Se africanos continuaram a procurar Tinyanga, apesar das dificuldades criadas

pelo Estado colonial para tal acesso, é porque a assistência prestada por

43 GULUBE, 1997.

81

membros deste grupo possuía um diferencial em relação à ocidental. Afinal,

o que os atraía para a assistência com Nyanga? Em que este atendimento

singularizava-se? Esta atitude pode ter se configurado como uma estratégia

contra a exigência de abandono às consultas com Tinyanga, imposto pela

classe médica e missionária europeia, mas tambémpode ser um equívoco

restringir a frequência de africanos aos centros de saúde coloniais a um

mero resultado da imposição portuguesa. O saber médico europeu, ao longo

de um tempo, não teria alcançado no meio africano certo reconhecimento?

Para introduzir nosso diálogo sobre esse assunto, proponho retomar um dos

episódios da vida de Raúl Bernardo Honwana, o qual relata em seu livro de

memórias. Na época, Honwana era africano assimilado, habitante da cidade

de Lourenço Marques e que fazia parte do quadro de funcionários do Estado

colonial. Entre os anos de 1932-1934, depois de ele enfrentar constantes

insucessos nas tentativas de solucionar os problemas de saúde que atingiam

a si e a sua família com médicos ocidentais, resolveu por força de pressões

familiares, aceitar a proposta de buscar tratamento com um Nyanga. Isto,

apesar de não acreditar muito em “curandeiros”, conforme mostra alguns

trechos de suas memórias que seguem abaixo:

Um belo dia veio visitar-nos a tia Matchimbe uma irmã de meu pai, que vivia

em Marracuene (distrito de Gaza). Ao ver-nos assim doentes falou com o

tio Hassan Tricamo dizendo-lhes que se os médicos tinham falhado era

necessário recorrer à medicina tradicional, aos curandeiros. O tio Tricamo

chamou-me e pôs-me ao corrente do problema. Eu recusei-me. Não queria ir

morrer para o mato. Por outro lado eu confiava mais nos médicos da cidade.

O tio Hassan Tricamo então me fez ver que não deveria contrariar a minha

própria tia, que por ser irmã de meu pai, tinha autoridade sobre mim. Assim

acedi em acompanhar a tia a Marracuene. Comigo seguiram a minha mulher e

82

os meus dois filhos. No dia seguinte a nossa chegada, tivemos que viajar para

Bobole onde vivia o curandeiro de minha tia [...]

Chegados à casa do curandeiro, ficamos lá todo o dia sentados. Eu não sentia

fome ou cansaço, sentia-me apenas abandonado, negligenciado. O curandeiro

não nos ligava nenhuma. Só ao fim da tarde, após despachar toda a gente, ele

se chegou a nós. Além de curandeiro ele era também adivinho e chamava-se

Nwa Mahlanguana [..]

Em primeiro lugar, deitou os ossos e esteve a “lê-los” durante um tempo.

Depois me preparou uma infusão e além do suadouro eu tive de tomar

alguns remédios. Pela primeira vez em muitos dias, eu tive fome. Deram-

me de comer depois dormimos [...] Voltamos para a casa da tia Matchimbe

a Marracuene e continuei o tratamento. Após um mês eu já estava muito

melhor e regressamos a Lourenço Marques, acompanhados pela esposa do

curandeiro [...] Nunca tive grande fé em curandeiros, mas não há dúvidas que

o Nwa Mahlanguana sabia o que fazia, e lá tinha os seus poderes.44

Assim como Raúl Honwana, provavelmente outros africanos dentre o

grupo de assimilados, atribuíram ao saber médico europeu superioridade e

confiança, ao contrário dos tratamentos ofertados por qualquer Nyanga, mais

atuantes em zonas rurais naquela época. Assim como a sua tia Matchimbe,

muitos africanos também continuaram a procurar tratamentos com Tinyanga

quando a medicina ocidental não surtia o efeito desejado, também é provável

que alguns somente utilizassem o tratamento com Nyanga, sobretudo, quem

morava mais afastado dos centros urbanos, distantes do raio de ação dos

delegados de saúde.

Na ocasião em que Raúl Honwana se encontrava enfermo, médicos europeus

tinham apresentado um diagnóstico controverso. Sugeriram doenças como

44 HONWANA, Raúl Bernardo. Memórias. Maputo: Editora Marimbique, 2010.

83

paludismo (malária), “angina de peito” e problema cardíaco mediante suas

queixas de dores nas articulações e no peito, enfermidades cujo tratamento

os médicos demonstraram, na época, ter um restrito conhecimento. Uma

mostra disso esteve na solução dada ao caso, Raúl Honwana foi afastado por

90 dias do seu trabalho para ficar em Naamacha, por ser considerado um

lugar de clima mais favorável à saúde.

Na visão da tia Matchimbe, o problema de saúde do seu sobrinho Honwana

estava além dos sintomas físicos por ele apresentados, não sendo o suficiente

para a sua cura, administração de remédios ou outros procedimentos da

medicina ocidental. Numa perspectiva bantu africana, saúde se define

como um estado de harmonia entre os seres humanos, o meio ambiente e

os antepassados. Ocorrendo o desequilíbrio desta relação, há emergência

de doenças e infortúnios. Isto não significa dizer que todo tipo de doença

ou morte seja interpretado como uma ação sobrenatural, o que se leva

em conta nesta interpretação é a persistência do estado enfermo do

paciente mediante cuidados médicos e a sua emergência concomitante a

outros fatores que venham atingir a si ou membros de sua família, como

o adoecimento de algum parente e/ou ocorridos graves ou desagradáveis,

como, o desemprego, a perda de moradia ou plantação por uma enchente

e etc. Esta foi justamente a situação que se mostrou na vida de Honwana no

início dos anos 193045.

45 HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos Vivos, Tradições Modernas. Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Nova York: Ela por Ela, 2002; FU-KIAU, Kimbwandende Kia Bunseki. African Cosmology of the Bântu-Kôngo. Principles of Life e Living. Canada: Copyright, 2001, pp 1-43; LANGA, Aurélio Valentim. Memórias de um Ex-combatente da Causa. O passado que levou o verso da minha vida. Maputo: CIEDIMA, SARL, 2011; MENESES, Maria Paula G. “Quando não há problemas, estamos de boa saúde, sem azar, sem nada”: para uma concepção emancipatória de saúde in: SANTOS, Boaventura dos Santos (org). Semear Outras Soluções. Os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp 424-461.

84

É também como afirmou o Dr. Leonardo Simão, em entrevista, o mesmo que

trabalhou no Gabinete de Medicina Tradicional, logo após a independência,

enquanto estudante do curso de medicina, chegando a ocupar, anos mais

tarde, o cargo de ministro da saúde de Moçambique, o trabalho do Nyanga

é marcado por uma dimensão cultural, um fato que ele notou ser relevante

durante o seu trabalho de investigação sobre as maneiras de curar dos

Tinyanga, na fase em que esteve no governo, na condição de estudante,

conforme sua explicação:

[...] A doença na medicina tradicional tem uma filosofia por detrás. Algumas doenças são o resultado de uma má relação ou provocados por antepassados ou por terceiros, é o que chamamos de feiticeiro. O feiticeiro é um espírito maligno que pode ser mobilizado para provocar dano a alguém, portanto, é o praticante de medicina tradicional que através de seus búzios vão determinar a origem da doença que o paciente tem. Ele pode dizer, o teu problema é um antepassado que está insatisfeito, porque você nunca mais prestou atenção para ele, às vezes, a pessoa tem o seu nome (do antepassado).Nós temosnomes tradicionais, os nossos nomes são nomes de um familiar nosso e, muitas vezes, é de um familiar que já morreu, portanto há uma ligação entre o vivo e o dono original do nome e então é preciso restabelecer esta relação entre o recipiente do nome e o dono do próprio nome.

Se aquele que tem o nome é negligente nesta relação, digo, se esta relação não é boa, o antepassado pode se manifestar por meio de doença. Por isto, quando se tem uma dor é preciso saber qual a origem e qual o tratamento da doença. O tratamento tem que incluir duas componentes: uma que refaça,

reponha esta relação com o antepassado por um lado e outra que trate

os sintomas que a pessoa tem. Portanto a pessoa pode seguir um ritual e

também tomar qualquer coisa que lhe dê o alívio para tratar os sintomas de

sua doença46[..].

Segundo a crença, a emergência de doenças e infortúnios na vida de uma

46 Entrevista com Dr. Leonardo Simão, Ministro da Saúde de Moçambique em 1988. Por Jacimara Souza Santana. Língua portuguesa. Maputo, dezembro de 2012.

85

pessoa pode se dá em decorrência de diferentes fatores: descontentamento

dos antepassados, a manipulação não intencional das condições ecológicas, o

descumprimento de alguma norma social do costume ou ainda um resultado

de ações de “feitiçaria”/wuloy, enviadas à pessoa por vingança ou inveja.

No sul, em diferentes línguas (Xichangana, Xitshwa, Cindau, Cizulu, Xironga e

Xichope) o ato de feitiçaria é conhecido pelo termo wuloyi e a pessoa feiticeira

por noyi, no singular e no plural valoyi. Os significados destes últimos termos

são distintos daqueles em português (feitiçaria e bruxaria) e também abrigam

variadas formas de entendimento e manifestação47.

Entre os povos de origem Changana e Chope, wuloyi é compreendido como

parte integrante da essência do indivíduo reconhecido como noyi e, segundo

a crença, trata-se de algo transmitida pela via materna, mas também

existe a possibilidade de sua aquisição por compra. Aos valoyi é atribuída a

responsabilidade de causar prejuízos às pessoas e objetos, de comê-los no

sentido metafórico; no caso de pessoas, por exemplo, acredita-se que valoy

as matam e comem sua carne humana e, embora o corpo aparentemente

se mostre íntegro, sua essência é roubada, passando o seu espírito a servir

como um escravo do indivíduo noyi que são reconhecidos pelo nome de

xingono e podem ser enviados a outras pessoas para lhes causar doenças,

mortes, desavença na família e demais situações de sofrimentos em geral48.

Em Gaza, durante o período em que dediquei a entrevistas, ouvi diferentes

47 AHM. FDNSI. Cx 1645. Código Penal dos Indígenas da Colônia de Moçambique. Projeto Definitivo. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1946; MACHUNGO, Fernanda. O Aborto Inseguro em Maputo. Outras Vozes, no 7, maio de 2004., pp11-13.

48 LANGA, A. O., 1992.p. 62-67.

86

pessoas associarem wuloyi a certos comportamentos de cobras, macacos,

ratos e corujas por crer-se que os valoyi podem manifestar-se através de

animais ou recursos naturais, como: fogo, pedra, raios, entre outras coisas.

Comentou o antropólogo Moisés Nhatumbo, natural de uma povoação

de nome similar ao seu sobrenome, e situada em Gaza, que a coruja se

tornou um animal extinto naquele local devido àquela associação. A ideia de

relacionar a presença do noyi a uma espécie de labareda de fogo também se

estende a outras regiões do país, como a central49.

Mas wuloyi não somente pode ser visto como fonte geradora de malefícios.

Conforme constatou Peter Geschierre e Harry West, restringir-se a essa

compreensão é empobrecer a dimensão múltipla e ambígua de suas

manifestações. Tio Anastácio e o antropólogo Nhatumbo, ambos de Gaza,

comentaram em entrevista que wuloyi também era usado como forma

de enriquecer e ter acesso a lugares de poder, ainda que, geralmente,

esse sucesso fosse acompanhado de graves consequências como a

emergência de doenças seguida de mortes de variados membros da família.

Provavelmente por esta razão é que as acusações de wuloyi são direcionadas

predominantemente a membros da família. A relação entre “feitiçaria”,

parentesco e mudanças modernas foi algo para o que Geschierre prestou

atenção em sua pesquisa50.

49 NHATHUMBO, Moisés (antropólogo), depoimento. Entrevistador(a): Jacimara Souza Santana (língua português), Xai-Xai, 2012, Arquivo mp3 (acervo pessoal); TINYANGA. Tinyanga (grupo de) – Xai-Xai, jul. 201; Paulina Chiziane em seu livro “O sétimo Juramento” mostra a saga de uma família, cujo pai de família em busca de maior acesso a cargos de poder em sua empresa põe a perder todos os membros de sua família atingindo também vizinhos, a manifestação do noyi apresentada pela autora nesta obra é justamente a imagem de uma cobra e uma ardente labareda de fogo.

50 GESCHIERE, Peter. The Modernity of Witchcraft. Polics and the occult in postcolonial Africa.E.U.A: University of Virginia, 1997; WEST, Harry G. Kupilikula. O poder e o invisível em Mueda-Moçambique. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Imprensa de Ciências Sociais, 2009.

87

Há notícias também de que os valoyi se caracterizam por uma personalidade

dinâmica, tratando-se de pessoas inteligentes, pessoas respeitadas. Wuloy,

desta maneira, mostrase como uma força perigosa e poderosa diante da

qual as pessoas demonstraram ter duas atitudes: apropriar-se ou proteger-

se. Ambos os processos podem ser intermediados pelo Nyanga.

Wuloyi tanto pode causar doenças como curar. O diagnóstico realizado pelo

Nyanga visa identificar os sofrimentos que atingem as pessoas, os quais

podem ser causados por um xicuemboxingono, espírito enviado por noyi;

por manifestação de um xicuembomphukua, espírito de uma pessoa morta

que “ressuscitou” para se vingar ou ainda, para manifestar algum desejo

dos ancestrais familiares. Estas situações podem resultar em diferentes

tratamentos, como a realização de algumas cerimônias em memória dos

ancestrais, tratamentos de reversão do woloyi ou iniciação de um novo

Nyanga, ou ainda, simplesmente na aplicação de cuidados com ervas

da doença apresentada. É como bem disse o tio Anastácio, wuloy é parte

integrante do fazer dos Tinyanga, pois para neutralizar ou prevenir seu efeito,

tais profissionais também se valem dessa energia e conhecimento. Uma das

Tinyanga de Chibuto durante a entrevista, ao comentar sobre o seu processo

de iniciação na carreira de Nyanga deu mostras dessa ambiguidade:

Morreu meu bisavô e deu aquele trabalho que ele estava a fazer. Por ciúme

matava as pessoas ou fazia com que elas fossem para outro sítio e estava

morrendo muitas pessoas e quando ia ao curandeiro indicavam que era a

vovó que mandava matar as pessoas, ela recebeu o espírito do bisavô. Daí

foi ao curandeiro e o espírito pediu uma filha e a vovó me deu e quando

eu chegava na escola ficava tremendo, não podia concentrar para aprender

nada. Eu recebi isto e estava dentro da barriga da mãe sem saber o que estava

sendo dado, mas a criança que saiu da barriga da mãe e os pais procura o

88

nome da criança, vê que tem que fazer o trabalho dos avós e o trabalho dos

avós era com este espírito que não era muito bom.

Esta criança que nasceu tinha que ficar na casa do curandeiro. Se sair o sol

tinha que tomar banho com água fria (na madrugada) no curandeiro já com

tratamento de curandeiro. Depois toca Tingoma (tambores) para o espírito

sair e o coração bate forte e eles já não estão a ouvir mais nada e então o

espírito através da miúda diz ao pai, o curandeiro o que o bisavô quer e a

partir deste momento a miúda já é considerada uma Nyanga (...) O curandeiro

fez o trabalho então saiu o espírito do bisavô e pergunta o que o bisavô fazia

antigamente e por que está a sair na neta. 51

É desta contradição que provavelmente pode ter originado o termo

“curandeiro-feiticeiro”, de modo a indicar que não somente trata doenças com

ervas, ou seja, é ervanário, mas também malefícios gerados por wuloyi, o que

se poderia ainda entender como ações de antifeitiçaria ou contrafeitiçaria.

Tal definição é bem distinta da designação portuguesa do termo “feiticeiro”.

Conforme entrevista com Tinyanga, em Xai Xai, têm-se:

Para ser feiticeiro é preciso ter dom. É quando se ouve que você come galinha

porque não me dá? Existe aquele ódio. É como a Igreja Universal que faz

aquela magia para comer dinheiro (...) é feitiço! É uma maneira que a pessoa

faz para sobreviver. Um feiticeiro também é respeitado porque quando pede

qualquer coisa logo lhe dão porque se não der vai morrer52.

A noção de “feitiçaria” manifestada por esta Nyanga ainda pode ser associada

à ideia de mau olhado tão comum na cultura afro-brasileira, em especial

51 TINYANGA. Tinyanga (grupo de) – Chibuto: depoimento [out. 2012]. Entrevistador(a): Jacimara Sousa Santana (língua Changana). Trad. da Língua Changana Vânia Daniel Macuácua. Chibuto, Arquivo mp3 (acervo pessoal).

52 TINYANGA. Tinyanga (grupo de) – Chibuto, out. 2012. A Igreja Universal está presente tanto na cidade de Maputo como em Gaza, segundo entrevista com Tinyanga de Xai Xai e Chibuto, a matriz originária de seus núcleos é brasileira. Assim como no Brasil e especialmente na Bahia, a política de expansão eclesial da Igreja Universal é seguida pela prática da “intolerância religiosa”, desqualificando, sobretudo as instituições e experiências religiosas reconhecidas como “tradicionais”, embora copie destas, muitos ritos.

89

baiana, segundo a qual se acredita que existem pessoas que têm a habilidade

de esvaziar a capacidade vital dos objetos e indivíduos através de uma

energia interna integrante de sua personalidade que, convencionalmente,

é considerada como negativa. Ela é movida pela inveja ou ambição e

despertada pelo que vêem e desejam. Tais pessoas são reconhecidas como

aquelas que têm olho gordo, podendo ser apelidadas de zoião e identificadas

quando, de modo frequente, seguida a sua presença ou admiração por algo

ou alguém ocorrem doenças ou destruição do objeto desejado ou admirado.

Em Moçambique, o noyi é reconhecido por suas ações, mas a sua identidade

pode ser confirmada por um Nyanga através de meios diversos: consulta do

tinhlolo (sessão de advinhação com ossos, sementes, búzios etc), cerimônia

de kufemba, ritual para fazer sair o espírito a fim de consultar qual o seu

desejo ou ainda, o uso do mondzo.

A prática de wuloyi, conforme o costume africano era considerada crime,

podendo o suposto noyi ser condenado à morte.

Assim, os sintomas físicos são vistos apenas como um sinal de que algo

não está bem na vida do indivíduo, devendo a causa ser identificada e

resolvida. Por isto o Nyanga Nwa Mahlanguana, antes de ministrar remédios,

primeiramente consultou a advinha53.

Nesta primeira fase do tratamento ministrado por um Nyanga, não

somente se diagnostica a doença, mas também se inicia a cura. Isto rompe

profundamente com a concepção ocidental cartesiana que separa o corpo

53 HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos Vivos, Tradições Modernas. Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Nova York: Ela por Ela, 2002; LANGA, 2011.

90

da mente. Parafraseando Alcinda Honwana, o ato da advinha consiste em

uma espécie de ritual, através do qual o Nyanga busca a revelação e a análise

lógica das causas das doenças e infortúnios através da consulta aos espíritos

e dos questionamentos que fazem aos seus clientes e/ou sua família, que

geralmente acompanha a pessoa enferma, existindo neste processo uma

inter-relação entre o individuo e o grupo social, bem como, os fatos do

passado e do presente, a presença do mundo visível e invisível54.

Em entrevista, os enfermeiros Albino Maheche e João Coloane afirmaram que

antes de se ausentarem de suas povoações para trabalho em terra estranha,

longe dos membros de sua família vivos e mortos, eles costumavam recorrer

às advinhas seguido de rituais de proteção, o que os Tinyanga passaram a

chamar de “vacina”. Seu procedimento consiste na aplicação de um líquido

de aspecto oleoso originado da mistura de diversas ervas com gordura de

cobra em pequenos cortes feito no corpo. Conforme explicaram os Tinyanga

Maciene F. Zimba e Carolina J. Tamele, em entrevista com Maria Paula Meneses,

A vacina é feita contra os valoyi, contra “infecções” de feiticeiros, contra remédios

maus que podem ter sido enterrados nas proximidades da casa do paciente,

contra maus sonhos, raios e balas e para atrair boa sorte. Os tratamentos com

finalidade de proteção ainda podem incluir outros tipos de procedimentos

como o uso de amuletos, banhos de ervas, defumadores e etc55.

Acredita-se que o ambiente pode vir a estar poluído por forças ocultas, quer

54 HONWANA,Op.cit; GRANJO, Paulo. O que é que a adivinhação advinha. Cadernos de Estudos Africanos. Lisboa:Instituto Universitário (ISCTE), 2011, p 65-93. Sobre definição de adivinhação ainda consultar: SILVA, Sônia. Vidas em Jogo. Cestas de adivinhação e refugiados angolanos na Zâmbia. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2004.

55 COLOANE, João e MAHECHE, Albino Maheche , depoimento. Entrevistadora: Jacimara Souza Santana (língua portuguesa), Maputo. Arquivo mp3 (acervo pessoal).

91

seja, decorrente de espírito de pessoa que morreu no local de modo violento

e/ou de súbito, cuja energia torna-se extremamente perigosa e nociva. Isso

ocorre em consequência do morto não ter tido acesso aos devidos rituais de

sepultamento. Conforme a crença, tais energias nocivas que se encontram

espalhadas na natureza pode dar origem ao fenômeno mphukua, que

permite ao morto ressucitar, podendo a pessoa atingida ser possuída por

espírito de outra já morta, manifestando-se no corpo receptor através de

doenças e sofrimentos.

Quando o diagnóstico do doente não indica que tal espírito possa ser envido

por um feiticeiro/noyi, a pessoa atingida pode tornar-se Nyanga (doença do

chamamento) Segundo a crença, antepassados também podem se manifestar

através de formas similares caso não tenham sido respeitados os rituais em

sua homenagem (timbamba), ou tenha ocorrido alguma violação de normas

sociais costumeiras por membros da família. Crê-se ainda que o ambiente

pode contaminá-los por “germes” de doenças liberados dos corpos de outras

pessoas que ali estiveram56.

A associação do termo vacina, bem como do seu sentido a um secular

procedimento do saber de cura Nyanga é um exemplo de como aquele

saber, alcunhado por tradicional, estava sujeito a reinvenções, a ponto de

incorporar conhecimentos de outros sistemas de cura em suas práticas, não

somente da biomedicina como de outros sistemas de culturas africanas.57

56 HONWANA,2002; MENESES, Maria Paula G. Maciene F. Zimba e Carolina J. Tamele. Médicos tradicionais, dirigentes da Associação de Médicos Tradicionais. Entrevistados por Maria Paula Meneses. In: SANTOS, Boaventura dos Santos (org). As Vozes do Mundo. Reinventar a Emancipação Social para novos manifestos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009., pp 404-462.

57 O termo vacina associado a procedimentos de proteção pode ser identificado nas publicações de Sansão Muthemba no Jornal o Cooperador (1970-1972); LANGA, Aurélio: depoimento [out 2012]. Entrevistadora: Jacimara

92

A compreensão de vacina, ritualmente empregada como uma forma de

proteção das pessoas contra certas doenças e agressões do meio social

e ecológico presente tanto no mundo visível quanto invisível em muito se

diferencia da noção de variolização comentada por Sidney Chaloub ao se

referir aos processos de criação da vacina e sua rejeição popular. Muito

embora a noção do agente dual que causa a doença e que também cura não

esteja ausente de outras formas de tratamento ministrado pelo Nyanga, um

exemplo disso é a conhecida prática de inoculação das pessoas picadas de

cobra com o próprio veneno, prática amplamente adotada entre os Tinyanga

de Moçambique58.

Pode-se imaginar a contradição que o uso das vacinas ministradas por serviços

coloniais causavam quando sua aplicação, geralmente em aspecto seco,

causava sinais da doença nas pessoas, uma vez que, a introdução de líquidos

tinham a função de proteger das doenças, azares, feitiços e etc. Depois, tratava-

se de uma aplicação ritual que era ministrada apenas pelo Nyanga e tal tipo de

vacina ritual era parte integrante de sua iniciação, que podia ser precedida por

uma doença, a doença do chamamento ao exercício da profissão.

Assim como ocorreu no Brasil imperial, houve casos de rejeição das

vacinas ministradas pelo Estado colonial entre os africanos do sul de

Moçambique, incentivados às vezes por um ou outro Nyanga, no próximo

tópico apresentamos alguns desses exemplos. Entretanto eram forçados a

receberem aquela medicação e a utilizar outros serviços médicos, conforme

Souza Santana (língua portuguesa), Maputo, 2012. Arquivo mp3 (acervo pessoal). HONWANA, 2002.

58 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

93

já comentamos sobre o caso das mulheres africanas grávidas que eram

obrigadas a dar parto nas instalações do Estado colonial.

Acho pouco provável que essa rejeição fosse apoiada nas concepções de

eleição ritual comentada por Chalhoub para o contexto carioca de finais

do XIX e início do XX. O aparecimento de uma doença pode significar várias

coisas, entre as quais, a vontade de um ancestral que o individuo adoecido

passe pelo processo de iniciação Nyanga. Ao invés de ela ser divinizada, como

propuseram alguns autores para o caso da varíola segundo a cosmologia

yorubana ou mina, ela é um sintoma de que algo está por acontecer. A vacina

ministrada por funcionários do governo, inclusive, enfermeiros africanos

estavam destituídas de todo esse arquétipo59.

Uma pesquisa sobre as razões de abandono do tratamento da tuberculose em

hospitais e centros de saúde em Maputo, no ano de 1983, mostrou uma crença

fortemente arraigada entre as pessoas entrevistadas de que a tuberculose

era uma doença gerada mais pela falta do cumprimento de normas culturais

de convivência ou de ação de wuloy. Das normas pontuadas entre as pessoas

nas entrevistas tem-se: manter relações sexuais com mulheres que tinham

abortado ou se tornado viúva sem que esta tivesse passado por cerimônia

de purificação, consumir alimento cozido por mulher menstruada, não ter

realizado cerimônias fúnebres, sendo também considerado um estado

perigoso para a disseminação de doenças, as relações sexuais feitas com

mulheres logo após o parto60.

59 CHALHOUB, 1996, p 144-145. Esse autor apresenta diferentes interpretações em seu livro sobre o assunto.

60 FELICIANO, José Fialho. Antropologia Económica dos Thonga. Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique. Estudos 12, 1998; COSTA, João Leopoldo. Tuberculose Pulmonar e alguns fatores culturais vinculados ao abandono do tratamento In: Revista Medicina tradicional, 198, p 142- 178;HONWANA, 2002.

94

Em geral, a tuberculose era uma doença vista como relacionada ao

comportamento sexual das mulheres, de modo que, por regra, constantemente

membros femininos deveriam recorrer a rituais de purificação para recuperar

sua condição saudável. Numa sociedade onde os casais viviam separados

por constantes e longos períodos devido à imigração para o trabalho nas

minas do Rand, estas e outras regras podiam atuar como tentativas de impor

controle à sexualidade feminina e também colaborava na reprodução de um

modelo de organização social baseado no costume61.

Em decorrência da relevante crença nas causas endógenas da tuberculose é

que a primeira atitude da maioria das pessoas contaminadas pela doença era

consultar um Nyanga, podendo passar por rituais de purificação associando

por vezes a este tratamento, as medicações e procedimentos da medicina

ocidental.

Apesar de Raúl Honwana não comentar qual teria sido o diagnóstico do

Nyanga Nwa Mahlanguana e inicialmente recusar acreditar em Tinyanga,

pareceu insinuar que o seu caso também pudesse ter sido efeito de wuloy. É

Interessante notar que somente na consulta com o Nyanga é que ele tornou

conhecido um sintoma que tinha omitido na consulta com médicos europeus,

o de alucinações, um problema não ignorado no tratamento ofertado pelo

Nyanga, conforme recordou:

Voltamos para a casa da tia Matchimbe, a Marracuene e continuei o

tratamento. Após um mês eu já estava muito melhor e regressamos a

Lourenço Marques acompanhados pela esposa do curandeiro que me disse

que ao chegar em casa eu veria coisas estranhas mas não teria medo. Assim,

61 LOFORTE, Maria Ana. Gênero e poder entre os Tsonga de Moçambique. Maputo: Promédia, 2000.

95

na primeira noite após a nossa chegada, tomei os meus remédios e fui deitar-

me. Algo de estranho aconteceu. Era como que um sonho. Eu vi caras, algumas

desconhecidas e outras não, a entrar furtivamente no meu quarto e a avançar

para mim, querendo forçar-me a comer algo. Aí a minha reação era rir-me,

sem medo, e as figuras fugiram.

Entretanto já em 1931 voltei para Bela Vista numa noite de chuva, estava eu a

dormi calmamente quando tive outra vez o mesmo tipo de alucinação e vi um

cipaio fardado a entrar no meu quarto e a avançar para mim com os dentes

arreganhados. Eu então na minha alucinação corri contra ele e insultei-o e

ele fugiu. No dia seguinte perguntei na administração quem era o cipaio que

estivera de guarda à noite e lá me indicaram o mesmo que eu vira durante

a minha alucinação que tive. Dirigi-me então aquele cipaio e perguntei-lhe o

que tinha ido fazer de noite ao meu quarto.Ele respondeu-me que apenas

se fora abrigar da chuva na minha varanda, mas mostrou-se atrapalhado e

comprometido.62

Esta narrativa de Honwana faz recordar as análises de Peter Geschierre a

respeito dos discursos sobre feitiçaria nos Camarões. Conforme observou o

autor citado, o acesso a bens materiais ou a conquista de uma posição social

diferenciada da maioria, vista como equivalente à aquisição de riqueza não

somente atraía para o seu proprietário (a) a acusação de ser um feiticeiro,

cujo poder de manipulação de forças ocultas lhe dava acesso a bens

materiais, como o tornava uma vitima de ataques de pessoas feiticeiras que

por inveja podiam investir na sua destruição e de sua família ou de seus bens

materiais. Honwana deixa subjacente em sua recordação que o Nyanga,

além de tratar os seus sintomas físicos também o tinha blindado contra

o medo e as agressões de “fantasmas” manifestos em suas alucinações,

alguns, segundo ele, conhecidos seus, ou colega de trabalho que ocupava

62 HONWANA, Raúl Bernardo. Memórias. Maputo: Editora Marimbique, 2010.

96

uma posição inferior a sua, como era o caso daquele cipaio63.

Talvez Honwana insinuasse com esta abordagem que o seu histórico crônico

de doença, assim como o de sua família, incluindo a morte de seu primo

Juma em África do Sul após “vomitar sangue” tivesse a interferência de

forças sobrenaturais, cujos autores se manifestavam em suas alucinações.

Possivelmente, na visão médica europeia, o sintoma de alucinação sofrido

por Honwana seria interpretado como um estado de loucura e depois

sua atitude de omissão se relacionava com a ideia muito divulgada entre

os africanos de que médicos coloniais desconheciam tratamentos para

doenças de espíritos ou de wuloy.

Somente depois do diagnóstico através da advinha, o Nyanga Nwa

Mahlanguana iniciou o processo de cura com remédios e suadoros,

provavelmente à base de folhas, raízes, frutas, flores ou mesmo elementos

de origem animal, durante mais de 30 dias, seguindo com este tratamento

em sua palhota sagrada e também na casa de seus pacientes, como afirmou

Honwana, a esposa do Nyanga permaneceu em sua casa por um tempo.

Como era comum entre outros Tinyanga, o Nwa Mahlanguana agregava

diferentes especialidades, a de Nyagarume, Nyanga e Nyamusoro, que lhe

permitia realizar advinha com objetos como pedras e ossos, ministrar

remédios com ervas e neutralizar as ações de wuloy.

Diferente resultado apresentou Honwana e sua família após tratamento

realizado com aquele Nyangaem Gaza, inclusive essa melhora significativa

63 GESCHIERE, Peter. The Modernity of Witchcraft. Polics and the occult in postcolonial Africa. E.U.A: University of Virginia, 1997.

97

o fez reconhecer algum valor para o saber de cura africano, ao menos

daquele Nyanga com quem alcançou bons resultados.

O tratamento ministrado pelo Nyanga denota concepções de saúde e

doença distintas daquelas preconizadas por europeus. Não se limitava ao

imediatismo de cuidar dos sintomas físicos apresentados por seu cliente.

Além disso, abrangia uma visão mais holística de cuidado. Antes de iniciar

o processo de cura que possibilitou aos seus clientes sentirem ânimo para

dormir, comer e, sem temor, enfrentar as alucinações, o Nyanga procurou

identificar e analisar o contexto social no qual seus clientes adoeceram,

buscando investigar como andava a relação do doente com os seus

antepassados, com o meio ambiente, seus familiares e vizinhos.

Por acreditar na inexistência de uma divisão entre corpo, mente e espírito

é que africanos não abandonavam a interpretação endógena da origem

das doenças e por isto, privilegiavam o atendimento Nyanga, por vezes

conjugando-o com o tratamento médico ocidental. Para garantir o acesso às

consultas da medicina africana, seu público usuário assim como membros

do grupo Tinyanga buscaram desenvolver diferentes estratégias, além do

uso paralelo dos dois tipos de medicinas e incorporação de conhecimentos

da prática médica ocidental no modo endógeno de cura africana, investiram

esforços na desqualificação dos serviços de saúde ocidentais.

A desqualificação dos serviços de saúde ocidental por Tinyanga

Se o saber de cura ministrado por Tinyanga era alvo de constante desqualificação

por parte das autoridades coloniais, o saber médico ocidental também não

98

passava imaculado das críticas e campanhas contrárias ao seu uso por estes

primeiros. Por meio dessa atitude, Tinyanga reivindicavam a exclusividade de sua

secular função de cuidar da saúde pública e pessoal dos africanos. Nos boletins

de informação dos órgãos do governo destinados ao registro de ocorridos

cotidianos dentre as populações africanas, em decorrência de suspeitas de

ações “subversivas”, é possível encontrar alguns exemplos neste sentido.

O registro de situações cotidianas foi uma prática adotada pelo governo

português a partir de finais dos anos 1950, em decorrência da eclosão

do movimento nacionalista nas colônias africanas e da ameaça de sua

emergência em Moçambique. Para tentar impedir a proliferação destas ideias

em Moçambique, o governo tomou várias iniciativas, entre elas: a criação de

uma Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a PIDE, responsável por

identificar, investigar, controlar e punir quaisquer manifestações de adesão

à luta nacionalista. Houve também a criação dos Serviços de Centralização

e Coordenação de Informações, o SCCI, cuja função consistiu no registro de

atividades religiosas consideradas ilegais, movimentos “subversivos” ou fatos

suspeitos “dentre a população nativa, nacional ou estrangeira”.64

A coleta de informações gerou um número considerável de correspondências

e envolveram funcionários do governo, pessoas da população e missionários

da Igreja Católica. Em entrevista, um Nyanga de Alto Changane, província de

Gaza comentou que as confissões se tornaram uma armadilha, quando em

caso de “suspeitas”, padres repassavam informações para a PIDE, conduzindo

64 Arquivo do Distrito de Bilene-Macia. Correspondência do administrador J. G. T. Pereira Vila, 3 de novembro de 1959.(documentação sem classificação).

99

algumas pessoas a prisão antes mesmo de saírem da Igreja65.

Por parte das autoridades coloniais, havia fortes suspeitas de que o grupo de

Tinyanga manifestasse apoio à causa nacionalista através do seu trabalho.

Consideravam que membros daquele grupo fossem pessoas de autoridade,

cujos conselhos as populações costumavam escutar e muitos dentre este

grupo por gozar de prestígio considerável recebiam visitas de africanos

estrangeiros, podendo facilmente fazer circular informações, por isso o

governo colonial passou a dedicar cuidadosa vigilância a este grupo.

O boletim de julho de 1963 indica que o Nyanga Malaia Munhai foi denunciado

ao Corpo da Polícia de Segurança Pública da Província de Moçambique,

depois de conversar com alguns trabalhadores dos Caminhos de Ferro de

Moçambique (CFM) sobre o tipo de assistência de saúde que eles deveriam

privilegiar, conforme registro:

Hoje cerca de 12:30 nos CFM junto ao refeitório, o africano Malaia Munhai,

curandeiro, encontrava-se a advertir os africanos, dizendo que ele é capaz

de tratar das dificuldades que eles tenham. Dizia também que os europeus

andam a enganar-nos porque dizem que para se ser doutor é preciso estudar,

mas eu não estudei e sou doutor e o saber que eu tenho eles não podem

adquirir, eu não trato só da saúde mas também das dificuldades de cada um,

e os doutores europeus não sabem destes remédios.66

O Nyanga Munhai ao fazer propaganda de seus serviços junto aos

trabalhadores africanos, não hesitou em mostrá-los mais vantajoso em

65 TINYANGA. Tinyanga (grupo de) – Vila de Mácia: depoimento [ago. 2012]. Entrevistador(a): Jacimara Sousa Santana (língua Changana). Trad. da Língua Changana Nyanga Secina. Vila de Macia, 2012, Arquivo mp3 (acervo pessoal).

66 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e a Subversidade, no 144. Boletim de Informação, 19 de maio de 1966.

100

relação ao ocidental, enfatizando uma das singularidades do tratamento da

cura africana, contemplar a dimensão social de seus pacientes, oferecendo-

lhes uma assistência integral com fins de proporcionar o seu completo estado

de bem estar. Munhai também contradisse a ideia de eficácia e verdade

atribuída exclusivamente ao conhecimento médico ocidental, ao afirmar que

ele também era doutor e como tal, era dotado de um saber de cura embora

não tivesse estudado medicina nas escolas européias.

De um modo geral, a pessoa para se tornar Nyanga, é submetida a uma intensa

formação baseada na tradição oral e na experiência durante alguns anos na

casa do (a) seu (sua) mestre, também conhecido (a) por B’ava (pai). É nesta

ocasião em que a pessoa é iniciada na profissão, aprende a conviver com

seus espíritos, a manipular suas vestes e instrumentos de trabalho, inclusive

os que são destinados à realização da advinha, conhece as ervas e os seus

usos entre outras coisas. Todo processo ocorre mediante a realização de

diferentes cerimônias tanto privadas quanto públicas. Nem todos Tinyanga

entram em transe, contudo é comum a afirmação de ser a sua prática

orientada por espíritos familiares ou estrangeiros agregados a família67.

Outro Nyanga envolvido em campanha contra os serviços de saúde ocidental,

segundo informantes anônimos do governo colonial, foi o Zeferino Maguzulana

Cossa. No boletim de informação de abril de 1970 registrou que esse Nyanga

de 65 anos também era chefe da povoação Maguzulana, em Magude, e era

reconhecido como um renomado “curandeiro”, havendo muita procura por

67 HONWANA, Alcinda. Espíritos Vivos, Tradições Modernas, op.cit; LANGA, Adriano Ofm. Questões Cristãs à Religião Tradicional Africana, op.cit; MUTHEMBA, Sansão. Um Médico Tradicional do Sul de Moçambique com duas Especialidades: Mungoma e Nyamusoro.op.cit; Entrevista com um grupo de Tinyanga em Chibuto por Jacimara Souza Santana. Língua Changana, tradução Adelina Vânia Daniel Macuácua, 17 de julho de 2011.

101

suas consultas, de tal modo, que ele chegou a construir em seu terreno um

grande edifício de alvenaria, de bom acabamento e instalações próprias para receber

europeus e outras pessoas civilizadas, uma espécie de casa de saúde, com 6 quartos

numerados e com mobiliário. Sua especialidade era fornecer talismãs e amuletos68.

Esse Nyanga foi preso durante 20 dias na administração local por lhe ser

atribuída a responsabilidade do insucesso da campanha de vacina BCG, e

por ser acusado de coletar dinheiro da população para apoiar o movimento

“subversivo”, tendo recolhido um montante de 500$00 escudos dos habitantes

de sua área para este fim. Também havia notícias, logo após a sua saída da

prisão, de que aquele Nyanga intencionava matar o administrador Júlio dos

Santos Peixe por lhe ter dado ordens de prisão com uma mistela, “feitiço”, que

seria providenciado por seu B’ava, Nyanga Julai Matusse, também conhecido

por Nenguassune, a quem o Nyanga Cossa também havia solicitado ajuda

na realização de rituais que lhe restabelecesse seu prestígio muito abalado

depois da prisão.69

O prosseguimento das investigações coloniais não negou o ato de o Nyanga

Cossa boicotar a campanha de vacinação, mas em relação aos demais fatos,

concluiu tratar-se de um boato gerado por seus aprendizes por razão de

insatisfação com o seu mestre. Não se sabe se esta foi a forma encontrada

por aquele grupo de formandos para desviar a atenção das autoridades

68 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e a Subversidade, no 144. Boletim de Informação, Distrito de Gaza, João Belo, 16 de abril de 1970.

69 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e a Subversidade, no 144. Boletim de Informação, Distrito de Gaza, João Belo, 16 de abril de 1970; FRY, Peter. Spirits of Protest. Spirit-mediums and the articulation of consensus among the Zezuru of Southern Rhodesia (Zimbabwe).Cambridge, University Press, 1976.

102

coloniais da figura de seu mestre Nyanga Cossa. O próprio B’ava deste Nyanga,

o Julai Matusse ou Nenguassune há tempos estava na mira da investigação

portuguesa pelo mesmo motivo, suspeita de envolvimento com atos de

subversão contra o regime colonial.70

O Nyanga Julai Matusse ou Nenguassune também tinha fama de bom curador e

habitava nas terras de Limpopo, em Gaza, mas era procurado constantemente

por sul-africanos. Ademais não tinha passado despercebido das autoridades

coloniais seu manifesto apoio à política insurrecta do régulo Joshua Nkomo,

um líder nacionalista da então Rodésia (Zimbábue), fundador do partido

People’s Caretaker Council (PCC) em 1962, o mesmo que antes tinha liderado

o partido Zimbabwe African People’s Union (ZAPU) e foi preso pelo governo

britânico em 1965, após o banimento daquelas e outras organizações que

pretendia a independência do Zimbábue. Apesar de algumas autoridades

portuguesas avaliarem o Nyanga Matusse como potencialmente favorável

ao governo colonial, inclusive depois de ele ter manifestado grande apoio à

nova tentativa da campanha de vacina BCG, incentivando a população a se

vacinar, sua ausência prolongada das terras (quase um ano desde a prisão

de Joshua Nkomo), longe de suas 60 mulheres, cerca de 120 filhos e centenas

de cabeças de gado ainda mantinha desperta suspeitas a seu respeito.71

O incentivo de boicote dos serviços de saúde ocidental parece ter sido uma

prática comum entre Tinyanga. Nos boletins de informação também se pode

70 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e a Subversidade, no 144. Boletim de Informação, Distrito de Gaza, 24 de março de 1966; Boletim de Informação. Baixo Limpopo, 31 de janeiro de 1963; Boletim de Informação do Governo de Gaza, 12 de dezembro de 1962, p 109.

71 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e a Subversidade, no 144. Boletim de Informação, Distrito de Gaza. João Belo, 16 de abril de 1970; Boletim de Informação do Distrito de Gaza, 24 de março de 1966.

103

identificar a declaração da NyangaB’ava Catarine, residente no bairro do

Caniço em Lourenço Marques, de que a procura dos hospitais por africanos

não passava de uma perda de tempo. Também o Nyanga Manhaia Tivane,

morador nas terras do Conselho de Bilene, foi denunciado por informantes

do governo, sendo tal registro identificado nestes termos:

[...] Costuma fazer propaganda em desabono dos Serviços de saúde afirmando

que os tratamentos feitos nos postos de socorros e hospitais não valiam de

nada e que é mais uma maneira dos portugueses roubarem o dinheiro dos

africanos.

Os africanos deviam decidir em conjunto não mais recorrerem aos

tratamentos dos hospitais e deixarem-se apenas tratar pelos curandeiros que

são os únicos que se interessam pela saúde e futuro dos africanos, pois são

seus irmãos. 72

Não se pode deixar de reconhecer que o fato de os Tinayanga desencorajarem

a freqüência de africanos aos serviços de saúde ocidental também estava

relacionado à defesa de clientela visando garantir ganhos econômicos.

Os serviços ministrados por Tinyanga eram pagos assim como o era nas

repartições do Estado colonial, quer seja através dos impostos ou no ato da

prestação de serviços. E é provável que as mudanças econômicas introduzidas

com o colonialismo tenham impactado nos custos dos serviços de cura

Nyanga ao longo do tempo. A condição financeira da pessoa Nyanga foi um

dos aspectos que despertou a atenção de algumas autoridades coloniais

quando estas passaram a exercer uma vigilância mais detalhada no cotidiano

daquela figura social. O boletim do ano de 1966, por exemplo, informa que

72 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Carta ao Exmo. Comandante do Corpo da Políciade Segurança Pública. Lourenço Marques, 5 de abril de 1967; ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Boletim de Informação. Lourenço Marques, 21 de março de 1966.

104

a Nyanga Delfina Fadugo Mungunhane, moradora da Circunscrição dos

Muchopes, cobrava por consulta aos seus doentes no ano de 1966, 50$00

escudos, acrescido de 100$00 escudos caso ficassem curados.

O Nyanga Macheluane Lucas Malule, morador da povoação de Olombe,

situada na área do Baixo Limpopo também escapou de ser preso pelo mesmo

motivo: campanha de boicote dos serviços de saúde colonial. O Nyanga

Malule teve a seu favor um antigo comerciante do local que afirmou para

os informantes do governo desconhecer que ele andasse desencorajando

africanos a frequentarem os serviços de saúde ocidental. Também pode

contar com a sensatez do informante que afirmara em seu relatório ser

quase impossível impedir que africanos deixassem de consultar Tinyanga,

não somente pela antiguidade destes no trabalho de cura, mas também pela

deficiente assistência em saúde que o Estado colonial dispensava naquela

parte da colônia, conforme seu parecer:

[...] A Delegacia de Saúde em Vila Alferes Chamusca, fica a mais de 100

quilômetros daquela zona. Não existem postos sanitários, salvo os das Aldeias

do Colonato, que só prestam assistência aos colonos e trabalhadores da

Brigada Técnica do Limpopo, com exceção dos primeiros socorros em caso

de agressão ou acidente, e mesmo os postos que ficam mais próximos são os

da Aldeia de Madragoa e Senhora da Graça, a cerca de 40 km. Neste Conselho

a Delegacia de Saúde possui apenas um posto sanitário na Aldeia Pegões, que

também fica a grande distância73 [...]

Segundo opinião deste informante, a distância dos postos sanitários

coloniais e o costume não deixavam de atuar como um incentivo para a

população de Baixo Limpopo buscar a assistência dos Tinyanga. Mas o fato

73 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Relatório de Notícias. Baixo Limpopo, 2 de novembro de 1966.

105

da distância ou inexistência de postos sanitários coloniais não era o motivo

mais fundamental para isso, às vezes se percorria longas distâncias para ter

acesso a um tratamento de cura endógeno.

Fontes do período colonial mostram não ter sido rara a migração de pessoas

em busca de consultarem-se com Tinyanga, havendo ocasião em que

estes também migravam para exercer o seu ofício em lugares distantes da

povoação de sua origem. Correspondências e processos jurídicos entre os

anos de 1954-1971 mostraram ter havido um constante fluxo migratório de

Tinyanga e clientes entre o sul de Moçambique (de modo mais predominante

Gaza e Maputo), Zimbábue, África do Sul e Suazilândia.

Nos boletins de informação do governo, é comum encontrar registros de

um ou outro Nyanga habitante de Gaza, que por seu prestígio, atraía muitos

clientes. No boletim de dezembro de 1968, consta que o Nyanga Matabule,

por curar infertilidade tanto em mulheres quanto em homens, atendia

clientes de longa distância que viajavam para consultarem-se com ele. Isto

recorda o já mencionado Nyanga Cossa que também residia e consultava em

Magude seus vizinhos e migrantes da África do Sul. 74

Possivelmente, a fama de boa curadora foi o motivo que atraiu no ano

de 1966 - à casa da Nyanga Chetereca Zandamela, residente no distrito

de Gaza - uma comitiva dos filhos do rei de Suazilândia, Sobuza, os quais,

insistentemente a convidaram para assumir o cargo de Nyanga real em

74 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Boletim de informação. Distrito de Gaza. Conselho do Caniçado, 22 de dezembro de 1969; Boletim de informação. Conselho de Magude, 1968;AHM. Fundo da Direção dos Serviços dos Negócios Indígenas. Seção A/25.Feiticeiros e Curandeiros. v. 1, cota 83. 1951.

106

decorrência do falecimento do anterior, proposta que foi recusada, ainda

que eles se mostrassem dispostos a solicitar uma autorização ao governo

colonial português. Anos mais tarde, em 1972, por ocasião do mesmo rei

se encontrar doente, 58 suazis retornaram a Gaza, em Baixo Limpopo, à

procura de outra Nyanga. Havia suspeitas de que a doença resultava de ação

de wuloyi, algo que foi confirmado na advinha.75

O boletim de setembro de 1964 registrou a denúncia de que, através da

fronteira de Goba, situada entre Suazilândia e Moçambique, ocorria um

permanente “comércio clandestino de medicamentos” entre africanos

moradores do território Suazi e a Nyanga de nome Escudos.76

Também em 1954, Joseph Mondlane solicitou autorização à Curadoria dos

Indígenas Portugueses na África do Sul para tratar-se com o Nyanga Enoc

Mahlulani de Xai Xai pelo período de cinco meses, mas seu pedido não foi

aceito. Em virtude das tentativas de controle sobre a migração de africanos

e sobre o movimento pro-nacionalista, aqueles que retornassem à colônia

portuguesa sem o devido conhecimento das autoridades poderiam ser

surpreendidos com interrogatórios policiais. Foi o que ocorreu aos sul-

africanos, Mahotela Sanson Macheke, Shedzane Willian Baloy e Eliasse

Macheke que se deslocaram sem autorização prévia ao Conselho de

Caniçado-distrito de Gaza, para consultarem um Nyanga que lhes indicasse o

suposto feiticeiro (a) provocador da doença da esposa de um deles.77

75 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Boletim de informação, Lourenço Marques, 30 de dezembro de 1966; Boletim de informação, Conselho do Baixo Limpopo, 24 de abril de 1972.

76 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Boletim de informação, Lourenço Marques, 30 de dezembro de 1966. Serviços de Saúde e Higiene. Lourenço Marques, 9 de setembro de 1964.

77 AHM. FDNSI. Cx 83, 1954.

107

Um processo administrativo do ano de 1954 ainda mostrou que Tinyanga de

Pafúri, região de Alto Limpopo-Gaza, eram muito procurados por moradores

de Zimbábue, não deixando de também migrarem para esta terra para iniciar-

se, trocar conhecimentos de cura ou exercer a sua função de Nyanga. Luis

Mtupo Sibanda, por exemplo, depois de trabalhar um tempo no Corpo da

Polícia de Moçambique, em Lourenço Marques, deslocou-se para Bulayaio-

Zimbábue, onde foi iniciado como Nyanga, passando a exercer tal profissão em

Niassalândia (Malaui) e depois em Beira, Moçambique. Segundo informações

obtidas pelo sub-chefe da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE),

Eugênio José de Castro Spranger, até 1968 foram identificados mais de 150

Tinyanga residentes na fronteira de Moçambique com a Rodésia, local muito

próximo do distrito de Chipinge, cujos habitantes tinham grande preferência

em ser atendido por Nyanga da colônia portuguesa. Similar opinião movia

pessoas de outras áreas daquela colônia.78

Migrar para territórios vizinhos constituiu outra estratégia adotada por

Tinyanga e seus clientes em resposta às medidas de controle e coibição imposta

pelo Estado colonial. Isto confirma que as fronteiras criadas por europeus não

impediram a continuidade de relações sociais entre seus habitantes. Pessoas

se deslocavam independente da autorização de governos coloniais para fins

diversos: vender mercadorias, trabalhar nas minas, docas ou agricultura,

visitar familiares e também, os Tinyanga. Também não era raro que africanos

fugindo de pesados impostos, sanções judiciais, perseguição política e demais

sofrimentos experimentados na colônia do governo português se evadissem

78 AHM.FDNSI.Cx 83. Conselho Administrativo de Alto Limpopo, 1954; ANTT.SCCI.Feiticismo e Subversidade, no 1444. Boletim de Informação de 7 de julho de 1965, Lourenço Marques.

108

para territórios de colônia britânica.

Diante do exposto, sugiro que a inter-relação entre os saberes de cura

africano e ocidental foi uma iniciativa anterior às discussões propostas pela

Organização Mundial de Saúde a partir de 1978. Embora oficialmente, o

Estado rivalizasse com os serviços do grupo Tinyanga se interessou pelos

saberes ervanários em poder desse grupo e, em segredo, ainda que por

iniciativas individuais de médicos, enfermeiros europeus e africanos, Tinyanga

ou clientes (não somente africanos, mas também europeus), experiências

complementares de assistência de saúde foram desenvolvidas.

Tinyanga incorporaram novos conhecimentos às suas práticas de cura, não

somente oriundo do contato com grupos de médicos-sacerdotes distante do

seu local de morada, mas também por incorporação de certas práticas do

universo médico ocidental.

109

MEDICINA, SEGREGAÇÃO E ASSIMILAÇÃO URBANA

NA CIDADE DO CABO, 1901

Giovani Grillo de Salve

A medicina colonial ocidental e as primeiras experiências de segregação racial

urbana na Cidade do Cabo estão intimamente vinculadas a uma história de

negociações políticas e sociais complexas, devendo, portanto, ser entendidas

como filhas de um mesmo espaço e tempo. Sendo assim, não podem ser

relacionadas sob uma visão unilateral, guiada pelas influências que a

primeira teve sobre a segunda, mas sim compreendendo o compartilhar de

experiências, negociações, avanços e resistências que se entrecruzam em

diversos momentos e são sempre reveladas em situações limítrofes.

Este capítulo apresenta um panorama da história da epidemia de peste

bubônica do ano de 1901 na Cidade do Cabo e aponta atitudes políticas de

dois diferentes médicos em relação ao avanço segregacionista do início do

século XX, em especial como suas atuações antagônicas são representativas

das possibilidades médicas do período. De forma mais específica, o texto

revela como as experiências dos doutores Alfred John Gregory e Abdullah

Abdurahman podem ser lidas como contrapontos de atuações médicas

dentro de um processo que culminou na elaboração de políticas específicas

110

de segregação para as populações nativas africanas ao passo que também

consolidou a assimilação de outras populações de cor1 aos espaços urbanos

da Cidade do Cabo.

Após esta breve introdução, iniciaremos o capitulo compondo um quadro

mais amplo do debate historiográfico que envolve a questão. Em seguida,

contextualizamos o surto de peste bubônica de 1901, trazendo à tona os dois

sujeitos privilegiados em nossa análise. Por fim, fazemos um balanço de como

os doutores Dr. Alfred Gregory e o Dr. Abdullah Abdurahman representam

dois extremos de um prisma de possibilidades médicas e políticas do período.

Sabemos, contudo, que ao dedicarmos nossa análise apenas à atuação

destes dois médicos coloniais não prestamos justiça a outros agentes desta

história2. Porém, temos um motivo para isto: por mais que enfermeiras,

parteiras, médicos tradicionais, tais como os adivinhos (diviners) e herbalistas

(herbalists),3 também mereçam a devida atenção historiográfica, seus papeis

políticos em relação às remoções forçadas do início do século XX não foram

tão profundos e significativos quanto aquele dos médicos ocidentais.

Antes de analisarmos mais especificamente as relações estabelecidas

1 Ao longo dos séculos XIX e XX o termo black foi recorrentemente utilizado para descrever todos aqueles grupos que não pertenciam a minoria dominante branca. Em nosso texto optamos por utilizar populações ou pessoas de cor, ou ainda não-brancos, para nos aproximar da forma como o termo black é utilizado social e politicamente na África do Sul.

2 Como bem escreveu Roy Porter, “os eventos médicos são frequentemente complexos rituais que envolvem famílias e comunidades da mesma forma que os afligidos e médicos” in: PORTER, Roy. “The Patient’s view: Doing Medical History from below”, in: Theory and Society, Vol. 14, no2 (Mar., 1985), pp. 175-198. (p. 175).

3 Estes eram os dois termos coloniais utilizados para dividir os médicos tradicionais. Como escreveu o autor que assina como W. G. em Notes from the Transkei upon witchcraft, “Doctors among the natives are two kinds, Herbalists and Diviners. There are some herbalists who are not diviners and some are both. Among herbalists, you have doctors for almost every disease with which they are acquainted – head- doctors, back-doctors, stomach-doctors, &c. Of these, some have a particular root known only to themselves, and handed down as an heir-loom, which when administered, is supposed to be a specific for the particular disease they are capable of treating.” in: W. G., “Notes from the Transkei upon witchcraft”, The Kaffir Express – An English Kaffir Journal, Lovedale, vol. IV, no41, 7th of February, 1874, (p. 5).

111

entre a medicina colonial e as primeiras experiências de segregação racial

urbana é preciso exatamente atentar para o uso do conceito segregação na

África do Sul. Apesar de constantemente vinculada à política do Apartheid,

a segregação institucional precede em quase um século o conjunto de leis

implementados após 1948 pelo Nationalist Party4. De fato, existe um amplo

debate historiográfico acerca de quando é possível utilizar a conceito de

segregação para explicar contextos políticos sul-africanos.

William Beinart e Saul Dubow, por exemplo, acreditam que o termo assumiu

o sentindo que nos é claro ainda no início do século XX. Segundo esses

autores, a segregação teria surgido para definir “um conjunto de políticas

governamentais e práticas sociais que pretendiam regulamentar as relações

entre brancos e não-brancos, colonizadores e colonizados”.5 Segregação, de

maneira ampla, definiria “uma ideologia complexa e um grupo de práticas

que procuravam legitimar diferenças sociais e desigualdades econômicas

em todos os aspectos da vida cotidiana”6.

John W. Cell, de maneira muito similar, entende que o conceito segregação

também teria surgido no início do século XX, porém, ao seu ver, só assumiu um

sentido claro e específico à luz das proposições da Unificação sul-africana de

1910. 7Ao comparar a história da África do Sul com aquela do sul dos Estados

4 Para uma breve porém detalhada explicação dessa política ver: “The National Party Minister Explains Apartheid, 1950” in: WILLIAMS, John A. From the South African Past: Narratives, Documents and Debates, Boston: Houghton Mifflin Company, 1997. (p. 252).

5 BEINART, William and DUBOW, Saul (eds.) Segregation and Apartheid in Twentieth-Century South Africa, London: Routledge, 1995. (p. 1).

6 Idem (p. 4).

7 CELL, John W. The highest stage of white supremacy: The origins of segregation in South Africa and the American South, New York: Cambridge University Press, 1982.

112

Unidos da América, John Cell entende que, no primeiro caso, foi o processo

de Unificação sul-africana que fez com que antigas práticas de subjugação

passassem a ser utilizadas de maneira mais uniforme pelos governos locais.

Cell afirma que a “segregação estava associada de perto com o que nós

comumente chamamos de índices de modernização: cidades e vilas, os níveis

iniciais de industrialização, com classe e Estado (ou partidos) em formação”.8

Apesar de certa tendência acadêmica em aceitar que a segregação só pôde

ser vista nitidamente neste período, identificamos uma segunda vertente

historiográfica que identifica diversos elementos que compunham as práticas

segregacionistas ainda no período colonial holandês.9

Richard Elphick e Hermann Giliomee são bons representantes desta escola. Em

seu clássico estudo The Shaping of South African Society, os autores compõem

uma coletânea de artigos nos quais demonstram que as estruturas coloniais

do Cabo, principalmente em relação ao acesso a direitos sociais e políticos,

foram sequencialmente marcadas por estratificações hierarquizadas entre

diferentes grupos populacionais.10 Segundo estes,

(...) entre 1652 e 1820 os colonialistas possuíam poder suficiente para impor

e manter uma ordem racial que diferia dos comprometimentos iniciais

da Companhia das Índias Orientais Holandesas e assim estruturaram uma

sociedade balizada por uma linha entre escravos e livres (...). Portanto,

entre 1652 e 1820 foi desenvolvida na África do Sul uma estrutura racial de

dominação e convicções compartilhadas entre os europeus acerca da ‘correta

8 Idem. (p. x).

9 WORDEN, Nigel. The making of modern South Africa, Cambridge: Blackwell, 1995.

10 ELPHICK, Richard and GILIOMEE, Hermann (eds.) The Shaping of South African Society, 1652- 1820, Cape Town: Longman Penguin Southern Africa, 1979.

113

ordem’ da sociedade.11

Nigel Worden também faz importantes apontamentos neste sentido. Este

especialista em História da Escravidão na África do Sul relata que “percepções

da superioridade racial branca eram aparentes desde os primeiros encontros

coloniais entre os colonos holandeses e as populações pastoris Khoi do

Cabo”.12 Entretanto, para Worden, isto não poderia ser considerado como

segregação, pois ainda que existisse uma tradição de supremacia branca na

África do Sul antes do século XIX, foi apenas no início do século XX que a

segregação tornou-se uma realidade social e política. O autor grifa que:

A segregação precisa ser distinguida da supremacia branca. Apesar da última

estar apoiada nas percepções das diferenças raciais e ter se desenvolvido na

sequência da conquista colonial, a segregação na África do Sul não era apenas

uma ampla ordem de subordinação racial. Segregação implicava princípios

que reforçavam a separação, não apenas subordinação, de não-brancos e

brancos nas esferas do trabalho, residência e governo.13

Talvez a principal diferença entre interpretações históricas da segregação

repouse justamente no fato de que até meados do século XIX a noção

científica de raça ainda não era o elemento definidor das fronteiras entre

segregados e assimilados – o que reforça o argumento de Beinart, Dubow e

Cell acerca da importância do início do século XX na demarcação de uma nova

qualidade das relações desiguais entre não-brancos e brancos. Por outro

11 Idem. (pp. 385-386).

12 WORDEN, Nigel. The making of modern South Africa, Cambridge: Blackwell, 1995. (p. 66)

13 Idem. (p. 72).

114

lado, é inegável a existência de um processo histórico no qual diferentes

populações locais foram constantemente hierarquizadas e subjugadas,

fazendo com que, enquanto umas recebessem benefícios, outras tivessem

suas possibilidades de avanços sociais negadas. 14

Neste aspecto, as considerações de Nigel Worden são extremamente

importantes. Independentemente do argumento historiográfico a ser

seguido, nos importa admitir que ao final do século XIX existia na Cidade

do Cabo uma fluidez de limites sociais. Esta área embaçada na qual a

segregação ainda não era codificada legalmente viabilizava esperanças em

muitas pessoas de cor, que fizeram de suas vidas um campo de constante

luta pelo acesso a direitos políticos em termos não raciais.15 Por isto, o que

mais nos interessa nessa historiografia é o fato de que até 1910 havia uma

parca definição sobre quem deveria, ou poderia, ser segregado, criando-se

assim brechas políticas e sociais que foram recorrentemente utilizadas para

estender, reduzir ou modificar as proposições segregacionistas do período.

Será fundamental lembrarmos deste ponto ao longo do texto pois este é o

problema central que queremos abordar.

Portanto, é importante entender que quando falamos de segregação lidamos

com um conceito e principalmente com determinado período que lhe confere

historicidade, período este que pode alongar-se ou contrair-se mediante a

posição de análise adotada. Seria possível, inclusive, apontar que até o final da

14 Um interessante estudo sobre as múltiplas formas e limites destas hierarquias pode ser encontrado em: ROSS, Robert. Status and Respectability in the Cape Colony, 1750-1870 – A tragedy of manners, Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

15 SPITZER, Leo. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental, 1780-1945. Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2001.

115

primeira metade do século XX privilégios não raciais puderam coexistir com

os posicionamentos altamente perniciosos das elites brancas sul-africanas –

dificultando ainda mais um recorte claro para o início da segregação. Assim,

este capítulo trabalha com elementos móveis em múltiplos níveis e contribui

com esse rico debate historiográfico ao apresentar de perto um momento

chave da história da África do Sul.

A história da medicina e do tratamento médico acompanha e reflete as

ideologias e condições vigentes de divisão social.16 Homens e mulheres,

crianças e adultos, pobres e ricos, brancos e não-brancos foram

constantemente submetidos a distintos olhares e tratamentos clínicos.

Na Cidade do Cabo isto não era diferente. Desde o final do século XIX, por

exemplo, o New Somerset Hospital, à época o maior e mais importante hospital

da cidade, já possuía alas separadas entre homens brancos e homens de

cor, mulheres brancas e mulheres de cor. Harriet Deacon e Elizabeth van

Heyningen descreveram estas separações em diversas instituições médicas

da colônia e concluíram que tratamentos racializados já existiam desde a

década de 1830. Ao identificarem o início desta prática, também perceberam

que ao longo do século XIX as atitudes médicas em relação a estas separações

modificaram-se continuamente até estabelecerem uma maior uniformidade

no início do século XX.17

No âmbito político as mudanças operadas pelos tratamentos médicos

16 BICKFORD-SMITH, Vivian. “South African Urban History, Racial Segregation and the Unique Case of Cape Town?”, in: Journal of Southern African Studies, Vol. 21, no 1. Special Issue: Urban Studies and Urban Change in Southern Africa (Mar., 1995), pp. 63-78 (p. 67).

17 DEACON, H. and van HEYNINGEN, E., “Opportunities Outside Private Practice before 1860”, in: DEACON, H., PHILLIPS, H., van HEYNINGEN, E. The Cape Doctor in the Nineteenth Century: A Social History, New York: Rodopi, 2004.

116

direcionados aos pacientes de cor foram importantes para construir ideologias

de organização urbana. Desta forma, diversos discursos racializados e racistas

proferidos por médicos fomentaram debates políticos que ampliavam as

clivagens institucionais de forma que elas pudessem também ser utilizadas

para definir relações em outros níveis da vida cotidiana da cidade.

Observando, por exemplo, a produção das legislações de época, sobretudo

as médicas e sanitaristas, é possível encontrar ricos debates balizados

por argumentos de médicos que acreditavam ser preciso transportar

as estratificações sociais contidas em suas práticas para outros setores

da sociedade. Esta seria a única maneira de evitar que catástrofes

epidemiológicas, como aquela da varíola da década de 1880,18 voltassem a

atingir as populações europeias do Cabo.

Entretanto, não se deve acreditar que todos os médicos coloniais seguissem

os mesmos preceitos. Da mesma forma que é inegável a existência de diálogos

e debates entre médicos, políticos e legisladores em prol da segregação,

é preciso lembrar que as posições políticas destes médicos nunca foram

harmônicas. Pelo contrário, eram geralmente confusas e frequentemente

negociadas à luz de seus interesses, variando em tom, profundidade e

consciência – por isso, trabalhar como este tema é lidar com um verdadeiro

campo de batalhas.19

Ao reconhecer que as mudanças do período e a efetiva codificação jurídica

18 PHILLIPS, Howard. Epidemics: The story of South Africa’s five most lethal Human Diseases, Athens: Ohio University Press, 2012.

19 DEACON, Harriet. “Racism and Medical Science in South Africa’s Cape Colony in the Mid- to Late Nineteenth Century”, in: Osiris, 2nd Series, Vol. 15, Nature and Empire: Science and Colonial Enterprise (2000), pp. 190-206.

117

das práticas de segregação eram negociadas e não simplesmente dadas por

médicos e sanitaristas, passamos a entender diferentes vivências do espaço

urbano da Cidade do Cabo. Assim, experiências de trabalho, convívio social

e embasamento científico devem ser cuidadosamente filtradas para que

nossa análise escape àquela do “discurso médico-científico”20. É impossível

entender o contexto de época sem mencionar as redes de sociabilidade nas

quais os médicos estavam inseridos.

Consequentemente, o surgimento da segregação institucionalizada não

pode ser lido como processo previamente ordenado e com fins claros. As

análises devem apontar as complexas relações do período para que um

entendimento amplo do tema seja alcançado. Descrevê-lo a partir de cima,

como se a segregação fosse um dos frutos da agência de um ser irreal

continuamente nomeado de medicina é um erro primário. Nenhuma das

remoções forçadas, ou ainda as perniciosas atitudes racistas do período,

eram unânimes ou foram dadas a priori; foram construídas em situações de

constante negociação política no qual opera um intrincado jogo de interesses

e crenças. Sem investigar como os próprios sujeitos que conformaram a

elaboração, aplicação e fiscalização dessas leis21 pensavam a segregação,

acabamos esvaziando um rico campo de pesquisas. É neste sentido que os

médicos, para além de um discurso generalizante da medicina, assumem um

papel importante.

20 DUBOW, Saul. A Commonwealth of Knowledge: Science, Sensibility and White South Africa 1820- 2000, Oxford: Oxford University Press, 2006.

21 LARA, Silvia H. e MENDONÇA, Joseli M. N. (eds.) Direitos e justiças no Brasil, Campinas: Editora Unicamp, 2006. (p. 13).

118

Maynard W. Swanson escreveu em 1977 um artigo seminal que abriu o campo

para muitas das pesquisas que propuseram aproximar a medicina colonial das

práticas de segregação. Maynard Swanson afirmava em seu texto que tanto

as primeiras experiências de remoções forçadas do início do século XX como

as primeiras codificações legais da segregação passavam por proposições

médicas. Existiria assim uma correspondência temporal “entre as primeiras

práticas de segregação e as emergências epidemiológicas”22, o que, de fato,

revelaria o papel que a medicina ocidental desempenhou no acirramento da

segregação. Na época em que o artigo de Swanson foi publicado, levantou

um intrigante problema historiográfico e, por este motivo, passou a ser

recorrentemente utilizado por especialistas da área. O texto tornou-se um

clássico e foi formativo para muitos pesquisadores, servindo de influência

para que seu conceito central – o da existência de uma “Síndrome Sanitarista”

na Cidade do Cabo no início do século XX – fosse aprofundado.

O texto de Maynard Swanson serviu de partida para as teses de doutorado de

Howard Phillips23 e de Elizabeth van Heyningen24 e para os trabalhos de Saul

Dubow25, Harriet Deaco26, Anne Digby27, Premesh Lalu28, entre outros. Todos

22 SWANSON, M. “The Sanitarion Syndrome: Bulbonic Plague and Urban Native Policy in The Cape Colony, 1900-1909” IN: The Journal of African History, Vol. 18, no3, 1977. (p.388)

23 PHILLIPS, Howard. Black October, the impact of the Spanish Influenza Epidemic of 1918 on South Africa, Cape Town: University of Cape Town, PhD thesis, 1984.

24 Van HEYNINGEN, E. Public Health and Society in Cape Town, 1880-1910, Cape Town: University of Cape Town, PhD thesis, 1989.

25 DUBOW, Saul. ScientificracisminSouthAfrica. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

26 DEACON, Harriet. “Racial Segregation and Medical Discourse in Nineteenth-Century Cape Town” in: Journal of Southern African Studies, Vol. 22, No. 2, Jun. 1996.

27 DIGBY, Anne. Diversity and Division in Medicine: Health Care in South Africa from the 1800s, Oxford: Peter Lang, 2006.

28 LALU, Premesh. “Medical Anthropology, Subaltern Traces, and the Making and Meaning of Western Medicinein South Africa: 1895-1899” in: History in Africa, Vol. 25 (1998), pp. 133-159.

119

estes autores contribuíram para um melhor entendimento dos vínculos

entre medicina colonial e segregação urbana, transformando o campo de

pesquisas e ampliando seus objetos e problemas. Assim, se na década de

1970 a história social da medicina na África do Sul era quase inexistente, hoje

ela é uma área bem estabelecida e respeitada. Contudo, mesmo com todos

os avanços alcançados, alguns problemas persistem.

Poucos foram aqueles que trouxeram à tona as vozes dos sujeitos

envolvidos neste processo, principalmente quando estes não tiveram

atitudes políticas e médicas centrais à história narrada. Em muitos textos

os médicos apresentados são apenas alegóricos e servem para justificar

um argumento maior, i.e., o da importância da Medicina para o surgimento

da segregação urbana, como pensava Maynard Swanson. Acreditamos

ser importante rever alguns destes paradigmas e buscarmos uma maior

aproximação destes sujeitos ao contexto da Cidade do Cabo. Desta forma,

ao destacarmos oposições dentro das atitudes políticas de dois médicos

coloniais, caminhamos no sentido de propor uma renovação de pesquisas,

debates e metodologias – principalmente em relação ao uso das fontes – que

amplie ainda mais uma área extremamente importante para a história da

África do Sul.

Foram três as pandemias de peste bubônica. A terceira, e mais recente, teve

início na segunda metade no século XIX no sul da China, espalhou-se por todo

o globo e provocou mudanças históricas na Cidade do Cabo.29 Os primeiros

casos da doença foram identificados em fevereiro de 1901, durante o auge

29 ECHENBERG, Myron. “Pestis Redux: The Initial Years of the Third Bulbonic Plague Pandemic, 1894-1901” in: Journal of World History, Vol. 13, no2 (Fall, 2002), pp. 429-449.

120

da Guerra Anglo-Bôer e, apesar de já no mês de maio de 1901 a epidemia

ter sido contida, casos esporádicos continuaram a ocorrer pelo interior da

colônia durante a primeira década do século.

A primeira suspeita da doença na Colônia do Cabo ocorreu ainda em novembro

de 1900 na pequena King William’s Town. Um médico local enviou um pedido

urgente requisitando uma visita médica oficial para confirmar suas suspeitas

da existência de casos de peste bubônica entre oito africanos, três dos quais

já haviam falecido. Neste final de século a falta de confirmações laboratoriais

e a crescente preocupação com a peste geraram diversos alardes médicos

pela colônia do Cabo. Qualquer morte não explicada era potencialmente vista

como um caso da doença. Foi exatamente por este motivo que o Dr. Mitchell,

o bacteriologista colonial, o Dr. Hornabrook, que já havia trabalhado com

casos da doença na Índia, e o Dr. Gregory, diretor do Medical Officer of Health

(MOH), viajaram para King William’s Town.30 Após uma ampla investigação

junto aos pacientes, seus familiares, amigos e, principalmente, em suas

moradias, os especialistas coloniais confirmaram que a doença em questão

era febre tifoide e não peste. As investigações ainda apontaram que um surto

de febre tifoide estava ocorrendo em toda a região, chegando até a missão

de Lovedale, em Alice, também no Cabo Oriental. Dada a amplitude da

epidemia, o Dr. Mitchell prontificou-se a permanecer na região e a cuidar dos

doentes, visitando outros pacientes que também apresentavam sintomas de

febre tifoide e mantendo-se atento a qualquer sinal da peste.

Enquanto o Dr. Mitchell continuou a trabalhar em King William’s Town

30 “The outbreak of disease” in: The Christian Express, a journal of missionary news and Christian work, VOL. XXX, no 363, Lovedale, December 1st, 1900.

121

e região, o Dr. Alfred Gregory retornou ao seu posto na Cidade do Cabo

para dar continuidade à sua agenda de trabalho. O ano de 1900 havia sido

extremamente conturbado para o Dr. Gregory, principalmente por ter

recentemente assumido o posto de representante colonial do MOH, uma

posição importante e que demandava muitos esforços, especialmente pela

eminência e pelo medo da chegada da peste à colônia.

O Dr. Gregory já havia sido informado pelo Secretário Colonial, Sir Thomas

Lynedoch Graham, que seria sua obrigação impedir que a pandemia

gerasse um caos na cidade. Por isso, já há algum tempo, ambos discutiam

a possibilidade da construção de uma área de contato para possíveis casos

de peste na região de Uitvlugt, a cerca de cinco milhas do centro da cidade.

A região em questão já havia sido apontada como ideal para a construção

de uma reserva nativa pelo Subsecretário Colonial Noel Janisch.31 De fato,

após retornar de King William’s Town o Dr. Gregory conseguiu apoio para

estabelecer um hospital de campanha na região para que possíveis casos da

doença fossem ali tratados.32 À época, uma comissão formada por médicos e

políticos decidiu que remoções compulsórias não deveriam ser empregadas

até que outros meios para tratar a doença fossem testados.

O alarde do final de 1900 foi o último fato a convencer o Dr. Gregory da

importância de um hospital de campanha para tratar os casos da doença, que

não demoraram a aparecer. Em fevereiro de 1901, E. A. McCallum, um homem

branco, funcionário das docas e que há algumas semanas vinha recolhendo

31 Western Cape Repository Archives, Native Affairs, NA, box 456 folio 377.

32 Western Cape Repository Archives, Native Affairs, NA, box 457 – “Report to the Honourable Thomas Lyndoch Graham, g. C. M. L. C., Colonial Secretary of the Colony of the Cape of Good Hope”.

122

ratos mortos para alimentar cães que por ali vagueavam, apresentou um

quadro grave de glândulas inchadas, dores nas juntas e febre alta. Ele foi

diagnosticado como sofrendo de um caso agudo de febre tifoide e logo foi

encaminhado ao recém-construído Rodenbosch Cottage Hospital, um dos

muitos hospitais temporários construídos no Cabo para auxiliar nos esforços

de guerra. Os sintomas apresentados por McCallum, contudo, causaram

muito estranhamento em alguns médicos e uma amostra de seu sangue

foi encaminhada aos cuidados do Dr. Gregory para uma investigação mais

cuidadosa. Na época, o Dr. Mitchell ainda encontrava-se em King William’s

Town trabalhando com os pacientes de febre tifoide e, por isso, o Dr. Gregory

requisitou ajuda do bacteriologista Alexander Edington, do laboratório

colonial de Grahamstown. Em 13 de fevereiro de 1901, Edington confirmou

as suspeitas do Dr. Gregory: a peste havia chego à Cidade do Cabo.33

Os agentes do MOH agiram rapidamente. Primeiro foram criados postos

policiaispara controlar o trânsito de entrada e saída das docas. Depois,

pavilhões das docas foram desocupados e neles foram construídas

enfermarias temporárias para tratar os infectados in loco e colocar casos

suspeitos sob observação. Por fim, E. A. McCallum e todos aqueles que

com ele estiveram em contato foram isolados no hospital de campanha

de Uitvlugt. Apesar destas medidas e de todas as precauções e cuidados

tomados, a doença atingiu a cidade nas semanas seguintes. Em março de

1901 a epidemia já era uma realidade e cerca de 130 casos já haviam sido

registrados, sendo que 56 deles acabaram em óbito. Algumas semanas mais

33 ECHENBERG, Myron. Plague Ports: The global urban impact of Bubonic Plague, 1894-1901, New York: New York University Press, 2007. (p. 271).

123

tarde, esses casos já chegavam a 320 e os óbitos continuavam a aumentar.

À velocidade com que a doença avançava e à alta taxa de mortalidade eram

somadas imagens aterrorizantes da Peste Negra do século XIV. A impressa

local fazia questão de lembrar o caos que poderia se estabelecer a qualquer

momento. O terror visível nas páginas dos jornais foi logo espalhado pela

cidade na forma de violentas inspeções sanitaristas que combatiam um

inimigo mortal, porém invisível e ainda pouco conhecido, mas ao mesmo

tempo amplamente associado às populações de cor. Sem saber muito bem o

que estavam combatendo, os oficiais do MOHagiram pontual e rapidamente.

Decidiram que era preciso tomar uma atitude em relação aos infectados e,

especialmente, às populações de cor da cidade. Casas foram invadidas34

e seus habitantes tiveram suas roupas e pertences pessoais queimados.

A truculência dos inspetores era imensa. Em diversos momentos eles

foram acusados de roubos e assaltos.35 Ao contrário do que fora previsto

anteriormente em relação às remoções forçadas, algumas semanas após o

início da epidemia grandes barracas de lona (assim como barracas menores

feitas às pressas e com materiais improvisados) que conseguiam abrigar até

cem pessoas foram construídas em Uitvlugt para abrigar os cerca de seis mil

africanos removidos à força da Cidade do Cabo.36

34 Western Cape Repository Archives, Medical Officer of Health, MOH, box 8.

35 Western Cape Repository Archives, Colonial Hospital Board, CHB, box 233, folio 190.

36 A história desta área de controle epidemiológico inaugurou o período da segregação urbana na Cidade do Cabo e seus impactos são vistos até hoje. O que começou como um campo de isolamento para uma população vista como potencialmente susceptível à epidemia anos mais tarde se tornou uma reserva exclusiva para a população nativa africana e, novamente na década de 1920, sofreu uma série de remoções forçadas. A reserva foi totalmente destruída e transferida para uma região no Cape Flats, o que é hoje a township de Langa, uma das regiões mais pobres da Cidade do Cabo e habitada por mais de 50 mil pessoas em uma área de cerca de três quilômetros quadrados.

124

Howard Phillips definiu que a trajetória do surto de praga foi repentina, com

um início agudo, o que gerou muita trepidação e pânico conforme as mortes

rapidamente aumentavam. Contudo, segundo Phillips, depois de poucos

meses houve uma diminuição dos casos e uma contínua diminuição da

doença pontuado por esporádicos casos no interior.37 Ao todo, o número de

óbitos na cidade foi de cerca de 360, entre os 735 oficialmente infectados, um

número relativamente baixo quando comparado a outras cidades coloniais.

Acontece que, mesmo com o rápido controle da doença, algumas das atitudes

tomadas pelo MOH não foram revertidas após o término da epidemia. Os

nativos africanos não puderam retornar às suas casas por outras questões

que transcendiam a justificativa epidemiológica e repousavam mais em

argumentos raciais de suas incapacidades de convívio nos espaços urbanos.

Portanto, é possível dizer que epidemia foi apenas o impulso inicial utilizado

por médicos como o Dr. Gregory para dar corpo a uma antiga vontade

das classes dominantes da cidade, i. e., remover as populações de cor dos

espaços urbanos do Cabo.

Desde meados do século XIX construiu-se uma imagem negativa das

populações de cor da África do Sul, principalmente dos Mfengu e dos

AmaXhosa. Em Impartial Analysis of the Kafir Character, por exemplo,

o Reverendo Niven escreveu ainda em 1840 que os “Kafirs”38 seriam

completamente ociosos e personificavam a total indolência humana. Em

resumo, seu texto apresentava uma imagem de que os africanos, em uma

37 PHILLIPS, Howard. Epidemics: The story of South Africa’s five most lethal Human Diseases, Athens: Ohio University Press, 2012. (p. 45)

38 O termo derrogatório Kafir, ou Kaffir, ou Cafre em português, era utilizado neste período para se referir às populações africanas nativas, especialmente os AmaXhosa.

125

escala de humanidade, estariam apenas a “alguns graus acima do zero”.39

Assim como o reverendo, grande parte da população branca do Cabo via

nos hábitos e costumes dos nativos provas negativas de sua civilização.

Segundo Leonard Thompson, “os africanos, a quem eles chamavam de Kaffirs

[seriam]: preguiçosos e estúpidos, mentirosos inveterados, incapazes de

mostrar gratidão, ignorantes de seus próprios interesses”.40 Vivian Bickford-

Smith atesta que na segunda metade do século XIX, dois discursos sobre os

africanos surgiram na Cidade do Cabo. O primeiro apontava que os africanos

seriam “imorais” e “indecentes”, principalmente por andarem seminus pelas

ruas da cidade. O segundo sugeria que essas populações seriam “perigosas”

e “selvagens” por descumprirem os códigos de conduta que os ingleses

forçavam manter como regras estritas.41 Opiniões pejorativas como essas

continuaram a reverberar pela cidade, especialmente após a década de

1870, com o crescente influxo migratório causado pelas guerras coloniais e

pela busca de empregos remunerados na Cidade do Cabo.42

Enquanto a presença dos africanos era constantemente questionada e

criticada, era também justificada e defendida dada a necessidade colonial de

acesso a uma fonte de mão-de-obra barata e passível se ser controlada sobre

forte violência. Esta forma contraditória de lidar com a presença africana

por parte dos colonos tornava-se mais complexa conforme se assistia ao

39 In: CRAIS, Clifton. White Supremacy and Black Resistence in Pre-Industrial South Africa: The Making of the Colonial Order in the Eastern Cape, 1770-1865. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. (p. 132)

40 THOMPSON, Leonard. The Political Mythology of Apartheid, Binghamton: Yale University Press, 1985. (p. 82).

41 BICKFORD-SMITH, Vivian. Ethnic pride and racial prejudice in Victorian Cape Town: Group identity and social practice, 1875-1902, New York: Cambridge University Press, 1995. (p. 80-81).

42 SAUNDERS, Christopher. “Africans in Cape Town in the Nineteenth Century: an outline”, in: Studies in the History of Cape Town, Vol. 2, Cape Town: University of Cape Town, 1980.

126

aumento da violência urbana, da prostituição, alcoolismo e, principalmente,

pelas moradias superlotadas, que se reproduziam também como uma

“epidemia”. Estes problemas sociais levaram os governos municipal e

colonial a investir esforços na pesquisa de soluções possíveis e capazes de

satisfazer a demanda por trabalho ao mesmo tempo em que se respondiam

os temores sociais das classes dominantes da cidade.43 A ideia de remover

esta população para uma reserva não era, deste modo, nova. Em 1879,

por exemplo, Charles Stevens, um dos responsáveis coloniais por realizar

contratos de trabalho com populações nativas e indianas, já havia proposto

a criação de uma reserva nativa separada da cidade para, primeiramente,

controlar o fluxo desses trabalhadores, e também, para conter qualquer

surto epidemiológico que afligisse os nativos.

Stevens obteve sem muitos esforços permissões para construir uma reserva

destinada a abrigar trabalhadores nativos em uma região paralela à linha de

trem que ia para Salt River, ao leste da cidade. Após diversas cabanas terem

sido construídas por nativos, Stevens deu início a uma campanha para atrair

trabalhadores a ocupar ainda mais sua reserva. Contudo, seus planos foram

frustrados e em pouco tempo a localidade estava abandonada. É importante

entender que nesta época os africanos da cidade tinham liberdade para

escolher outros lugares para morar e a decisão de onde iriam se estabelecer

dependia basicamente de suas fontes de renda e da aceitação dos locatários.

Assim, a reserva de Stevens tornou-se um abrigo para os mais pobres

e desprovidos, enquanto que muitos daqueles que haviam conseguido

acumular o mínimo necessário optavam por viver em regiões mais centrais

43 BICKFORD-SMITH, V. Ethinc pride.... (p. 81).

127

da cidade, como, por exemplo, no sexto distrito, próximo ao antigo castelo

da Companhia das Índias Orientais Holandesas, e no primeiro distrito, aos

pés de Signal Hill.

Caminhar pelos seis distritos da Cidade do Cabo era extremamente fácil

nesta época. Cercada por montanhas e pelo oceano Atlântico, a região central

da cidade se estende por poucos quilômetros e isso forçava a população

europeia a viver muito próxima das populações de cor, garantindo à cidade a

impressão de possuir a população “mais diversificada do mundo”.44 No final do

século XIX, diversos relatos narraram a experiência de circular por essas ruas

e a impressão que se tinha desta pluralidade urbana. Em 1900, por exemplo,

o jornalista britânico G. W. Steevens descreveu a Cidade do Cabo como uma

cidade que parecia pertencer ao oeste norte-americano, mas com um leve

odor de Índia: uma “Denver com traços de Délhi”. Seus olhos identificavam

nas largas ruas e construções ornamentadas – com notável irregularidade

no padrão e altura – características norte-americanas, enquanto seu corpo,

por outro lado, sentia que “a batalha entre o sol escaldante e o cortante

frio da manhã” só poderia ser comparada às regiões do norte da Índia. Os

belos bondes, que lembravam aqueles americanos, tinham motorneiros “de

fato importados daquele clima agitado” e poderiam facilmente enganar o

observador mais desatento, pois, se “o maquinário é do Ocidente, o espírito

é do Oriente ou do Sul” uma vez que “em outras cidades com bondes eles são

apressados, aqui são vagarosos”.45

44 PURVES, John (ed.). Letters from the Cape by Lady Duff Gordon. London: Humphrey Milford, 1921. (p.158).

45 STEEVENS, G. W. From Capetown to Ladysmith – An Unfinished Record of the South African War. Edinburg: William Blackwood and Sons, 1900. (pp. 2-3).

128

Para Steevens, o Cabo era um espaço intermediário onde este ocidente

moderno e oriente tranquilo repousavam à sombra da Table Mountain. Sua

descrição ilustra bem como ele lidava com essa percepção:

(...) a Cidade do Cabo dá a ideia de não ser muito rica nem muito pobre, nem muito

industrializada nem muito preguiçosa, decentemente sucedida, racionalmente

feliz, de todo coração calma e tranquila. As construções públicas – o que eu vi

delas – confirmam a ideia de uma quieta meia prosperidade. O lugar não é um

neném, mas também não se deu ao mínimo trabalho de crescer.46

Richard Cadbuny, dois anos mais tarde, também descreveu seu estranhamento

com esse “novo país”. Ele notou que as roupas “inglesas deram lugar a leves

chapéus de feltro, a um leve vestuário, e cores brilhantes”. Os espertos e

lustrosos cavalos ingleses, no Cabo, haviam sido substituídos por mulas

e bois, ou por “cavalos magros e de olhar infeliz, com todas as costelas

aparecendo por debaixo de sua pele”. Caminhando pela cidade, Cadbuny

percebeu que as “principais ruas são bem construídas e possuem um bom

passeio, mas em quase todas as ruas paralelas os caminhos são obstruídos

por pórticos e varandas, o que faz com que os pedestres tenham que ir para

a rua, uma experiência nada agradável no tempo úmido”, quando “as ruas

estão constantemente algumas polegadas abaixo de lama.”47

A situação urbana da cidade também apresentava características específicas

que chocavam os observadores estrangeiros. David Kennedy, um cantor

escocês, ao visitar a cidade em 1879 escreveu que ela era “empoeirada e

suja de dia, e desagradável de noite”. E, para além do nojo que sentiu pelo

46 Ibidem. (p. 4).

47 CADBUNY, Richard. Everyday Life in Cape Colony – In time of Peace. London: T. Fischer Unwin, 1902. (pp. 15–16).

129

espaço urbano, seus olhos não podiam ignorar a pluralidade populacional.

Ele escreveu, por exemplo, que no Cabo a população era composta

basicamente por “europeus, holandeses, malaios, moçambicanos, indianos,

cafres e os ‘meninos da Cidade do Cabo’ (Cape Town Boys) (...) todas as

gamas de cores indo do mais negro da noite, através do crepúsculo dos

meia e um quarto de casta, até o puro branco europeu”.48 Todos ocupando

este mesmo espaço urbano.

William John Ritchie Simpson, considerado por muitos como o “mais

distinto sanitarista tropical do Império Britânico”49, também fez relevantes

considerações sobre a pluralidade desta população e como estes estavam

inteiramente ligados aos problemas urbanos e sociais da cidade e, por

consequência, como também se relacionavam ao aumento das doenças.

Em um discurso proferido em uma filial local da British Medical Association

em 31 de maio de 1901 ele argumentou que:

Depois de Bombaim, a Cidade do Cabo é uma das mais propícias cidades que eu conheço para a epidemia da peste. (...) [Há], um grande número de favelas (slums) velhas e sujas, ocupadas por uma população heterogênea; os Africanos que vivem na cidade não são aptos à vida urbana; os pobres coloureds são ainda mais sujos em seus hábitos, enquanto os Malaios e os Indianos possuem os hábitos dos Asiáticos, e a classe pobre dos Portugueses, Italianos, Levantinos e Judeus são quase tão imundos quanto os outros. (...)

Vivendo nas mesmas áreas não saudáveis, frequentemente vivendo nas mesmas casas, as diferentes raças e nacionalidades estão misturadas de modo insolúvel, então qualquer doença que afeta um certamente afetará ao outro.50

48 BICKFORD-SMITH, V. Ethic Pride, (p. xiii).

49 BAKER, R.A. & BAYLISS, R. A. “William John Ritchie (1855-1931): Public Health and Tropical Medicine” IN: Medical History, 1987, no31. (p. 461).

50 SIMPSON, W. J. Lecture on Plague. Cape Town, 31 May 1901, apud. BICKFORD-SMITH, V. & HEYNINGEN, E. van &

130

Foi exatamente quando as impressões negativas produzidas pelas classes

dominantes sobre as pessoas de cor tornaram-se diretamente associadas

à própria sobrevivência epidemiológica das “raças brancas” da África do

Sul que os pedidos para que os não-brancos (principalmente os nativos

africanos) fossem removidas da cidade começaram a aumentar. Em 3 de

julho de 1897, por exemplo, um dos principais jornais da Cidade do Cabo, o

conservador Cape Times, apresentou uma opinião editorial que manifestava

os sentimentos mais vis contra as populações de cor. Segundo o texto, a

Cidade do Cabo “quase que precisava de uma visita da praga para que as

vassouras necessárias fossem aplicadas.”51 Alguns anos mais tarde esta

vontade seria materializada.

As populações de cor eram descritas como “perigosas” e “selvagens” e sua

presença na cidade “alimentava crimes, doenças, bebedeiras, profanidade e

imoralidade – desafiando em seus próprios termos os valores hegemônicos

ingleses”.52 Era preciso “limpar” a cidade desta “ameaça” pois, em todos os

aspectos, representavam um ataque direto à integridade moral e física dos

colonos brancos. Caberia aos médicos coloniais apontar justificativas válidas

para colocar estes pedidos em prática e definir quais destas populações

deveriam ser segregadas.

O historiador sul-africano Vivian Bickford-Smith refletiu profundamente

WORDEN, N. Cape Town in the Twentienth Century: An Illustrated Social History. Cape Town: David Philip Publishers, 1999. (p.18-19),grifo nosso.

51 Cape Times, 3rd July 1897, apud: ECHENBERG, Myron J. Plague Ports: The Global Urban Impact of Bubonic Plague, 1894-1901, New York: New York University Press, 2007. (p. 279)

52 BICKFORD-SMITH, V. Ethic Pride... (p. 83).

131

sobre a as primeiras segregações urbanas na Cidade do Cabo. Em seu

livro Ethnic pride and racial prejudice in Victorian Cape Town, Bickford-Smith

colocou uma importante pergunta para a historiografia: por que a solução

da segregação dos africanos às reservas nativas não foi adotada antes de

1901? Sua resposta é intrigante. Bickford-Smith argumenta que a natureza

das atividades econômicas da cidade foi central para que a segregação

urbana tivesse início apenas em 1901, quando muitos setores da produção

industrial necessitavam de um maior controle sobre a mão-de-obra africana.

No passado, ele argumenta, as unidades de produção eram pequenas e isso

facilitava o controle individual sobre os empregados nativos e sobre suas

residências. Em 1901, contudo, a economia da cidade encontrava-se em um

momento de mudanças. A atividade portuária e industrial alavancava um

novo sistema de trabalho e o controle sobre a mão-de-obra deveria ser mais

efetivo e rígido. Nesse âmbito, as remoções forçadas geradas pela peste

bubônica em 1901 são vistas como o estopim de um contexto econômico

maior que procurava aumentar o controle que as classes dominantes tinham

sobre os trabalhadores da cidade.

A tese defendida por Bickford-Smith ilumina aspectos importantes do

período. Realmente, a história da África do Sul pode ser narrada através da

exploração e controle da mão-de-obra nativa. Neste aspecto, a análise de

Bickford-Smith é impecável. Contudo, os pontos privilegiados por abordagens

de matiz econômica como esta implicam que o papel de outras personagens

do processo, como por exemplo, os médicos, seja secundado ou tido como

de pouca importância.

Em nossa visão, ocorre que as remoções forçadas de 1901 só puderam existir

132

da maneira como existiram graças à atuação de determinados médicos,

uma vez que estes traçaram e administraram os principais planos para sua

efetivação. Médicos como o Dr. Gregory atuaram desde a validação dos

argumentos sanitaristas, participando das inspeções em casas e casebres,

até a efetiva escolha da região para a construção da reserva nativa, passando

pelas campanhas de vacinação compulsórias e pela fiscalização e aplicação

das medidas segregacionistas ao longo da primeira década do século XX.

De maneira mais ampla, quase todos os médicos da cidade se dedicaram

ao combate da epidemia, atuando inclusive junto às negociações políticas

da segregação (ora reforçando argumentos da necessidade das remoções,

ora defendendo outras populações de cor, como a dos coloureds e malaios,

por exemplo). E este é um elemento central de nosso trabalho. Por que os

coloureds e os malaios não foram segregados da mesma forma que os nativos?

E, ademais, como estes grupos puderam permanecer na cidade mesmo

quando foram as mais atingidas pelo surto de peste bubônica e quando

também habitavam moradias superlotadas e muito similares àquelas dos

africanos?

Para adentrarmos às agências médicas do período e entendermos este

processo com maiores detalhes temos que compreender melhor o

funcionamento da medicina na Cidade do Cabo. Até a década de 1920 não

existia uma escola médica na África do Sul. Todos os médicos coloniais eram

formados fora da África, sobretudo na Inglaterra e na Europa Continental53,

o que geralmente implicava uma formação de olhar imperial no que diz

respeito aos sujeitos não-europeus.

53 PHILLPS, Howard. “Home taught abroad: the training of the Cape Doctor, 1807-1910” in: DEACON, H., PHILLIPS, H., van HEYNINGEN, E. The Cape Doctor in the Nineteenth Century: A Social History, New York: Rodopi, 2004. (p. 105).

133

Premesh Lalu identificou que esta forma de olhar os pacientes de cor resultava

em três relações médicas/políticas fundamentais. Primeiramente, estes

grupos eram enxergados como possuidores de uma identidade social aparte

daquela europeia e, por isto, os médicos constantemente os mapeavam em

busca de diferenças que escapassem a uma norma pré-estabelecida. Em

diversos artigos publicados pelo South African Medical Journal, por exemplo, as

diferenças físicas e culturais dos não-brancos eram utilizadas para justificar a

susceptibilidade destas populações a determinadas doenças.

Em segundo lugar, Premesh Lalu aponta que era comum ordenar as

diferenças encontradas em um discurso biológico apoiado na própria

história e tradição política local. Isto era feito de forma que os médicos

conquistassem privilégios de trabalho e também a confiança dos governos

coloniais, reforçando assim o controle sobre as populações de cor. Doenças

como a lepra ou a varíola, endêmicas na colônia do Cabo ao longo do século

XIX, eram constante apontadas como doenças degenerativas ligadas a estas

populações de cor, e mesmo quando um paciente branco era acometido

por uma das duas os médicos coloniais procuravam encontrar o empregado

de cor responsável pela transmissão da doença. Estes procedimentos eram

não apenas incentivados pelos governos coloniais, como também eram

regularmente elogiados. Por fim, e como terceiro ponto, este processo fez

com que os médicos conquistassem a confiança dos governantes locais,

criando uma área embaçada que nos dificulta delimitar as fronteiras entre

os interesses de cada um deles.54

54 LALU, Premesh. “Medical Anthropology, Subaltern Traces, and the Making and Meaning of Western Medicinein South Africa: 1895-1899” in: History in Africa, Vol. 25 (1998), (pp. 133-159).

134

Os médicos que se estabeleciam na África do Sul, portanto, ao contrário de

seus pares que permaneciam na Europa, entendiam que para obter sucesso

nesta colônia era preciso atuar da maneira exposta acima. Assim, faziam do

âmbito político um referencial para validar seus argumentos científicos, e

não o oposto. Para quase todos estes médicos, o caráter científico de sua

profissão era menos importante do que a experiência de trabalho adquirida

em campo e a aceitação política que essa experiência garantia. Isso impunha

profundas singularidades às suas formas de observar as populações de cor,

conforme indica Premesh Lalu.

A historiadora Harriet Deacon também caminha nesta direção. Ela defende

que os cientistas coloniais eram mais colecionadores de fatos do que teóricos

guardiões de conhecimentos científicos. Em relação às formas com que estes

cientistas apresentavam seus argumentos racistas, Deacon afirma que os

médicos na África do Sul geralmente expressavam suas teorias acerca das

diferenças raciais dentro das especificidades locais, evitando seguir diretamente

as grandes teorias imperiais.55 Ela explica, por exemplo, que o Eugenismo (que

tem sido apontado mundialmente como uma das principais teorias utilizadas

para segregar pessoas de raças consideradas como inferiores) desenvolveu-se

muito tardiamente na Cidade do Cabo, apenas após 1920, o que fortalece nosso

argumento de que as primeiras segregações urbanas eram constantemente

balizadas por experiências pessoais destes médicos.

Na verdade, podemos entender que quase todos os médicos do Cabo

raramente escapavam ao “amador investigador científico”.56 Muitas de suas

55 DEACON, Harriet. Idem.

56 DUBOW, Saul. (2006), op. cit. (p. 166).

135

teorias e práticas eram inconstantes, ambíguas e contraditórias. O editor do

South African Medical Journal, o Dr. Darley-Hartley, por exemplo, expressou que:

(...) eu descobri há muito tempo que artigos baseados em experiências

pessoais e erros pessoais são frequentemente muito mais bem aceitos pelos

profissionais gerais e normais do que os mais cientificamente estilizados

tratados que já emanaram da mente humana.57

Representativo do momento profissional dos médicos do Cabo, a opinião do

Dr. Darley-Hartley nos revela como muitos dos médicos da colônia, alguns

deles responsáveis pelos despachos do MOH, atentavam mais às experiências

individuais de seus companheiros do que a projetos síntese e sistemáticos

de soluções sanitárias de base científicas.

Este contexto de trabalho e esta forma política de entender seus pacientes

também fazia parte do repertório do Dr. Alfred John Gregory, secretário

do Medical Officer of Health durante o surto de peste bubônica de 1901 e

um dos idealizadores da reserva nativa de Uitvlugt. Nascido em 1851 na

Inglaterra, A. J. Gregory estudou medicina em Londres e obteve seu diploma

pelo Royal College of Surgeons e pelo Apothecaries Society of London no ano

de 1886. Em seguida, Alfred Gregory continuou seus estudos em Durham,

onde ainda obteve o Medical and Bachelor of Surgery em 1888 e tornou-se

doutor em medicina no ano de 1891. Como muitos administrados, militares,

engenheiros, aventureiros e médicos do período, o Dr. Gregory viu nas

possessões coloniais um caminho para fazer carreira. Partiu assim para a

Índia e, após um breve período por lá, optou por estabelecer-se na Colônia

57 DARLEY-HARTLEY, W. “Cases Illustrating the utility of Iron Salts in Syphillis” IN: South African Medical Journal, Wednesday, August 4th, 1886. (p. 26).

136

do Cabo da Boa Esperança. Ao chegar à Cidade do Cabo, o Dr. Gregory, por

motivo desconhecido, não requisitou seu registro como médico colonial

e assumiu um posto de trabalho junto ao Cape Colony Census Office, uma

experiência que marcaria todo o desenvolvimento de sua prática médica e

administrativa nos anos seguintes.

Em 1893, durante as reuniões da Comissão da Lepra, congregada para rever

a legislação referente ao tratamento e ao isolamento dos pacientes leprosos

da colônia, o Dr. Alfred Gregory escreveu um amplo relatório intitulado

The public health of the Cape Colony, chamando assim a atenção de outros

médicos coloniais que não sabiam de sua formação em medicina, fato pelo

que foi profundamente questionado. Em 1896, após ter se aproximado

da prática médica novamente, o Dr. Gregory foi apontado para trabalhar

como auxiliar do Dr. George Turner, então secretário do Medical Officer of

Health. A vaga que assumiu não havia sido anunciada publicamente e muitos

questionaram as razões e justificavas de sua indicação. Alguns historiadores,

inclusive, consideram este episódio como um dos ápices dos atritos entre

médicos no final do século XIX.58 Contudo, independente das reclamações

e das oposições que recebeu, o Dr. Gregory assumiu o cargo e tornou-se

secretário do MOH no ano de 1900.

Apesar da formação altamente qualificada, a carreira do Dr. Gregory nunca

foi reconhecida publicamente como a de um médico teórico. Inclusive, por

isto, conseguiu facilmente dialogar com os interesses políticos do período

e galgar altas posições dentro da administração colonial. A sua perspicácia

58 BURROWS, Edmund H. A History of Medicine in South Africa up to the end of the Nineteenth Century, Cape Town: A. A. Balkema, 1958.

137

administrativa e sua atuação prática eram tão expressivas que, quando se

aposentou, a sede da British Medical Association na Cidade do Cabo convidou

diversos médicos para realizarem um balanço de sua carreira. Em um

memorial exposto pelo Dr. Matthew Hewat, foi dito que “seria impossível

encontrar outro homem com o conhecimento prático das condições da

África do Sul.” Segundo o Dr. Hewat, toda a carreira do Dr. Gregory havia se

baseado “não no que era teoricamente desejado, mas no que era realmente

possível”.59 Aqui encontramos uma primeira chave para compreender o perfil

das remoções forçadas de 1901.

O Dr. Gregory sabia que teria o apoio para indicar a remoção das populações

africanas se fizesse isso dentro de um jogo político correto. Desde o final

do século XIX muitos membros das elites brancas sul-africanas já ansiavam

por se livrar destes africanos e, neste sentido, controlar o acesso à sua

mão-de-obra, como propõe Vivian Bickford-Smith. Contudo, o Dr. Gregory

também estava certo de que outras populações de cor não poderiam ser

tratadas da mesma maneira, apesar de representarem um problema maior

para a saúde pública da cidade, conforme demonstravam as muitas tabelas

e levantamentos censitários que ele colecionou quando passou ao Medical

Officer of Health.

Contudo, o entendimento deste contexto começou antes de ocupar o cargo

de secretário do MOH. Ainda como auxiliar do Dr. George Turner, o Dr. Alfred

Gregory teve a chance de viajar pela África do Sul e de aprender muito sobre

formas de tratar problemas socialmente contagiosos e como as diferentes

populações de cor deveriam ser endereçadas. Assim como outros colegas

59 British Medical Association, C.G.H. (Western) Branch in: South African Medical Journal, July 22nd, 1911. (p. 203).

138

de profissão, o Dr. Gregory sabia que ser um médico colonial implicava “ser

um consultor de questões relacionadas a lunáticos, criminosos, alcóolatras,

prostitutas e ‘charlatões’”,60 mas, acima de tudo, implicava também reconhecer

os limites de quem poderia ser segregado a partir de pressões e negociações

entre diferentes médicos, sanitaristas e políticos.

Foi pensando em abordar estas patologias sociais a partir das possibilidades

do período que o Dr. Alfred Gregory começou a estudar e a preparar planos

práticos para controlar um possível surto de peste bubônica na colônia. Em

fevereiro de 1899, dois anos antes dos primeiros casos da doença na Cidade

do Cabo, ele ajudou a organizar a Conferência Interestadual da Praga em

Pretória e participou de uma expedição que visitou o interior do Transvaal e

partes de Moçambique, onde alguns casos da doença haviam sido apontados.

Dada a eminente possibilidade de que a epidemia atingisse a África Austral,

a conferência assumiu uma importância ímpar entre os congressos médicos

do período e foi atendida por muitos interessados. Assim, mesmo com os

atritos políticos e militares existentes, e a eminência de uma nova guerra

entre ingleses e bôeres, representantes médicos das colônias inglesas do

Cabo e do Natal, dos Estados bôeres do Transvaal e do Estado Livre de

Orange e da colônia portuguesa de Moçambique reuniram-se para discutir

as melhores formas de prevenir e combater a doença.

Uma das principais questões debatidas ao longo da conferência foi a forma

como ocorreria o contágio da peste e como o mesmo poderia ser impedido.

Antes de prosseguirmos, é preciso refletir um pouco sobre o uso da palavra

60 LALU, P. “Medical Anthropology...” (p. iii).

139

contágio neste período. Segundo Phillip Curtin, a utilização do termo contágio

ao longo do século XIX pode ser confusa. Apesar de a palavra parecer

familiar, no século XIX seu uso era completamente diferente do atual, e isso é

importante para entender a agência dos médicos coloniais. Segundo Curtin,

Contágio não era pensado como um organismo que se move de uma pessoa para a outra nem era necessariamente uma causa específica de uma doença particular. Ao contrário, era algo que emanava do corpo de uma pessoa que havia contraído a doença, ou de um corpo de uma pessoa que havia morrido graças a essa, ou dos corpos de pessoais que nem mesmo estavam doentes, se esses estivessem abarrotados em um lugar sem ventilação.61

Era assim que os médicos reunidos em Pretória pensavam o contágio. O

Dr. Alfred Gregory conta, por exemplo, que o Dr. Martins, representante

da colônia portuguesa de Moçambique, fez questão de narrar os casos

identificados em Lourenço Marques. Segundo o Dr. Martins, três indianos

vindos da região do Rio Save, ao norte da colônia, apresentavam glândulas

muito aumentadas em suas virilhas e outras glândulas aumentadas por todo

o corpo. Os primeiros sintomas haviam sido febre alta e vômito, o que poderia

caracterizar sintomas da peste. Contudo, o que mais o preocupava era o fato

de que “todos eles moravam em uma casa na cidade, que se encontrava

muito suja, e na qual moravam mais dezenove indianos”.62

O Dr. Alfred Gregory, como os demais quarenta e sete médicos atuantes na

Cidade do Cabo neste período,63 sabia que diversas habitações da cidade

61 CURTIN, Phillip. “Medical Knowledge and Urban Planning in Tropical Africa”, in: The American Historical Review, Vol. 90, no 3 (Jun., 1985), pp. 594-613. (p. 596).

62 GREGORY, A. J. “Notes on some recent cases of Plague in South Africa” in: South African Medical Journal, August, 1899. (p. 83).

63 Juta Directory of Cape Town, Suburbs & Simon’s Town for 1901, Cape Town: J. C. Juta & CO, 1901. (pp. 354-355).

140

apresentavam estas mesmas condições insalubres e favoráveis ao contágio

de doenças. Durante a década de 1890, o conhecimento da situação havia se

tornado ainda mais nítido com os diversos relatos médicos que circulavam

pelo Cabo. Um dos mais famosos panfletos do período foi escrito pelo Dr.

Johannes Hendricus Meiring Beck, um dos fundadores da South African

Medical Association. Nascido em 1856 e formado pela Universidade de

Edimburgo no ano de 1879, o Dr. Beck possuía grande interesse na questão

sanitária da cidade. Foi por isto que lecionou no ano de 1887 uma eloquente

palestra intitulada The Cape Sanitary Puzzle. Dias após a palestra, o conteúdo

apresentado foi transcrito e passou a circular em forma de um panfleto

educativo entre vários médicos e sanitaristas da cidade. A argumentação

central do Dr. Beck era a de que a superlotação das moradias tornara-se um

problema tão disseminado que implicava um alto risco para a manutenção

das mínimas condições sanitárias da cidade. Em suas próprias palavras:

No curso de minhas peregrinações, dois quartos foram apontados para mim, com menos de doze pés quadrados, em cada um deles quinze pessoas, homens e mulheres amontados todos juntos, têm dormido durante a noite, e junto ao cômodo existem as passagens onde filas de seres humanos se alinham até os fundos até mesmo sobre o jardim. De quarenta a cinquenta pessoas de todos os sexos arranjadas dessa maneira em uma casa ou um casebre. (...)

Essas favelas (slums) você poderá encontrar dispersas nas vizinhanças da Buitenkant, Harrington, Boom, Canterbury, Constitution, Hanover, Stuckeris e tantas outras ruas tão numerosas para serem mencionadas – a mesma situação ocorre nas vizinhanças da Rua Waterkant, à qual podem ser incluídos os quarteirões Malaios aos arredores das Ruas Rose e Chiappini, que, se não são sujos, estão certamente superlotados. No extremo leste da cidade eu vi um cômodo de cerca de dez pez quadrados ocupados por quinze cafres (kafirs) amontoados quase ao ponto de sufocarem.64

64 BECK, J. H. M. The Cape Town Sanitary Puzzle: A lecture delivered in the Hall of the Young Men’s Christian Association

141

Ao descrever especificamente as pessoas que ocupavam esses espaços o

Dr. Beck escreveu que eles “eram todos coloureds, cafres, homens da costa

ocidental, Moçambicanos e os chamados de Malaios”. Vivendo sem móveis e

dormindo apenas com um saco para cobri-las, essas pessoas passavam dos

milhares e o que mais o chocava era que “o senso de uma decência comum,

se um dia existiu, já os deixou faz tempo, e eles estão agora reduzidos a um

estado de mero animalismo”.65

Era necessário rever a situação daquela cidade colonial e resolver o problema

destas populações de cor que ameaçavam a existência das populações

brancas sul-africanas. Contudo isto não poderia ser feito de maneira

desmedida. Outros médicos, com destaque para o Dr. Abdullah Abdurahman,

não aturariam tais medidas.

Quando a peste eclodiu na Cidade do Cabo, um dos principais grupos

identificados como responsáveis pelo contágio da doença foram os coloureds

e os malaios. Ambas as populações, que ora eram incluídas dentro de

uma mesma categoria e ora descritas como grupos distintos, possuíam

uma relação histórica com a ocupação dos espaços urbanos do Cabo;

muitos, inclusive, possuindo títulos de posse de suas casas. Aos olhos dos

colonialistas, contudo, ambos os grupos eram vistos a partir de seus status

políticos e sociais intermediários, entre merecedores de benefícios e inimigos

da civilização, entre brancos e nativos.

É importante ressaltar que na África do Sul, ao contrário do que acontece em

on 18th April, 1887.

65 Idem

142

outros contextos de colonização britânica, o termo coloured não é utilizado

para definir pessoas de cor de uma maneira geral. A definição para coloured

é pautada basicamente em duas vertentes, uma histórica e outra fenotípica.

Mohamed Adhikari, um dos maiores especialistas sobre história deste grupo,

definiu que o termo coloured

Alude a um grupo de pessoas fenotipicamente divergentes descendentes em grande maioria dos escravos do Cabo, das populações indígenas Khoisan e outras populações de descendência africana ou asiática que foram assimiladas à sociedade colonial do Cabo no final do século XIX. Sendo também parcialmente descendentes dos colonos europeus, a população coloured tem sido popularmente considerada como uma ‘raça mista’ e eles têm um status intermediário na hierarquia racial da África do Sul, distintos portanto da minoria branca historicamente dominante e das numericamente preponderantes populações africana.66

Os malaios, por sua vez, eram constantemente associados ao grupo coloured,

recebendo apenas uma distinção clara quando detalhes eram observados.

Reclamavam por exemplo, uma história de sofrimento e sua diáspora era

contada como a de um grupo que fora tomado por criminosos políticos, dada

a resistência às investidas coloniais colocadas em prática pela Companhia das

Índias Orientais Holandesas em suas possessões asiáticas. Em um segundo

momento desta história, a Companhia passou a escravizar as populações

locais e a enviá-las para o Cabo. Por isto os malaios são recorrentemente

associados aos ex-escravos coloniais. Ao manterem o Islã como sua religião

e continuarem a reproduzir na Cidade do Cabo hábitos alimentares e

indumentários, este grupo tornou-se uma comunidade visivelmente distinta

das demais populações de cor. Isso criou complicações políticas ao passo que

66 ADHIKARI, Mohamed. ‘Hope, Fear, Shame, Frustation: Continuity and Change in the Expression of Coloured Identity in White Supremacist South Africa, 1910 – 1994’. IN: Journal of Southern African Studies, Vol. 32, No 3 (Sep., 2006), (p. 468).

143

administrativamente os malaios eram pensados como pertencente ao grupo

coloured, mas, socialmente eram entendidos como uma entidade a parte.

Como vimos anteriormente, muitos dos viajantes e sanitaristas que

descreveram a população da cidade se preocuparam em apontar a

proximidade que coloureds e malaios tinham com aquelas moradias sem

condições sanitárias e, por isso, estes grupos eram tidos como perigosos

para a manutenção da saúde pública do Cabo. De fato, desde as epidemias

de varíola da década de 1880, uma maior atenção era direcionada a estas

populações. Não foi diferente em 1901, quando, inclusive, estes foram os

mais atingidos pela peste, contabilizando quase cinquenta e sete por cento

de todas as mortes confirmadas por peste. O alto número de contágios e

óbitos entre os grupos coloureds e malaios reforçava o racismo e as práticas

discriminatórias em relação à sua presença na cidade. Contudo, e apesar

de serem reconhecidos como problemas para a condição sanitária geral,

logo após o término da epidemia os pacientes infectados e todos aqueles

que foram removidos para Uitvlugt por serem considerados como fontes

de contágio puderam retornar às suas casas e às antigas condições em que

viviam. O que fez com que isto fosse possível?

A historiografia tem repetidamente falhado ao responder esta pergunta.

Na verdade, enquanto o contexto apresentado até o momento é

recorrentemente utilizado para reforçar a narrativa acerca da história da

segregação na África do Sul, poucos perceberam que este mesmo processo

garantiu privilégios a outras populações de cor da cidade. A segregação

produziu limites que estabeleceram certos privilégios para determinadas

populações de cor. E isso só foi possível pela atuação de alguns médicos.

144

Aqui identificamos apenas um destes, talvez o principal destes. Um médico

de cor que desde cedo em sua carreira atuou em prol daquilo que ele

acreditava como correto dentro do jogo político e histórico do qual a

medicina fazia parte. Trata-se do Dr. Abdullah Abdurahman, a quem John

H. Raynard teceu extensos elogios públicos nas semanas que seguiram sua

morte em 1940. Raynard escreveu que

É inquestionável que os historiadores do futuro pagarão tributo a ele ao

reconhecerem que ele era um dos grandes homens de seu tempo, e que a

posterioridade irá honrar sua memória como a de um homem, um patriota,

nascido como líder, quem sem medo lutou contra a injustiça e a opressão, e,

além de tudo, morreu de armadura lutando a causa de seu povo com uma fé

imortal na justiça de sua causa.67

O Dr. Abdullah Abdurahman é realmente um personagem fascinante que

construiu uma rica carreira como médico e sempre esteve profundamente

envolvido com a vida política da Cidade do Cabo.

Como filho de um teólogo Muçulmano que estudou em Al-Azhar no Cairo e

como neto de escravos do período colonial holandês, Abdullah Abdurahman

cresceu em um ambiente cercado por ricas e múltiplas influências culturais.

Ainda jovem, estudou no reconhecido South African College, que anos mais

tarde se tornaria a Universidade da Cidade do Cabo. Estudar era algo

importante em sua vida e, com a ajuda de sua família e comunidade, pôde

viajar para a Escócia onde se formou em medicina pela Universidade de

Glasgow. Após terminar a faculdade, em 1893, o Dr. Abdurahman passou

algum tempo em Londres onde melhorou suas qualificações como médico

67 ADHIKARI, Mohamed. Dr. A. Abdurahman, a biographical memoir by J. H. Raynard, Cape Town: Friends of the National Library of South Africa in Association with the District Six Museum, 2002. (p. 23).

145

cirurgião. Em 1895 ele retornou à Cidade do Cabo casado com uma escocesa,

Hellen Porter James.

Enquanto trabalhava como médico na Cidade do Cabo o Dr. Abdurahman

percebeu as condições adversas nas quais as populações de cor da cidade

viviam. Mais do que problemas de saúde, ele viu que a “comunidade

Muçulmana” e os coloureds do Cabo sofriam com a falta de educação,

trabalhos desqualificados e, acima de tudo, com um contínuo e reiterado

racismo.

Como muçulmano convicto, o Dr. Abdurahman passou a reconciliar as

práticas da medicina ocidental com as tradições médicas muçulmanas

às quais ele conhecia e tinha acesso.68 Ao fazer isso, Abdurahman atraiu

muitos pacientes coloureds que continuamente resistiam às novas medidas

sanitaristas criadas pelo MOH no início do século XX. Trabalhando com

estes pacientes, visitando suas moradias e indicando maneiras de resolver

os problemas sanitários encontrados sem ferir os preceitos do Islã,

Abdurahman foi capaz de melhorar a condição de vida de muitos daqueles

que atendeu, criando assim argumentos políticos e demonstrações públicas

contra a remoção destas populações durante a epidemia de peste bubônica.

Na verdade, o Dr. Abdurahman foi tão importante neste processo que, o

próprio Dr. Gregory reconheceu suas capacidades de trabalho junto às

populações de cor e o contratou como médico responsável pelas populações

muçulmanas do Cabo durante os meses em que a epidemia estava em seu

ápice. Segundo o Dr. Gregory, o Dr. Abdurahman não deveria interferir

68 DIGBY, Anne. Diversity and Division in Medicine: Health Care in South Africa from the 1800s, Oxford: Peter Lang, 2006. (p. 382).

146

nas medidas propostas, mas apenas administrar a situação para que os

pacientes de cor não se revoltassem contra as imposições do MOH. Sem

contrariar diretamente esta ordem, o Dr. Abdurahman encontrou outras

formas de auxiliar a população que pretendia defender.

Mesmo antes do início da epidemia, Abdurahman já vinha chamando atenção

de médicos e pacientes pela cidade. Por isto, passou a ser reconhecido e

tratado pela impressa e demais colegas como “o Doutor”. Conforme escreveu

John H. Raynard, “seu nome logo se tornou um abrigo entre europeus e não-

europeus na cidade e nos subúrbios. Em todo lugar as pessoas estavam

falando sobre o ‘inteligente e jovem médico malaio’. Ele inspirava confiança

em sua habilidade entre seus pacientes”.69

Sua resistência às remoções forçadas foi inicial, porém não direta e em

oposição às ordens do MOH.

Com o início da epidemia da peste bubônica o Dr. Abdurahman realizou

serviços notáveis para a cidade. Em uma disputa entre médicos do Governo

e da equipe do Conselho da Cidade, em relação a um certo paciente ao qual

eles atendiam e a quem estes médicos haviam pronunciado como um caso

de peste, e querendo removê-lo para o ‘Campo’, ‘o Doutor’ negou que aquele

caso fosse de peste e assim ganhou uma aposta de £200 que havia feito com

estes médicos.70

Após esta disputa técnica e social seu papel dentro da campanha pelo

combate da doença cresceu. Assim, ficaria responsável por realizar análise

e diagnóstico dos casos entre as populações coloureds e malaias, atuando

69 ADHIKARI, Mohamed. Dr. A. Abdurahman, a biographical memoir by J. H. Raynard, Cape Town: Friends of the National Library of South Africa in Association with the District Six Museum, 2002. (p. 23).

70 Idem.

147

diretamente entre os mais contaminados pela peste.

Com um contrato temporário com o MOH, feito a pedido do Dr. Alfred

Gregory, o Dr. Abdurahman passou a visitar frequentemente o campo de

contato em Utivlugt, especialmente a ala dedicada à população malaia. Com

muita habilidade, convenceu os pacientes infectados a seguirem os preceitos

da medicina ocidental e a aceitar os cuidados dos médicos e enfermeiras do

hospital. Uma das principais resistências apresentadas pelos malaios era o

cuidado com os corpos daqueles que viessem a óbito. Seguindo suas práticas,

era preciso banhar o corpo e perfumá-lo, fazendo um cortejo público até

um cemitério muçulmano para depois realizar o enterro. Esta prática era

abominada pelos agentes do MOH. Abdurahman sabia que sob nenhuma

hipótese o órgão aceitaria um corpo contaminado sendo carregado pelas

ruas da cidade. Por isto, antes da contratação do Dr. Abdurahman pelo MOH,

muitos malaios foram presos e sofreram violências físicas por romperem as

regras de contenção da epidemia. O Dr. Abdurahman, neste aspecto, soube

como negociar com essa população e, de fato, muitas destas práticas foram

abandonadas enquanto durou a epidemia.

Contudo, seu trabalho não ficou restrito ao campo e ao hospital de Uitvlugt.

Sua clínica particular, localizada à Loop Street, ficava a apensas duas quadras

do bairro malaio, o Bo-Kaap, no Distrito 1. Enquanto morava no Distrito 6

e trabalhava no Distrito 1, atravessa a cidade inteira, reconhecendo casas

ocupadas por coloureds e malaios e convencendo-os a organizar, limpar e

desinfetar suas casas antes das vistorias sanitaristas. Em alguns momentos,

inclusive, o Dr. Abdurahman interveio junto às autoridades policiais e políticas

questionando a truculência dos agentes sanitários e requisitando que as

148

casas desocupadas pelos infectados fossem mantidas intactas aguardando

o retorno de seus proprietários.

O Dr. Abdurahman acreditava na perfectibilidade humana e construiu a partir

desta perspectiva uma série de argumentos políticos em prol da assimilação

dos grupos pelo qual ficou responsável durante o surto de peste de 1901. Sua

agência foi tamanha que, de fato, as primeiras experiências de segregação

urbana na Cidade do Cabo não foram capazes de remover estas populações,

que representavam também um enorme perigo conforme as preocupações

sanitaristas do Dr. Gregory.

Desta forma, as ações do Dr. Abdurahman durante o surto da peste nos

abrem para a problemática já mencionada acima, e que tem sido em grande

medida ignorada pela historiografia: como que o processo de segregação

racial na África do Sul foi capaz de garantir direitos e privilégios para grupos

que representavam a própria essência daquilo que os racistas e as classes

dominantes mais temiam?

A conclusão de nosso texto parte da resposta a essa questão. Existiram

sujeitos na Cidade do Cabo que, apesar de nunca terem recebido a devida

atenção historiográfica, foram capazes de negociar as tendências políticas

do período em seus próprios termos. Muitos destes sujeitos atuavam como

médicos coloniais. Anne Digby talvez tenha sido a historiadora que mais

perto chegou deste problema. Em seu artigo Early Black Doctor in South

Africa71, ela notou que “a carreira dos primeiros doutores de cor envolvia

consideravelmente mais problemas, como também maiores complexidades

71 DIBGY, Anne. “Early black doctors in South Africa” in: Journal of African History, 46 (2005).

149

ao escolher seus objetivos profissionais, do que era típico aos seus colegas

brancos sul-africanos”. Segundo Digby, muitos idealizavam a profissão de

maneiras irreais e acreditavam que através das práticas médicas seria possível

salvar as populações com as quais estes médicos mais se identificavam.

Exatamente por esta razão que muitos dos médicos de cor do início do

século XX dedicaram-se exaustivamente a uma prática política para além

da medicina. Contudo, apesar de iluminar o problema, Digby não enfoca o

período aqui trabalhado e falha ao perceber que estes médicos possuíam

mais do que idealizações irreais. É preciso perceber que alguns deles, entre

os quais o Dr. Abdurahman se destaca, foram cruciais para negociar os

termos e as formas da implementação de segregações urbanas no ano de

1901.

O Dr. Abdurahman, por exemplo, foi tão importante ao longo da epidemia

que alguns anos mais tarde, em 1904, ele foi reconhecido por suas

capacidades políticas e tornou-se a primeira pessoa de cor a ocupar um

cargo no Conselho da Cidade do Cabo. Nesta instância, presidiu diversos

comitês, sendo que o primeiro deles foi exatamente o de Construções e

Saúde Pública, responsável por fiscalizar e propor solução para os problemas

infraestruturais e epidemiológicos da cidade. Sua eleição ao Conselho e a

presidência do comitê de Saúde Pública garantiram que diversas proteções

às populações coloureds e malaias fossem novamente criadas e mantidas.

Assim, ao passo que o campo de contato de Uitvlugt foi transformado na

reserva nativa de Ndabeni e as populações africanas foram removidas da

cidade, sendo obrigadas a carregar passes de trânsito quando fora da reserva,

as populações coloureds e malaias do Cabo permaneceram na cidade. E,

150

de fato, estes privilégios perduraram pelo menos até a década de 1950, já

durante o período do Apartheid, período que encerra características a serem

tratadas em uma análise específica.

O ano de 1901 marcou o início da segregação urbana na Cidade do Cabo. Após

os primeiros casos da peste bubônica o Medical Officer of Health, personificado

nas atitudes do Dr. Alfred Gregory, deu início a um violento processo de

remoção das populações de cor da Cidade do Cabo, especificamente das

nativas africanas. Entretanto, ao contrário do que seria esperado, os

principais afetados pela doença, os coloureds e os malaios, logo retornaram

às suas casas e até a década de 1950 permaneceram como parte do cenário

urbano da cidade. Contudo, e apesar dos problemas historiográficos que

isto levanta, esta história não tem recebido a atenção que merece. Pouco

foi escrito sobre o outro lado da segregação urbana e quase nada sobre as

agências de coloureds e malaios na resistência a este processo. Na verdade,

como escreveu Mohamed Adhikari72, a história da população coloured da

Cidade do Cabo continua a ser constantemente marginalizada em prol de

uma leitura que privilegia os “caminhos” que conduziram a África do Sul ao

Apartheid e à luta pela liberdade.

Nosso intuito com este capítulo foi exatamente o de apontar como a

história da segregação urbana na Cidade do Cabo é muito mais complexa

do que simplesmente um caminho em direção ao Apartheid. Através do

posicionamento e das agências de médicos como Alfred Gregory e Abdullah

Abdurahman pudemos nos aproximar de um cenário no qual os limites

72 ADHIKARI, Mohamed. Not White Enough, Not Black Enough: Racial identity in the South Africa Coloured Community. Cape Town: Ohio University Press, 2005.

151

desta segregação eram colocados à prova e também modificados mediantes

as possibilidades sociais e políticas do período.

152

“DE BOCA A OUVIDO”- APRENDIZAGENS, PRÁTICAS DE CURAS E

RELIGIOSIDADES ENTRE AS PARTEIRAS DA BAHIA.

Silene Arcanja Franco

Escrever sobre as trajetórias de vida das parteiras constitui-se em uma tarefa

carregada de grandes compromissos, por serem herdeiras de um legado

histórico africano e indígena que se reconstruiu no Brasil, enfim, é de grande

responsabilidade penetrar no cotidiano destas mulheres, ouvindo suas

histórias, memórias, lutas cotidianas, travadas no seio de suas comunidades,

nem sempre marcadas pelos sabores da vitória. Da mesma forma é

comprometedor ouvir suas narrativas, com vozes por vezes esganiçadas,

trêmulas e estridentes e por outras vezes firmes e serenas: vozes marcadas

pelo tempo. Este texto se propõe a analisar nas histórias de vida das parteiras

da cidade de Salvador e Lauro de Freitas na Bahia, como estas mulheres

aprenderam a realizar partos e a relação das práticas de curas empregadas

por elas, com as religiões de matriz africana, aqui me refiro ao Candomblé e

a Umbanda.

O texto faz parte da dissertação de mestrado, intitulada “AWO: Segredo de

Mulheres parteiras- Trajetórias históricas, vivências religiosas e práticas de

cura das mulheres parteiras, Salvador e Lauro de Freitas”, defendida no

Programa de Pós-graduação em Cultura, Memória de Desenvolvimento

154

Regional da Universidade do Estado da Bahia. Para esta investigação foram

entrevistadas oito parteiras, moradoras dos bairros de São Marcos, Engenho

Velho da Federação, Pernambués, Mussurunga, em Salvador e do bairro

de Itinga em Lauro de Freitas. O caminho trilhado para o encontro com

as parteiras foi o da História Oral por acreditar que esta metodologia nos

permite visibilizar as trajetórias e histórias de vida das “pessoas comuns”,

provocando uma mudança de perspectiva na compreensão de quem

protagoniza a história.

As parteiras que encontrei, são donas de casa que vivem do mercado informal,

como vendedoras ambulantes, domésticas, algumas já aposentadas. Muitas

moram com a família, com filhos e maridos. Nos locais onde residem são

bastante conhecidas onde estreitaram laços de confiança e solidariedade

a partir do conhecimento que possuem e que sempre colocam a serviço

da comunidade. As suas atividades vão além de realizar partos: receitam

remédios caseiros, chás, banhos, rezam. Estas parteiras atribuem o seu saber

a um dom especial, divino, sendo assim, só realizam os partos por caridade.

O dom no qual estas mulheres se referem, faz das parteiras detentoras de

um “saber/poder” que se relaciona com as Iyás dos terreiros de candomblés,

poder de dar a vida aos Orixás, fazendo delas, assim como, das parteiras

transmissoras de uma energia vital.

Ao ouvir as trajetórias de vida das mulheres parteiras, pude perceber como

as aprendizagens adquiridas no seio de suas famílias, junto às mulheres mais

velhas, avós, mães, tias, vizinhas, outras parteiras, marcam as formas como

elas dão significado á sua existência. O aprendizado de realizar partos se

155

insere nesta realidade transformando estas mulheres em instrumentos no

qual o sagrado atua. Sagrado este que deixa sua marca nos procedimentos

de cura realizados por elas: banhos, chás, orações, massagens são apenas

pequenas formas de diálogos entre o mundo dos deuses e o mundo dos

homens. Nesse momento são várias as explicações para o milagre da vida

que elas protagonizam, atribuindo este milagre aos seus orixás, guias e

santos.

No Brasil, a presença feminina no ambiente do parto tem sua origem na

herança cultural africana, ameríndia e também européia. Na África, entre o

povo Luvale, havia uma tradição no qual cada recém nascido era apresentado

à comunidade através de um pequeno ritual em que a parteira dançava e

transportava o bebê de porta em porta. Em seguida, os vizinhos, amigos,

parentes traziam prendas à mãe e a parteira.1 Nos bairros populares de

Salvador esta tradição foi reinventada: após o nascimento do bebê, famílias,

amigos e vizinhos comemoram presenteando a mãe e à criança, aos homens

é servindo uma bebida conhecida como meladinha, feita com ervas em

infusão na cachaça.

Na tradição Tupinamba, o homem desempenhava algumas funções na hora

do parto: cortava o cordão umbilical da criança de sexo masculino, além

de comprimir o ventre da mulher com o objetivo de apressar o nascimento.2

Em algumas sociedades européias, as habilidades profissionais, aliadas aos

1 SILVA, Sonia. Mães da Solidão: Sociabilidade, Empatia e Emoções no sul da África central. Tecnográfica, vol, IX(2), 2005., p. 318

2 RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. In: PRIORE, Mary Del. História das Mulheres no Brasil. 2a ed. São Paulo: Contexto, 1997, p. 12-13.

156

conhecimentos de orações e receitas mágicas, fizeram das parteiras figuras

indispensáveis na hora do parto.3 Em todas as civilizações, foram figuras

presentes na hora do nascimento, sua ação não se perdeu na noite dos

tempos. Ela resiste até nossos dias, vivendo como anônimas nos bairros

populares de Salvador e de municípios vizinhos como Lauro de Freitas.

Poucas informações sabemos sobre elas. Neste texto ao discutir trajetórias

de vida das parteiras e suas práticas religiosas, procuro dar voz a estas

mulheres silenciadas e invisibilizadas, ao tempo em que procuro perceber

quais elementos de suas trajetórias de vida se relacionam com a trajetória de

vida dos africanos e seus descendentes, em quais momentos as experiências

religiosas se aproximam das religiões de matriz africanas e como essa

religiosidade dialoga com o saber fazer parto.

De mãos dadas com Omolu e Senhora Santana: As Parteiras de Lauro de

Freitas.

Fui católica, agora estou no Candomblé. Sou do candomblé. Uma casa de

Lauro de Freitas. Apareceu-me uma doença, os médicos não curaram quem

me curou foi o candomblé. Eu não sei, o negócio era que eu só vivia doente.

Como era essa doença? Assim, tipo empaludismo, uma coisa assim, uma

doença assim, atoa, eu ia para o médico, os médicos me davam remédio, mais

não passava. Teve um pai de santo, este pai de santo já morreu, ele me disse:

Você só vai ficar boa se você fizer obrigação de seu santo, ele quer ser feito.

Foi quando fiz, fiquei boa, nunca mais eu tive nada na minha vida, estou nessa

idade e não sinto nada. Continuei. (Parteira Valtíria)

Dona Val, como é conhecida em sua comunidade, é moradora da Rua do

3 BARRETO. Maria Renilda Nery. Nascer na Bahia do século XIX. Salvador (1832-1889). Dissertação de mestrado, história, UFBA, 2000, p. 81-82.

157

Povo, na cidade de Lauro de Freitas e mãe de oito filhos, todos nascidos

através de parteiras, primeiro a parteira Lúcia depois a parteira Domingas.

Afirma dona Val ter morado a vida toda com seus pais, a mãe trabalhava em

casa e seu pai era agricultor. Sua narrativa traz à cena a relação do Candomblé

com os processos de cura que ocorrem dentro deste espaço religioso, nos

remetendo aos diversos sentidos que a doença possui para os terreiros e os

motivos que levam as pessoas a procurarem a religião: desemprego, morte

sucessiva de filhos na primeira infância, desajustamentos conjugais, porém,

o mais frequente é a doença.4

No caso da parteira acima, a doença se relacionava à obrigação ao seu Orixá,

Omolu, uma vez cumprida a obrigação, o sintoma da doença desapareceria.

Assim, a doença alegada pela parteira Val pode ser lida como sendo a

manifestação do seu orixá, a energia dele presente em seu corpo. A “cura”

aconteceu na hora em que a parteira, atendendo à vontade do orixá, realizou

a obrigação. O que nos leva a refletir sobre a importância dos terreiros de

Candomblés para as pessoas pobres que vivem no seu entorno, que encontra

neste espaço uma alternativa para cuidar da sua saúde física e espiritual.

Desse ponto de vista, a doença faz parte do mistério no qual nem mesmo o

médico pode resolver, por se tratar da manifestação do mundo invisível.

Já a parteira Miúda, do bairro de Itinga, ao narrar sua experiência religiosa

faz o seguinte depoimento:

- “Tem 27 anos que sou cristã, foi depois do acidente. Antes eu era católica,

4 LIMA, Vivaldo da Costa. A família de Santo nos Candomblés jejês-nagôs da Bahia: um estudo da relações intergrupais. 2a ed. Salvador: Corrupio, 2003.p.67-68; CARNEIRO, Edson. Os Candomblés da Bahia. 9a ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002, p.94.

158

graças a Deus eu era católica apostólica e romana, depois eu fui para igreja

por causa deste acidente, mas olhe a pessoa que é parteira eu acho que tem

um guia divino que ilumina, pois, na hora de um parto, sempre a pessoa

senti um tipo de incorporação, nunca vive só”.

Dona Miúda tem 82 anos e é muito conhecida na rua em que mora. Vive com

uma filha e seus netos em uma casa de construção, de chão batido. Chegou

a Itinga nos anos setenta do século vinte. Segundo ela, não tinha casa, não

tinha nada, tudo era mato. Itinga é o bairro mais populoso do município de

Lauro de Freitas, o seu nome tem origem indígena, remonta às inúmeras

aldeias que existiram na região.

Na vivência religiosa dessa parteira não existe conflito em ter sido da Igreja

católica, ou ser cristã e acreditar na possibilidade de uma incorporação,

atribuída geralmente, aos membros do Candomblé.

“Ah! Não a pessoa sente uma diferença sim, não é dizer assim que dê alguma

coisa não, não dê. Mas a pessoa sente assim, uma diferença assim, parecendo

um calor que, parecendo que a pessoa não está sozinha até; entendeu? Não

que seja alguma coisa não. Se alguém disser está mentido porque eu mesmo

nunca dei (risos) agora que parece que a pessoa não esta ali só, parece que

tem ali uma ajuda isso é verdade.”

Ao afirmar que nunca deu alguma coisa, a parteira sorri, revelando ter

consciência do que sentia. O que ela revela é uma dimensão muito própria

da cosmovisão africana, a relação entre o mundo visível e o invisível. Sobre

este aspecto, Oliveira (2003) afirma: “Para o africano o visível constitui

159

manifestação do invisível. Para além das aparências encontra-se a realidade,

o sentido, o ser que através das aparências se manifesta”5. Desta forma

se torna possível que a parteira Miúda sinta a energia do ser que para ela

representa o sagrado, o invisível, o seu guia. A energia na qual ela se apega

nos momentos especiais, esta energia tal qual cita Oliveira, que não está

dissociada do indivíduo, nem do todo que o rodeia.

Dona Miúda afirma ter feito o parto de quase todos na região em que mora.

“Filho de umbigo quer dizer a pessoa cortou o umbigo daquela criança

chama-se filho de umbigo. Nas maternidades, ninguém é filho, ninguém,

é pai, nínguém é nada. Agora se tem consideração de mãe de umbigo, na

minha terra é muito respeitada, aqui não que ninguém respeita ninguém,

na minha terra é muito respeitada. E assim, foi que aconteceu a minha vida

estou aqui até hoje.”

A fala da parteira reflete uma crítica à impessoalidade dos partos dentro

das maternidades, onde não existe nenhuma relação entre os indivíduos

envolvidos no nascimento. Dar a vida neste local não é um acontecimento

e sim uma rotina. Por outro lado a sua fala registra a lembrança de sua

terra onde as pessoas respeitavam as mães de umbigo, aquela que cortou

o umbigo da criança. O umbigo representa o laço entre a criança e a mãe

sanguínea e o ato de cortá-lo, longe de significar ruptura, inaugura um laço

de parentesco com aquela que ajudou a vir ao mundo: a parteira. Conta que

possui vários filhos de umbigo, muitos já rapazes e moças, alguns frequentam

5 OLIVEIRA, Eduardo apud Ribeiro (1996). Cosmovisão Africana no Brasil – Elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: LCR, 2003, p.40

160

sua casa até hoje, quando a encontram na rua toma a benção.

A parteira Rosalinda, moradora do bairro de Itinga, afirma que não tem

religião, porém já frequentou o Candomblé: “Já fui muito em Igreja mais

nunca frequentei. Quando era moderna já frequentei o Candomblé. Levava

remédio na casa de Leonor, ela não conhecia”. O que fica implícito na fala da

parteira é que Candomblé, não é religião, hábito comum entre a população

mais idosa é se referir ao Candomblé como seita. No entanto, nesta mesma

declaração, o candomblé figura como uma alternativa religiosa ao ser

comparada à Igreja.

Donana, também parteira moradora da cidade de Lauro de Freitas, afirma

não se lembrar em que momento começaram a lhe chamar por este nome,

só sabe que ficou. Porém prefere ser chamada de Ana, pois lembra a mãe

de Maria, Santa Ana. Também conhecida como Senhora Santana. Donana

é católica fervorosa, afirma frequentar a igreja da cidade e ser devota de

Senhora Santana, na qual herdou o nome.

Senhora Santana, na Bahia é associada ao orixá Nanã. Este orixá frequentemente

é associado às aguas paradas, à lama, aos pântanos, à criação. De acordo

com a Yalorixá do Terreiro Vintém de Prata, localizado na Estrada Velha do

Aeroporto em Salvador, Mãe Marlene, este orixá é sincretizado com Senhora

Santana, por causa de sua antiguidade, senioridade:“Nanã é considerada um

dos orixás mais antigos, relacionado à velhice, por isso, muitos membros do

candomblé chama ela carinhosamente de vovó. Da mesma forma, Senhora

Santana é também uma santa antiga, avó de Deus, filho de Maria, é esta a

relação.” Nos reportemos à mitologia para entender a importância dos orixás

161

para as religiões de matriz africana.

Dizem que quando Olorum encarregou Oxalá de fazer o mundo e modelar o

ser humano, o orixá tentou vários caminhos. Tentou fazer homem de ar, como

ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer de pau,

mas a criatura ficou dura. De pedra ainda a tentativa foi pior. Fez de fogo e o

homem se consumiu. Tentou azeite, água e até vinho-de-palma, e nada. Foi

então que Nanã Burucu veio em seu socorro. Apontou para o fundo do lago

com seu ibiri, seu cetro e arma, E de lá retirou uma porção de lama. Nanã deu

a porção de lama a Oxalá, O barro do fundo da lagoa onde morava ela, A lama

sob as águas, que é Nanã. (...) Nanã deu a matéria no começo Mas quer de

volta no final tudo o que é seu.

A história acima revela a presença do masculino e feminino presente na obra

da criação, simbolizados pelos orixás Oxalá e Nana. Oxalá é considerado pai

de todos os Orixás, veste-se totalmente de banco, sendo um dos orixás mais

reverenciados pelos iniciados no candomblé.

Na história acima estes princípios (masculino/feminino), não são forças

opostas e sim complementares, sinalizando a importância destas forças

para a criação. Sem estes elementos não se gera a vida, não se cria coisas.

Não fosse pela matéria cedida por Nana o trabalho de criação do mundo

não se realizava. “Nana deu a matéria no começo, mas quer de volta tudo o

que é seu” significa dizer quer não há separação entre morte e vida para o

africano, estes fazem parte de um mesmo princípio, neste sentido “os mortos

e os ancestrais são considerados seus filhos”.6 Assim, quando esta parteira

invoca este orixá, ela cita o princípio de todas as coisas, o início da criação

que significa dotar de vida todos os seres.

6 THEODORO, H. Op.Cit. p. 86.

162

A COTA, A ANGOLANA E A FILHA DE OYA: AS PARTEIRAS DE

SALVADOR.

O Engenho Velho da Federação é um bairro muito antigo, reúne um grande

número de terreiros de candomblés e representa um dos espaços da cidade

com grande concentração da população negra. Sua história remonta ao

século XVII, grande engenho de açúcar interligando o Engenho velho da

Federação ao Engenho Velho de Brotas. A rua onde dona Lindaura mora fica

em frente a uma padaria que também serve de ponto de ônibus.

Em seu depoimento afirma ter vivido 28 anos dentro deum Terreiro de

Candomblé, localizado também no Engenho Velho da Federação. Para esta

parteira, o espaço do terreiro se constitui uma extensão de sua própria casa,

haja vista, o sentimento de pertencimento contido em suas palavras: “Lá no

meu Candomblé era candomblé de velhos, a mais moderna era eu e mais

outra...”. A este respeito D“ Alessio (1998) escreve: “O sujeito que pode se

auto reconhecer em lugares familiares que o situem, preserva seu eu, vale

dizer, protege-se da sensação de isolamento, de anonimato, de abandono,

construindo seu próprio aconchego.”7

Na verdade, dizer que mora atrás do Terreiro do Cobre dá a essa parteira um

sentimento de permanência, de continuidades, como se o tempo não tivesse

passado. É o espaço onde sua memória atua, é o elemento que a leva de

volta a um tempo passado formador de sua identidade. Nele suas histórias

tornam-se vivas.

7 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. In: Revista do Programa de Estudos Pós- Graduados em História. São Paulo: PUC, 1988, p. 37-38.

163

Para o povo de santo os terreiros são espaços de restituição de axé, local

onde se estabelece relações com o orixá, onde se fortalecem para enfrentar

as mazelas do dia a dia, são locais carregados de significação. Atualmente,

ainda que marginalizado por uma parcela da população, tem se configurado

como símbolo de resgate de identidade para a população negra. O que

outrora foi considerada uma religião marginal, cultuada de forma camuflada

e escondida, hoje, no caso da parteira Lindaura, é lugar de memória, pois a

remete a um passado vivido. O espaço do terreiro para esta parteira constitui-

se em território de identidade. A este respeito Sodré, tece as seguintes

considerações:

A ideia de território coloca de fato a questão da identidade, por referir-se

à demarcação de um espaço na diferenciação com outros. Conhecer a

exclusividade ou a pertença das ações relativas a um determinado grupo

implica também localizá-lo territorialmente. É o território que, à maneira do

Raumheideggeriano, traça limites, especifica o lugar e cria características que

irão dar corpo à ação do sujeito.8

Deste modo, podemos inferir que a vivência desta parteira dentro do Terreiro

imprimiu marcas no seu modo de ser e estar no mundo, influenciando a leitura

que faz de sua atividade como parteira. Ao ser questionada como aprendeu

a fazer parto, responde: “Foi Iansã, se eu nunca vi pessoa nenhuma parir!”.

Ela afirma ser de Iansã o que nos leva a perguntar: dona Lindaura estava

incorporada na hora que fez o parto? Ela afirma que não, pois Iansã nunca

a “pegou”. No entanto, sua vivência no candomblé, a relação de intimidade

e confiança que estabelece com seu orixá faz com que ela acredite na sua

8 BRAGA,Julio. Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 1995, p.21

164

presença na hora do parto.

O sentido que imprime a sua vivência religiosa, a fé que possui em seu Orixá

e a forma como vivencia a religião faz com que seja possível a presença do

orixá em sua vida, orientando, aconselhando, ajudando, nas horas difíceis

e também castigando, experiência partilhada pelos adeptos da religião do

Candomblé. A narrativa da parteira Lindaura nos revela um sentimento

religioso que liga santos e orixás. Muitas vezes estas divindades participam

de momentos importantes da comunidade, como no caso desta parteira

onde Nanã se torna sua comadre após batizar seu filho. Fatos como estes

são muito freqüentes dentro dos terreiros de candomblés, cuja presença

dos Orixás, caboclos, erês se torna comum quando algum acontecimento

extraordinário abala a vida dos seus membros. Este acontecimento pode ser

de cunho religioso ou não. As divindades se fazem presente para aconselhar,

medicar, orientar, punir, testemunhando um fazer religioso que interage o

tempo todo com os acontecimentos da vida.

Outra entrevistada foi dona Cotinha ou Cota como é conhecida pelos

moradores de Pernambués. Dona Cotinha é casada e mãe de catorze filhos,

todos aparados pela sua mãe. Logo no início de nossa conversa, ao indagar

o seu nome, se mostrou reticente na presença do gravador, afirmando: “Não

vou dizer meu nome não, depois dá algum problema, está aí gravado, me

chame Cotinha, ou Cota todo mundo aqui me conhece como Cotinha”.9

Na tradição Angola, o nome Cota se refere à mãe – pequena, Cotasororó. É

9 LOPES, Nei. Kitabu: O livro do saber e do espírito negro-africano. Rio de Janeiro: Editora Senac. Rio, 2005, p.242.

165

a segunda pessoa da mãe de santo, aquela que á ajuda na administração do

terreiro. Também conhecida como Iyakekerê nos Candomblés de tradição

Ketu. Encontramos na obra de Carneiro (1991) a figura da mãe-pequena como

sendo a substituta imediata da mãe de santo, sua sucessora em ocasiões

eventuais. Sua função está relacionada ao contato mais direto com as filhas

e iniciados, auxiliando a mãe de - santo nas cerimônias religiosas. É chamada

de mãe pelas filhas que também lhe toma a benção e lhe fazem reverência.10

Provavelmente a preferência desta parteira em ser identificada pelo nome

Cota esteja relacionada a este cargo, haja vista, na entrevista ao ser inquirida

sobre a sua ligação com o Candomblé ou com alguma religião afro-brasileira

ser de silêncio. Sendo este um elemento de grande significação para as

religiões afro-brasileira. O segredo ao lado do silêncio constitui em prática

institucionalizada dentro dos terreiros de candomblés e dinamiza as relações

do grupo, configura-se como elemento de comunicação do processo iniciático,

compondo o conjunto ritualístico pelos quais os ensinamentos secretos são

transmitidos.11

Este aspecto esteve presente a todo o momento no encontro com as

parteiras. Aquilo que constituía segredo era ocultado em forma de silêncio,

simplesmente as parteiras não respondiam ou então resmungavam

balançando a cabeça, o que segundo a Iyalorixá do Terreiro Vintém de Prata,

constitui uma linguagem nos Terreiros.

O nome na vida do indivíduo representa sua identidade, uma marca. Ele

10 Carneiro, Edson. Op.Cit.p.112

11 SODRÉ Muniz. O Terreiro e a Cidade. A forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 23.

166

fala do indivíduo, o nome carrega uma história que geralmente faz parte da

história da família, traz uma ancestralidade, uma continuidade. Nos terreiros

de Candomblé o nome tem uma função sagrada e social. No período de

iniciação uma das cerimônias é a festa do nome de Yaô. Nela é anunciado

publicamente o pertencimento da pessoa à comunidade através da feitura

do seu orixá. “Desta forma, leva-se ao conhecimento de todos que “a família

de santo” conta, doravante, com um novo membro”12.

Bastide, ao descrever a cerimônia do “dom do nome”, em africano Orunkó,

o associa ao ato de nascimento. “A ou as iaô entram, o corpo curvado em

ângulo reto, os braços pendentes para frente, as mãos quase tocando a

terra, exatamente como crianças que acabam de nascer e que não tem força

para assumir a posição vertical”13. Nesta associação podemos dizer que a

mãe - de - santo, tal qual a parteira, tem o dom de dar a vida.

Sendo assim, acredito que ao optar ser chamada de Cota, ela o faz pelo

significado que ele possui em sua vida. Cota representa para ela um

sentimento de pertencimento a uma comunidade. Quiçá uma comunidade

de Axé, pois “a repetição de nomes próprios em diferentes gerações, numa

mesma família, encontra-se em muitas sociedades e simboliza a continuidade

da família que recria no presente o seu passado”.14

Ao contar como começou a fazer parto, dona Val relata: - meu primeiro parto

12 SIQUEIRA, Maria de Lourdes. AgoAgoLonan – Mitos, Ritos e Organização em Terreiros de Candomblés da Bahia. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1998, p. 131

13 BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. 2a ed. São Paulo: Ed. Nacional; [ Brasília ] : INL, 1978.

14 COSTA, Ana Benardda. As crenças, os nomes e as terras: Dinâmicas identitárias de famílias na periferia de Maputo. http: // ceas.Iscte.pt/etnográfica/docs/vol 8, pp 335-354. Acessado em 05 de dezembro de 2015.

167

foi de urgência, vieram me chamar aqui, eu disse eu não sou parteira, não,

minha mãe era, como vi já tinha feito, acho que aprendi vendo minha mãe

fazer, era nova, minha mãe me chamava para acompanhar... via minha mãe

cortando o umbigo.

A narrativa traz para a reflexão um aspecto muito importante para a nossa

sociedade, o aprendizado pelo exemplo, pela observação, pelo testemunho.

Aprender com um mais velho. As famílias ao se responsabilizarem pela

transmissão do conhecimento estavam formando, educando, mas, além

disso, estavam garantindo a continuidade de um saber às gerações futuras.

A mãe de dona Cotinha não a levava só para acompanhá-la na viagem, ela

queria garantir a continuidade deste saber. Esta forma de transmissão de

conhecimento está presente na tradição oral africana:

A educação tradicional começa, em verdade, no seio de cada família, onde

o pai, a mãe ou as pessoas mais idosas são ao mesmo tempo mestres e

educadores e constituem a primeira célula dos tradicionalistas. São eles que

ministram as primeiras lições da vida, não somente através da experiência,

mas também por meio de histórias, fábulas, lendas, máximas, adágios, etc.15

De certo, se os terreiros de Candomblés constituem o espaço onde os

negros historicamente têm cultivado o seu sentimento de pertença com o

continente africano, as trajetórias de vida das parteiras na Bahia, a exemplo

desta parteira constituem exemplo vivo das várias Áfricas que coexistem no

meio de nós.

“Minha vó era angolana do tempo da pedra”. Esta frase marcou a entrevista

15 Bâ, Hampâté A. A tradição Viva. In: História Geral da África – Metodologia e pré- História da África. São Paulo: Ática; Paris: UNESCO, 1982, p. 194.

168

com dona Iara, parteira de 47 anos, moradora do bairro de Mussurunga.

Ao narrar sua história, lembra-se da avó com quem aprendeu a fazer parto,

acompanhando-a em seus atendimentos. Na família só ela e a prima Solange

aprenderam a arte de partejar. Esta prima hoje tem um Terreiro no Alto das

Pombas, conhecido bairro de Salvador.

“Minha vó era angolana do tempo da pedra” traduz o sentimento desta parteira

no que diz respeito à sua noção de pertencimento a uma ancestralidade

africana. Fica a indagação: essa descendência diz respeito ao local de origem

de nascimento da avó de dona Iara ou está vinculada a uma das nações de

candomblé aqui na Bahia, o candomblé de angola? Optamos pela primeira

alternativa, haja vista, os filhos de santo dos candomblés da nação Angola

se autodenominarem “angoleiros” e não angolanos como é o caso da avó

desta parteira, conforme informação oral do professor Vilson Caetano. Outra

opção para entendermos o significado desta expressão é compreendê-la

no sentido de determinar a antiguidade da vó desta parteira em relação ao

tempo em que ela viveu no terreiro de Candomblé.

Dona Iara nasceu em Praia Grande, foi iniciada no Candomblé ainda

pequena, é filha de Ogum com Iansã. Afirma que passou parte de sua vida na

Federação, perto do Terreiro do Gantois. Hoje ela é doméstica e ambulante,

mas aprendeu a fazer parto desde pequena. Será que a vivência de dona Iara

junto a um terreiro de Candomblé, o Gantois, influenciou no seu aprendizado

de fazer parto? A mãe de dona Iara e sua avó também frequentavam o

terreiro? Eram iniciadas na religião do Candomblé? Na sua entrevista, dona

Iara não deixou isso claro.

169

Ao lado do papel de mãe, esposa, tia e madrinha de muitas crianças na

comunidade, esta parteira também vende cerveja na praia e nas festas de largo

de Salvador, faz faxina, conta que já realizou mais de 50 partos nos bairros

da Boca do Rio, Fazenda Coutos, Bairro da Paz e Mussurunga. Sua história

assemelha-se a de muitas outras mulheres que no passado exerceram a arte

de partejar. Pinto (2002) ao retratar as histórias de mulheres parteiras na

região do Tocantins, já chama atenção para os vários papéis desempenhados

por estas mulheres.

Desde a formação dos antigos quilombos na região, parteiras, curandeiras

e benzedeiras vêm desempenhando múltiplos papéis, como chefes de

famílias, organizadoras e condutoras de rituais religiosos, líderes fundadoras

de povoados. (...) Além de cuidar dos filhos, cozinhar, varrer, lavar vasilhas e

roupas.16

Ao narrar sua história, a lembrança da mãe e da avó, parteiras, toma conta

de dona Iara. Esta lembrança está sempre associada a uma transmissão

de conhecimento, a um saber baseado nos anos de experiência que estas

passaram, exercendo a atividade de parteiras, saber acumulado, saber

ancestral, saber de velho. Nas Comunidades – Terreiro este saber/poder se

relaciona à figura das mães de santo.

Concordo com Joaquim (2001) que ao se referi às mães-de-santo revela que

as mesma possuem um papel fundamental na distribuição da força vital, sua

palavra se transforma em ação pelo axé que carrega. Mãe de todos os orixás,

pois possui o poder de trazê-lo à terra. Sua liderança e carisma se assentam

no conhecimento sagrado que possui e na preservação do axé que garante a

16 PINTO, Benedita Celeste de Morais. Vivências Cotidianas de parteiras e “ experientes” do Tocantins. Revista Estudos Feministas, no 2, 2002 p. 442.

170

continuidade da vida nos terreiros.17

As narrativas das parteiras sobre suas experiências religiosas nos informam

a respeito de uma tradição que mescla símbolos das expressões religiosas

indígenas, africanas e também do catolicismo. Esta forma de se experimentar

a religião predominou na sociedade brasileira desde a colonização. No caso

das parteiras esta experiência pode ser entendida tomando como referência

as trajetórias das mulheres negras africanas e afro-brasileiras, no que se

refere à guarda e transmissão das tradições religiosas e culturais. Para

Theodoro (1996), “o papel das mulheres nas religiões negras e nos cultos

afro-americanos se relaciona à guarda e transmissão das tradições religiosas

e culturais, sendo o elo que liga o sagrado à vida comunitária”. 18

Nas trajetórias de vida das parteiras analisamos ser estas mulheres herdeiras

de um saber/fazer que está a serviço de uma coletividade. Saber/fazer que

testemunha a presença do divino em suas vidas, auxiliando na hora do parto.

- “Mais olhe a pessoa que é parteira eu acho que tem um guia divino que

a ilumina, pois na hora de um parto, sempre a pessoa sente um tipo de

incorporação”. (dona Miúda)

- “Foi Iansã, se eu ainda não vi mulher nenhuma parir.” (dona Lindaura)

- “Aprendi pela consciência de Deus. Foi Deus que ensinou, pois não tenho

leitura. Quando dá a hora é que Deus mostra.” (dona Rosalinda)

17 JOAQUIM, Maria Salete. O papel da Liderança religiosa feminina na construção da identidade negra. Rio de Janeiro: Pallas: São Paulo: Educ, 2001, pp 103-104.

18 THEODORO, Helena. Mito e espiritualidade: Mulheres negras. Rio de Janeiro: Pallas editora.1996, p. 59.

171

As falas acima testemunham a presença de um ser superior denominado

de “guia divino”, “orixá”, Deus, cuja presença na hora do parto as parteiras

atribuem o sucesso de sua realização. Para elas, é indispensável ter fé para

que o parto aconteça. Consideram-se instrumentos pela qual a força divina se

realiza e só desta forma encontram explicações para o saber que possuem.

Suas narrativas dizem respeito à forma como as suas vivências religiosas são

construídas. A crença de que Deus, Caboclos e Guias revelam-se no cotidiano

de suas vidas partilhando de angústias, dúvidas e também das vitórias. É na

vida diária que experimentam e recebem o poder divino. Vida e religião se

complementam. Aliás, este é um dos elementos da cosmovisão africana que

se encontra presente nas histórias de vida destas mulheres.

Hama e Ki-zerbo (1982) ao se referir ao papel das mulheres nas sociedades

africanas, analisa o seguinte aspecto: “Apesar de sofrer uma segregação

aparente nas reuniões públicas todos sabem na África que a mulher está

onipresente na evolução. A mulher é a vida. É também a promessa de

expansão da vida”.19

As cantigas, os textos míticos, as lendas são discursos utilizados pelo africano

como formas de comunicação e ensino. Neste sentido recorreremos à

mitologia para apreender o lugar dispensado à mulher nas sociedades

africanas:

Oxum faz as mulheres estéreis em represália aos homensLogo que o mundo foi criado, Todos os orixás vieram para a terra,E começaram a tomar decisões e dividir encargos entre eles,

19 Hamma, Babou. Lugar da História na sociedade africana. In: KI-ZERBO, J. História Geral da Àfrica I – Metodologia e pré-história da África. Editor. 2a ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010, pp, 30-31.

172

Em reuniões nos quais somente os homens podiam participar.Oxum não se conformava com essa situação. Ressentida pela exclusão, ela vingou-se dos orixás masculinos. Condenou todas as mulheres à esterilidade.De sorte que qualquer iniciativa masculina No sentido da fertilidade era fadada ao fracasso. Por isso, os homens foram consultar Olodumare. Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer Sem filhos para criar nem herdeiros para quem deixar suas posses, Sem novos braços para criar novas riquezas e fazer as guerras E sem descendentes para não deixar morrer suas memórias. Olodumare soube, então, que Oxum fora excluída das reuniões. Ele aconselhou os orixás a convidá-la, e às outras mulheres, Pois sem Oxum e seu poder sobre a fecundidade Nada poderia ir adiante Os orixás seguíamos sábios conselhos de Olodumare.E assim suas iniciativas voltaram a ter sucesso. As mulheres tornaram a gerar filhos.E a vida na terra prosperou.20

Criação, esterilidade, fertilidade, fecundidade, descendência, prosperidade,

são elementos presentes na história acima e nos revela justamente como

na cosmovisão africana os orixás partilham de história e sentimentos que

os ligam às pessoas na terra. Indica também a presença das mulheres na

dinâmica da criação e da continuidade da vida sobre a terra. Ou seja, o papel

das parteiras pode ser entendido como continuidade do papel desempenhado

por Oxum. O papel de propiciar a vida, a criação, a continuidade das famílias,

entre outros aspectos.

São várias as ligações que unem as parteiras a este Orixá, no entanto, cabe

aqui salientar a sua ligação com o ato de gerar a vida, através do poder que

detém sobre as águas, “sem a qual a vida na terra não seria possível”. Trata-

20 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das letras, 2001 p.345.

173

se de um conhecimento transmitido de geração para geração, testemunhas

de um poder que cria vida que se envolve nas relações das parteiras com

a comunidade . Assim, tanto em Salvador, como em Lauro de Freitas, a

presença das parteiras mostra-se necessária e nos revela uma especificidade

do atendimento pré-natal, no que diz respeito ao atendimento de urgência,

ao acompanhamento diário, os quais os serviços públicos de saúde não dão

conta, conforme noticiado amplamente:

“É muito difícil levar uma mulher daqui para as maternidades. Quando dá, a

gente pede ajuda aos policiais. Mas quando a viatura chega, a mulher pode já

estar em trabalho de parto. Outras vezes não tem vaga na maternidade, ou

então, não tem o dinheiro do transporte para voltar”.21

Testemunho publicado no jornal Correio da Bahia, de uma moradora do

Bairro da Paz em Salvador, localizado na Avenida Paralela, mostra como para

uma parcela da população a existência das parteiras não significa uma etapa

do passado de nossa história, indica sim, a continuidade de um saber, que

simboliza vida e esperança para muitas mulheres na hora de dar a luz, mesmo

com o desenvolvimento dos serviços de saúde com suas maternidades e

posto de atendimento.

O saber das mulheres parteiras tem função social, não está desconectado da

vida, tem uma utilidade prática. É um saber a serviço de uma coletividade.

Os conhecimentos foram adquiridos na vida cotidiana e estão baseados

nas vivências e práticas, imersos em valores, ideias, crenças, intimamente

vinculados aos ensinamentos transmitidos por suas ancestrais.

21 Jornal Correio da Bahia.

174

Vivência religiosa e prática de cura de mulheres parteiras

“Tendo fé minha filha, água cura tudo”. Estas palavras foram pronunciadas

pela parteira Lindaura do Engenho Velho da Federação ao ser questionada

sobre a utilização de remédio na hora do parto. O conteúdo desta afirmativa

mostra que as práticas de cura utilizadas pelas parteiras são frutos de um

tipo de relação com a vida, com o universo, um construto cultural, nos quais

os elementos da natureza como água, plantas e a terra se constituem fonte

de reposição de energia vital, capazes de proporcionar a cura de algum

mal. Síntese de várias concepções de mundo, estas práticas conseguiram se

manter viva, pelos significados construídos pelas pessoas que as utilizam,

como também, pela sua eficácia na cura das enfermidades cotidianas.

Encontrando aceitação até os dias atuais por dialogar com aspecto da vida que

mistura medicina e religião, onde a fé se constitui em elemento primordial,

como também, “por ter conseguido sobreviver em uma cidade que desde

o século XIX têm se ocupado em varrer das ruas suas africanidades”. Para

Nascimento (2007) foi a capacidade dos indivíduos de articular e incorporar

as suas práticas populares de cura ao mundo moderno que garantiu a sua

sobrevivência.22

Os processos de cura realizados pelas parteiras em suas comunidades

são resultados de uma tradução das práticas vivenciadas pelas suas mais

velhas. Desta forma, pela tradução a tradição se mantém e se renova. Haja

vista, muitos aspectos utilizados como palavras, gestos, estarem encerradas

em suas memórias, ou até mesmo algum tipo de ervas, plantas não mais

22 NASCIMENTO, Vilma Maria. Sagrado/Profano no trato do corpo e da saúde na “metrópole negra”: Salvador nos anos 1950/1970. Tese de doutorado, história, PUC/SP, 2007,p.87.

175

existirem, sendo necessária a sua substituição por uma equivalente.

Neste sentido, as parteiras que encontrei nos bairros de Salvador e Lauro

de Freitas, ao tempo em que são símbolos de resistência e guardiãs de uma

prática cultural que compreendem os males do corpo e do espírito como

fruto de um mesmo processo, são também protagonistas de mudanças que

se processam no fazer cotidiano. As experiências religiosas, apreendidas

junto aos seus antepassados, serviam e ainda servem para amenizar e até

mesmo curar estas duas dimensões: corpo e espírito.

As parteiras se constituíam em alternativas para as mulheres pobres. Estas,

ao procurarem os seus serviços não só esperavam cura para os males do

corpo, como também desejavam ouvir conselhos para os cuidados com os

filhos e trato com o marido, receitas caseiras e acima de tudo graças para

as suas vidas. Neste particular coube à família a preservação e manutenção

de um conjunto de valores, crenças, códigos cujo objetivo era articular as

formas culturais presentes em suas memórias de um passado africano, com

a nova realidade que se apresentava em terras brasileiras. Nos remetendo às

parteiras, a família tem um papel primordial para a perpetuação e transmissão

de suas práticas de cura. É junto aos mais velhos que se aprende a usar as

plantas, assim como, as receitas e orações.

As parteiras entrevistadas sempre se reportam à família para legitimar o

seu aprendizado. Entre elas, talvez a memória de dona Venância seja amais

enfática:

-“Olhe essas coisas aí eu ouvi os mais velhos falar no interior, né. Eu sempre

176

fui curiosa... quando eu nasci foi com parteira e eu ouvia muito minha vó

falar né, conversar, comentar aí eu aprendi assim.”

Esta parteira tem 51 anos e mora em Salvador há vinte um anos. Nasceu “no

dividimento de Bahia com Sergipe”. Antes de chegar a Salvador, viveu em

Aracaju, perto de Mangue Seco. Para dona Venância a alternativa encontrada

para driblar as dificuldades diárias e garantir a sua sobrevivência e a dos

seus filhos, foi trabalhar como doméstica, até juntar dinheiro e conseguir seu

próprio negócio. O fato de “aparar crianças” ajudou a se tornar conhecida nos

lugares em que morava, o seu conhecimento no cuidado com as crianças,

facilitava na hora de buscar os serviços nas residências.

Ouvir o mais velho falar, conversar, comentar, ser curiosa são posturas

utilizadas por dona Venância para adquirir seu aprendizado. A continuidade

deste tipo de conduta será a garantia de que no momento certo algum destes

mais velhos lhe iniciará no primeiro contato com o parto.

Na trajetória de vida das parteiras um dos aspectos evidenciados foi

o conhecimento de práticas de cura utilizadas para sanar ou aliviar as

dores das mulheres na hora do parto. Essas práticas são permanências

de um saber ancestral herdadas de suas mães, tias, avós e também por

outras parteiras. Consistem em orações, rezas, massagens e uso de

plantas medicinais. No entanto as estratégias de curas não se limitavam

a estas citadas pelas parteiras entrevistadas. Santos (2001) registra outros

procedimentos utilizados pelas parteiras e rezadeiras da cidade de Santo

Antonio de Jesus, tais como: banhos de folhas, defumadores, ebós. Estas

práticas se relacionam diretamente com suas vivências religiosas, tirando

177

daí a certeza de que o tratamento será eficaz.23

Por outro lado, o trabalho das parteiras não estava só na arte de ajudar as

mulheres a parir, não se resume apenas àquelas relacionadas diretamente ao

parto e sim de todo o tipo de doenças que se relacionava ao corpo feminino.

Este aspecto é discutido por Del Priore no seu estudo sobre o corpo feminino

na colônia, onde nos informa sobre a presença das mulheres para resolver

questões relativas às doenças das mulheres, assim como, os processos de

cura utilizados por elas:

Desprovidas dos recursos da medicina para combater as doenças cotidiana, as mulheres recorriam a curas informais, perpetrando assim uma subversão: em vez dos remédios, eram elas que, por meio de fórmulas gestuais e orais ancestrais, resgatavam a saúde. A concepção da doença como fruto de uma ação sobrenatural e a visão mágica do corpo as introduzia numa imensa constelação de saberes sobre a utilização de plantas, minerais e animais, com

as quais fabricavam remédios caseiros que serviam aos cuidados terapêuticos

que administravam.

Na transcrição acima, as mulheres cumprem o papel de transgressoras,

através deste ato elas dão continuidade a uma forma de ser, crer e fazer

que se constituiu em alternativa de cura numa sociedade que padecia. São

estes cabedais de saberes presentes nas histórias de vidas das mulheres

de nossas comunidades, que são acionados pelas parteiras. Assim sendo,

quando perguntamos sobre suas práticas de cura, a parteira Venância faz o

seguinte relato:

23 SANTOS, Denilson Lessa. Rezadeiras, Benzedeiras e Curandeiros. Uma história das práticas culturais/medicinais/religiosas populares na terra de Santo Antônio – Recôncavo Sul – Bahia, Monografia, história, UNEB, 2001, p. 77.

178

- “Erva cidreira, se for para ter a dor aumenta, se não a dor passa logo e não

tem mais. Erva cidreira dá para beber e lavar a barriga”.

A utilização da erva cidreira é uma prática muito comum na sociedade.

Geralmente é utilizada como calmante ou no combate a insônia. Nos terreiros

de Candomblé possui função religiosa. Dona Gersonita (73 anos), Yabassé do

Terreiro Vintém de Prata, localizado na Estrada Velha do Aeroporto, Salvador-BA,

viveu quase vinte sete anos na Umbanda, já tem sete anos no candomblé. Ao

falar do uso da erva cidreira revela:

- “Ela pode ser usada como calmante ou para cólicas intestinais. No terreiro

nós utilizamos também, como chá em algumas obrigações”.

Ser yabassé de um terreiro de Candomblé, dentro das hierarquias dos cargos

nos terreiros, é cuidar da comida dos santos, dar de comer ao orixá. Ser

a responsável pela cozinha nos terreiros. Segundo Vivaldo da Costa Lima,

“é a responsável pela cozinha, isto é, desde o recebimento dos bichos após

o sacrifício, até a entrega das comidas prontas.” O autor explica também

a origem do termo: “ o termo se origina do ioruba Iyagba-se, “ velha que

cozinha” ,indicando ser uma dos critérios para assumir esta função/cargo, a

experiência, a maturidade, a idade de santo.24

A função que dona Gersonita ocupa neste espaço religioso permite que ela se

aproprie da utilização das ervas e plantas nos rituais sagrados do candomblé.

“O algodão crioulo... se for para nascer, nasce logo, se não for também...”

24 LIMA. Vivaldo da Costa. A família de Santo nos Candomblés da Bahia: um estudo de relações intragrupais. 2a ed. Salvador: Corrupio, 2003, p. 85

179

(D. Venância). Várias são as propriedades medicinais de algodão, dentre

elas podemos citar antidisentérica, antiinflamatória, antivirótica, bactericida,

emoliente e hemostática, no entanto sua utilização é restrita entre a

população pela falta de conhecimento destas propriedades. O algodão pode

ser usado para a expulsão do catarro, nas desinterias, diarréia, dismenorréia,

dores musculares, ferida, furúnculo, hemorragia, inchaço, infecções renais,

inflamação, menorragia, queimaduras, síndrome pré-menstrual, trabalho

de parto. As plantas medicinais geralmente são usadas em chás, banhos

comuns ou banhos de assento.25

Assim, não podemos ler a utilização dos procedimentos de cura pelas

parteiras apenas como falta de recursos ou ausência de uma medicina

oficial. Estas mulheres ao acreditarem que não há separação entre o corpo

e espírito, também creem que homem e natureza estão interligados, desta

forma, vão encontrar em seu universo cultural o saber necessário para a

utilização destas plantas. Aliás, trata-se de uma tradição já assinalada por Del

Priore: “As mulheres e suas doenças moviam-se num território de saberes

transmitidos oralmente, e o mundo vegetal estava cheio de signos das

práticas que as ligavam ao quintal, à horta, as plantas”.26 Nos dias atuais, os

espaços do quintal, da horta e das plantas estão cada vez mais escassos, pois

quase já não existem as casas de outrora com seus quintais. Em seus lugares

estão os prédios e edifícios. Alguns terreiros de candomblés,a exemplo

de Terreiro Vintém de Prata, localizado na Estrada Velha do Aeroporto,

25 CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. As plantas na medicina popular e nos rituais afro- brasileiros.Apresentado no II Seminário Internacional de Relatos de Pesquisa em Folclore e V Encontro com o Folclore e cultura popular. Unicamp/Unesco. WWW.aguaforte.com/herbarium/plantas.html. Acesso em 14.07.2007.

26 PRIORE, Mary Del. Op. Cit. O. 94

180

constituem espaços de resistências onde plantas com funções medicinais

são plantadas e conservadas para fins religiosos.

O espaço “mato” cobre quase dois terços do “terreiro”. É cortado por arvores,

arbustos e toda a sorte de ervas e constitui um reservatório natural onde são

recolhidos os ingredientes vegetais indispensáveis a toda a prática litúrgica.

É um espaço perigoso, muito pouco frequentado pela população urbana do

“terreiro”. Os sacerdotes de Ósanyin, órìsa patrono da vegetação e, em geral,

os sacerdotes pertencentes ao grupo dos órìsa caçadores – ògún e ósósi –

realizam os ritos que devem ser executados no “mato”. De um modo geral o

“mato” é sagrado.27

Conforme Santos, O espaço do mato é sagrado porque contém vida, energia,

axé, Orixá. Portanto sagrado também há de ser os procedimentos medicinais

que fazem uso destes vegetais, não por pertencer a esta ou aquela religião

e sim por acreditar no poder de cura que possuem. Para dona Venância

inclusive,

- “A mulher também tá gestante e ela temer perder e não quiser perder ela

pode tomar um chá de milho alpiste, ela toma, segura o bebê não perde, isso

eu tenho experiência com a minha filha, eu já dei a essa”.

O alpiste ou milho alpiste como é conhecido popularmente, segundo

a Iyabassê do Terreiro Vintém de Prata também é usado para quem tem

problema de retenção de urina, hipertensão. Para fins religiosos pode ser

usado como descarrego, limpeza.

Candomblés e Umbanda são as religiões com maior incidência no uso

de plantas nas cerimônias religiosas e nos rituais de cura. Estas plantas, 27 SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Padê. Asesé e oculto Égun na Bahia. Traduzido pela Universidade Federal da Bahia. Petrópolis, Vozes, 1986, p 34.

181

conhecidas na medicina popular e tradicional por estarem inseridas no uso

cotidiano de uma grande parcela da população, possuem uma importância

fundamental nos rituais de candomblé, sendo utilizadas nos banhos,

bebidas, remédios, incensos, cachimbos, charutos.28 Nascimento (1999), ao

estudar o cotidiano dos vendedores ambulantes em Salvador, analisando a

apropriação pelos ervanários dos produtos utilizados nas cerimônias e rituais

do candomblé, nos informa sobre toda uma prática cultural desenvolvida

pela sociedade baiana, dos mais variados níveis sociais, com distintas opções

religiosas, no que se refere ao uso de práticas populares de cura próprias dos

terreiros de candomblés. Revela ainda como estas práticas de cura fizeram

emergir em Salvador, todo um comércio de itens relacionados com esta

religião, constituindo-se em um comércio específico dentro da cidade, com

toda uma organização montada e redes de solidariedades construídas.29

Segundo Serra, na cosmologia do candomblé nagô todas as plantas são

sagradas, pois todas possuem axé, no entanto algumas são consideradas

especialmente sagradas. Esta distinção se faz devido ao seu “especial valor e

importância”, definida pelo uso em rituais iniciáticos. Estas plantas formam

um grupo simbólico nuclear com presença e característica dominante na

liturgia iniciática.30

A parteira Rosalinda, moradora do bairro de Itinga, além de realizar partos,

trabalhou muito tempo na feira, vendendo folhas e ervas, desta forma

28 CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. Op. Cit.

29 NASCIMENTO. Vilma do. Op. Cit.

30 SERRA, Ordep..et al. O Mundo das folhas. A Etnofarmacologia dos Terreiros Nagô-baianos. Salvador, Ba: CEAO, 1996:143

182

adquiriu muitos conhecimentos. Conhecedora das propriedades medicinais

existentes nas folhas e o seu uso ritual, pode-se mensurar que a Ialorixá do

terreiro frequentado por esta parteira, resolveu mantê-la por perto, a fim de

aprender com ela o conhecimento necessário ao desempenho de sua função.

Por outro lado, não podemos esquecer que uma das cerimônias na religião

dos orixás liga-se diretamente ao uso das folhas dentro do candomblé, a

Sassanhe. Significa cantar para Ossain, ou “cantar a folha”. Sendo assim, a

presença de dona Rosalinda no Candomblé de dona Leonor tinha uma ligação

direta com a realização deste ritual. As rezas e orações, ao lado das plantas,

figuram com possibilidades de cura. Este conhecimento é passado por outra

parteira e a fé é o parâmetro para que o parto aconteça com tranquilidade.

A este respeito, Dona Miúda, parteira do bairro de Itinga revela que na hora do

parto coloca uma bolsinha (tipo patuá) no pescoço da gestante, com a oração

de N. Sª. do Montesserrat. Os patuás ou bolsas de mandingas como eram

chamados no período colonial, segundo Laura de Souza e Melo (1986), foi a

forma mais tipicamente colonial de feitiçaria no Brasil. O seu uso atravessava

todas as camadas sociais, sendo o resultado de hábitos europeus, africanos

e indígenas. O seu uso foi registrado nos finais do séc. XVII se generalizando

no séc. XVIII.

Na oração a Nossa Senhora de Monte Serrat encontramos toda uma devoção

religiosa à figura da Virgem Maria. Dona Miúda se denominava evangélica e sua

opção religiosa não era impedimento quanto a necessidade invocar os santos

e rezar uma oração na hora de realizar um parto, muito embora Bessa (1997)

compreenda que: “As parteiras protestantes não acreditam em santos nem

183

em orações dessa natureza e, sendo assim, não as utilizam em sua prática” .

Porém, além da oração de Nossa Senhora de Monte Serrat, várias outras eram

utilizadas pelas parteiras durante o parto. Bessa fez o registro das seguintes:

Oração de São Bartolomeu, Rosários apressado, Salve Rainha, Oração para

ajudar no desprendimento da placenta, para estancar hemorragia.31

As orações figuram ao lado de outras práticas de cura utilizadas por africanos,

índios e mestiços durante todo o período colonial. Através das orações

cuidavam-se não só de males físicos como também os males do coração.

SOUZA (1986) narra os momentos em que eram empregadas as orações:

Para fins amorosos utilizava-se a oração de São Cipriano: Meu glorioso São

Cirpiano, foste bispo e arcebispo, pregador e confessor do meu Senhor Jesus

Cristo pela Vossa Santidade, e pela Vossa virgindade, vos peco São Cipriano

que me tragais fulano de rastos, e chorando...32

O significado do emprego das orações pelas parteiras pode ser compreendido

pelo valor dado à palavra proferida dentro da comunidade em que estas

mulheres estão inseridas. Nestas comunidades é comum procurar uma

benzedeira que em muitos casos também são parteiras, para curar alguma

enfermidade. São geralmente idosas, iniciadas por algum mais velho no

poder de curar através das palavras. Também neste momento, a fé é um

ingrediente fundamental. Através da fé, as palavras dão vida, como também

tira. Curam como também matam, por que ela é divina.

O interessante é que sendo do candomblé, na hora de fazer o parto

31 BESSA, Lucineide Frota. Condições de Trabalho de Parteiras Tradicionais: Algumas características no contexto domiciliar rural. Dissertação, mestrado, UFBA. 1997, p. 148-149.

32 SOUZA, Laura de Melo. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia de Letras, 1986, p. 232.

184

donaValtíria, filha de Omolu, moradora da Rua do Povo em Lauro de Freitas,

diz invocar São Raimundo Nonato. “... eu chamava por São Raimundo e Nossa

Senhora do Parto, São Raimundo Nonato é parteiro”.

Assim, como a parteira Miúda, que mesmo sendo evangélica afirmou que

sentia uma incorporação na hora de realizar o parto, dona Val, sendo iniciada

em um terreiro de candomblé, acionou um santo católico, o que revela que

a experiência de fé das parteiras, ultrapassa os limites das denominações

religiosas.

Segundo a tradição católica São Raimundo Nonato foi extraído do corpo

da mãe morta no parto. Pela sua difícil vinda ao mundo, é invocado como

patrono e protetor das parturientes e das parteiras. “São Raimundo Nonato

socorrei a todas as parturientes e os Recém-nascidos pela graça e amor de

Deus”. Já Nossa Senhora do Parto tem sua devoção ligada a divergências

teológicas quanto a sua maternidade divina, mesmo assim é cultuada no

Brasil no dia 08 de novembro.

ORAÇÃO A NOSSA SENHORA DO PARTO

Virgem Santíssima, Virgem antes do parto, Virgem no parto, Virgem depois do

parto, tal foi a obra do Espírito Santo, que gerou em vosso ventre imaculado o

Esplendor do mundo, vosso adorado e precioso Filho Jesus Cristo, infinita foi a

vossa alegria em conduzir em vossos braços esse penhor de eterna duração,

essa fonte de riqueza que vos fez subir ainda mais a esse trono, que tanto vos

glorificou como Rainha dos anjos, e incomparáveis mágoas, sobretudo quando

vistes crucificado o vosso adorado Filho, nessa hora que tudo para vós era

aflições, nunca achastes quem vos consolastes senão a vossa ternura de Mãe

185

Santíssima; a todo momento precisam os pecadores de vosso amor e bondade,

mas nunca como nesta hora, dando-me um bom sucesso e a todos quanto

implorarem o vosso Santo Nome.Amém.

O que vem ser uma oração, senão uma evocação, uma palavra bem dita.

Em algumas sociedades a palavra é origem e princípio de tudo. No livro

do gênesis é através da palavra que Deus cria o homem e todas as coisas

que existem nele. “Haja luz e houve a luz”. (gen.1,4). Nas religiões de matriz

africana, a palavra é transmissora de axé.

Proferir uma palavra, uma fórmula é acompanhá-la de gestos simbólicos

apropriados ou pronunciá-la no decorrer de uma atividade ritual dada. Para

transmitir-se àse faz-se uso de palavras apropriadas da mesma forma que se

utiliza de outros elementos ou substâncias simbólicas.

As curas mágicas através de palavras refletem a crença no caráter divino da

mesma. Desta forma ao utilizar das rezas e orações as parteiras utilizam-se

de certos procedimentos gestuais que garantem a eficácia da palavra. Dona

Rosalina, parteira, feirante reza a seguinte oração: Assim como Jesus Essa

criança vai nascer e Deus vai me dá Em nome do Senhor.

Donana, moradora também de Lauro de Freitas, católica praticante e devota

de Senhora Santana reza baixinho uma Ave Maria e uma Salve Rainha. Mesmo

as parteiras protestantes não se esquivam em utilizar os ensinamentos

recebidos de seus mais velhos. O que conta neste momento é a fé, tanto da

parteira como da gestante.

Ao se referir aos processos de curas dentro dos Candomblés, Souza Junior,

186

chama atenção para os diversos sentidos que a doença possui para os

terreiros, relacionando-os à prática de “banho de pipocas” cultivados por

algumas pessoas como pagamento de cura das enfermidades. Esta prática

encontra continuidade até hoje e é freqüente nos dias de segunda-feira, que

é consagrado ao orixá Omolu, na porta da Igreja de São Lázaro. Neste mesmo

estudo, Souza Junior apresenta um sistema de classificação relacionando os

tipos de enfermidades aos orixás:

Em linhas gerais, as doenças de pele, as mais superficiais, ou seja, que atingem

apenas a epiderme são associadas à Ode, entendido como “a terra que

reveste os ossos” e as mais profundas, “ as que vêem de dentro”, fazendo a

pele estourar, ligam-se a Obaluaiyê, que em linhas gerais possui o domínio

sobre todas as enfermidades da terra. À Oxumaré, ancestral do crescimento,

é consagrado o umbigo dos recém-nascidos e em muitos casos é associado

ao vitiligo. Oxum se ocupa com as doenças de dentro, as que atingem as

entranhas; da barriga, por exemplo. A obesidade, o colesterol, é domínio de

Xangô, a impotência sexual de Exu, os ferimentos de Ogum, o cirurgião; Oya

cuida das doenças respiratórias e Oxalá, as coisas dos ossos e do coração. [ }

Ossain é o princípio ativo presente em todos os vegetais. E a seiva que circula

dentro de todos os caules e de todos os corpos. Nana é a vacina.

De acordo com o autor acima, são aos Orixás que os membros dos candomblés

recorrem quando estão doentes. Ancorados nesta visão de mundo, para

muitos ir ao médico constitui verdadeiro horror. Sendo assim, a presença

das parteiras, constitui uma possibilidade de religação com o sagrado que

pode ter sido rompido por meio da doença. Representa também canal de

ligação entre o divino e as pessoas, já que o divino se materializa através de

suas mãos que recebe a vida.

SABERES DE CURA E A ARTE DE PARTEJAR: BRASIL E GUINÉ BISSAU

Danieli Siqueira

O presente artigo aborda o contexto do parto e nascimento no Brasil e na

Guiné-Bissau, pretende fazer esta reflexão a luz da experiência das parteiras

“tradicionais” em ambos os países. Passando pela discussão a respeito da

transição do parto do ambiente domiciliar para o ambiente hospitalar, dos

cuidados do saber classificado como popular para o saber dito científico. A

construção deste artigo só foi possível visto o apoio dado pela Pró-reitoria de

extensão da Universidade Federal de Pernambuco - PROEXT que possibilitou a

participação de uma comitiva de professores da UFPE na I Semana de Capacitação

e Oportunidades na Guiné-Bissau, realizada pela Associação Força Guiné – AFG,

em parceria com a PROEXT-UFPE, e Embaixada brasileira na Guiné-Bissau.

No referido evento, enquanto professora da UFPE na altura, participei como

palestrante da Roda de Saberes - “De parteira para parteira. Diálogos entre

tradições: Brasil e Guiné-Bissau”. Na oportunidade estavam presentes

matronas, parteira-enfermeira e estudantes da área de saúde da Guiné-

Bissau. Também foi realizada pesquisa de caráter exploratório a respeito do

parto e nascimento em comunidades de Bissau, na maternidade do hospital

Simão Mendes e no Centro Materno.

188

No que se refere ao contexto do partejar no Brasil, os dados utilizados neste

artigo são resultantes da minha pesquisa de doutorado em sociologia que

está em curso.

De acordo com dados do IBGE1 foram registrados em 2010 no Brasil 2.747.373

nascidos vivos, deste quantitativo 98,83% nasceram no hospital e cerca de 1%

nasceu no domicílio. Temos que considerar que há em nosso país uma taxa

de sub-registro civil de nascimento (13 % em 20062), ocasionada por diversos

fatores como falta de condições financeiras para ir até o cartório devido à

distância, não reconhecimento da paternidade da criança, o cartório que não

registra crianças nascidas de partos atendidos por parteiras. E neste caminho

há uma sub-notificação dos partos atendidos nos domicílio brasileiros. Em

todo caso a maioria dos partos hoje ocorre no ambiente hospitalar. Isso se

deu devido a um processo de transição do cuidado no que se refere à saúde

da mulher do saber popular da parteira, para o saber médico.

No início do século XX, grande parte dos partos era realizado no próprio

domicílio da parturiente destinando aos hospitais o atendimento das

mulheres de baixa renda. Contudo, o avanço da medicina e o surgimento

da tecnologia propiciaram o aumento dos partos hospitalares apoiado nos

ideais médicos, ao considerar o hospital o local mais seguro para o parto.

Este processo ocorreu de maneira impositiva, através de represália. Vejamos,

As parteiras enfrentavam suspeição, porque se entendia que elas poderiam

provocar aborto, promover esterilidade, acobertar mulheres adúlteras e

1 Estatísticas do Registro Civil, v.37, 2010.

2 Indicadores sociodemográficos e de saúde no Brasil 2009 – IBGE.

189

praticar feitiçaria. Tinham, então, ao contrário dos homens, controle sobre a

reprodução, fenômeno muito importante pelas suas implicações políticas e

econômicas. Era, portanto necessário restringir sua atuação como profissionais

ou relegá-las a um plano inferior, negando o seu poder em relação àquele

fenômeno biológico. [...] Houve a negação do saber das parteiras como

estratégia de reduzir a importância de seu papel. (RODRIGUES, 2008:178).

Vemos neste contexto algumas variáveis importantes para serem pensadas.

Primeiramente a ideia de que o imaginário coletivo contemporâneo pautado

num modelo ocidentalizado de construção de identidades e de relações sociais

engloba o que chamo de “arquétipo tecnológico”, onde as máquinas e as

substâncias sintéticas, produtos diretos do validado saber científico, é que são

capazes de cuidar do nosso corpo, em detrimento dos cuidadas advindos do

saber popular, por exemplo. Propaga-se a ideia de que outros saberes, para

além do classificado como científico, não devem ser considerados seguros.

E neste sentido a medicina utiliza como suporte de suas ações a imagem do

que é “seguro”, para justificar a aplicabilidade do modelo hospitalocêntrico

imposto por uma lógica utilitarista, mercadológica inclusive, onde o hospital

passa a ser o centro dos contextos da saúde.

Apresenta-se então mais uma variável relevante para se pensar este

processo transitório do parto dos cuidados da parteira em âmbito domiciliar

para os cuidados do médico em âmbito hospitalar: o mercado. O modelo

hospitalar envolve a indústria farmacêutica traduzindo modificações nas

relações humanas advindas da implementação de um sistema capitalista de

produção. Desta maneira a saúde em certa medida passa a ser condicionada

pela lógica esmagadora do mercado que tem como representante mor, neste

caso, a indústria de fármacos. E este provavemente é um ponto nelvrálgico

190

para pensar a realidade guineense no que se refere ao processo que o

Brasil enfrentou e ainda enfrenta, referente aos saberes direcionados ao

atendimento e cuidados ao parto, gestação e puérperio.

PARTO E PARTEIRAS NO BRASIL

A experiência das parteiras tradicionais no contexto do partejar no Brasil

contemporâneo engloba temáticas específicas, algumas delas serão

apresentadas no decorrer deste artigo por serem recorrentes. A relação com

o sistema oficial de saúde; a atuação junto às gestantes durante o processo da

gestação; da nutrição e amamentação; puerpério, ou seja, a configuração das

práticas do partejar realizadas pelas parteiras. Além da regulamentação da

profissão e da relação entre o conhecimento tradicional do partejar e religião.

Para contextualizar o universo do parto e nascimento no Brasil vejamos os

seguintes dados:

• No Brasil, ocorrem cerca de três milhões de nascimentos ao ano.

• O relatório global do UNICEF - Situação Mundial da Infância 2011-

mostrou que a taxa de cesárea no Brasil é a maior do mundo, de 52%.

A Organização Mundial da Saúde estabelece que apenas 5 a 15% dos

partos devem ser por intervenção cirúrgica.

• O processo de hospitalização do parto no Brasil se deu na década

de 1960 e apesar do pouco tempo histórico esta transição ocorreu

de forma bastante intensa, fazendo com que a maioria dos partos no

191

Brasil hoje ocorra no ambiente hospitalar.

• Além de o parto ter sido tornado um evento para ser vivenciado no

hospital, ele também deixou de ser considerado um evento fisiológico,

para ser tratado como uma patologia a ser submetida a processos

medicamentosos e cirúrgicos.

O parto passa a ser constituído na lógica do mercado, num modelo

economicista, a perspectiva medicamentosa passa a reger este universo,

sendo cada vez mais incorporadas metodologias diagnósticas e intervenções.

O uso de medicamentos como ocitocina sintética, anestésicos, dentre outros

passam a ser, neste contexto, parte quase indissociável do ato de parir.

O relatório Saúde Brasil 2011: uma análise da situação de saúde e de

evidências selecionadas de impacto de ações de vigilância em saúde3

apresenta algumas informações relevantes para a presente abordagem,

revelando fenômenos que são consequentes do processo de medicalização

do parto. Vejamos,

• A taxa de cesariana no Brasil em 1994 foi de 32%, elevando-se para

52% em 2010, sendo menor no Norte e Nordeste.

• Mulheres submetidas a cesáreas tiveram 3,5 vezes mais probabilidade

de morrer (entre 1992–2010) e cinco vezes mais de ter infecção

puerperal (entre 2000–2011) do que as que tiveram parto normal.

3 Publicação do Ministério da Saúde Brasil – disponível online no Portal da Saúde.WWW.portaldasaude.saude.gov.br

192

• No período, a proporção de prematuros elevou-se, mais nas cesáreas

(7,8%, sendo 6,4% nos partos normais em 2010).

• Em 2010, hospitais não públicos apresentaram taxas maiores (63,6%)

e maior aumento no período de 2006 a 2010 (14,0%); para os públicos,

as taxas foram de 47,8% (federais), de 39,6% (estaduais) e de 34,0%

(municipais).

A elevação da taxa de cesariana também representa a elevação da taxa

de lucro dos hospitais, em especial os da rede privada, visto que o evento

cirúrgico envolve uma série de custos com medicamentos, equipe profissional

entre outros, e que são repassados para quem está sendo atendido, no

caso a gestante. Esse é um dos motivos pelos quais as cesarianas são mais

recorrentes em hospitais particulares, as mulheres vão sendo envolvidas e

induzidas a “optarem” pela cirurgia, a partir de justificativas de intercorrências,

grande parte das vezes não condizentes com a realidade4, apontadas por

profissionais médicos, além de outros fatores como a construção social a

respeito do medo da dor.

No Brasil há um contexto contraditório no que diz respeito à atuação das

parteiras tradicionais e a relação com o sistema oficial de saúde, em especial

pela forma como o Estado lida com esta situação. O Estado brasileiro

reconhece as parteiras de fato, mas não as reconhece de direito.

O Projeto de Lei 7.531 de 2006 estava tramitando no Congresso Nacional

4 Como circular de cordão no feto, pressão alta, tamanho do bebê (grande demais ou pequeno de mais), falta de dilatação, etc.

193

com esta finalidade, porém em setembro de 2010 o projeto foi retirado por

fins políticos. O debate perpassa a polêmica de que a regulamentação da

profissão subjulgaria o ofício das parteiras tradicionais ao saber médico, já

que estas obrigatoriamente seriam supervisionadas por outro profissional

de saúde, médica/o, enfermeiro/a. Desta forma alguns grupos de defesa

das Parteiras afirmam que esta situação limitaria as práticas da tradição.

Já outra vertente defende a regulamentação como primeiro passo para o

reconhecimento de direito.

As reconhece de fato através da realização de programas específicos como

é o caso de capacitações para parteiras que em certa medida são realizadas

com a intenção de “ensiná-las” a utilizarem instrumentos e agirem a partir de

lógicas específicas que fazem parte do saber dito científico, como respirador,

luva, entre outros elementos que não faz parte do saber da parteira e sim

vem de outro referencial. Desta forma o Estado brasileiro “aceita” a atuação

das parteiras até onde ele não consegue chegar, mas busca enquadrar o

saber popular na lógica da racionalidade científica acadêmica.

A Secretaria Nacional de Direitos Humanos no ano de 2010 promoveu um

Programa que tinha como objetivo a erradicação do sub-registro civil de

nascimento no Brasil e entendeu que as Parteiras podem ser participes nessa

busca. Logo, o Estado inseriu as Parteiras neste projeto visando realizar

diagnóstico e sensibilização.

Este processo da relação do Estado brasileiro com as parteiras tradicionais

envolve contradições que perpassam pelo reconhecimento e não

reconhecimento do saber e da atuação destas mulheres.

194

Na Pesquisa Nacional por Domicílio – PNAD as parteiras estão classificadas

junto as auxiliares de enfermagem sem formação, na última PNAD foi

registrada a existência de 5151 parteiras. Esta informação não coincide com

os dados coletados pela ONG Cais do Parto, a qual realizou cadastro de

Parteiras Tradicionais no Brasil e estima que há cerca de 60.000 parteiras

hoje, dentre atuantes e não atuantes.

ESPIRITUALIDADE, RELIGIÃO E O PARTEJAR

A atuação das parteiras está pautada no modelo da solidariedade e do dom.

Em geral as parteiras tradicionais no Brasil relatam que entraram na vida

do partejar movidas por um dom que foi revelado nos sonhos, ou numa

situação de emergência em que ela teve que atender um parto na estrada,

ou o seu próprio parto. Este dom esta ligado a uma perspectiva divina, mas,

não unicamente. Neste caminho a prática do partejar tradicional funciona

numa abordagem mágico-religiosa que fundamenta a ação.

Elas utilizam constantemente justificativas pautadas na espiritualidade

para realizarem manobras e rezas durante o parto, ervas nos cuidados

com a gestante e com o recém-nato. Práticas que outrora foram atribuídas

à bruxaria, feitiçaria e acumularam às Parteiras à perseguição realizada

pelo conluio entre a Igreja e o Estado na Idade Média, no período da

Inquisição.

Um exemplo destas práticas é a relação da parteira tradicional com a

placenta. A placenta é encarada como um órgão sagrado. Em nenhum dos

relatos das Parteiras que acompanhei apareceu ocorrência de descarte

195

da Placenta no lixo, como é feito nos hospitais, geralmente as parteiras

pedem para o pai da criança, enterrar (ou plantar) a placenta, pois a

energia masculina do pai se equilibra com a energia feminina da placenta,

afirmam. A parteira Maria dos Prazeres de 75 anos, atuante no município

do Jaboatão dos Guararapes, por exemplo, indica para as gestantes que no

pós-parto seja feito um ritual para plantar a placenta, afirmando que não

se deve utilizar a expressão “enterrar a placenta” e sim “plantar a placenta”,

visto que a placenta não se sepulta, pois não está morta, está viva, repleta

de nutrientes. Agradecer a Deus por aquela placenta que nutriu nove

meses a criança, esta deve ser a postura da família, de acordo com ela.

Enterrando ou plantando, em todo caso elas devolvem a placenta para terra

ritualisticamente. Algumas Parteiras rezam para Santa Margarida, caso

a placenta demore a sair: “Santa Margarida, santa Margarida, não estou

prenha, nem parida, tira de dentro de mim esta carne já sem vida”. Outras

fazem medicamento com a placenta, a tintura de placenta, que é utilizada

para fins terapêuticos.

MULHERES NA GUINÉ-BISSAU

Uma série de questões sócio-culturais está envolvida no contexto do parto

tanto no Brasil, quanto na Guiné-Bissau, no caso deste último podemos

observar o seguinte trecho do Relatório Nacional sobre a Implementação da

Plataforma de Acção de Beijing:

No país estima-se que em 100 mil nados vivos morrem 800 mulheres, sendo

a mortalidade materna, maior causa da mortalidade da mulher e uma das

mais elevadas da África (media de 620). Três quartos destes óbitos registram-

196

se durante o parto, sendo uma parte significativa explicada pelos fatores

socioculturais. (p.17)

De acordo com relato (PEREIRA, 2012) de uma enfermeira-parteira guineense

que atua há mais 20 anos nas comunidades e também na maternidade,

uma das principais causas da mortalidade materna na região de Gabú

na Guiné-Bissau é a anemia, devido aos hábitos alimentares com pouca

proteína, mesmo sendo este país grande produtor da mancarra (amendoim)

extremamente rico em proteína. Esta enfermeira-parteira dirige a Plataforma

de ONG da Região do Gabú e um dos trabalhos realizados é levar informação

à população através da rádio comunitária a respeito da importância da

ingestão de alimentos como a mancarra.

Outra questão de alta relevância neste contexto e que é referida na experiência

da parteira é o casamento precoce, prática cultural que faz com que muitas

mulheres sejam levadas a se casarem muito cedo, com 13 ou 14 anos de idade.

E logo engravidam. O fato é que o corpo destas meninas não está preparado

para dar à luz, o que faz com os partos sejam de alto risco. Vejamos,

O casamento precoce é observado em 20% destas adolescentes; entre as

mulheres que têm idade entre 20 e 49 anos, um terço casou-se antes dos 18

anos. (p. 21-22)5

A mutilação genital feminina6 também é uma das causas que podem

ser apontadas como fator relevante para as altas taxas de mortalidade

materna, já que as mulheres que foram submetidas a tais práticas podem ter

5 Relatório Nacional sobre a Implementação da Plataforma de Acção de Beijing.

6 “O último inquérito de 2010 (MICS-4/IDSR) indica que 44,5% das mulheres com idades compreendidas entre 15 e 49 anos foram sujeitas a prática de excisão na Guiné-Bissau”. (PEREIRA, 2012:139)

197

complicações graves durante o parto.

Cerca de 50% das raparigas e mulheres no país são sujeitas à Mutilação Genital

feminina (MGF) sofrendo consequências para a saúde ao longo da vida, e

particularmente durante o parto. A MGF consiste na maior parte das vezes

na excisão (41,8%), mas ainda quase 6% das raparigas sofrem de infibulação.

O maior número de mulheres submetidas à MGF encontra-se no meio rural

(57,2%) e particularmente nas regiões do leste (93,5%). Na maioria dos casos

a MGF é praticada em condições sanitárias não adequadas e traumatizantes

para a rapariga. Igualmente a gravidez precoce afeta 30% de adolescentes da

faixa etária entre 15 e 19 anos. (p. 21)7

Este contexto demarca uma situação de “violência obstétrica” vivenciada

por estas mulheres e que começa muito antes delas engravidarem. Direito

das mulheres é temática cara para esta discussão, tanto no Brasil, quanto na

Guiné-Bissau. Direitos na sua integralidade, desde a perspectiva obstétrica,

até a atuação profissional. Este aspecto não será focado no presente artigo,

mas deverá ser desenvolvido em outra oportunidade abordando o “cenário

da violência obstétrica” nos dois países supra- referidos.

PESSOAL TÉCNICO EM SAÚDE NA GUINÉ-BISSAU

A publicação de 2005, Guiné-Bissau em números, do Instituto Nacional de Estatística

e Censos, mostra o cenário do pessoal técnico em saúde em todo território nacional

classificando entre área rural e urbana, gênero, idade e setor de atuação.

Tabela 18- Pessoal técnico de saúde 2005

7 Relatório Nacional sobre a Implementação da Plataforma de Acção de Beijing.

8 GUINÉ-BISSAU EM NÚMEROS / INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA E CENSOS 1 / 2005 INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA E CENSOS

198

Categoria Nº Total Área Gênero IdadeTotal Público Privado SFL* Urbana Rural Feminino < 30

Anos30 – 50 Anos

≥ 50 Anos

Médicos Clínica Geral 152 150 0 2 104 48 31% 0 97% 3%

Especialista 23 22 0 1 23 0 35% 0 78% 22%

Pós Graduado 13 12 0 1 10 3 31% 0 80% 20%

EnfermeirosEnf Prof Registados

11 10 1 0 11 0 45% 0 64% 36%

Enf Geral P. Grad 13 13 0 0 7 6 8% 0 100% 0%

Enf Inscritos CG 293 264 6 23 158 135 65% 5% 85% 0%

Enf Geral Especialis

36 31 0 5 19 17 14% 0 99% 1%

Enf Auxiliares 559 559 0 0 221 338 55% 0 40% 60%

ParteirasParteiras Inscrito Geral

122 121 0 1 45 77 100% 0 99% 1%

Parteira Especialista

3 3 0 0 1 2 100% 0 100% 0%

Part. Auxiliar 35 33 0 2 19 16 100% 0 100% 0%

Parteiras tradicionais

2131 2131 0 0 0 2131 100% 0 2% 98%

DentistasDentista (Estomatolog)

3 3 3 3 2 1 33% 0 100% 0%

Téc. Dentário 6 6 0 0 4 2 16% 0 100% 0%

Téc. Prótese 2 2 0 0 2 0 50% 0 100% 0%

FarmacêuticosTéc. Farmácia 17 16 1 0 8 9 59% 0 100% 0%

Farmacêutico 13 11 2 0 10 3 31% 0 100% 0%

Aux. Farmácia 10 10 0 0 7 3 45% 0 80% 20%

Agentes de Saúde ComunitárioAgente S. Comunitário

2355 2355 0 0 0 2355 0% 0 0% 100%

Fonte: - Serviços de Estatística do Ministério da Saúde SFL* – Sem fins lucrativos

199

Podemos observar na tabela acima que dentre o quantitativo total de Parteiras

na Guiné-Bissau no ano de 2005, as classificadas como tradicionais é que

representam o maior número, 93,01% do universo de 2291 profissionais da

categoria. 98% das Parteiras Tradicionais estão na faixa etária de 50 anos

ou mais, enquanto que entre as Parteiras gerais, especialistas e auxiliares

a maioria está entre os 30 e 50 anos de idade, respectivamente 99%, 100%

e 100%. Esta é uma informação relevante para o contexto da valorização

ou não do saber dito “tradicional”, já que as mais jovens passam a seguir

com menos frequência o saber recebido das suas ancestrais, e se interessam

menos pelo mesmo. Esta também é uma realidade no contexto brasileiro. A

desvalorização do saber de cura e cuidados tradicionais em detrimento do

saber da técnica classificada como científica.

De acordo com a tabela 1, 100% das Parteiras Tradicionais estavam na área

rural. Este indicador aponta para a informação que nos centros urbanos

da Guiné-Bissau não havia ou havia poucos partos atendidos por Parteiras

Tradicionais, também conhecidas como matronas.

Em 2013, em pesquisa exploratória na capital Bissau, recolhi alguns relatos de

mulheres que informaram terem sido atendidas por matronas (ou mulheres

sábias), que são classificadas como parteiras tradicionais, nas comunidades

da área urbana. Desta maneira questionamos se os indicadores aplicados de

fato dão conta de identificar estas profissionais, além de buscar compreender

como ocorrem os mecanismos de desencorajamento da prática do partejar

do saber popular. Apesar de as parteiras tradicionais serem apontadas como

a categoria de pessoal técnico quantitativamente mais representativa no

país, mais de que médicos, dentistas, enfermeiros o discurso oficial da saúde

200

não as põe necessariamente num lugar de destaque e de reconhecimento.

A parteira geral é uma técnica em saúde com formação profissional de três

anos que concluiu com sucesso o programa de estudos em parteira geral,

adquiriu as qualificações requeridas e é autorizada por lei, a desempenhar

os cuidados de Parteiras/Enfermagem básicos, em patologias médicas,

cirúrgicas, ginecologia, obstetrícia, saúde infantil e saúde reprodutiva.

A parteira tradicional ou matrona não tem necessariamente formação

acadêmica e seu conhecimento e práticas estão pautadas no saber popular.

BRASIL E GUINÉ-BISSAU: EM DIÁLOGO

Num país onde há poucos recursos disponíveis, seja no setor educacional,

seja no setor da saúde e mesmo nos serviços mais básicos, como eletricidade,

um dos estabelecimentos que mais se repetiram aos nossos olhos foi a

Farmácia (alopata). E talvez seja por este ponto que devo começar a fazer

a ponte entre a experiência do Brasil e da Guiné-Bissau no que se refere

à Saúde e especificamente ao parto. Visto que o processo o qual envolve

a contemporanização do parto no prisma ocidental está pautado na

sobreposição de saberes. Neste sentido, a saúde e o parto seguem as vias da

medicalização.

Como dito anteriormente, há a estimativa de que na Guiné-Bissau em 20109 a

taxa de mortalidade materna era de 800 óbitos/cada 100 mil nascidos vivos,

ocupando assim a sexta posição no ranking mundial, enquanto que o Brasil

9 http://www.indexmundi.com/map/?v=2223&l=pt

201

ocupava a 69ª posição com 56 óbitos/cada 100 mil nascidos vivos

De acordo com o INEP em 201010 na Guiné-Bissau 42% dos partos foram

realizados nas instituições de saúde. Neste sentido a maior parte dos partos

naquele país ocorria fora das instituições de saúde, geralmente nas tabancas e

nas comunidades. Entre partos desassistidos, ou auxiliados por uma parteira

formada, matrona ou enfermeira. Nos dois percentuais (partos hospitalares

e não hospitalares) há um alto índice de mortalidade materna. Vejamos,

Em 1995 morreram, na Maternidade do Hospital Nacional Simão Mendes, 55

mulheres nos trabalhos de parto em um universo de 6.363 nados vivos, o

que implica mortalidade materna intra-hospitalar de 864/100.000 (MINSAP,

1996). As principais causas apontadas foram hemorragia pós-parto (21 casos),

eclampsia (8 casos) e septicemia (6 casos). (UNICEF, 1995).

Ao abordar e perguntar para algumas mães guineenses sobre o local que

ocorreu o seu parto e quem a atendeu, ouvi em vários relatos: foi à mulher

velha, a mulher experiente ou a mulher sábia. Esta surpresa do lugar de

pesquisa me fez repensar a própria definição do conceito de Parteira. O

que é Parteira? Será que estas mulheres se reconhecem como tal? Ou será

que é mais uma tentativa de classificação do pensamento ocidental para

enquadrar um grupo de pessoas às suas amarras? E neste sentido me pus a

pensar que a própria classificação parteira é uma categoria ocidentalizada.

Tanto no contexto guineense, quanto no contexto brasileiro.

Na Guiné-Bissau mulheres que atendem outras mulheres são as mulheres velhas

ou matronas. As parteiras ali são profissionais de saúde formadas, que já foram

10 Indicadores sociodemográficos e de saúde reprodutiva e de inquérito por amostragem aos indicadores múltiplos na Guiné-Bissau 2010.

202

submetidas ao crivo do chamado saber científico. Ao procurar parteiras nas

comunidades não encontrei, pois na verdade elas são as matronas, as mulheres

velhas, que atuam a partir de um saber popular ou “tradicional”, adquirido com

a experiência e com o repasse inter-geracional. A partir destas reflexões remeti-

me imediatamente a minha pesquisa junto as Parteiras no Brasil.

Em alguns lugares há certa dificuldade de encontrar as parteiras, não porque

nunca estiveram ali e sim porque em alguns casos elas se reconhecem e são

reconhecidas pela comunidade como mulher que corta umbigo, aparadeira,

comadre, mãe Zezé, mãe Maria, mãe Francisca. Neste sentido surgiu

mais uma questão de pesquisa: quais as influências que as classificações

ocidentalizadas tiveram sobre a prática do partejar no contexto brasileiro e

no contexto guineense? Classificar estas “mulheres velhas” como parteiras é

uma forma de controlar sua prática?

De fato o saber utilizado pelas “mulheres velhas” em grande medida não é

considerado como válido, em especial pelo dito saber científico do campo da

saúde. Perspectiva esta que se propaga pelo imaginário coletivo da sociedade

como um todo. No Brasil este fenômeno parece está muito mais arraigado.

Ainda que se perceba na Guiné-Bissau a iniciativa de diversos atores do

sistema oficial de saúde (como médicos, enfermeiras, parteiras formadas,

diretor do hospital/ maternidade, componentes da Escola Nacional de

Saúde11) em renegar ou tomar como inferior o conhecimento tradicional,

como se este último fosse um dos grandes responsáveis pelas altas taxas

11 Pesquisa exploratória realizada em Setembro de 2013 na Guiné-Bissau, pela pesquisadora Danieli Siqueira – UFPE/UFPB.

203

de mortalidade materna e neonatal, por exemplo, o contexto social-cultural

daquele país influencia a forma de relação das pessoas com o saber popular

ou tradicional como um todo e em especial no que se refere ao universo do

parto.

A população da Guiné-Bissau é constituída por mais de 20 etnias, com línguas,

estruturas sociais e costumes distintos. Os Balanta, representando 27% da

população, Fula 22%, Mandinga 12%, Mandjaco 11%, Papel 10%.12

Esta estrutura étnica está presente nas tabancas, mas também na capital

Bissau, em contextos distintos, mas ainda assim as pessoas se reconhecem

em suas etnias, inclusive as comunidades em certa medida se constituem a

partir desta vivênia étnica.

Ao estar em Bissau no mês de setembro de 2013 tive a oportunidade de

entrevistar pessoas (entre mães, gestantes, parteiras e líderes religiosos)

das etnias Balanta, Fula, Mandinga e Papel. E a partir das falas, observa-se

que o parto é tido pela comunidade como um momento ritual que envolve

diversas temáticas transversais, como religião e sistemas de solidariedade,

além de especificidades culturais de cada etnia.

No Brasil observamos que a incidência de partos atendidos por parteiras

tradicionais, ou “mulheres velhas” ainda é alta em algumas localidades, ao se

comparar com o contexto urbano. Por exemplo, no Arquipélago de Bailique,

que pertence ao município de Macapá-AP, e no município de Melgaço-PA, 100%

12 Publicação do Ministérios da Administração Territorial – República da Guiné-Bissau: “CONTEXTO GERAL DA GUINE BISSAU”. Disponível em www.amcod.info/.../guinea_bissau/contexto_geral_da_Guine_bissau.doc.

204

dos partos são atendidos por parteiras tradicionais (BRASIL/MINISTÉRIO DA

SAÚDE, 2010). Vemos aqui uma das características da tradição: a resistência.

Vejamos a fala de uma parteira tradicional em Pernambuco/Brasil,

Parteira: Na capacitação, a gente até ganhou um kit que tem respirador para reanimar o bebê.

Pesquisadora: A srª leva o respirador quando vai atender um parto?

Parteira: Levo não.

Resistência não em termos da lógica racional moderna, e sim no sentido de

rebeldia em defesa de seus costumes, como afirma Thompson (1998).

A assistência ao parto e ao nascimento no Brasil não ocorre de forma

homogênea. Há uma diversidade no que se refere ao local e aos/as atendentes

do parto. Apesar da maior parte dos partos no Brasil contemporâneo ocorrer

no ambiente hospitalar, as parteiras tradicionais ainda praticam seu ofício no

país, com maior incidência nas regiões norte e nordeste. Na maioria das vezes

as pessoas envolvidas neste contexto, do partejar tradicional, tanto as parteiras,

quanto às gestantes, estão à margem, em situação de exclusão e isolamento

social, sem respaldo. São-lhes tiradas (ou tentam) a “agência” e a “estrutura”.

Ainda de acordo com a publicação do Ministério da Saúde do Brasil (2010)

“a diversidade da situação socioeconômica, cultural e geográfica do país

exige, a adoção de diferentes modelos de atenção integral à saúde da

mulher e da criança e a implementação de políticas públicas que atendam às

especificidades de cada realidade, procurando-se considerar o princípio da

equidade e resgatar à dívida histórica existente em relação às mulheres e às

205

crianças assistidas por parteiras tradicionais”.

Há uma subnotificação no Brasil sobre quem são as parteiras e onde elas

estão. Isto se deve em grande medida a uma falha nos indicadores. Como

procurar por uma parteira se ela não se reconhece como tal. Ela é a que

apara, é a mãe de umbigo. Parece que é preciso repensar os indicadores e as

formas de coleta, se de fato o objetivo é estimular a revalorização do saber

tradicional do partejar.

Considerar estas mulheres velhas, mulheres sábias, mães de umbigo,

aparadeiras como agentes de saber e não apenas como auxiliares do

Sistema Único de Saúde, por exemplo, parece ser um desafio semelhante

aquele proposto pela ecologia dos saberes do Boaventura de Sousa Santos

(2002). Será que o SUS é pensado (ou deveria ser) também a partir da ótica

dos saberes populares? Desde a década de 80 a OMS (1978) recomenda a

inclusão das “práticas tradicionais de saúde” nas políticas de Estado.13

Modelos de hegemonia e dominação entre saberes, sob qualquer roupagem

não são legítimos, esta é a proposta da ecologia dos saberes de Santos (2002).

Este autor faz uma crítica à razão ocidental afirmando que a mesma ‘diminuiu’

a multiplicidade do mundo e o expandiu ao mesmo tempo, só que a partir de

suas regras, ou seja, neste contexto há um abismo entre vários aspectos da

vida e em especial entre os diferentes saberes, os que não operam a partir

da lógica da razão metonímica são postos à margem, tidos como inexistentes

e desta forma são excluídos. Vejamos,

13 OMS-WHO (1978). Primary health care. Genova: World Health Organization.

206

A razão metonímica [...] se reivindica como a única forma de racionalidade e,

por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou,

se o faz, fá-lo apenas para torná-las em matéria-prima (SANTOS, 2002:240).

Há pelo Ministério da Saúde algumas iniciativas, como o Programa

trabalhando com as Parteiras tradicionais, que promove capacitações para

as parteiras. Revalorização do saber tradicional é um dos pontos abordados

pelo Programa. Uma pesquisa mais acurada poderia ser feita em busca de

entender a percepção das parteiras brasileiras com relação às capacitações,

bem como qual a troca que efetivamente este Programa promove entre os

saberes relacionados ao parto. De acordo com alguns relatos14 de parteiras

tradicionais que já participaram das capacitações, o processo parece

apresentar em alguns aspectos teores mais dicotômicos do que dialógicos.

Vejamos o relato de uma parteira tradicional de Pernambuco,

Eu participei da capacitação. Foi muito bom. As doutoras nos ensinam muitas

coisas.15

Fleisher (2011) em sua pesquisa sobre as parteiras no município de Melgaço

no Pará aponta caminhos semelhantes aos presentes na fala da parteira

pernambucana citada acima. Apesar de estas capacitações serem uma

iniciativa importante, há lacunas que precisam ser trabalhadas, pois se não

houver troca efetiva entre os saberes, serão reproduzidas relações de poder

e modelos de imposição, já vivenciados por iniciativas anteriores no Brasil. As

políticas precisam ser contínuas para que atinja objetivos mais amplos, como a

inserção do atendimento dos partos realizados por parteiras na Atenção Básica,

14 Pesquisa de doutorado junto a Parteiras tradicionais em Pernambuco - Brasil.

15 Pesquisa de doutorado junto a Parteiras tradicionais em Pernambuco - Brasil.

207

do Sistema Único de Saúde – SUS que é apontada como um dos caminhos

possíveis, por diversos atores que lidam com esta problemática. Para isso,

se faz necessário que haja políticas eficazes em âmbito da conscientização,

sensibilização para que as parteiras sejam compreendidas na sua agência,

enquanto produtoras de conhecimento e não como produtora de danos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contexto brasileiro de atendimento ao parto e nascimento e os diversos

saberes envolvidos pode ser pensado em paralelo a vivência da Guiné-

Bissau, com intercâmbio de experiências para que ambos possam traçar

caminhos que deem atenção à mulher na sua completude e empoderamento

(lembrando que há particularidades culturais entre os dois países), e que

valorize as múltiplas formas de atenção e cuidado.

No que se refere à Guiné-Bissau, faz-se necessário o compromisso de

diversos atores sociais no sentido de atentar, para que não se reproduzam

sobreposições entre saberes no processo de democratização do país,

que a lógica de desenvolvimento a ser aplicada seja pautada em valores

mais amplos do que a ocorrida no processo de implementação do modelo

desenvolvimentista no Brasil, particularmente ao se analisar os reflexos

deste no universo do parto e nascimento. Desenvolver a partir da atenção

à diversidade cultural, às racionalidades e saberes múltiplos é um caminho

que os governantes e a sociedade guineense como um todo podem primar,

em especial no que se refere à realidade do parir e nascer, para que a lógica

não esteja pautada na ideia de transição do parto do ambiente domiciliar

para o ambiente hospitalar, da supressão e desvalorização do saber popular.

208

Com relação ao Brasil, o intercâmbio cultural com a Guiné-Bissau pode nos

apontar mecanismos e instrumentos importantes de revalorização de algo

que parece está perdido, mas que ao mesmo tempo se mostra presente em

algumas localidades e contextos específicos no país, que é o sentido ritual

do parto, bem como a força do saber da tradição referente ao partejar.

É possível que haja entre os atores dos diversos campos do conhecimento,

um diálogo pautado na solidariedade e não mais na lógica da apropriação

e produção de não-existências. A partir de um diálogo efetivo, várias

questões podem ser reconstruídas, tanto do lado de um saber, quanto do

outro, originando, inclusive, novos saberes. Como por exemplo, a prática

de abafar ou colocar algum pó no coto umbilical, que faz parte do saber

tradicional, mas que em alguns casos pode causar tétano. E por outro lado o

saber científico com uma série de intervenções desnecessárias que podem

colocar a vida da gestante e do bebê em risco. Para Santos (2002), todos os

saberes são incompletos, podem e devem dialogar entre si, o que possibilita

resultar em práticas diferentemente sábias. A ecologia dos saberes permite

superar a ideia de que o saberes ‘não científicos’ são alternativos ao saber

científico.

Desta forma, pode-se fazer importante a participação de intelectuais,

pesquisadores, movimentos sociais e da comunidade no processo de

mediação da relação entre o sistema oficial de saúde e os saberes tradicionais

no que se refere ao universo do parto e nascimento

209

ANEXOS

Cartaz em exposição em Centro Materno em Bissau.

Icnografia para o Programa “Trabalhando com parteiras” do Ministério da

Saúde/Brasil.

210

TERREIROS DE CANDOMBLÉ - SABERES E PRÁTICAS DE CUIDADO E

TRATAMENTO: CONTRIBUIÇÕES PARA A SAÚDE MENTAL

Kelma Luzia Nunes Otaviano

A COSMOVISÃO AFRICANA NO BRASIL

A Cosmovisão africana é um sistema cultural-filosófico diverso presente

em diferentes partes do continente africano e sua diáspora no mundo.

Apesar de suas diferenças, este sistema possui elementos comuns que

peculiarizam o que chamo de pensamento negro-africano, algo que exerce

influência na concepção de vida de distintos grupos populacionais de

africanos e seus descendentes. No Brasil, aquele sistema cultural-filosófico

deu origem a formas específicas de organização social, política, econômica,

ética e cultural.

Esses elementos são essenciais para se entender o pensamento africano e

as diversas instituições fundadas pelos negros no Brasil, como as Religiões

de Matriz Africana. Segundo Oliveira, esses elementos são a base fundante

desse pensamento, a começar pela concepção de universo considerado

a interação constante e incessante entre mundo visível e invisível, entre o

que se constitui segredo e revelado, uma teia tecida entre visível/aparente e

212

invisível/essência/criador 1.

Nessa perspectiva, a vida é concebida como força vital e energia em movimento

que tem a palavra como energia geradora construtiva e/ou destrutiva,

conforme o uso que se faça dela. É a expressão do hálito divino, por isso

a palavra é sagrada, produtora de Àse (força vital) e uma vez pronunciada

adquire força de realização, modificando e interferindo na construção do

mundo presente e na dinâmica da vida das pessoas.

O tempo é compreendido como não linear e voltado para o passado e o

presente sem preocupações excessivas com o tempo futuro, pois nas

sociedades tradicionais africanas é no passado em que estão todas as

respostas para os desafios e mistérios do tempo presente. É onde moram os

ancestrais e onde reside toda a sua sabedoria.

O homem na Cosmovisão Africana é entendido como uma singularidade

elaborada no coletivo e sua socialização um processo de responsabilidade

da sociedade como um todo, a qual se estrutura em famílias matriarcais ou

patriarcais, constituída de pessoas e de seus antepassados ou ancestrais

divinizados, que são cultuados e de onde provém a referência para a

existência da comunidade e do grupo familiar.

Dessa forma, a finalidade da existência do homem está estabelecida no

Universo do qual recebe influência direta dos seres da natureza. Portanto,

a finalidade da vida é orientada pela condição de sua riqueza simbólica, por

1 OLIVEIRA, David Eduardo. Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: Ibeca, 2003.

213

suas qualidades oriundas de sua hereditariedade, de sua família, do poder

religioso, das doutrinas mitológicas e de uma filosofia da ancestralidade.

Dessa ligação intrínseca com a natureza - pois o homem é parte integrante

dela – nasce um dos fundamentos de sua existência e uma maneira peculiar

de organização socioeconômica que prima pela preservação dessa mesma

natureza, porque o africano não concebe a terra como propriedade privada

sua. Ele faz uso dela e a partir dela retira seu sustento. Para isso estabelece

uma política pactuada com o sagrado, ou seja, ao mesmo tempo em que é

uma atribuição dos homens, o poder da regência da política está sob a égide

dos antepassados, da ancestralidade, que somente se torna ancestralidade

pelo processo ritual de morte.

Desta feita, a morte adquire expressiva e fundamental importância para os

povos negro-africanos, tornando-se um processo essencial e ritualizado,

pois é potencializadora da ancestralidade. É por ela e somente por esse

meio que se formam os cultos aos ancestrais, antepassados divinizados,

Òrìsà, estabelecendo-se um elo, um intercâmbio permanente entre o mundo

material (Àiyé) e mundo imaterial (Òrun).

Na África negra estes cultos acontecem de forma constante e são a pedra

fundante da Cosmovisão Africana que se alimenta nas fontes desses

cultos, pois é a partir deles que se realiza a síntese de todos os elementos

constitutivos que dão logicidade ao pensamento filosófico de base ancestral,

o qual se perpetua ao longo do tempo por meio de uma forte tradição oral

expressa em uma rica construção mitológica, conforme nos diz Luz2:

2 LUZ, Marcos Aurélio de Oliveira. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2000, p 21.

214

Somente o mito poderá falar das diversas dimensões do existir característico

da cultura negra, onde o Ser é, e o não Ser também é: o mundo dos vivos,

o existir dos ancestrais, as forças cósmicas que governam o universo. Esse

mundo e o além, em processo de interação permanente. Em suma, o mito é o

discurso capaz de representar a vida e a morte, o tudo e o nada, o pleno e o

vazio, o visível e o invisível, o dito e o inefável, o mistério da existência.

O mito constitui-se nesse discurso que elabora e pode realizar o processo

da alteridade humana, diferentemente do que argumenta e afirma a ciência

totalizadora eurocêntrica, fechada hermeticamente em seus conceitos,

racionalizadora da vida material e que tende a desqualificar todo e qualquer

processo que fuja dos padrões criados por sua racionalidade e lógica.

Os mitos africanos são para os povos negro-africanos referenciais de

vida transmitidos pela oralidade. No panteão africano, os ancestrais ou

antepassados divinizados moram no mundo imaterial (Òrun) e zelam pela

pessoa, pela família, pelo grupo e pela comunidade, tendo uma ligação

direta com os homens, a natureza e a terra (Àiyé). A sociedade é dirigida

pelos homens que comungam fraternalmente com os seus ancestrais, em

uma demonstração de que a vida é um complexo sistêmico Òrun- Àiyé, o

qual origina uma filosofia da ancestralidade que embasa e dá sentido à vida

material. Um pensamento de povos bantu expressa bem essa dinâmica

dialógica para nosso entendimento:

O conhecimento da realidade e a imaginação reflexiva sobre as compreensões

das consequências das relações instituídas entre os seres da natureza, animados e inanimados (nas sociedades africanas tudo tem vida), constitui parte das filosofias africanas vindas das sociedades ligadas às questões da ancestralidade, da identidade territorial, da transmissão dos conhecimentos pela palavra falada pelos seres humanos e pelos tambores.Formas de filosofar

215

coletivas de conhecimento geral, produzindo valores éticos que regulam as vidas cotidianas das sociedades africanas, ditas tradicionais (tradição no sentido da repetição no tempo com modificações e inovações, mas sempre referidas a uma história do passado e transmitida por um ritual social normativo). Sociedade que os textos de Chinua Achebe [...], Sobonfu Somé [...] e José Flavio Pessoa [...] bem nos descrevem e nos ensinam sobre os seus princípios, valores e forma de organização. São formas filosóficas de refletir e ensinar e aprender sobre as relações dos seres da natureza, do cosmo e da existência humana. São filosofias pragmáticas da solução dos problemas da vida na terra, profundamente ligados ao existir e compor o equilíbrio de forças da continuidade saudável destas existências, sempre na dinâmica dos conflitos e das possibilidades de serem postas em equilíbrio. A contradição e a negociação. Os problemas da existência física e espiritual fundamentam-se nos da existência de uma totalidade que governa as gerações e que permite a continuidade dinâmica da vida pela interferência humana. São formas de pensar, tomadas dos mitos, dos provérbios, dos compromissos sociais que formam uma ética social, refletem, inscrevem [...] registrado na oralidade os condicionantes da existência humana, da formação social, das relações de poder e justiça, da continuidade da vida. A

natureza como respeito profundo à vida.3

De tal modo, dessa filosofia ancestral originam-se os conceitos da Cosmovisão

africana e o conceito de saúde é elaborado tendo como referência a

compreensão da vida humana como um conjunto de conexões dialógicas

que pressupõe o equilíbrio entre o corpo (material e imaterial), a natureza e

a ancestralidade.

Nesse sentido. a saúde mental adquire essencial papel nesse processo,

pois a cabeça (Orí)4 para os povos negro-africanos é a parte do corpo que

expressa a dimensão material e imaterial da vida humana. É na cabeça (Orí)

que as conexões neurais realizam-se intensamente, em um fluxo constante

3 BARROS, N. F. A construção da medicina integrativa: um desafio para o campo da saúde. São Paulo: Hucitec; p. 82, 2006.

4 Oríacabeçatemduasdenominações.OríòdequeseriareferenteàpartefísicaeOríInúquediz respeito à parte interior, espiritual, a personalidade, a alma. Para não haver distinção durante o texto, iremos utilizar a palavra iorubana Orí referindo-se sempre a duas dimensões da cabeça.

216

e incessante, no qual a pessoa constrói o que se intitula racionalidade,

ideias, conceitos, mas também todas as conexões emocionais e os diversos

sentimentos, como medo, angústia, tristeza, ansiedade, alegria, felicidade,

vivenciados em sua existência. Bàbátundé Lawal, da Universidade de Ilè-Ifé,

Nigéria, refere-se assim à Orí–cabeça:

Na maioria das esculturas africanas tradicionais, a cabeça é a parte mais

proeminente porque, na vida real, é a parte mais vital do corpo humano. Ela

contém o cérebro - a morada da sabedoria e da razão; os olhos - a luz que

ilumina os passos do homem pelos labirintos da vida; os ouvidos - com os

quais o homem escuta e reage aos sons; a boca - com a qual ele come e

mantém o corpo e alma juntos. As outras partes do corpo são abreviadas

para enfatizar suas posições subordinadas. Tão importante é a cabeça como

a sede da personalidade e destino do homem.5

Orí – a cabeça – durante o nascimento é quem vem primeiro abrindo espaço

para o restante do corpo da criança, por isso ela é a morada da consciência

e dos principais sentidos físicos e emocionais. Orí é desta feita o local por

excelência da saúde mental. Esse destaque dado à Orí não subjuga outros

órgãos do corpo humano, mas destaca a sua importância para as culturas

negro-africanas como a parte do corpo que reúne todos os atributos

necessários à vida do homem na terra.

No Brasil, esse legado negro-africano expandiu-se de forma grandiosa

e de tal maneira que os valores e princípios civilizatórios africanos foram

resguardados e estão vivos na memória e na tradição das Religiões de Matriz

Africana como o Candomblé, conforme bem ressalta Oliveira:

5 BENISTE, José. Òrun – Àiyé:o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yorubá entre o céu e a terra.7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

217

Na diáspora africana, o que vem para o Brasil não é a estrutura físico-espacial

das instituições nativas africanas, mas os valores e princípios negro-africanos.

[…] Pensar a cultura negra é pensar a reterritorialização dos negros no Brasil.

O território afro-brasileiro não é espaço físico africano, mas a forma como

os negros brasileiros singularizaram o território nacional. O espaço físico

reterritorializado é um espaço simbólico-cultural. Este território, singularizado

pela cultura negra, por seu real vivido, por sua filosofia imanente, por sua

dinâmica civilizatória, marcou definitivamente a formação social brasileira.

Foram os aspectos civilizatórios africanos que, reinterpretados no Brasil,

desenham o projeto ético-político dos afro-brasileiros. [...] no Candomblé que

tais aspectos podem ser melhor percebidos. 6

Uma dessas contribuições pode estar presente na contribuição de povos Jêje

(ewe-fon) e iorubás/nagôs, respectivamente, a qual se intitula de complexo

cultural Jêje-nagô, que se traduz em um conjunto de valores e princípios que

são expressos pela linguagem religiosa africana dos terreiros. Nesse complexo,

a relação constante e dialógica entre o mundo visível – Àiyé e o mundo invisível

– Òrun dá sentido à existência, conforme relata Luz: “A comunicação entre

esses dois mundos se dá através de uma concepção vitalista do mundo, que se

caracteriza pelo conceito de axé [...] que exprime a ideia de forças circulantes

capazes de engendrar a criação e a expansão da vida”7.

A relação dos seres humanos com o mundo natural e com os ancestrais

realiza as conexões necessárias para a obtenção de Àse, a força vital presente

no corpo humano, na natureza e no universo. Nesse caso as plantas são

elementos constituintes de Àse, assim como os minerais e os animais.

O conceito de doença inscreve-se nesse contexto como a ausência ou

6 OLIVEIRA, David Eduardo. Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: Ibeca, 2003.

7 BENISTE, José. Òrun – Àiyé:o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yorubá entre o céu e a terra. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p 33.

218

enfraquecimento de Àse na pessoa, na família, no grupo ou comunidade e a

saúde a sua presença fortalecida.

A saúde mental é a representação da cabeça (Orí) fortalecida, capaz de trazer

a realização pessoal que é sempre perpassada pela noção de conjunto, nunca

uma pessoa individualizada, mas a mesma inserida no contexto cultural,

social, político-econômico e comunitário em uma relação dialógica entre

essas partes.

Assim sendo, saúde mental para o Candomblé é pensar em um conjunto

articulado de procedimentos que vai desde o fortalecimento da cabeça (Orí),

o fortalecimento do Òrìsà Orí, até o fortalecimento do grupo, a ressignificação

da subjetividade, a reconexão com a natureza e com os ancestrais em rituais

específicos que envolvem a manipulação e o uso de ervas e plantas em

banhos, infusões, chás, sacudimentos de folhas e escuta atenta e particular

do relato do que vem causando sofrimento, seja ele de ordem emocional,

psíquica, clínica, social, econômica, política, pois no referencial de saúde

dos Terreiros de matriz africana tudo está conectado e o que pode causar

sofrimento pode ser também o fator de alívio deste. Ou seja, o sujeito e

a expressão de seu sofrimento são trabalhados de forma que ele possa

compreender seu processo de adoecimento como um acontecimento no

qual estão implicados vários elementos contextualizados como: sua forma

de vida, a sociedade onde ele está inserido, sua família, seu grupo social, sua

condição econômica, sua comunidade, sua ancestralidade.

No paradigma da Cosmovisão Africana presente nos Terreiros, não se

adoece sozinho e também não há tratamento sozinho, todos estão de certa

219

forma implicados no sofrimento de Um e todos se responsabilizam em seu

tratamento. Essa perspectiva conduz a outras formas de elaboração de

abordagens e práticas em termos de acolhimento, cuidado e tratamento

no campo da saúde e especialmente para a saúde mental. A definição de

homem como uma singularidade forjada no coletivo, parte constituinte da

natureza e em conexão com a ancestralidade gera o que podemos apontar

como uma Terapia de base ancestral africana no campo da saúde mental,

pois para os povos negro-africanos o que se intitula de medicina africana

tem como base fundamental e primordial a participação essencial da

ancestralidade.

Na África negra, essa noção de ancestralidade tem uma dimensão

imprescindível - assim como para os Terreiros de Matriz Africana – o que está

presente nas práticas sociais e cotidianas de saúde como nos relata Leite8:

O fundamento da noção de ancestral está no princípio de imortalidade,

segundo Leite [...] “imortal em sua dimensão mais histórica, portador de carga

social diferencial que é a da sociedade a que pertence, o homem pode ser

compreendido pela sociedade como ser total que se manifesta durante sua

existência visível – quando é o pré-ancestral – e após ela”. A massa ancestral

em suas manifestações míticas e históricas é constitutiva do ser, e sua

atualização ocorre em cada pessoa, unida profundamente à sua sociedade,

formação social que ela prolonga e justifica.

Ancestralidade e Àse (força vital), então, são elementos importantes

para construirmos um entendimento do conceito de saúde mental, de

adoecimento, de prevenção, tratamento e cura, pois os Terreiros de Matriz

8 BARROS, N. F. A construção da medicina integrativa: um desafio para o campo da saúde. São Paulo: Hucitec; p. 82, 2006, p 29.

220

Africana - como é o caso do Candomblé - resguardam muitos elementos

da medicina tradicional africana. Esta última constitui-se em um método

de intervenção na relação saúde-doença que envolve a transmissão oral

de conhecimentos de pai para filho, de práticas de cura que são guardadas

zelosamente como um bem precioso, inigualável em África e como podemos

perceber nos relata de Barros9:

A grande distinção que se faz é entre a medicina ocidental racionalista

moderna e aquelas religiosas ou mágicas. Estas últimas englobam os sistemas

populares de interpretação e tratamento das doenças e a medicina de povos

não ocidentais. No âmbito da medicina tradicional distingue-se a medicina

popular e aquela iniciática. A primeira é elaborada a partir de um arsenal de

remédios, interpretações da doença e de técnicas, patrimônio de uma vasta

população, que não requerem para serem utilizadas uma preparação particular

do terapeuta. A segunda é patrimônio de poucos indivíduos especializados e

cuja história, características pessoais e iniciação resultem particulares.

No entanto, em ambos os paradigmas de medicina tradicional africana

anteriormente descritos estão presentes o uso de recursos da natureza,

porém na medicina tradicional iniciática o terapeuta é preparado de forma

específica e a consulta constante à ancestralidade é cerne de seu trabalho.

Os médicos tradicionais possuem uma capacidade singular de domínio do

sistema sociocultural do povo e uma condição plena de manipulação de

elementos da natureza. Os componentes utilizados por eles incluem as

plantas, as ervas, as raízes, as sementes, os minerais, os animais, os jejuns e/

ou as dietas terapêuticas, a manipulação da coluna vertebral e as massagens,

as terapias de cura radiante, a hidroterapia, a escuta terapêutica e o ocultismo

terapêutico como maneiras de tratamento preventivo e curativo. Tudo isso

9 Ibidem, p. 1

221

associado a orações, invocações e encantamentos para a restituição e/ou

fortalecimento do Àse (força vital) que traz saúde e reconecta a pessoa no

plano material à sua ancestralidade, expressando a filosofia ancestral que

perpassa as ações dos povos negro-africanos.

Diferentemente do paradigma africano, no pensamento ocidental o

conhecimento científico foi apartado da arte, a razão da emoção, causando

um reducionismo ao campo material no entendimento do homem e da

natureza. Absorvido e reproduzido pela ciência biomédica, esse pensamento

criou as pesquisas experimentais que não consideram as experiências no

campo sensitivo, do vivido no mundo do sagrado, diferentemente da medicina

tradicional africana que trabalha em conjunto com os valores culturais e

ancestrais da comunidade, o que lhe conferem logicidade e legitimidade

sociocultural, pois tem como base as relações do mundo visível dos homens

(Àiyé) com o mundo invisível dos ancestrais (Òrun):

Os conceitos fundamentais de saúde e doença na medicina africana são ligados

à ideia de equilíbrio e interdependência dos elementos constitutivos (visíveis

ou não) que se influenciam entre si, segundo Koumaré (1988, p.24): “desde o

nascimento, o ser humano está sujeito ao controle de elementos naturais e

a sobrevivência depende da capacidade de encontrar um equilíbrio em um

ambiente que contém elementos favoráveis e desfavoráveis. O conhecimento

destes elementos confere poder de conservar ou alterar aquele equilíbrio que

representa a saúde”10.

No que concerne ao campo da saúde mental em África, a pessoa é concebida

como uma unidade indissolúvel de corpo material (Ara), corpo imaterial

(Orí Inu) e sua ancestralidade, porém, quando os colonizadores trouxeram

10 BARROS, 2006, p. 7,8.

222

o pensamento da medicina psiquiátrica ocidental, houve um processo de

estranhamento para esses povos como consta nos relatos de Barros:

No final do século XIX e início do século passado, missionários e militares

médicos em missão de exploração e conquista descreveram fenômenos

considerados desordem psíquica, assim como as terapêuticas em sociedades

africanas, americana e asiática. Em suas observações, os preconceitos, as

categorias morais, o paternalismo e o eurocentrismo reduziam a diferença

ao absolutamente outro e ao exótico. A religião foi considerada, muitas

vezes, como esquizofrenia organizada. A magia como doença da cultura e

o especialista da cura negro-africano descrito como epilético, histérico ou

doente dos nervos.11

Essa leitura feita pelo pensamento ocidental acerca das manifestações

culturais e religiosas de povos negro-africanos perdurou durante muitos anos

influenciando na criação de representações sociais sobre as importantes

contribuições dessas culturas em África e no próprio Brasil, como descreve

Cunha Júnior12:

O eurocentrismo ocidental reza tudo aquilo que ele desconhece que não tem

grande importância para o conhecimento racional. O ocidente não conhece,

portanto não existe. Dado ao desconhecimento ocidental, às vezes acidental,

noutras proposital, grande parte do conhecimento da humanidade não existe

como conhecimento racional. Reduz os povos não ocidentais a povos que

não pensam de forma lógica. A ignorância ocidental sobre os não ocidentais

(ou pelo menos conhecimento parcial) produziu a arrogância e desta ao

eurocentrismo, em se considerar única fonte dos únicos pensamentos lógicos

racionalizados pelas lógicas do seu conhecimento.

11 Ibidem, p. 8

12 CUNHA JÚNIOR, Henrique Antunes. NTU: introdução ao pensamento filosófico bantu. Revista Espaço Acadêmico, Fortaleza, ano 32, v. 1, p. 59, 2010.

223

Em pensamento similar ao de Cunha Júnior, Barros também adverte13:

A África tomada como objeto, destituída de história e de saber, tem sido ainda

em nossos dias terreno constante de investigações em diversas disciplinas.

No campo particular da chamada etnopsiquiatria, a discussão sobre o que é a

alteridade é ferida aberta, pois a psiquiatria se debate com a visão da loucura

como o outro da normalidade desejada, e a etnologia conforta-se com formas

mais ou menos sutis da herança colonial, nas quais o africano, o indígena

ou o não-europeu ocupam o lugar de um outro do qual se desconhecem

os limites da diferença. Essa é uma problemática crucial assinalada por Piero

Coppo (1993), pois a psiquiatria, setor da medicina convencional de origem

europeia, erigiu seu saber com base na separação entre corpo e espírito,

disjunção estranha no pensamento negro-africano. Verifica-se, assim, um

distanciamento epistemológico profundo entre a medicina psiquiátrica de

origem europeia e a medicina negro-africana. No entanto, muitos esforços

têm sido realizados no sentido de superar os obstáculos teóricos e políticos.

Pesquisas importantes têm resultado, muitas vezes, do esforço conjunto

de vários especialistas: antropólogos, psiquiatras, sociólogos, psicólogos,

inscrevendo-se no quadro de formulação de uma revisão crítica da própria

constituição do saber dominante nas sociedades ocidentais.

Porém, a despeito das críticas e formulações teóricas acerca do pensamento

negro-africano e de suas práticas no campo saúde-doença, seus modelos

de cura pautado em uma lógica de envolvimento com a ancestralidade,

torna-se inconteste. Com a diáspora africana no período expansionista

do capitalismo mercantilista, esse pensamento viajou nos tumbeiros e

foi trazido em forma de memórias coletivas dos povos escravizados e

ressignificou-se em terras brasileiras, através das Religiões de Matriz

Africana ou Terreiros de Matriz Africana como popularmente ficaram

conhecidos e vem se legitimando como conhecimentos e práticas de

13 BARROS, Denise DIAS, Medicina negro-africana: institucionalidade, saberes e sentidos do adoecer e da loucura na África do Oeste e no Mali. Revista Imaginário. São Paulo, ano 10, n. 10, p. 77-114, 2005.

224

acolhimento, cuidado, tratamento, prevenção e promoção de saúde.

O TERREIRO COMO ESPAÇO DE PROMOÇÃO

E TRATAMENTO EM SAÚDE MENTAL

A palavra Terreiro na definição de Sodré é o lugar próprio, ou seja, “Ela tem

em sua etimologia o significado herança: é um bem ou conjunto de bens que

se recebe do pai (pater, patri). Mas é também uma metáfora para o legado de

uma memória coletiva, de algo culturalmente comum a um grupo”. Ele é um

espaço mítico-religioso no qual se desenvolveu grande parte do patrimônio

cultural negro-africano. Um território geográfico e político de preservação

dessa identidade negra e refazimento de laços familiares e ancestrais, como

relata Sodré14:

O espaço do terreiro vai ser o lugar de reterritorialização de uma cultura

fragmentada, de uma cultura de exílio. É ali que o indivíduo vai reviver, vai

tentar refazer a sua família e o seu clã, que tal como na África, são formados

independentemente de laços sanguíneos. No espaço do terreiro, o indivíduo

buscará o sentido de pertencimento a uma coletividade e ritualisticamente vai

reencontrar a sua nação.

Na concepção do historiador Ronaldo Souza no vídeo documentário Casa

de Santo: “O Candomblé é a alma, a essência litúrgica do povo negro”. Os

Terreiros de Candomblé são uma expressão da Cosmovisão Africana no

Brasil e grandes guardiões da identidade e memória ancestral histórica

desses povos, segundo o pensamento de Luz15:

14 SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes, l988, p 56.

15 LUZ, Marcos Aurélio de Oliveira. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. 2. ed.Salvador: EDUFBA, 2000, pp 418-421.

225

Uma das mais importantes instituições que asseguram a continuidade do

processo civilizatório africano é o culto aos ancestres (...) Não poderíamos

deixar de mencionar a existência de inúmeros terreiros da tradicional religião

africana que se desdobram e se multiplicam ao passar dos anos, irradiando

seus valores (…) poderíamos dizer, em outras palavras, que a religião tradicional

africana mantém-se na África e nas Américas, para garantir a existência, no

sentido mais complexo e profundo que essa palavra possa ser empregada

dentro do contexto simbólico negro-africano que exprime a dinâmica do

universo caracterizada pela relação dialética entre esse mundo e o além.

Garantir a existência, para que o mundo não se acabe, significa a constante

mediação entre o mundo das forças cósmicas que regem o universo, o mundo

dos ancestrais, o Órun, com o mundo dos seres humanos, o Aiyê, através da

religião. (...) A expansão da humanidade, o equilíbrio da vida social e natural

dependem da prática litúrgica que envolve a temporalidade e a espacialidade

da vida do ser humano no âmbito do processo civilizatório africano.

O Terreiro de Candomblé foi historicamente um espaço de resistência e

refúgio dos negros e das negras durante o período escravista brasileiro, mas

também, de reconstituição dos laços de família representados na família

de santo, de pertencimento étnico, de fortalecimento do corpo e da alma.

Nesse espaço mítico-religioso, o paradigma africano é vivo e vivido como

um complexo de saberes e práticas que abrangem o campo da saúde, da

educação pela oralidade, dos valores ético-morais sobre as relações com as

pessoas, com a vida, com a natureza, com o universo e com os ancestrais.

Especificamente no campo da saúde mental no Terreiro de Candomblé,

existem maneiras de acolher, cuidar e tratar as pessoas. Em todos os casos, a

escuta qualificada e atenciosa é feita pela Ìyálórìsà ou Bàbálórìsà16 como uma

primeira abordagem para compreensão do problema. Em seguida, utiliza-

16 Ìyálórìsà ou Bàbálórìsà são denominações para o sacerdote supremo do Candomblé. Popularmente no Brasil ficaram conhecidos como mãe de santo ou pai de santo.

226

se a consulta divinatória aos òrìsà mediante os quais são passados para a

pessoa/consulente os procedimentos que ela deve realizar para fortalecer

sua cabeça (Orí) e restituir Àse. Nesse caso, pode ser desde um Borí Omi Tutu

ou Obì a cabeça (um banho com água fresca e o fruto africano Obì), ao Borí

Onje Gbígbe (comidas secas são ofertadas a cabeça como o àkàsà17) chegando

até ao Borí Èjè (um procedimento completo que envolve recursos animais,

vegetais e comidas secas).

Em alguns casos, existindo a necessidade de a pessoa ser iniciada para o

Òrìsà, os procedimentos serão vividos de forma mais profunda, complexa e de

duração mais longa, todavia nesse trabalho não nos cabe a descrição de rituais

de iniciação ao Candomblé, pois se constitui uma cerimônia interna e restrita

somente a pessoas já iniciadas nessa Religião, como nos revela Santos18:

De fato, pouquíssimas pessoas têm acesso a essas cerimônias. Já dissemos que a aquisição de conhecimento é uma experiência progressiva, iniciática, possibilitada pela absorção e pelo desenvolvimento de qualidades e de poderes. O acesso a determinados ritos está em relação direta com o grau de iniciação e, consequentemente, com a capacidade física e espiritual do indivíduo de assistir e de participar de uma experiência durante a qual são liberados e estão presentes forças e poderes dificilmente manejáveis:

1. Biri-Biri bò won lójú Trevas cobrem seus olhos

2. Ògbèri nko mo Màrìwo O não iniciado não pode conhecer o mistério do Màrìwo

No que diz respeito aos procedimentos em saúde mental dispensados pelo

17 ̀kàsà é uma pasta feita de milho branco ralado e enrolado em folha de bananeira servido em vários rituais do Candomblé.

18 SANTOS, 2012, p.20

227

Terreiro de Candomblé, podemos afirmar a existência de uma metodologia

terapêutica em saúde que revela o entendimento do adoecimento mental

como um acontecimento na vida e no destino da pessoa, que pode ou não

ter cura. Em todos os casos, no entanto, de expressões do sofrimento mental

(depressões, ansiedades, esquizofrenias, bipolaridades, dentre outros), os

procedimentos terapêuticos do Terreiro serão eficazes na perspectiva do

alívio dos sintomas com a utilização do vasto conhecimento em plantas,

raízes, sementes e folhas que o Candomblé tem domínio, bem como pelo

acesso à ancestralidade.

Entendendo melhor, poderíamos exemplificar que em um quadro

de sofrimento psíquico que se apresenta como depressão psicótica,

diagnosticada pela medicina ocidental, no Candomblé pode revelar-se como

um ato manifesto da energia ancestral que está diretamente ligada à condição

daquela pessoa especificamente, pois no Terreiro o reconhecimento do

mundo imaterial/ancestral é tão real quanto o mundo material (homens/

terra) e sua relação dialógica de intercâmbio energético é ininterrupta e

constante. A manifestação dessa energia ancestral pode ter similaridades

com um quadro de “perturbação mental”, confusão mental, desorientação,

desorganização do pensamento, tremores, sudorese excessiva, ampliação

e aguçamento dos sentidos da visão e da audição. Essa maneira de

compreender os fenômenos do mundo imaterial/ancestral no mundo

material dá-se porque, no Terreiro de candomblé, a referência está pautada

na filosofia da ancestralidade que vai tecer formas próprias para o sentido

da vida, das relações, da compreensão do próprio ser humano. Na filosofia

ancestral yorubá compreende-se que:

228

O corpo humano - ara ènia - é o concreto, coisa tangível de carne e osso, o

qual, conhecemos através dos sentidos e que pode ser descrito através da

anatomia. É a forma física do homem modelada do barro - amò, e da água - omi,

primordiais, por Òrisàálá. É neste ser inerte que o Ser Supremo Olódùmarè,

sopra o hálito, denominado Èmí. É somente Ele quem coloca o Èmí no homem,

dando-lhe, dessa forma, vida e existência, e que para Ele voltará após a morte.

O Èmí é representado pela respiração, que revela que a força vital divina está

no homem. O Èmí é associado estritamente à vida e a todo o seu mecanismo

de viver […] Além do corpo - ara - e da respiração, representada pelo èmí, o

homem recebe a alma, cujo conceito é muito complexo e cujo nome é definido

ora como o próprio èmí, outras vezes como iwin, o ânimo interior, e okàn, o

ânimo exterior representado pelo coração19.

Ao longo da história, essa compreensão da filosofia ancestral yorubá não

foi devidamente pesquisada e entendida, mas as manifestações da força

ancestral do òrìsà em forma de transe no Candomblé da Bahia tornaram-se

objeto de estudos e análise por parte de muitos acadêmicos, dentre eles o

médico e pesquisador maranhense do século XIX Raimundo Nina Rodrigues20

que desenvolveu sua classificação das mesmas como doenças mentais e os

cultos afrorreligioso como ações primitivas de um fetichismo animista.

Seu pensamento influenciou uma gama de outros estudiosos e o

desenvolvimento da ciência de base racional, biológica e empirista em

saúde acabou por desconsiderar as manifestações do sagrado ou do mundo

imaterial. Até hoje são perceptíveis as restrições no campo teórico e prático

da saúde mental quanto ao reconhecimento de muitas sintomatologias

19 BENISTE, José. Òrun – Àiyé: o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yorubá entre o céu e a terra. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, pp 124-125.

20 Raimundo Nina Rodrigues era médico maranhense, professor universitário, escritor e pesquisador precursor dos estudos do negro no Brasil. Viveu muitos anos na Bahia e escreveu sobre o Candomblé referindo-se a essa Religião como Animismo fetichista dos negros baianos, assim como considerava os negros uma raça inferior, com atos religiosos primitivos. Seus estudos revelam o pensamento racista imperante em sua época.

229

como expressões dessa energia ancestral e, por conseguinte, os tratamentos

dispensados no Candomblé também passam a ser desqualificados como

formas primitivas, mágicas ou feitiçarias, um conhecimento rudimentar.

Entretanto, os Terreiros de Candomblé são detentores de saberes e práticas

no manuseio dos reinos animal, vegetal e mineral, pois estes reinos possuem

por excelência, elementos constitutivos de Àse, como descreve Santos21:

A força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir.

Sem Àse, a existência estaria paralisada, desprovida de toda possibilidade

de realização […] o Àse como toda força pode aumentar ou diminuir […] a

força do Àse é contida e transmitida através de certos elementos materiais,

de certas substâncias. O Àse contido e transferido por essas substâncias aos

seres e aos objetos mantém e renova neles os poderes de realização. […] O

Àse é contido numa grande variedade de elementos representativos do reino

animal, vegetal e mineral quer sejam da água (doce ou salgada) quer seja

da terra, da floresta, do “mato” ou do espaço “urbano”. O Àse é contido nas

substâncias essenciais de cada um dos seres, animados ou não, simples ou

complexos, que compõem o mundo.

Especificamente no que se refere ao reino vegetal, os religiosos do Candomblé

consideram como o sangue verde, pois sabem extrair o sumo das plantas

ou seu princípio vital para uso diversificado, como: banhos energéticos para

o re-equilíbrio do corpo e em ações de limpeza energética de ambientes

materiais como casas, apartamentos, locais de trabalho, dentre outros.

No universo do Candomblé, o reino vegetal, as plantas, principalmente as

folhas são consideradas sagradas (Ewé Oró = folha sagrada) “Kò sí ewé, Kò sí

21 SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Padê. Asesé e oculto Égun na Bahia. Rio de Janeiro: Vozes, 1986, p 41-42.

230

òrìsá”, ou seja, sem folhas, sem Òrìsà e, devido a essa importância litúrgica,

são também compreendidas em uma ordem de classificação:

Verger (1968), estudando o papel das plantas litúrgicas entre os Yorubá, vai

dividi-las em duas categorias: igègùn òrìsà e èrò òrìsà, a primeira categoria

para “excitar os òrìsà e a segunda para acalmar os òrìsà. Explicita quanto ao

termo gùn que este significa “montar” e induz a ideia de cavalgar, sendo que

os adeptos que são possuídos pelas divindades são denominados de elégùn

ou esin òrìsà – cavalo do òrìsà –, concluindo que as espécies colocadas sob

essa categoria servem para propiciar a possessão. Contrariamente, as plantas

classificadas como de calma (erò) teriam o efeito de abrandar o transe,

apaziguar o òrìsà. Estas categorias mencionadas por Verger foram extraídas

de textos dos Odù e no curso de nosso trabalho conseguimos identificá-las

nas orín ewé ou “cantigas de folhas”, integrantes do ritual Asà òsányìn ou

como chamada sasányìn, no qual as espécies são louvadas antes de serem

empregadas22.

Salientamos que não somente as folhas, mas toda a planta é usada no

Candomblé: as raízes, o caule, as sementes, as frutas, a casca e a seiva.

Em relação às folhas, como afirma Verger, há um sistema de classificação

bipolar que as divide em èrò òrìsà (folhas frias) e igègùn òrìsà (folhas

quentes, excitantes). As folhas consideradas frias são folhas que acalmam,

dando uma sensação de tranquilidade, ao contrário das folhas quentes

que causam uma sensação de excitação no corpo material e imaterial. A

mistura de ambas ocasiona o equilíbrio energético presente nos banhos,

os quais também podem induzir ao transe, quando as pessoas estão sendo

preparadas para receber a energia do Òrìsà no processo iniciático do

Candomblé. Dada a sua importância, o uso e manuseio das folhas devem

ser feitos com muita cautela e cuidado, por que as mesmas são possuidoras

22 BARROS, José Flávio Pessoa de. O segredo das folhas: sistema de classificação de vegetais no candomblé jêje-nagô do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, p. 89, 1993.

231

de muito Àse, energia que pode fazer bem (curar) ou fazer mal (matar) se

manipulada de forma errônea.

Nos Terreiros de Candomblé, elas são manuseadas pelos Babálòssaím23,

Babálòrísá e Ìyálòrísá pelo nível de conhecimento profundo sobre a bipolaridade

energética “positiva ou negativa” de cada folha e como melhor definir o uso, a

maneira e a ocasião. No Candomblé de origem Yorubá, Nàgô ou Ketu, existe

uma energia ancestral, um Òrìsà que é o responsável pelas folhas, chama-se

Òsányìn, sendo por isso dedicado a ele um ritual especial e único intitulado

Asà Òsányìn ou Sasányìn, que são um conjunto de cantigas para as folhas (orín

ewé), por meio dos quais são pronunciadas as palavras de encantamento (os

Ófòs) na intenção de despertar o princípio vital (o Àse) daquela folha. Esse

ritual é secreto e segue uma sequência, pois para cada folha corresponderá

um encantamento (Ófò). A Sasányìn é restrita aos integrantes daquela casa de

Candomblé, não podendo ser assistido por pessoas alheias à casa religiosa,

por que se constitui momento de transmissão de conhecimentos ancestrais

africanos dedicados exclusivamente aos iniciados no Òrìsà.

Durante a pesquisa de campo, no mestrado em 2013, entrevistamos o Babàlòssaìn

Alexandre Adè Ewé Ewé Molá do Candomblé Asè Ye Ye Òmín Òsún que nos relata

os dois tipos principais de banhos utilizados no Terreiro de Candomblé:

O Àgbo e o Omi Èró. O primeiro tem características de um banho com aroma

forte, porque é preparado e fica curtindo durante dias e/ou meses em potes

de barro e sua função é retirar as cargas negativas, daí a denominação

popular de banho de descarrego. O segundo, o Omi Èró, é um banho tido

23 Babàlòssaín é a pessoa preparada e responsável para o manuseio das folhas no Candomblé. Possui preparo específico para a função e tem muito respeito da comunidade como um todo. Porém essa função foi ao longo da história sendo absorvida pelos Babálòrísá e Ìyálòrísá (pais e mães de santo).

232

como refrescante, porque é preparado para ser usado logo em seguida, sem

apuração em potes de barro e sua função é de restituir energias positivas no

corpo (informação verbal).24

De fato em um procedimento terapêutico intitulado Ebó (limpeza espiritual

energética) os dois banhos podem ser usados, segundo Alexandre:

Primeiro o Àgbo para retirar energias negativas, energias prejudiciais ao

funcionamento do corpo que geram angústia, stress, tensão muscular,

cansaço físico, fadiga mental, dores de cabeça, medo, ansiedade e logo em

seguida o Omin Èró para reestabelecimento das energias positivas, dando

uma sensação de bem-estar e equilíbrio, pois o corpo e a alma foram

reequilibrados energeticamente (informação verbal).25

Por conseguinte, no Candomblé os tratamentos em saúde mental vão

incorporar uma série de procedimentos que envolvem desde escuta

terapêutica por parte dos Babálòrísá e Ìyálòrísá, aos rituais de Borí

(procedimentos específicos para a cabeça - Orí), os Ebós (limpezas espirituais)

associados a banhos, jejuns, restrições alimentares por um tempo e, até se

necessário, o processo iniciático para resolutividade de determinados casos

clínicos/mentais. Acerca dessas maneiras de tratamento terapêutico do

Terreiro de Candomblé Guimarães afirma que:

Esses universais de matriz africana compõem categorias simbólicas

que organizam formas de ser e viver, organizam o mundo, constroem e

mantêm subjetividades. São responsáveis pela construção e manutenção

de subjetividades porque se processam através de formas simbólico-

afetivas, como acolhimento, suporte (holding), vivência de continuidade de

24 Entrevista concedida em 12 jan. 2013.

25 Entrevista concedida em 12 jan. 2013.

233

ser no tempo e espaço, apresentação de limites de forma não invasora; por

serem processos relacionais e intersubjetivos intrínsecos, “incorporados”,

“assentados” à dinâmica sistêmica do terreiro, permitindo ao indivíduo lidar

com questões, por vezes conflituais, que se estabelecem entre aquilo que

se necessita/deseja e o que é possível em função dos limites da realidade

externa (entre princípio do prazer e princípio da realidade. 26

CONTRIBUIÇÕES DO TERREIRO PARA A SAÚDE MENTAL

O paradigma civilizatório africano ao longo da trajetória histórica da

humanidade não foi devidamente estudado e compreendido em sua

especificidade como um modelo que tem como premissa o reconhecimento

de um mundo imaterial (Òrun), no qual residem as forças cósmicas dos

ancestrais e sua relação constante e direta com o mundo material (Àiyé), dos

seres humanos, da terra, da natureza. Desta feita, as contribuições advindas

desse modelo são constantemente postas em cheque pelo olhar de uma

racionalidade totalizante e totalitária, de uma ciência eurocêntrica com base

em um pensamento ocidental que permeia todas as áreas do conhecimento

humano, colocando sob suspeita de não científico tudo que o foge às regras

do conhecimento ocidental.

No campo da saúde mental onde se lida com os fenômenos da psique,

os paradigmas também são referenciados no pensamento ocidental e no

não reconhecimento de manifestações do mundo imaterial como situações

reais e manuseáveis. Ao contrário dos Terreiros que reconhecem a relação

dialógica entre os mundos (material e imaterial), o que gera uma ética própria

26 GUIMARÃES, M. A. Os mistérios do nascer: significados na tradição religiosa afrobrasileira. In:Sinais de vida: reflexões sobre parto e nascimento. Rio de Janeiro: REDEH, 1995, p 8. Marcos Guimarães é psicanalista, estudioso e pesquisador da saúde mental e dos Candomblés do Rio de Janeiro.

234

de respeito ao sagrado como uma dimensão da existência. Assim quando

se pensa o binômio saúde-doença reporta-se a equilíbrio/desequilíbrio

energético do corpo que é extensão da natureza, em fortalecimento do corpo

físico (Ara) e do corpo não físico/alma (Èmí) através da restituição de Àse ou

força vital. No Terreiro, não existe tratamento em saúde que não envolva

todas as dimensões da pessoa, seu histórico, sua forma de viver e conviver

no mundo, suas relações na sociedade, seus valores éticos, seus ideais, seus

medos, seus anseios, suas dúvidas, suas crises existenciais, as possibilidade

de ressignificação de seu lugar no tempo e no mundo. Aliado a todo esse

conjunto de elementos, os conhecimentos sobre os reinos animal, mineral

e vegetal tornam o Terreiro um território em que os tratamentos vão ter

essencialmente base natural.

Nessa perspectiva, pensar a saúde mental é também incluir a dimensão não

material que permeia a vida das pessoas, que pode gerar adoecimentos e

pode gerar processos de tratamento com alívio dos sintomas, inclusive para

casos diagnosticados pela medicina psiquiátrica. As práticas manipulativas

com as plantas, folhas e ervas podem ser utilizadas como práticas integrativas

e complementares nas unidades do Sistema Único de Saúde-SUS em

consonância com o que preconiza a Política Nacional de Saúde Mental

instituída no Brasil pela Lei nº 10.216/01 que busca dentre outras coisas:

Consolidar um modelo de atenção à saúde mental aberto e de base

comunitária. Isto é, que garante a livre circulação das pessoas com transtornos

mentais pelos serviços, comunidade e cidade, e oferece cuidados com base

nos recursos que a comunidade oferece. Este modelo conta com uma rede

de serviços e equipamentos variados tais como os Centros de Atenção

Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de

Convivência e Cultura e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos

235

CAPS III). O Programa de Volta para Casa que oferece bolsas para egressos

de longas internações em hospitais psiquiátricos, também faz parte desta

Política.27

Nessa mesma Lei, constitui direito da pessoa em sofrimento psíquico, no

artigo VIII, “ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos

possíveis” e, no IX, “ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários

de saúde mental”, esses direitos coadunam com as práticas terapêuticas

de saúde dos Terreiros que são de base fitoterápicas e menos agressivas

se comparadas às terapêuticas medicamentosas dos psicofármacos, que

mesmo os de última geração, ainda provocam reações adversas nos usuários

que fazem uso dos mesmos, com efeitos colaterais que os obrigam a utilizar

outras medicações clínicas para amenizar as consequências do tratamento

com psicotrópicos.28

O Centro de Atenção Psicossocial - Caps Iracema na cidade de Fortaleza, no

Estado do Ceará, como serviço substitutivo em saúde mental atende pessoas

em sofrimento psíquico grave (psicoses e neuroses) em regime ambulatorial,

com terapias individuais e grupais em uma perspectiva de tratamento e

acompanhamento da crise, evitando-se a internação em hospital psiquiátrico.

Em casos especiais que requerem uma atenção mais intensiva, orienta-se a

internação em hospital geral ou no Caps 24 horas, que realiza atendimento

de internação provisória e monitorada.

27 PORTAL DA SAÚDE, 2012. Disponível em <http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/acoes-e-programas/conte-com-a-gente>.

28 BRSIL. Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso em 22 jan. 2012.

236

O Caps também tem como objetivo a promoção da inserção social dos

usuários, fortalecendo seus vínculos familiares e restabelecendo laços

comunitários dos mesmos com seu território e sua comunidade. Uma vez

inserida no atendimento a pessoa é acolhida, cuidada, ouvida e é construído

com ela e sua família um Plano Terapêutico Singular - PTS no qual constam

atividades de seu maior interesse, visando atender a suas necessidades,

composto por prescrições médicas, grupos terapêuticos, grupos de

arteterapia e grupos laborativos com oficinas geradora de trabalho e renda

(marcenaria, cerâmica, bijuterias, brechó, artesanato em geral) e oficinas

de alfabetização, o que possibilita exercitar a escrita e a leitura, concebidas

como uma condição importante na (re)construção da cidadania, oferecendo

atividades de suporte social, grupos de leitura e debate, que estimulam

a alteridade e a autonomia. Assim como a família e a comunidade são

envolvidas no tratamento para o processo de restabelecimento e reinserção

dos usuários, os quais nesses períodos ficam muito instáveis, inseguros

e, muitas vezes, violentos, requerendo um conjunto articulado de sujeitos

sociais que possam auxiliá-los nesse processo.

O Caps traz essa perspectiva psicossocial de trabalhar na busca de autonomia,

de cidadania e de alteridade desse outro que se encontra em sofrimento

psíquico. O serviço é basicamente um instrumento mediador entre o usuário

e a família, entre o usuário e a comunidade, entre a família e a comunidade,

em uma ação que aponta para a humanização do atendimento psíquico e a

desestigmatização das pessoas em sofrimento psíquico. De fato, o grande

desafio nesses serviços está pautado em não render-se à lógica dominante

capitalista de pensar a loucura como uma doença mental e o usuário como

237

um ser social, cultural, político e economicamente incapaz, tolhido em sua

fala, censurado em seus gestos, entorpecido em seus sentidos e condenado

ao silêncio. O Caps, ao contrário, se propõe a realizar intervenções que

reinventem a forma de lidar com o sofrimento mental - não como doença -

mas como formas diferenciadas de viver, de ser e estar no mundo.

Em 2007, a Prefeitura de Fortaleza incluiu na Rede de Atenção em Saúde

Mental a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC),

criada pelas Portarias Ministeriais nº 971, em 3 de maio de 2006, e nº 1.600

de 17 de julho de 2006 (BRASIL, 2006), as quais versam sobre a valorização

da medicina tradicional e das terapias medicamentosas fitoterápicas,

espirituais e não medicamentosas. Essa Política é o resultado do acúmulo

de discussões e reflexões realizadas pelos movimentos sociais de educação

popular e saúde, movimentos de saúde comunitária e profissionais de saúde

que não adotam o paradigma biomédico como modelo primordial na saúde

e que vinham realizando vários debates no interior das Conferências de

Saúde para que fossem reconhecidas suas práticas de tratamento, baseadas

em método não medicamentosos, como os da medicina tradicional chinesa

(acupuntura), da homeopatia, medicina antroposófica, da Fitoterapia e do

termalismo-crenoterapia.

Os saberes e práticas ancestrais africanas estão contemplados nessa

Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) como

conhecimentos ancestrais e milenares no uso medicinal dos animais, dos

minerais e das plantas. Nas sociedades tradicionais africanas, esse uso vem

acompanhado de encantamentos ou palavras mágicas que são pronunciadas

para despertar-lhes o princípio ativo, conforme constatou Verger “Se

238

para a medicina ocidental o conhecimento do nome científico das plantas

usadas e suas características farmacológicas é o principal, em sociedades

tradicionais o conhecimento dos ofò, encantações transmitidas oralmente

é o que é essencial”. Neles, encontramos a definição da ação esperada

de cada uma das plantas que entram na receita29. Esses conhecimentos e

práticas ancestrais das sociedades tradicionais africanas foram trazidos

pelos escravizados para o Brasil sendo preservados e ressignificados pelos

Terreiros de Candomblé, constituindo-se em fonte essencial do tratamento

em saúde dessas comunidades e utilizados em seus rituais sagrados.

Em 2011, o Caps Iracema incorporou às suas ações a terapia de base

ancestral com o uso de plantas, folhas e ervas associadas a benzeduras e

toques terapêuticos corporais como tratamento integral e complementar ao

tratamento biomédico, psicofármaco e psicoterapêutico. Com isso, emerge

a necessidade de compreender os impactos gerados por essa abordagem

terapêutica, fazendo surgir uma pesquisa de mestrado que foi realizada em

2012, com usuários dessa Terapia no Caps Iracema e os profissionais, aliada

ao motivo de compreender como esse conhecimento distinto se desenvolvia

com outras formas teórico-metodológicas de abordagens terapêuticas do

processo saúde-doença mental posto ainda existir o pensamento hegemônico

de supervalorização do tratamento medicamentoso em detrimento de outros

tratamentos como a psicoterapia, a arte terapia, as terapias ocupacionais

e a terapia de base ancestral. Além disso, a instituição tem em sua rotina

pautar o atendimento com base em diagnósticos, em detrimento de uma

contextualização da vida da pessoa como um todo. A esse respeito um dos

29 VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé: o uso das plantas na sociedade iorubá. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

239

médicos psiquiatras da unidade, que é ativista e militante da luta antimanicomial,

em uma reunião de equipe técnica do Caps Iracema relata que:

Na clínica tradicional, manicomial o paciente é visto como o diagnóstico. Você

coloca entre parênteses a vida da pessoa, porque você vai intervir sobre o

diagnóstico, como se o diagnóstico fosse uma identidade, uma entidade à

parte. A clínica antimanicomial, que não é necessariamente da reforma

psiquiátrica, por que nem toda reforma psiquiátrica é antimanicomial, como

acontece aqui em Fortaleza, tem outra forma. Na clínica antimanicomial é o

contrário, você subordina o diagnóstico à vida das pessoas, à compreensão da

vida das pessoas. Você tira o parêntese da vida da pessoa, que é o diagnóstico

e passa a entendê-la no contexto da sua vida, do seu sofrimento mental como

um todo. Não tem como você colocar a pessoa no centro do atendimento se

isso não se der a partir de um conjunto de conhecimentos multiprofissionais

que extrapola o saber estritamente médico, que é onde se fundamenta a

clínica tradicional (informação verbal).30

O relato do médico chama à atenção para os modelos de atendimento na

saúde mental que foram implantados na Reforma Psiquiátrica, mas também

traz à tona a essencial necessidade de vários conhecimentos em relação

dialógica em uma instituição como o Caps, para que se evite a primazia de

um único olhar, o olhar psiquiátrico, e a consequente definição de sofrimento

mental, como um conjunto de sintomas compilados em forma de diagnóstico,

que tem como base a prescrição de medicamentos psicofármacos.

E nesse sentido a terapia de base ancestral vividas no Caps Iracema traz em

seu bojo possibilidades de acolhimento, cuidado e tratamento sobre outra

ótica, que delineia atividades que possuem a seguinte proposta metodológica:

tratamento integrativo-complementar de caráter grupal e/ou individual, com

base nos conhecimentos e práticas ancestrais africanas no uso e manuseio

30 Entrevista - Psiquiatra, realizada 08 nov. 2012.

240

de ervas e plantas, tendo como princípio a valorização da autoestima e o

fortalecimento da subjetividade da pessoa em sofrimento psíquico, em uma

perspectiva de reorganização educativa de como incorporado e vivenciar esse

sofrimento, utilizando-se também da dimensão espiritual, com os recursos

das benzeduras.

A esse respeito, a terapeuta ocupacional do Caps Iracema relata em sua

entrevista:

Eu tenho muitos pacientes, mas nem todos fazem essas terapias com as plantas, mas eu tenho 3 pacientes que fazem sim, e elas falam no grupo de arte-terapia que se sentem melhores, mais aliviadas, mais calmas e que aprendem também a respirar, controlar a ansiedade delas, passam a ver que todo mundo tem ansiedade, tristeza, que não é só elas e que elas podem tomar um chá, uma massagem para se tranquilizar. Elas também falam que, nas sessões com a mãe de santo, elas conversam seus problemas e se sentem bem porque ela sempre escuta e orienta quanto ao fato de elas não desistirem do tratamento no Caps e com as ervas e plantas. Que a natureza também oferece remédios naturais, sem muitos efeitos colaterais como acontece com os medicamentos do Caps. Porque os pacientes se queixam muito dos efeitos clínicos causados pelas medicações, como o haloperidol (antipsicótico), que causa impregnação, dores musculares, os ansiolíticos e antidepressivos causam ressecamento da mucosa da boca, gosto amargo ao

se alimentar, tem vários efeitos colaterais (informação verbal).31

Para as terapeutas de base ancestral (as mães de santo) trabalhar com as ervas

e plantas no Caps foi inicialmente um trabalho desafiador por que as pessoas

não estavam acostumadas com produtos naturais, tratamentos naturais:

É mais fácil a farmácia, por que o remédio já está pronto. Aqui no Caps é só ir

naquela janelinha da farmácia. Nas sessões, a gente explica que vem do mato,

todos os remédios, inclusive esses comprimidos do Caps. Nós trabalhamos na

31 Entrevista-Teraupeta Ocupacional, realizada em 27 nov. 2012.

241

conscientização da natureza, que ela dá tudo para gente e que precisam viver

mais perto dela, ir na praia, tomar banho de mar, por que você acredita que

aqui tem usuário que nunca foi no mar aqui em Fortaleza? A gente contando

ninguém acredita, mas tem. A pessoa vem todo dia no Caps, mas num vai

numa praia. Então a gente diz que aqui, no Caps, a gente ajuda até à pessoa

a descobrir que tem muita coisa na cidade que a gente pode ir para lazer,

sair de casa, por que é como a gente diz, não é por que tem esse problema

de cabeça que precisa fica só dentro de casa, num é não? E o contato com

a natureza ajuda muito porque a pessoa fica mais fortalecida, tem Àse na

natureza (informação verbal).32

No trabalho terapêutico desenvolvido por elas, o referencial do Terreiro

vai se expressando em formas de acolhimento, cuidado, tratamento e

acompanhamento dos usuários de saúde mental que leva em consideração

a particularidade de cada caso, conforme relato abaixo:

A gente planeja as sessões terapêuticas a partir da demanda que os pacientes

trazem. Nunca uma sessão é igual a outra. Porque depende. Tem dia que é

mais banho, lava pés com ervas. Outro dia é mais uma conversa mesmo, por

que eles têm muita carência, eles querem conversar, eles querem que a gente

escute eles primeiro. Aí a gente senta e conversa com eles, depois de ouvir

tudo, a gente oferece um banho, um chá, uma massagem. Geralmente eles

topam e saem aliviados, por que a gente tirou a carga negativa né, eles saem

revigorados. Por que a gente sabe que não dá para tirar carga negativa só

com conversa, tem que ter a erva, a folha para poder acalmar a cabeça, limpar

o corpo e a alma. Às vezes eles têm muita energia e ficam agitados ou têm

baixa de energia, aí fica choroso, triste, com aqueles pensamentos negativos.

As folhas, as ervas vão ajudar tirando ou botando energias, equilibrando o

campo de energia deles. E funciona (informação verbal).33

Nessa Terapia de base ancestral utiliza-se a seguinte metodologia,

monitoramento e avaliação dos usuários atendidos nas sessões:

32 Entrevista – Terapeuta de Base Ancestral, realizada em 7 dez. 2012.

33 Entrevista – Mãe Mocinha, realizada em 7 dez. 2012.

242

Nós temos uma ficha que eles preenchem com vários dados clínicos e de seu sofrimento mental. É tipo o prontuário que eles têm aqui do Caps, sendo que na nossa ficha eles vão preencher sobre outros dados da vida deles. Eles vão falar dos sentimentos, por que a ficha é para registrar como eles estão evoluindo no tratamento. Por que a gente também muda as ervas e plantas de acordo com a situação que o paciente apresenta, né? Num vai ficar tomando banho da mesma erva o resto da vida entendeu? Nem a erva serve mais se usar para tudo de uma pessoa, é preciso ir mudando, diminuindo ou aumentando a quantidade, por que se a pessoa está muito lenta, eu não vou deixar ela mais lenta ainda. Então eu vou estimular para ela fica esperta, alegre, com energia de felicidade. Por isso que muda o tratamento, e lá na ficha a gente vai acompanhando, porque o paciente, às vezes, não lembra. Na ficha eles têm acesso, fica tudo anotado e quando eles pedem para não colocar o que eles falaram, aí a gente não coloca, po que é o direito deles, porque é a vida deles também. Nós também falamos na reunião da equipe do Caps, a gente fala como os pacientes estão (informação verbal).34

Portanto, os depoimentos das mães de santo revelam uma compreensão

acerca da saúde mental, tendo como referência o universo mítico-religioso

dos Terreiros, no qual a pessoa é um todo complexo que envolve várias

dimensões: a dimensão humana, a dimensão da família, a dimensão da vida

comunitária e a dimensão ancestral/espiritual. Dessa forma, a abordagem ao

sofrimento psíquico do usuário é um chegar junto ao outro, compreendendo

sua vida nessas diversas dimensões. Como diz Mãe Mocinha de Oya “a pessoa

é um corpo físico e espiritual, não se trata o corpo sem tratar o espírito e a

família também”.

Essa articulação feita pelas mães de santo se expressa na condução de seu

trabalho terapêutico, quando tratam o paciente e quando tratam a família,

que também é ouvida, atendida nas sessões das terapias com ervas e plantas,

visto que o adoecimento acomete não só o usuário, mas os familiares que

34 Entrevista – Usuário de Terapia de Base Ancestral, realizada em 7 dez. 2012.

243

o cuidam. Ou seja, o adoecimento mental forma elos de reprodução desse

sofrimento, interligando usuário e família, gerando no espaço da vida

privada da família, situações de stress, violência, negligência e, em alguns

casos, cárcere privado, maus tratos, acorrentamento e trancafiamento do

usuário. Apesar de o Caps Iracema disponibilizar profissionais que realizam

grupos de família, destinados a escutá-las e apoiá-las, as queixas ainda são

frequentes, e muitos familiares buscam apoio medicamentoso em ansiolíticos

e antidepressivos, gerando um aumento da medicalização da população.

Dessa maneira, a Terapia de base ancestral também vem sendo acessada

pelas famílias, após perceberem melhoras nos quadros sintomatológicos

de seus familiares, assim como houve um incentivo por parte das mães de

santo em querer tratar também a família dos usuários que frequentam suas

sessões terapêuticas, como pode ser compreendido no relato do pai de uma

usuária diagnosticada com depressão com sintomas psicóticos:

Eu cuido da minha filha porque o marido dela nem liga para ela, mas ela é

minha Filha, e eu que cuido dela, porque eu tenho mais paciência. Eu um

dia vim deixar ela aqui no Caps para essa sessão das plantas, e a Dona Vilma

me convidou para fazer parte, eu fui e eu gostei muito de participar. A gente

relaxa e esquece os problemas. Ela é muito atenciosa com a gente, trata bem

e a gente se sente leve quando sai daqui, já sai relaxado. Eu gosto muito.

Deveria era ter mais sessões assim. Ela também até ensinou como fazer uns

chás para gente ficar relaxado para cuidar da menina (informação verbal).35

Para a usuária Margarida (nome fictício para preservar sua real identidade)

a Terapia de base ancestral ajuda muito em seu autoconhecimento. Relata

em entrevista que sua vida é bem complicada. É mãe solteira, tem 31 anos

35 Entrevista – Pai de usuária diagnosticada, realizada em 5 nov. 2012.

244

de idade, mora na cidade de Fortaleza e tem um filho de 11 anos. Ela vive da

pensão do ex-marido e faz pequenos trabalhos para sobreviver. Menciona

que teve uma vida que ela considerava tranquila, uma vez que foi uma

adolescente que estudou, concluiu o ensino médio, casou e teve seu primeiro

e único filho. Segundo ela, foi nesse contexto que surgiu o problema do

sofrimento mental. Ela recorda que começou com uma tristeza e desânimo,

não querendo mais cuidar do bebê. O quadro sintomatológico foi se

aprofundando, e ela foi levada ao Hospital de Saúde Mental de Messejana

(HSMM) pelo marido.

Na consulta de emergência, foi diagnosticada com depressão pós-parto

e ficou internada por 15 dias. Depois desse episódio de crise, ficou sendo

acompanhada no ambulatório do hospital com medicações para depressão,

mas não fazia o tratamento com regularidade por que tinha muita dificuldade

de tomar os remédios, por não aceitar essa condição de doente mental, de ser

louca, por que foi internada em um hospital psiquiátrico. Durante seu relato

Margarida se emociona ao recordar a primeira crise, lembra que as pessoas

da vizinhança apontavam para ela e falavam sobre sua internação em um

hospital de “doídos”, o que fez aumentar a dificuldade de aceitação de seu

adoecimento. Também cita que as crises não eram frequentes e, às vezes,

passava meses sem ter esses sintomas de depressão, mas, em compensação,

os sintomas de euforia e mania estavam sempre presentes em seu cotidiano.

E sobre isso Margarida fala sobre um dos episódios de crise eufórica:

Um dia eu acordei e senti que estava bem disposta, mas eu estava mesmo era

eufórica, aí eu fiquei com a sensação de que precisava fiscalizar as lojas, o trabalho

das pessoas. Sai de casa e fui numa loja que vende material de jardinagem. Isso

eu cheguei lá umas 10:00 horas da manhã, e aí chamei um vendedor, e comecei

245

a perguntar sobre a planta tal, o adubo tal, como era que se plantava, como era

vendida, se tinha nota fiscal, se eu comprasse em grande quantidade qual seria o

prazo de entrega, isso tudo. Eu passei o dia lá, acabei ajudando o homem a cuidar

das plantas e só fui embora no começo da noite, quando o vendedor falou que eu

precisava ir embora porque ele precisava fechar a loja. Mas mesmo assim ainda

fiz ele me levar na casinha do cachorro para saber se eles davam comida e água

para o animal e se ele não sofria maus tratos. Bom! Não satisfeita, eu sai andando

e fui entrando num bairro que não me lembro o nome agora, mas é como se eu

tivesse apagado da mente, porque depois lembro do meu marido chegando e

pedindo para eu ir embora com ele. Eu estava em uma favela conversando com

traficantes e convencendo eles de que a vida de bandido não compensava. Hoje

eu sei que eles foram bons comigo, e devem ter tido pena de mim, e aí viram que

eu não estava bem, pegaram meu celular e ligaram para o meu marido. Quando

cheguei em casa, eu não lembrava bem tudo que eu tinha feito. Eu só lembrei

depois. Fui novamente para o hospital mental, mas me recusei a ser internada e

jurei que iria tomar meus remédios (informação verbal).36

Margarida, depois da primeira internação no Hospital Psiquiátrico e de

sucessivas Crises, foi encaminhada ao Caps Iracema em 2008, pois o

ambulatório de psiquiatria desse hospital havia fechado. Ela relata que chegou

na unidade para atendimento com medo de ser internada, mas ficou aliviada

de saber que naquela instituição o tratamento era diferente. Foi recebida por

um profissional que conversou com ela, abriu seu prontuário, explicou toda

forma de tratamento e decidiu em conjunto com ela seu plano terapêutico, o

qual se compunha de um conjunto de atividades que envolviam as consultas

médicas, psicoterapia e terapias grupais.

No Caps Iracema, Margarida foi reavaliada pelo médico psiquiatra que

diagnosticou transtorno bipolar, que é um adoecimento psíquico no qual

o usuário tem constantes variações do humor e dificuldades de controle

de suas ações de alegria/euforia e tristeza/depressão, para o qual um dos

36 Entrevista – Usuária de Terapia de Base Ancestral, realizada em 9 dez. 2012.

246

tratamentos é a medicalização com estabilizadores de humor. Margarida

também refere que por conta da política antimanicomial da instituição

nunca mais foi internada em hospital psiquiátrico e só teve uma crise de

depressão nesses anos que está no Caps. Segunda ela, nas atividades e nos

grupos terapêuticos, aprende-se a lidar com o sofrimento mental, o que ela

consegue fazer atualmente, reconhecendo quando começam os sintomas de

euforia, mania ou depressão.

Em 2011, Margarida tomou conhecimento da Terapia de base ancestral com

plantas e ervas e solicitou ao médico a sua inclusão nesse tratamento, no qual

ela participa a cada 15 dias, por que há uma demanda muito grande pelas

sessões e existem usuários que precisam realizá-las semanalmente, não

sendo este o caso dela. Margarida também compreende que essa atividade

terapêutica não vai resolver ou curar o seu problema de bipolaridade, mas

depois do tratamento das plantas e ervas, ela tem diminuído o uso de

ansiolíticos, os quais ela particularmente não gosta de tomar, por causa dos

efeitos colaterais que sente. Margarida é uma assídua frequentadora dos

grupos do Caps e da terapia de base ancestral, vindo com regularidade ao

tratamento e incorporou em seu cotidiano o uso de chás, sementes e ervas.

Para ela saber se, usando produtos naturais, há esperança de que um dia ela

possa não ter que tomar mais o estabilizador de humor (carbolitium).

Destarte, a inserção dessa Terapia de base ancestral no Caps Iracema foi

legitimada pelos usuários, pelos familiares e também pelos profissionais,

criando um contexto que contribui de forma efetiva para uma diminuição

na intensidade no uso de medicação psiquiátrica por parte da população.

E, por outro lado, o estudo de pesquisa oportunizou escutar esse sujeito

247

andarilho das estradas da saúde mental, em sua relação com o universo

das práticas terapêuticas de base ancestral, seus relatos e expressões de

seu sofrimento mental e os significados produzidos na interação com uma

terapêutica de base filosófica complexa, advinda de um universo de matriz

africana como os Terreiros de Candomblé no terreno da saúde mental que

é um campo amplo de diversidades ideológicas, políticas, epistemológicas,

técnico-metodológicas e terapêuticas.

Todavia, é importante salientar que saberes e práticas ancestrais africanos

podem estar dialogando com a saúde mental e as contribuições do

Terreiro de Candomblé estão na forma não segregativa, não apartada,

não fragmentada de compreender todos os elementos que constituem

a vida material e o reconhecimento de uma dialogicidade com o mundo

imaterial/ancestral, como forças da natureza. Por isso, o que diferencia o

referencial filosófico de matriz africana são as possibilidades inclusivas de

todos os elementos, como nos diz Oliveira: “o que há são possibilidades

diferenciadas de arranjos sociais, culturais, etc., sempre flexíveis, sempre

possíveis de novos arranjos”.

O que existe são várias facetas que compõem uma mesma rostidade

(chamaria também de identidade), um mesmo organismo. Vale o princípio da

inclusão!” ou seja, esse pensamento filosófico no campo específico da saúde

mental fará emergir uma abordagem terapêutico-metodológica que encerra

em si um olhar diferenciado sobre o sofrimento, sobre o adoecimento,

sobre o cuidado, sobre o acolhimento, sobre a saúde, sobre o tratamento,

ressignificando o conceito de humanização, pois no paradigma ancestral

africano não se adoece sozinho, também não há cuidados sozinho, em tudo

248

existe e exige-se o coletivo.37

Outra contribuição significativa para a saúde mental está na concepção de

corpo humano (Ara ènia) como o concreto, a carne, os ossos, os músculos, os

nervos; é a forma física dessa corporeidade em conjunto com a respiração

(Èmí) que é o sopro divino no corpo humano, é a expressão da vida. Dentre

os órgãos, a cabeça interior (Orí Inú) é a essência da personalidade, é o ser

espiritual. Esses elementos integram e formam o Ser Humano, que nunca

é visto ou tratado por partes. Tratam-se as partes pelo entendimento do

funcionamento do todo, trata-se o todo para atingir todas as partes. Eis como

é concebido o corpo o humano.

Isso vai ensejar outra epistemologia sobre o corpo, a doença, os tratamentos.

Diferente da concepção ocidental que vai repartir, retalhar, fragmentar esse

corpo humano, apartando-o da dimensão ancestral/espiritual. Os saberes

e práticas de cuidado e tratamento em saúde mental dos Terreiros de

Candomblé vêm, nessa perspectiva, colocar-se como possibilidades reais de

atuação no campo da política pública brasileira. Bastando-nos, pois, ampliar o

olhar, abrir o coração, permitir nossa mente compreender outros universais

paradigmáticos para a saúde mental.

37 OLIVEIRA, 2003, p. 116.

NARRATIVAS SOBRE SAÚDE NA VISÃO DE ADEPTOS

DO CANDOMBLÉ DE ANGOLA NA BAHIA.

João Reis da Cruz Santos

Neste artigo objetivamos discorrer sobre a visão de saúde dos adeptos

do Candomblé de Angola da cidade de Salvador-Bahia. Para isso, foram

realizadas entrevistas com diferentes lideranças religiosas dessa Nação, os

quais demonstraram em suas narrativas que a compreensão sobre saúde é

indissociável do entendimento sobre a Vida e as condições necessárias que

mantêm os seres em atividade desde o nascimento até a sua decomposição,

quando partem para outra existência na natureza.

Os entrevistados revelaram que o equilíbrio das pessoas que os procuram

encontra-se na natureza. De onde retiram muitas de suas tecnologias

de tratamento, cujo conhecimento foi transmitido de geração a geração

oralmente. O estado de equilíbrio é também resultado da interação da pessoa

com as energias presente na natureza que podem habitar no humano, das

múltiplas ligações entre as forças visíveis e invisíveis.

As comunidades do Candomblé Angola em Salvador constituem herança

do legado cultural do continente africano e indígena do território brasileiro.

Existiram trocas culturais entre a população autóctone que residiam

250

no Brasil antes da chegada dos portugueses e o grande contingente de

populações africanas vindas forçosamente em consequência do tráfico de

escravos.1

A CULTURA E A TÉCNICA

É inquestionável o fato dos povos africanos vindos para o Brasil ser

conhecedores de diversas técnicas. José Sant’anna Sobrinho afirmou:

“[...]os primeiros escravizados africanos, pois, além de ser uma mão de obra

mais especializada (agricultores, comerciantes, ouvires e pescadores) o lucro

com o tráfico era mais rentável para os traficantes e para a coroa portuguesa”

[...]2

As culturas perpetuam a técnica, tanto em termos de significado e ato de

fazer algo. Ela constitui a realidade do indivíduo e do grupo ao qual pertence.

A realidade é formada pela vivência cultural dos diversos grupos que

compõem a sociedade. De acordo com Vannuchi, “tudo que é produzido

pelo ser humano é cultura.” A cultura é a base para compreender e ser

compreendido, qualquer forma de conhecimento humano ocorre na cultura,

reformula e renova-se nela. A cultura se realiza no ambiente em que os

indivíduos se encontram.3

A realidade não se confirma plenamente sem se conhecer a cultura, suas

1 Existem diversos estudos sobre o tema a exemplo: RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005 (420 p), VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de todos os santos, século XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987.

2 SANT`ANNA SOBRINHO, José. Terreiros Egúngún : um culto ancestral afro-brasileiro. Salvador:EDUFBA, 2015.

3 VANNUCHI,Aldo. Cultura Brasileira, o que é, como se faz, São Paulo, Ed. Edições Loyola, 1999.

251

singularidades que tornam o ser humano reflexivo. Esta compreensão da

realidade depende dos aspectos culturais implícitos da organização do grupo

ao qual o indivíduo pertence. O indivíduo reflete e transmite a realidade cultural

ao seu grupo e este comunica a totalidade das culturas ocultas apreendidas,

compreendidas e repassadas a outrem. Só a cultura possibilita a existência

particular do grupo e traz à baila a verdade e o entendimento das nuances

culturais postas. Não há cultura sem cérebro humano (aparelho biológico dotado

de competência para agir, perceber, saber, aprender), mas não há mente (mind),

isto é, capacidade de consciência reflexiva e pensamento, sem cultura.4

Nesse sentido, a realidade cultural do outro ocorre quando qualquer um dos

sentidos se comunica. A cultura sempre encontra um meio de se reelaborar

sem perda da sua essência. Os avanços e retrocessos da humanidade se

dão na cultura. Pensar a realidade de qualquer grupo não se distancia do

perceber depurado do meio social onde se encontra o contexto da cultura

ao qual pertence, a forma pela qual compreende a natureza, inclusive suas

similaridades em relação a outrem.

Os seres humanos concedem formas e estão dentro de uma teia de

significados que estes construíram. Parafraseando Geertz (1987), o homem

está amarrado a teias de significados tecidos por ele próprio e a cultura. Na visão

do autor, a cultura é definida como um conjunto dessas teias socialmente

estabelecidas, uma ciência mais interpretativa à procura de significados do

que uma ciência experimental em busca de leis. Ademais acrescenta ser

a cultura uma evidência do meio ambiente onde as pessoas convivem. “A

4 MORIM, Edgar,Os sete saberes necessário á educação do futuro. São Paulo : Cortez; Brasília, Df : Unesco, 2000 ,p 52.

252

cultura é pública porque o significado o é”.5

As particularidades das diásporas africanas é parte integrante da realidade

e do legado cultural do Candomblé de Angola, assim como é da cultura

nacional brasileira. Esse ensaio sobre concepção de saúde e o lidar com

as enfermidades que atribulam a vida das pessoas é também um caminho

para avançar nas descobertas da cura, uma vez que, nesses espaços existem

conhecimentos ainda não conhecidos pela academia para a prevenção de

certas enfermidades humanas.

TÉCNICA - FRUTO DA OBSERVAÇÃO HUMANA X A PERFEITA

HARMONIA COM A NATUREZA

A técnica amplia a ação humana na natureza e é o fruto do convívio com o

meio natural. O humano reflete e desenvolve suas habilidades ampliando sua

capacidade de efetuar coisas. A alavanca é a extensão do corpo do homem para

agir no meio natural, diagnosticar e mudar a realidade na mesma natureza.

O saber encontra-se disponível no meio natural e aprimora suas habilidades

quando identificado.Segundo Demócrito de Abdera “o homem é um eterno

discípulo da natureza, é neste círculo que se encontra a aprendizagem. Dessa forma, o

aprendizado vem da relação com o natural e cultural”. “Nas coisas mais importantes

somos discípulos dos animais; da aranha no tecer e remendar, da andorinha no

construir, e das aves canoras, o cisne e rouxinol no cantar; e tudo por imitação”.6

Para melhor compreensão, podemos exemplificar: quando o médico utiliza

5 GEERTZ,Clifford.A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

6 BORNHEIM, Gerd. Os Filósofos Pré-Socráticos, São Paulo: Cultrix,1972.

253

o estetoscópio amplia sua audição, o microscópio amplia sua visão para

diagnosticar a enfermidade, o aparelho nada mais é do que a extensão

dos seus sentidos. Quando pegamos o ônibus, o veículo que é construído a

partir das mais variadas técnicas não é nada mais nem nada menos do que

a extensão do corpo do motorista que o conduz, um corpo transportando

vários corpos, provavelmente o motorista só transportaria sobre o seu corpo

uma única pessoa, contudo, com o ônibus leva diversas outras.

Milton Santos afirmou que “É por demais sabido que a principal forma de

relação entre o homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio, é dada

pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com

os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço. Essa

forma de ver a técnica não é, todavia, completamente explorada”.7

As tecnologias são alavancas para a humanidade e não a humanidade para

elas. Não podemos inverter estes papéis, as alavancas têm as funções de

ampliar as capacidades humanas de produzir, diagnosticar, identificar,

reparar e de manter as diversas possibilidades da vida.

A aprendizagem humana da técnica vem do senso comum e sua sistematização

é construída aos poucos, considerando que as formas de sistemas também

têm origem no senso comum. O “senso” é a faculdade de sentir ou apreciar

através dos sentidos, assim como o “comum” é o feito em comunidade ou

sociedade. Para compreender isto basta conhecer os significados das duas

palavras. Os Religiosos das comunidades tradicionais do Candomblé de

Angola argumentam com seus conhecimentos baseados na visão de que na

7 SANTOS, Milton, A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed.São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

254

natureza existe tudo para equalizar o humano. A natureza não está fechada

em um laboratório, mas o ser humano está dentro da natureza.

Nas terapias utilizadas por representantes das comunidades religiosas dos

Candomblés de Angola entrevistados, as técnicas utilizadas para manter a vida

inclui a manipulação do vegetal, do mineral, das cores, das folhas, dos frutos,

das terras e dos animais, todos estes colhidos da natureza. Segundo Rubens

Alves, “A aprendizagem da ciência é um processo de desenvolvimento progressivo

do senso comum. Só podemos ensinar e aprender partindo do senso comum de

que o aprendiz dispõe”. Esse conhecimento técnico utilizado nos Terreiros de

Candomblé de Angola além de servirem para a cura também orientam as

pessoas a se relacionarem com as energias presente no meio natural8

Os métodos milenares de cura trazidos do continente africano adaptados aos

conhecimentos indígenas foram preservados nas comunidades religiosas

afro-brasileiras, bem como, transmitidos não somente através de sua

tradição oral, mas também através da convivência com suas lideranças. Tal

aprendizado não somente ensina as técnicas, mas leva o aprendiz a refletir a

forma como se procede a cura. O processo de educação é cotidiano.

CONCEITO DE NKISI, ORIXÁ, CABOCLO

E ESPÍRITO NA VISÃO DOS RELIGIOSOS

Antes de explanarmos as narrativas sobre o cuidar das pessoas, é necessário

8 ALVES, Rubens, Filosofia das Ciências, introdução ao jogo e suas regras, 12° Edição. São Paulo:Loyola,2000.

255

tornar evidente o que os representantes descrevem como Nkisi, Orixá,

Caboclo e Espírito.

Conceituaram os líderes religiosos do Candomblé de Angola entrevistados que

o Nkisi é a energia que designa o vigor, a firmeza, a força, a ação e o movimento

que está sob a vontade de Deus, mas age independente da vontade humana, é

a interação da natureza com o ser humano. Vejamos os relatos:

Tata Talamonako: - Nkisi é energia, Nkisi é a natureza, é água, é fogo, é ar, é terra, o Nkisi vem da natureza. (...) - Como é isso do Nkisi que sai da natureza e ocupa o corpo de uma pessoa? - (...) a energia vem a você e você fica dominado como se ela estivesse agindo em uma lâmpada, (...) -- Isso causa algum dano? -(...) isso não causa nenhum mal à pessoa, pelo contrário, eu vejo que a manifestação é uma coisa que abre a sua aura9.

MakotaValdina: Nkisi são energias da natureza, fenômenos da natureza que estão aí interagindo com a gente, que a gente cultua no Angola, uns chamam entidade; eu prefiro dizer que são as forças, as energias da natureza e equivale ao Orixá na recriação que fizemos aqui, mas não tem tanta conotação dos Orixás como tem as lendas e mitos. Nkisi não, Nkisi é algo mais ligado à natureza mesmo, representação da gente, é ligado às matas, terra, água, ao ar, ao fogo, aos fenômenos naturais.10

MametoAnjuale: O Nkisi é o Orixá, é Angorô, Angoromeia, Oxumarê, Dandalunda, Mutalambo, Oxossi, são a mesma coisa. O Nkisi é igual ao Orixá, quem vê, sabe que está ali e sabe quem é água, quem é terra, o ver não ficou para todo mundo, nem todos têm a visão, tem de ver na consciência, nos búzios, na água, nas pedras, quem vê Ogum sabe que é Ogum. É uma energia solta, ninguém sabe para onde vai ou de onde vem, é uma energia que passa na pessoa11

9 Entrevista com Tata Talamonako (Sr. Manuel Cremilton da Cruz), Sacerdote doTerreiro Tumba Jussara. Aura: força espiritual invisível que acompanha os indivíduos.

10 Entrevista com MakotaValdina (Sra. Valdina Oliveira Pinto) Sacerdotisa dos TerreirosTanuri Jussara e OnzóOnymBoya

11 Entrevista com ManetoAnjuale (Sra. Maria de Lourdes da Cruz Santos), Sacerdotisa do Terreiro OnzóAngorô.

256

Tata Kewaanze: (...) de acordo com o conceito de sagrado para o povo Bantu, onde ‘Nzambi é o ser supremo, o divino e ‘Nvumbi é a energia que emana da vida e dá vida ao corpo, ‘Nkisi são seres semi-divinizados, a ligação entre os humanos e o divino supremo (..). O que realmente o povo Bantu venera são as indomáveis forças da natureza.12

Tata MutaEmî:(...) Nkisi para mim é tudo que se movimenta, tudo que tem

vida (..) Nkisi é a vida em movimento (..) é vida (..) são os elementos da natureza

tudo isto desdobrado. (..) Nkisi é uma relação direta com a natureza (..) com

cada força da natureza.13

Todos os entrevistados conceituaram que Nkisi é uma energia da natureza.

Perpassa na pessoa e abre a sua aura. Para eles, é a força que está na Terra,

e esta “escolhe” as pessoas para incorporar. Tudo isso ocorre pelo poder que

Nzambi (Deus) conferiu ao Nkisi de interagir com o ser humano. O Nkisi pode

ser visto nos fenômenos naturais, fatos passíveis à observação, a exemplo das

trovoadas, relâmpagos e raios; enfim em tudo que compõe a natureza. Para os

religiosos, os Bankisi (plural de nkisi) transcendem, agem e vão além, produzindo

novo fenômeno ao entrar no ente, interagindo com tudo que existe.14

Há relação direta no entendimento do adepto do Candomblé de Angola

quando este escuta o som da água na cachoeira ou vê o rio correndo. Isto

remete de imediato ao NkisiDandalunda, Kisimbi e Lemba entre outros. Para

eles, o rio, a cachoeira, a chuva se encanta e habita no humano. Mesmo que

não consigamos compreender o entrosamento do adepto da religião com a

natureza, não poderemos negar que água sacia a sede, sendo indispensável

12 Entrevista com Tata Kewaanze(Sr.Raimundo Alberto Sousa Dantas) Sacerdote doTerreiro NdembwaKenã

13 Entrevista com Tata kuaNkisiMutaImê(Sr. Jorge Barreto dos Santos). Sacerdote do Terreiro de Mutalambo e Kanhogo

14 plural de ‘Nkisi

257

à sobrevivência humana. Esta consciência não ocorre só com a água, mas

com o sol, a lua, a terra, o ar, o vento, o fogo e tantas quantas substâncias da

natureza existam. José Rodrigues Costa afirmou que “Os inkises do angola

não são mitos. Ao contrário, são ligados aos encantamentos, fundamentos

de ordem mineral, vegetal e animal”. A conjugação das forças cósmicas e

telúricas que o tornam encantados15

Para Valdina de Oliveira Pinto:

“Nkisivem da raiz verbal kinsa- tomar conta, cuidar; é o que toma conta da

vida, cuida da vida. O termo Nkisi é sinônimo da palavra bilongo que significa

“remédio”. O Nkinsi neste contexto é sempre a essência, o conteúdo do futuro,

o pacote envolvido, enlaço, ligado por Kalunga, é somente a manifestação

do real poder da vida, secreto, misterioso, oculto dentro do futuro, dentro

da Terra. Este real poder de vida não pode, pela sua complexidade, ser

completamente entendido por nós porque não somos os embaçadores, os

ocultadores, os codificadores do futuro, da Terra16”

Ambos os pesquisadores descrevem Nkisi como “ente” que se manifesta no

Candomblé Congo/Angola, que é a essência da vida de cada ser na terra. Esta

é uma realidade palpável para o grupo do Candomblé de Angola. As narrativas

desses líderes religiosos entrevistados se coadunam com a percepção dos

pesquisadores citados sobre a percepção da comunidade religiosa.

Os Caboclos, segundo os religiosos, são entes que vêm da mata, associados à

religião indígena. Em Salvador, no mapeamento dos terreiros no ano de 2009,

realizado pela UFBA e Prefeitura Municipal de Salvador, foram identificados

15 COSTA, José Rodrigues. Candomblé de Angola: nação Kassanje; história, etnia, inkisis, dialetos, liturgia. 3.ed- Rio de Janeiro: Pallas, 1996.

16 PINTO, Valdina Oliveira, II Encontro de Nações de Candomblé ( 2: 1995: Salvador) Nação Angola, Anais. Salvador: Centro de Estudos Afro- Orientais,UFBA, 1997., p 118.

258

três terreiros que se definiram como genuinamente de caboclo, mas o ente

caboclo é cultuado tanto na nação Angola como em muitas casas da nação

Ketu, nossas indagações centraram-se em alguns Terreiros de Angola da

Cidade de Salvador, vejam os relatos dos representantes:

NenguaXagui“(..) Caboclo vem da Mata (...), Caboclo é Caboclo e Nkisi é Nkisi (...) solene é de espírito e dia de segunda feira eu entendo assim (...) giro que a pessoa faz terça feira, quarta, quinta é só de Caboclo eu entendo assim(..). Caboclo é Caboclo solene é solene(..),17

Tata MutaImê (..) Caboclo não tem lei, ele fala mesmo as coisas(..), “Caboclo fala o que quer!”(..)

MakotaValdina: (..) os Caboclos a gente associa aos indígenas, os Caboclos são entidades que a gente cultua, não são entidades da África. Os Caboclos para nós são entidades brasileiras, são ligados aos ancestrais de povos brasileiros aqui encontrados pelos brancos e pelos negros.

Tata Kewaanze: (...) o conceito de divindade que temos a respeito da inclusão do Caboclo como sendo a única entidade genuinamente brasileira no panteão das entidades sagradas do Candomblé. (...)

MametoAnjuale: “(...) e para o Caboclo é feito de forma diferente, se fossem iguais tudo seria igual(..)”.

Para os entrevistados, o Caboclo é sublime, é uma entidade sem mistura

nem alteração; puro e genuinamente brasileiro, vindo da mata. Em um dos

cânticos de cerimônia de Caboclo tem-se:

Sou brasileiro, Sou brasileiro,

Sou brasileiro o que é que sou?

17 Entrevista com NenguaRya NkisiXangui (Sra. Carmelita Luciana Pinto) Sacerdotisa do Terreiro Tumbanssé.

259

Eu nasci foi no Brasil sou brasileiro, o que é que sou?

O cântico caracteriza o que proferiram os entrevistados, Caboclos não são

entidades africanas e não são espíritos. Mameto Anjuale acrescentou que “O

espírito de gente é diferente de orixá e Nkisi e de Caboclo. As celebrações

são diferentes; para um Vumbe é um tipo; para Nkisi ou Orixá é outro, e

o Caboclo é outro”. Acerca do assunto NenguaXagui, também informou que

“espíritos são de pessoas desencarnadas e se faz solene”, as homenagens

tributadas dentro desta estrutura religiosa definem também quem são seus

entes e como eles provêm o equilíbrio humano através da força da natureza18.

Já Luiz Sérgio Barbosa comenta “o deificado é o Orixá, o deificado pode ser

o Caboclo, que vem na Terra implantando o seu prodígio, cuidando das

pessoas”. Na argumentação de Barbosa tanto o Caboclo do Brasil quanto o

Orixá africano pode ser divinizado, entretanto, o autor mostrou-se confuso

quando definiu Caboclo enquanto espírito. Ao mesmo tempo em que afirma,

ele nega essa possibilidade, para Barbosa o Caboclo em dado momento é

um espírito e em outro é um Orixá. Esta forma de pensar não comunga com

a visão dos nossos entrevistados19

AS ENERGIAS QUE EQUILIBRAM E LEVAM O SER HUMANO

PARA O CAMINHO DA CURA.

Os membros da religião acreditam que a sua relação com a natureza os deixa

18 Espírito

19 BARBOSA,Luiz Sergio. II Encontro de Nações de Candomblé(2: 1995: Salvador) Candomblé de Caboclo e FEBACAB, Anais. –Salvador: Centro de Estudos Afro- Orientais da UFBA, 1997. 93p.il

260

sadios, conforme atesta em suas narrativas:

MakotaValdina: “(..) estamos sempre em processo de cura, mesmo

quando não estamos adoentados, (..) para nós, que somos de

candomblé, estamos interagindo o tempo todo (..) seja no candomblé

ou não, seja em uma festa ou não, em um ritual ou não(..) se você

tem contato com a mata (..), se você tem contato com a água (..).

Tata Talamonako “- Para ter a cura, alimenta-se o ancestral ou o ponto

negativo de quem está sofrendo naquele momento, (..) a alimentação é um

milongo20(...) para aquele ponto negativo (..) para se ter equilíbrio (...), porque

se estiver com desequilíbrio a tendência da negatividade é aumentar (...), se

estiver com uma perna só você está desequilibrado, (..) se a cabeça estiver

mais forte que os pés há um desequilíbrio, (..) estiver com o lado mais forte

que o outro está desequilibrado (...) - o que fazer ? (...) o que é o milongo? (..)

É alimentação daquela área onde está desequilibrado por um espírito ou uma

doença do mundo, tem de procurar alimentar o ponto que está negativo (..)

este ponto pode ser descendente ou ascendente(..), se for na cabeça muito

ascendente tende à loucura (...), se os pés estiver fraco a tendência e arriar,

fica sem poder andar (...) a cabeça não pode ficar forte e os pés fracos ( ...) tem

de alimentar aquilo que está desequilibrado (..) tudo que se faz é um milongo

(..) se um espírito está atrapalhando é um milongo que resolve (...), tudo que

se faz na natureza para o equilíbrio é um milongo (..), a saúde é o equilíbrio, a

doença é o desequilíbrio (...), quando se come uma comida que faz mal, tende

a tomar remédio para equilibrar (..), se for uma topada no pé tem de tomar

remédio (...) tudo que se faz na vida para sobrevivência é um milongo(...)

NenguaXagui comunica que “(...) envelhecer não é adoecer” “(..) uns morrem

novos, outros morrem velhos(..)”, (..)cada qual tem um dom, (..).

Tata Anselmo “Saúde é vista de diversos aspectos, ela não é só saúde mental,

corporal. É um complexo de fatores que a constitui”... “Saúde é o estado de

felicidade plena”....“Saúde é estar em equilíbrio com e na natureza”.....“ É

necessário estar em pleno bem-estar corpóreo para estar com a força da

natureza”.21

20 Milongo” ritual para equalizar a pessoa enferma (oferenda ). Também traduzido como remédio

21 Entrevista com Tata Anselmo (Sr. Anselmo José da Gama Santos), Sacerdote do Terreiro de Mocambo.

261

O ponto de equilíbrio na concepção dos entrevistados é algo que mantém

estável o ser humano, para tanto, o ritual de purificação denominado milongo

é utilizado para estabilizar a pessoa. Na reflexão de Tata Talamonako, a saúde

seria o equilíbrio e a doença, o estado de enfermidade. Já a religiosa Nengua

Xagui comunica que envelhecer é o processo natural, mas isso é diferente

do adoecer. A doença pode causar inúmeros transtornos, a exemplo, pode

reduzir retirar ou atrapalhar a capacidade de refletir, mas envelhecer é o

processo natural pela qual todas as espécies passam.

Na leitura dos representantes, as celebrações também funcionam como

estabilizadora, promovendo o equilíbrio das pessoas envolvidas. Tanto

quanto nos atos dos rituais de purificações (limpezas), que são caminhos

pelos quais se levam a atingir a cura, seja através da música, no manuseio

das folhas, na alimentação, na utilização das cores, frutos e em tudo que a

natureza disponibiliza para manter o equilíbrio humano, sob a orientação do

Nkisi ou Caboclo.

Para ilustrar nosso raciocínio sobre os caminhos para a cura através da

natureza, descreveremos o relato de Mameto Anjuale sobre o acidente que

ocorreu entre seus filhos ainda criança na Cidade de Valença- Bahia no ano

de 1966.

Ela comentou que seu filho DAS, com a idade de aproximadamente onze anos,

pegou uma lata de manteiga comprida e a encheu de cera de vela e tocou fogo

para a cera derreter. Seu outro filho JRCS, na época com aproximadamente

quatro anos, enfiou o pé na lata cheia de cera em chamas, ressalta que tinha

três dias de parida e quando conseguiu apagar o fogo e retirar o pé da criança

262

da lata, a queimadura estava profunda. Nesse momento, o Nkisi Dandalunda22

pegou a criança e mandou que cobrisse o local da queimadura com limo de fonte

durante sete dias para que o pé da criança JRCS fosse recuperado. Além disso,

após sete dias dever-se-ia cobrir o pé com nata de leite de gado até cicatrizar

totalmente e, desta forma, se procedeu, e o pé da criança ficou curado, apenas

restaram marcas da queimadura. Hoje seu filho está com 53 anos.

O Tata Kaiti relatou que uma noite estava quase dormindo, quando

sua mãe o chamou e disse: seu  tio está aí, pois o seu primo encontra-

se ensandecido. E o mandou para lá com banhos de ervas para tentar

resolver o que estava ocorrendo com o seu primo. Para Kaiti seu primo

tinha bebido e por isto estava com qualquer mal, cabendo mais levá-lo

ao hospital do que o acordar. Entretanto, ao chegar à casa do seu primo

verificou que o mesmo estava amarrado no quarto com três homens em

sobressalto,  sentiu que havia uma “energia intensa  que era maior que

o próprio quarto”, algo como um campo magnético de uma subestação

de eletricidade e ali estava o seu primo submerso naquilo.  Assim pode

constatar que se tratava de algo além de um simples mal-estar, mas algo

indeterminado que o acometia.  

A reação de Kaiti foi sair de dentro da casa e se entregar a todas as forças  da

natureza. Em seguida se dirigiu ao quarto e derramou o banho que havia levado

sobre o primo, o mesmo gritava: “isto não!”; e o primo voltou a si lentamente

na medida em que o banho caia sobre sua cabeça e corpo. Confessou que

ficou assustado e receoso em soltá-lo, mas o fato do primo ter reconhecido

22 Energia da água

263

as pessoas ali presentes estimulou desatá-lo das cordas  que o prendia. O

primo encontra-se curado até hoje daquele mal que o acometeu.

A Mameto Mesoeji declara que já curou, no seu terreiro, o seu vizinho que

estava para operar do estômago. Ela o tratou com chás da folha de Kavungo23

também conhecida por Canela de Velho. Indagada sobre outros casos da cura

no candomblé ela contou que ao nascer tinha enfermidade por todo o corpo,

algo semelhante à lepra, e sua Mameto de Nkisi DereLubedi após consultar

o oráculo sobre o assunto resolveu recolhê-la24 junto com a sua mãe, que

também já estava recolhida no terreiro. Os mais velhos relataram que ela

dormira em folha de bananeira umedecida com azeite e que a criança foi

recolhida para o Nkisi. Com sete dias já estava curada, a entrevistada declara

que vive com saúde até os dias atuais.25

Nos quatro relatos, percebemos a utilização da matéria natural tirada da

natureza e utilizada diretamente na pessoa que sofria de enfermidade

imposta. Os tratamentos contêm no seu bojo tecnologias para curar a

enfermidade instalada e são atrelados aos rituais de cura. Na visão dos

adeptos do Candomblé de Angola este conjunto de métodos, técnicas e

instrumentos faz parte de um conhecimento tirado da própria força da

natureza, que se encantou e habitou no humano para ensinar a cura. O

tratamento é executado por outro sobre direcionamento prévio da força da

natureza, os Nkisi e/ou os Caboclos.

23 Energia da terra.

24 Quando uma pessoa é recolhida no Terreiro de Candomblé significa que está em processo ritualístico que pode incluir uma iniciação.

25 Entrevista com Mameto de NkisiMesoeji (Sra. Iraildes Maria da Cunha), Sacerdotisa do Terreiro Tumba Jussara.

264

Para os povos tradicionais de Candomblé os vegetais, os sons e os ruídos da

natureza podem ser manipulados para promover a cura sobre a orientação

do Nkisi. Está implícito na cultura dessas comunidades religiosas que podem

cuidar das pessoas com matérias primas de origem vegetal, seja através

de banhos, chás, infusões com uso de uma ou várias espécies de plantas.

Comenta Moacir Rigueiro que “toda planta tem no mínimo um princípio ativo,

que é a substância responsável pelo efeito curativo”.26

Ademais, conceitua os representantes religiosos que a natureza, aqui

definida com Nkisi cuida da vida humana através das suas qualidades. As

energias que circulam pela terra estão em uma constante troca, sejam

os minerais, vegetais e, cada alimento ingerido e/ou banho tomado pela

pessoa enferma, interage com a natureza independente da percepção

dessas trocas.

A apreensão das maneiras de cura experimentadas e/ou ministradas pelos

religiosos do Candomblé de Angola ainda se fazem identificar nas canções

rituais. Transcrevo abaixo alguns trechos de uma canção religiosa entoada

em celebração de Caboclo.

Abre-te campo formoso.

Cheio de tanta alegria.

Cheio de tanta alegria,

Eu vim saudar Sultão das Matas e toda sua família E toda sua família.

Observar-se que todos os participantes cantam na primeira pessoa do singular

26 RIGUEIRO, Moacir Pezat. Plantas que curam. Manual Ilustrado de Plantas Medicinais. 4a ed. São Paulo: Pulus Editora, 1992.

265

“Eu”, e é, naquele momento, protagonista da celebração, independente de

quem tenha iniciado o cântico. É como se as pessoas participantes do ato

tivessem produzido por si e para si a celebração, e é este nível de envolvimento

que o ente Caboclo se apresenta.

Antes de descrever a apresentação do Caboclo, vamos tentar esmiuçar o

cântico que escolhemos. A canção afirma que está em um campo formoso

cheio de alegria: “Abre-te campo formoso cheio de tanta alegria...”. Ao

adjetivar o “campo” como “formoso” indica-se que é um lugar de formas,

feições, aspecto agradável e completo como espaço, é cheio de alegria; nada

mais é do que um local de sinais de alegrias e louvores. E para o ente não há

um chamado porque ao afirmar: “vim saudar...” nenhum ser é chamado para

ser saudado, saudar em celebração requer presença, é diferente de chamar;

constata-se desta forma que o ente homenageado encontra-se presente

com a família, a qual também é convidada para participar daquele momento

de bem-estar humano. É o individual dentro do coletivo. Dá-se o aspecto de

festa de congratulação.

Após esta saudação voltamos à apresentação do Caboclo, ele canta:

Eu venho só, sozinho sou eu,

Eu venho só da Aruanda, meu Deus

E a comunidade responde:

Só, só eu venho só,

E ele continua:

Quando eu venho da Aruanda, eu venho só.

Analisando a estrofe da canção, há cumplicidade da comunidade ao

266

responder: “Só, só, eu venho só”. A nosso ver “estar só” também pode ser

procura ou receptividade. As evidências atestam que é em um ambiente

com sonoridade produzida pelas pessoas que cantam, assim como pelos

instrumentos de percussão e cordas.

Durante a celebração, a música parecia contagiar cada indivíduo participante,

que se colocava no centro de todo ato, era o Eu cantado que envolvia e

contagiava a todos, tornando-os receptivos à procura de algo que os gestos

denunciavam e passavam a fazer parte da celebração através das canções

incorporadas como suas. Edgar Morin comenta: Eu diria, portanto, que a

primeira definição do sujeito seria o egocentrismo, no sentido literal do termo,

posicionar-se no centro de seu mundo. De resto, o “Eu”, como já observamos

várias vezes, é o pronome que qualquer um pode dizer, mas ninguém pode dizê-

lo em meu lugar. O “Eu” é o ato de ocupação de um espaço que se torna centro

do mundo27

O pronome da primeira pessoa do singular traz em si diversas cargas do

conhecimento em cada pessoa participante e a canção aflorava e arvorava

no indivíduo o seu pertencimento. O cantar “Eu”, desdobrava em diversas

possibilidades de sensação ou sentimentos. Essa simples coparticipação no

cantar em cerimônias como esta, entre outros atos rituais, constitui diversas

formas de terapia utilizadas pelas comunidades do Candomblé e que

potencialmente podem livrar seus crentes de enfermidades. É esta forma

de tratamento que as estruturas ocidentais não certificam, não conferem

chancelas, mas que são vivenciadas por quem as procura. A discussão aqui

27 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand,2003.

267

posta vai além de um estudo sobre a divindade, seus atributos, relações com

o mundo e com os homens ou a busca da verdade religiosa.

Nossa discussão fala de experiências vivenciadas por adeptos e participantes

da religião declaradas e/ou observadas durante alguns rituais. Um exemplo

desses casos ocorreu com a mãe de uma criança de aproximadamente 3 (três)

anos que declarou que o seu filho sofria de insônia há dias, entretanto, após

alguns instantes de participação no ritual o menino adormeceu. Todo aquele

ambiente musical funcionou como acalanto e cura para aquela criança. O

Referencial Curricular Nacional para a educação infantil (1998) afirma: “Os

acalantos são entoados pelos adultos para tranqüilizar e adormecer bebês e

crianças pequenas”. Naquele ambiente cerimonial, os presentes atestavam

através do canto, o seu pertencimento àquele espaço. Neste ambiente, a

família é vivenciada pelo condutor do processo - o Caboclo - e através do

seu cântico desperta e traz a presença do conjunto de elementos que faz as

pessoas aumentarem sua interação.

As propriedades sonoras do canto do Caboclo ou para o Caboclo, tais como

discutidas nos parágrafos anteriores, como: o acalanto, a cura, o sentimento

de pertencimento a família, a alegria, entre outros, indicam que os rituais

oferecem tranquilidade à vida, à alma, aquilo que faz o corpo deixar de ser

corpo para ser humano. Os entrevistados acreditam que nos rituais acontece

a manifestação da própria vida através da energia da natureza, assim como

se dá o pertencimento do eu ao tronco da família. É nesse ambiente que

ocorrem trocas entre os seus e os outros, onde os presentes percebem-se

na localização espacial, compreendem de onde vêm, a que espaço cultural

pertence e aonde pode ir com plena consciência.

268

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que saúde é muito mais que ausência da doença, é bem-

estar corpóreo. Saúde para os entrevistados, como vimos, é a harmonia

com a natureza, consequentemente a congratulação com o todo. As formas

de entrosamento na comunidade de Terreiro de Candomblé de Angola se

baseiam em tecnologias, cujas chancelas não são ocidentais, mas legitimadas

por métodos de convivência com a natureza.

As narrativas dos adeptos de terreiros indicam que não existe saúde sem

antes a consciência da vida. Nas suas entrevistas demonstraram que são

cuidadores da vida.

Suas reflexões estão à frente da visão individualista da vida, desgarradas das

definições que postulam meras questões legais, sociais e econômicas em

detrimento da vida. Os relatos sobre a vida não se fechavam com a perspectiva

do mercado, a exemplo da Organização Mundial da Saúde-OMS: “saúde é

um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não simplesmente a

ausência de doença ou enfermidade”. Os religiosos trouxeram da convivência

no terreiro um pensar profundo e simples sobre o entendimento da vida,

estruturado em ensinamentos dos seus ancestrais africanos e indígenas

transmitidos através da tradição oral e da convivência com os mais velhos.

A vida é ameaçada todos os dias com os modelos mercadológicos selvagens

e, em nome do mercado, criam-se paradigmas que prejudicam a saúde

pública. Essa realidade atravessa as fronteiras de qualquer nação. Sua forma

de produzir consumo não tem parâmetro ético-moral, a ganância é a base

principal, onde se produz doença e se vende cura. Enfermidades que muitas

269

das vezes são produzidas em laboratório por empresas pertencentes a

grupos de gananciosos internacionais, como denuncia Silvia Ribeiro em seu

artigo Influenza A Epidemia do Lucro.28

As descrições de cura neste ensaio não apresentam fenômenos de

forma isolada de toda a natureza, nem mesmo explicações mecânicas e

simplificadoras que não traduzem a realidade. Percebe-se nas declarações

dos entrevistados que a vida é muito mais que ausência de doença ou saúde,

Há um conjunto de fatores que contribuem para a existência da vida que

está para além do bem estar corpóreo humano durante o nascer, o crescer,

o envelhecer ou a transformação em outra forma de vida na natureza.

Acreditamos que há caminhos a serem seguidos, em primeiro lugar devemos

nos proteger das enfermidades impostas, ter postura de buscar equilíbrio

do meio natural, ou seja, viver de forma harmoniosa com a natureza e isto

significa que é necessário pesquisar, divulgar o modelo de se relacionar com o

cosmo afro-brasileiro presente no Candomblé de Angola. Em segundo lugar,

compreender que não há o fabuloso nem o que não tem existência no real, o

imaginário e o inventado. O importante é também deixar perceber que tudo

transcende como já fora comunicado, basta sair da leitura corriqueira de

qualquer fenômeno natural e se ver como uma célula do universo.

As formas de se cuidar da saúde das comunidades afro-brasileiras devem

ser estudadas e garantidas pelo poder público, tendo em vista que estes

conhecimentos pertencem à cultura nacional. Considerando que o Estado

28 RIBEIRO,Silvia. Comida Industrial. Influenza A Epidemia do Lucro. In: Revista Cidadania & Meio Ambiente, Publicação Câmara Cultura n° 20- 2009.

270

não se faz presente para uma grande maioria da população brasileira na

garantia da saúde, assim como as ações são tímidas tanto na política pública

como na pesquisa científica para o aprimoramento do saber colhido da

natureza que as comunidades tradicionais retêm. As formas culturais do

Candomblé de Angola de manter a saúde e, consequentemente, ampliar a

qualidade de vida das pessoas, podem ser ponto de partida para nova leitura

de fazer política pública para a saúde.

MEDICINA TRADICIONAL AFRICANA E SEGURANÇA ALIMENTAR E

NUTRICIONAL NOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ DA BAHIA

Denize de Almeida Ribeiro

Para a Organização Mundial de Saúde, Medicina Tradicional refere-se a um

termo amplo utilizado para se designar os diversos sistemas de práticas

tradicionais de saúde como: a medicina tradicional chinesa, ayurveda indiana,

medicina Unani árabe, e várias formas de medicina indígena e africana. Na

Medicina Tradicional utilizam-se drogas com base em ervas, partes de animais

e/ou minerais, e geralmente nenhum medicamento alopático, como no caso

da acupuntura, terapias manuais e as terapias espirituais. Nos países onde

o sistema de saúde dominante baseia-se em medicina alopática, ou onde

a Medicina Tradicional não foi incorporada no sistema nacional de saúde,

tal prática é muitas vezes classificada como “não convencional”, medicina

“complementar”, ou “alternativa”.

Em África até 80% da população utiliza a Medicina Tradicional para ajudar a

atender as necessidades de saúde de suas populações. Na Ásia e na América

Latina, as pessoas continuam a usar a Medicina Tradicional como resultado

de circunstâncias históricas e crenças culturais. Na China, a Medicina

Tradicional responde por cerca de 40% dos atendimentos de saúde. Nos

272

países em desenvolvimento, o seu amplo uso é atribuído a sua acessibilidade

e disponibilidade. Em Uganda, por exemplo, a proporção de pessoas que

praticam Medicina Tradicional contra o restante da população é de 1: 200 e 1:

499. Isto contrasta dramaticamente com as pessoas que utilizam a medicina

alopática, para o qual a proporção é de 1: 20.000 ou menos. A Medicina

Tradicional também é muito popular em muitos países em desenvolvimento,

porque está firmemente enraizada nos sistemas de crenças.1

A Medicina Tradicional praticada na Bahia é de matriz afro-indígena e ainda

se encontra viva nos terreiros de Candomblé. Isto porque a cultura baiana

tem como muitas de suas referências elementos originários da religiosidade

de matriz africana e muitos de seus símbolos são reverenciados como

peculiares da comunidade negra afrodescendente. Pois, o Candomblé da

Bahia procurou preservar elementos simbólicos das culturas africanas nos

seus mais variados aspectos, através da sacralização dos costumes, saberes

e práticas desta matriz cultural. Nessa religião, geralmente as mulheres

negras, em grande maioria, administram o espaço mítico, sagrado, religioso e

social, tendo em conta que o terreiro é, ao mesmo tempo, templo e espaço de

socialização, e hoje um território, historicamente reconhecido, de resistência

política. Essa resistência pode ser registrada em todo o processo histórico de

luta para a manutenção de seus cultos e até tornaram-se alvo de estudos de

muitos pesquisadores.2

Nos terreiros, os idosos (os seniores) têm um papel relevante na hierarquia

1 Relatório Mundial da Saúde. Organização Mundialda Saúde, 2005.

2 BRAGA, Julio. Candomblé: tradição e mudança. Salvador: Edições, 2006; LIMA, Vivaldo da Costa. A família de Santo nos Candomblés da Bahia: um estudo de relações intragrupais. 2a ed. Salvador: Corrupio, 2003; SANTOS, Joana Elbein. Os Nagô e a Morte: Páde, Àsèsè e o Culto Égun na Bahia. 10a ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1982; SERRA, Ordep. Águas do Rei– Salvador: Koinonia: Vozes, 1995.

273

de cada casa: os mais velhos são, muitas vezes, “doutores” nos saberes

que resguardam cifrados e preservados através dos símbolos sagrados

da religiosidade. Entretanto, para alguns, o Candomblé continua a ser

discriminado e geralmente se quer é visto como religião. Apesar do relevante

trabalho de inclusão, da população negra, das mulheres e dos idosos e

também da sua reconhecida atuação em prol do fortalecimento da identidade

e da cultura de matriz africana no Brasil, ainda assim, muitos adeptos do

Candomblé são invisibilizados e excluídos enquanto sujeitos de direitos.

Através de meu trabalho, na Secretaria Municipal de Saúde de Salvador

no período de 2005 a 2009, quando estive a frente da implantação da

Política de Saúde Integral da População Negra, conheci inúmeras casas de

Candomblé deste município e pude testemunhar diversas atuações de seus

representantes em defesa de uma série de questões políticas como: no

combate a intolerância religiosa; na defesa do meio ambiente e das águas; por

suas terras e territórios; contra a violência; em defesa das mulheres negras;

dos direitos da comunidade LGBT; pela saúde da população negra, entre

outras lutas. Neste trabalho de gestão política, pude contar inúmeras vezes

com o apoio dos terreiros de Candomblé da cidade, que me procuravam, ou

muitas vezes, mandavam recados de que queriam me falar.

Posteriormente, durante minhas pesquisas de mestrado e doutorado

junto aos terreiros de Salvador, percebi que tais instituições desenvolvem

variadas práticas de saúde e funcionam como espaços de cuidados tanto

para adeptos/as quanto para pessoas de diferentes classes sociais, raça/

etnia e religiões. Mas, vi também que tais práticas foram postas à margem do

sistema oficial de saúde, deslegitimadas por serem originárias da Medicina

274

Tradicional Africana e ditas sem comprovação “científica”. Meneses faz esta

mesma observação, quando analisa a situação de Moçambique, ao se referir

à construção do conhecimento científico moderno na Europa, ela afirma que

este se deu como sinônimo da missão de organizar e disciplinar as populações

autóctones por todo o território colonizado, ela diz:

O moderno empreendimento colonial português começou numa altura em

que a ciência deu uma nova força e legitimidade à política pública e colonial.

De repente, o conhecimento científico emergiu como um instrumento de

afirmação da superioridade portuguesa, uma mudança que transformou

os saberes do “outro”, com quem tinham estado em contato durante

séculos, em formas inferiores e locais de interpretar o mundo. As fronteiras

da civilização tornaram-se as margens de um sentido de ordem social

europeia, consequentemente, os nativos tornaram-se a própria encarnação

da desordem, simbolizada pelo seu sofrimento moral, degradação física e

mundo desordenado. Esta negação da diversidade das formas de perceber

e explicar o mundo é um elemento constitutivo e constante do colonialismo.

No entanto, e muito embora a dimensão política da intervenção colonial tenha

sido amplamente criticada, o ônus da monocultura colonial epistêmica ainda

é amplamente aceito como um símbolo de desenvolvimento e modernidade.3

Mas, pude perceber através da pesquisa também, que dentre as práticas de

saúde desenvolvidas e mantidas pelas religiões de matriz africana no Brasil,

a despeito da negação destes conhecimentos, tem destaque a utilização dos

alimentos e das folhas consideradas sagradas. No Candomblé, o alimento age

junto aos deuses como um veículo de comunicação em favor das pessoas,

em diversas situações de infortúnio, ou colaborando para a manutenção do

equilíbrio geral, da saúde do indivíduo e do grupo.4

3 MENESES, Maria Paula. Corpos de violência, linguagens de resistência: as complexas teias de conhecimentos no Moçambique contemporâneo. In: revista Crítica de Ciências Sociais, no 80, março, 2008,pp 161-194.

4 SERRA, Ordep. Águas do Rei– Salvador: Koinonia: Vozes, 1995.

275

Para a nutrição, o alimento é o fornecedor de nutrientes vitais. Então

cientificamente analisa-se cada parte de que é composta uma preparação e

tenta-se estabelecer uma relação entre a comida, à saúde e/ou a doença. A

este modelo interpretativo Laplantine chama de modelo aditivo/subtrativo,

onde o alimento pode ser recomendado para ser adicionado a uma dieta ou

pode ser suprimido, sem uma explicação, muitas vezes convincente para o

paciente.5

Essa forma que a biomedicina tem de compreender a alimentação e de

orientar os enfermos difere profundamente do modo como esta é vista e

conduzida pelo Candomblé. Para os terapeutas religiosos das religiões de

matriz africana o alimento é um elemento sagrado imprescindível para o

estabelecimento da comunicação entre os humanos e os deuses, então,

ensina-se ao adepto/a, aquilo que pode e o que deve evitar comer, como

um processo de autoconhecimento dos limites da relação estabelecida entre

ele/ela e a energia que o/a integra. Sem dúvida a biomedicina traz uma visão

eminentemente positivista de saúde, ao negar qualquer outro conhecimento

que não seja aquele que considera mensurável e comprovado por seus

próprios métodos.

Na rotina dos atendimentos clínicos, o profissional logo percebe quanto os

pacientes se revelam impregnados de concepções culturais acerca da sua

alimentação. Percebe, também, que os indivíduos possuem uma forma

diferenciada de lidar com o alimento nos momentos em que adoecem, e/

ou para a prevenção de variadas doenças, ou seja, possuem uma conduta

5 LAPLATINE, Francois. Antropologia da Doença. São Paulo: Martins, 1991.

276

dietoterápica própria. Nas táticas desenvolvidas para enfrentar a desnutrição,

por exemplo, muitas das orientações dadas e estimuladas não têm a adesão

do paciente, algumas vezes, por não considerarem aspectos importantes

dos seus hábitos alimentares, da sua forma de cuidar-se e promover saúde,

da sua cultura, ou de sua fé.

Para o professor Vivaldo da Costa Lima:

A abordagem antropológica da alimentação careceria de uma disciplina que

trouxesse tais questões para a academia e que revelasse o papel mediador da

comida na religião, nos rituais e nas terapêuticas paralelas.6

Sem dúvida a nutrição e a área de saúde como um todo, tiveram muitos

avanços no que se refere à ampliação de uma abordagem antropológica

no campo da alimentação, por reconhecerem os limites de seus próprios

modelos explicativos e a contribuição das diferentes culturas com relação

ao papel do alimento. Entretanto, isso não significou o reconhecimento e

respeito a outras formas de compreensão do processo saúde/doença/

cuidado, prova disso é a não inserção da Medicina Tradicional Africana como

uma prática integrativa complementar, ao sistema oficial de saúde ou na

formação dos profissionais da área, como defendido e aprovado pela Política

Nacional de Saúde Integral da População Negra.7

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra tem inclusive

6 LIMA, Vivaldo da Costa. A família de Santo nos Candomblés da Bahia: um estudo de relações intragrupais. 2a ed. Salvador: Corrupio, 2003.

7 Relatório Mundial da Saúde. Organização Mundialda Saúde, 2005; BRASIL. Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas a assegurar o direito humano a alimentação adequada e dá outras providências. Brasília, 2006.

277

como uma de suas diretrizes “a promoção do reconhecimento dos saberes

e práticas populares de saúde, incluindo aqueles preservados pelas religiões

de matrizes africanas”. E como uma de suas estratégias “a elaboração de

materiais de informação, comunicação e educação sobre o tema Saúde da

População Negra, respeitando os diversos saberes e valores, inclusive os

preservados pelas religiões de matrizes africanas”.8

Mas, observamos que o mesmo Ministério da Saúde, ao definir a Política

Nacional de Praticas Integrativas e Complementares em 2006 afirma que

o campo desta política contempla sistemas médicos complexos e recursos

terapêuticos, os quais são também denominados pela Organização Mundial

de Saúde (OMS) de medicina tradicional e complementar/alternativa (MT/

MCA). Tais sistemas e recursos envolvem abordagens que buscam estimular

os mecanismos naturais de prevenção de agravos e recuperação da saúde

por meio de tecnologias eficazes e seguras, com ênfase na escuta acolhedora,

no desenvolvimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano

com o meio ambiente e a sociedade.9

O documento sinaliza que no final da década de 70, a OMS criou o Programa

de Medicina Tradicional, objetivando a formulação de políticas na área.

Desde então, em vários comunicados e resoluções, a OMS expressa o

seu compromisso em incentivar os Estados-membros a formularem e

implementarem políticas públicas para uso racional e integrado da Medicina

Tradicional e Medicina Complementar Alternativa, nos sistemas nacionais de

8 BRASIL. Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília/DF, 2007.

9 BRASIL. Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília/DF, 2007.

278

atenção à saúde bem como para o desenvolvimento de estudos científicos

para melhor conhecimento de sua segurança, eficácia e qualidade.

O documento “Estratégia da OMS sobre Medicina Tradicional 2002-2005”

reafirma o desenvolvimento desses princípios. Mas, o Ministério da Saúde

brasileiro não incluiu na Política de Práticas Integrativas e Complementares

a Medicina Tradicional Africana e nem a Indígena existente no Brasil.

Neste artigo, trago uma pequena contribuição para os profissionais da área,

levantando questões presentes no cotidiano de quem trabalha com populações

como a contemplada nesse texto, que são as comunidades tradicionais de

terreiros, uma vez que as Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional e

de Saúde estão voltadas para atender prioritariamente aos segmentos mais

vulneráveis, e, do ponto de vista do Direito Humano a Alimentação Adequada

os Povos e Comunidades Tradicionais integram atualmente tais populações10.

SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL E SAÚDE

Meneses afirma ainda que os conceitos supostamente tradicionais

sobrevivem, apesar da invisibilidade e negação social, porque sempre

encontram uma nova dimensão e uma nova aplicação em situações

contemporâneas e também porque os conceitos considerados moderno-

científicos não satisfazem a tudo e a todos da mesma maneira, pois são

também modelos culturais e de poder, em disputa. Do mesmo modo penso

que existem conhecimentos que precisam ser resgatados e reposicionados

10 BRASIL. Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas a assegurar o direito humano a alimentação adequada e dá outras providências. Brasília, 2006.

279

em nossa sociedade, principalmente diante da implementação de políticas

públicas voltadas para determinados segmentos, que compartilham de

uma visão diferenciada de mundo e que possuem seus saberes e práticas

subalternizados

Promover saúde é um tema presente na agenda da gestão pública, pela

necessidade do desenvolvimento de políticas específicas voltadas para a

população de famintos, para as “comunidades e povos tradicionais” e para

a saúde da população negra em geral, tendo em vista um quadro particular

de doenças prevalentes e as repercussões do racismo sobre essa população.

Isto fundamenta a promoção, a atualização e multiplicação do debate

sobre segurança alimentar, sobre saúde e a temática racial, de maneira a

tornar mais efetiva a participação popular, a socialização de informações e a

elaboração de políticas públicas mais equânimes nesta área.

No que se refere à Segurança Alimentar e Nutricional, tem sido um tema

presente nas ações e discussões políticas, para a implementação de

programas governamentais nacionais e internacionais com o objetivo de

combater a fome.

O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome, por exemplo,

vem atuando através de Programas de Atendimento Emergencial – com a

distribuição de Cestas de Alimentos a Grupos Populacionais Específicos em

Situação de Insegurança Alimentar, que tem dentre os grupos priorizados

para este atendimento as comunidades de terreiro, revelando que para os

setores governamentais estes grupos estão vulneráveis na questão alimentar,

isto nos chama a atenção para o fato de que tal situação, muitas vezes,

280

coloca a própria prática cultural também em risco. Entretanto, os sujeitos de

tais programas nem sempre são ouvidos e suas práticas alimentares nem

sempre são consideradas enquanto fonte de informação importante para

orientar tais programas.

O Ministério do Desenvolvimento Social reconhece que o programa de

distribuição de cestas “... destina-se a segmentos específicos, com hábitos

alimentares e culturas distintas. Tradições relacionadas ao simbolismo, à

valorização e à identidade cultural devem ser revitalizadas”. Pois, Segurança

Alimentar e Nutricional é também respeitar e preservar as tradições

alimentares dos diferenciados grupos e é politicamente buscar garantir estes

aspectos enquanto Direito Humano a Alimentação Adequada, como previsto

na Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional.11

Mas, como este direito poderá ser cumprido sem o reconhecimento e

respeito aos saberes e práticas destes grupos? Vale ressaltar que tais povos

sobreviveram até os dias atuais lutando para conservar tais práticas, ou

seja, suponho que os terreiros de Candomblé sempre compreenderam

e desenvolveram estratégias de Segurança Alimentar e Nutricional, muito

antes deste conceito ser ampliado e difundido. Para os terreiros o alimento

sempre teve papel central que ultrapassa a exclusividade de mantenedor

das atividades biológicas, para estes as demandas humanas são sagradas

e sempre estiveram ligadas as práticas alimentares mantenedoras de um

diálogo metafísico entre os humanos e sua essência divina.

11 Lei 11.346 de 15 de setembro de 2006. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília/DF, 2007.

281

Para a área da saúde cabe desenvolver um compromisso histórico e social,

com a justa necessidade de levantamento de informações que possam

contribuir com a qualidade de vida da população brasileira, que é de maioria

negra e que vivencia a condição de insegurança alimentar desde os tempos

do escravismo (isto não só por conta da escassez de gêneros alimentícios

na dieta fornecida aos escravizados, como também por conta da falta de

respeito e de políticas que contemplassem às práticas alimentares destes

povos) até os dias atuais, merecendo, pois, um estudo comprometido com

tais sujeitos.

ALGUNS ASPECTOS METODOLÓGICOS A PARTIR

DO PONTO DE VISTA DAS MULHERES NEGRAS

Para a construção deste texto trago alguns aspectos que levantei na

minha pesquisa de campo, muito da minha percepção e da percepção dos

interlocutores que entrevistei, lideranças dos terreiros de Candomblé de

Novos Alagados (região do estudo), dos Movimentos Negros e de outros

segmentos dos Movimentos Sociais, sobre o infortúnio da fome e da

insegurança alimentar e nutricional, numa religião em que o alimento figura

como ator principal, veículo das questões com e sem respostas e responsável

pelo equilíbrio físico, cultural, psicossocial e espiritual dos indivíduos.

Como a maioria dos entrevistados eram mulheres, procurei destacá-las e a

partir da percepção do papel das mulheres negras nos terreiros de Candomblé

deste estudo, busquei um referencial teórico que me auxiliasse na interpretação

e análise de suas concepções, então recorri à teoria do “ponto de vista das

282

mulheres negras”, utilizada por Patrícia Hill Collins, pois a maioria das pessoas

entrevistadas se autodeclararam como mulheres e negras, responsáveis pelas

casas ou mesmo pelas cozinhas dos terreiros pesquisados.12

Segundo Collins, o ponto de vista das mulheres negras é definido a partir da

opressão vivida por elas, ou seja, a partir do lugar que ocupam na estrutura

social. A experiência de ser mulher negra difere do que é ser mulher e de

quem não é negro. A perspectiva do ponto de vista, expressa que a realidade

é construída com base na sua própria experiência, na experiência da

opressão para resistir, isto possibilita então a criação de uma consciência

independente, o que pode favorecer um pensamento feminista negro.

Assim, é com base nas ações do grupo hegemônico que, as mulheres negras

desenvolvem um ponto de vista próprio, calcado na experiência da opressão

(no cotidiano) e numa atitude de resistência ao longo do tempo.

Desse modo ao buscar o entendimento sobre saúde, para as mulheres negras

do Candomblé, precisamos refletir que a busca incessante de incremento

do ser, também vista por Heidegger como pró-cura e cuidado, corresponde,

no Candomblé, ao esforço de renovação do Axé. Ai a posição do/a adepto/a

é de vigília (prevenção): mesmo sem apresentar nenhum sinal ou sintoma

de aflição, ele/a deve cumprir suas obrigações com os Orixás como forma

de “segurança”. Nos momentos de adoecimento, essas atividades se

intensificam e algumas recomendações são feitas. Nas duas situações, os

12 COLLINS, Patrícia Hill. The Social Construction of Black Feminist Thought. In: JSTOR. Common Grounds and Crossroads: Race, ethnicity, and Class in Women’s Live. 4 ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1995, pp 200-218.

283

alimentos podem ser utilizados como parte da terapia adotada.13

As entrevistadas afirmaram que é através do jogo de búzios, que o (a) zelador

(a) descobre que tipo de tratamento deve ser feito:

Se o problema que a pessoa estiver passando for sério o jogo deverá dizer se

deve ser feito um sacrifício, se é problema de médico ou não .

O alimento é, então, considerado o veículo capaz de prevenir a doença e

promover a cura, e algumas cerimônias são realizadas para reverter o quadro

de aflição apresentado. É preciso considerar também a natureza do mal.

Pode ser identificado um problema relacionado com a crise de conversão.

Entende-se que isto ocorre se o indivíduo apresenta um mal-estar súbito e

já tentou superá-lo, através da medicina oficial e de várias alternativas de

tratamento, sem obter nenhuma resposta significativa, encontrando só na

Medicina Tradicional do Candomblé, através da interpretação do (a) zelador

(a), a possibilidade de compreender o que lhe acontece.

Nesses casos, as entrevistadas consideram que se identifica o distúrbio

como relacionado a uma entidade transcendente: um espírito de morto

(Egun), uma entidade com quem se herda um vínculo e precisa ser lembrado,

ou a manifestação de um Orixá, Inquice, Vodun ou Caboclo, que exige ser

contemplado, ser cuidado.

Para as mulheres deste estudo, a cabeça (Orí) é a principal parte do indivíduo

a ser analisada, pois está diretamente associada ao Orixá do/a adepto/a. Ao

13 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo (Parte I); 9a ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.

284

se desvendar os mistérios de uma cabeça, descobre-se a identidade mítica

do indivíduo. “Fazer a cabeça” significa dizer que o/a iniciando/a terá a

possibilidade de se descobrir enquanto ser no mundo, e, ao mesmo tempo,

perceber seus limites e possibilidades.

Então, do ponto de vista das mulheres negras desta pesquisa, no caminho

percorrido em busca da cura, o mapa a ser desvendado para o/a iniciado/a

passa pelo descobrimento e aceitação da natureza do Orixá/inquice que rege

a sua cabeça. Cada Ori (cabeça) é modelado no Orun (mundo sobrenatural)

e sua matéria formadora varia. Essa matéria determinará o Orixá que o

indivíduo deverá adorar: estabelecerá suas possibilidades e escolhas, e,

principalmente, indicará suas proibições, os Ewó14, particularmente em

matéria de alimentação.15

As espécies de material com o que são modelados os ori individuais indicam

que tipo de trabalho é mais conveniente para tratar de cada um, permitindo-

lhe alcançar saúde e prosperidade. Indica também as interdições – ewó – aquilo

que é proibido ao cliente do rito comer. A “matéria” utilizada para criar o ori

corresponde a um signo distintivo, não é apenas uma simples matéria.

Para a Medicina Tradicional do Candomblé, praticada por tais mulheres

negras a constituição do ser humano está relacionada com a individualidade

formadora do seu ori. Cada elemento constitutivo do ser é derivado de uma

entidade que lhe transmite suas propriedades materiais e seu significado

14 Tabu, interdição, segredo, fundamento; CASTRO, Yêda Pessoa. Falares Africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Copyright, 2001.

15 Vê-se logo, portanto, que “ori” não corresponde apenas a uma parte da anatomia humana.

285

simbólico. Essas entidades de origem, ancestrais divinos, são símbolos

coletivos míticos dos quais partes individualizadas se desprendem para

constituir os elementos de um indivíduo. Esses elementos possuem dupla

existência: enquanto uma parte reside no Orun, o espaço infinito do mundo

sobrenatural, a outra parte reside no Aiyê (mundo natural, a terra) e no

indivíduo, em regiões particulares do corpo.16

Então, algumas cerimônias são periodicamente realizadas com o objetivo

de “cuidar da cabeça”. Nesse caso, dá-se um Bori. O Bori é uma cerimônia

propiciatória, de purificação e renovação das forças espirituais, em que se

oferecem alimentos e bebidas e sacrificam-se animais para dar-de-comer-

à-cabeça (logo ao dono-da-cabeça). O Orixá que deverá ser alimentado é

considerado o centro normativo da vida em todos os seus aspectos.

Segundo Manoel Querino, o Bori “tem por objetivo (...) obter saúde”. Mãe

Stela de Oxossi afirma que:

O Bori é uma cerimônia de grande significado litúrgico. É a adoração da cabeça,

realizada pelo conjunto de oferendas, cânticos e louvações. É importante a

participação de todos no bori, já que se estabelece a comunhão com a cabeça

do “outro” e a troca de axé. Quanto mais pessoas houver para a louvação de

nossa cabeça, para comer a comida do bori, tanto melhor.17

A cabeça (Ori) é considerada motivo de preocupação, pela sua fragilidade.

Torna-se necessário que, periodicamente, rituais como o Bori, feitos para

“dar de comer à cabeça”, sejam realizados para fortalecê-la, oferecendo

resistência à ação de influências malévolas. A doença e o infortúnio podem

16 SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Padê. Asesé e oculto Égun na Bahia. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.

17 SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu Tempo é Agora. 2a ed. Curitiba-PR: Projeto CENTRHU, 1985.

286

aparecer como um sinal de enfraquecimento do ori. Nesse caso afirma

Bastide, que “a oferta alimentar à cabeça, na medida em que fortifica o Ori,

pode ter virtude profilática ou curativa”.

Esse é um processo iniciático que não implica necessariamente em que o

indivíduo se torne um/a adepto/a. Em muitos casos, as pessoas fazem o Bori

e não retornam para dar seguimento a outros ritos.

Os alimentos oferecidos dizem respeito à natureza do Orixá identificado pelo

oráculo. Em todos os casos, deve-se propiciar, inicialmente, a Exu, pois ele é

sempre o primeiro a comer, e é, também, responsável pela comunicação: ele

intercederá junto aos Orixás em favor do adepto. Os outros alimentos devem

ser para o Orixá “dono da cabeça”.

O alimento, nesse processo, é a linguagem com a qual os sacramentos

serão cifrados. Pela tradução desse código, o indivíduo compreenderá que,

muitas vezes, poderá se alimentar sem, necessariamente, ter que ingerir

qualquer item comestível. Alguns alimentos serão oferecidos aos deuses,

outros serão passados no seu corpo, outros serão distribuídos com o grupo

e outros ele/a ingerirá, mas alguns lhe serão terminantemente proibidos,

estes farão parte da sua constituição secreta, diretamente ligada a sua

essência divina no Orun.

Do ponto de vista das mulheres negras desta pesquisa, os alimentos terão

a responsabilidade de fazer a comunicação entre os deuses, os mortos, os

membros do Candomblé presentes no ritual e a própria pessoa que oferece

o Bori. Assim a pessoa confirma a sua incorporação a uma nova comunidade

287

e até mesmo à civilização africana. Através da interpretação desse código de

pertença, o indivíduo refaz seus laços de identidade com ele próprio, com o

grupo e com a África representada miticamente no Orixá a quem foi dedicada

a cerimônia e para quem foi feita a sua cabeça.

Pela reconstrução da sua cabeça no mundo mítico, o/a iniciado/a renasce

em outro contexto. Percebe, assim, que não é mais um ser só, único, isolado

no mundo, mas que lhe integra outro que também lhe pertence, do qual faz

parte e habita um mundo diferente do seu. Esse outro é um Orixá, um ser

sobrenatural, com características individuais marcantes, que tem relações

com outros deuses no Orun. Pelo processo de iniciação, através do Bori, o

adepto/a reconhece o seu “outro” constitutivo, se identifica com ele/a e com

o grupo do qual, ambos fazem parte e ele/ela passa agora a fazer parte de

outra comunidade que lhe reporta diretamente a África mítica.

Roger Bastide descreve uma cerimônia de Borí da seguinte forma:

A pessoa que a faz, senta-se numa esteira recoberta de pano branco, com o

torso nu e uma simples toalha nos ombros. O sacerdote, igualmente vestido

de branco, consulta primeiramente os obis18 para conhecer a vontade dos

deuses. Em seguida, tritura entre os dentes uma noz de obi e por três vezes

cospe o conteúdo no rosto do paciente. Enquanto os assistentes entoam

cânticos apropriados, diversos alimentos são preparados parte será oferecida

ao orixá “dono da cabeça”, outra aos mortos, outra será disposta sobre a

cabeça de quem faz realizar o bori, e a última será cozida para a refeição final.

Sacrifica-se um animal de duas patas e seu sangue rega, além da pedra do

orixá, a cabeça, o peito, os pés e as mãos do fiel. A cerimônia termina por uma

nova consulta ao obi, a fim de saber se os deuses estão satisfeitos e aceitam

o ritual celebrado, sendo então consumida a parte das oferendas que foram

18 Noz-de-cola, fruto muito utilizado em ritos religiosos; CASTRO, Yêda Pessoa. Falares Africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Copyright, 2001.

288

cozidas. O paciente, com o rosto, as mãos e os pés ainda sujos do sangue do

sacrifício, deve ficar a noite toda no terreiro, conservando na cabeça pequena

parte dos alimentos para que o orixá tenha tempo de comê-los.19

A importância do alimento não se traduz exclusivamente pelo seu papel

de mantenedor do corpo, através da ação de promover o metabolismo e

oferecer a energia necessária para a manutenção da vida. O alimento é,

nessa concepção, o responsável pela saúde geral do indivíduo e do grupo,

através do seu uso é permitida a comunicação entre os seres humanos, os

deuses e com o continente africano do qual fomos brutalmente arrancados.

Resgatá-lo, refazê-lo, devolvê-lo, ainda que simbolicamente, lhes concede

saúde e energia vital para permanecer na luta. Este é o caminho por pró-cura

e cuidado praticado por esta Medicina Tradicional africana, descrita a partir

do ponto de vista das mulheres negras de Candomblé da Bahia.

Ao oferecer o Bori, o/a adepto/a busca que também o seu “outro” (o Orixá)

seja fortalecido, não adoeça, não fique desnutrido e predisposto a diversos

males, refaz desta forma um círculo a fim de devolver essas energias também

à África. Busca, ainda, compartilhar dessa força, repartir para mais fortalecer

o grupo. O Bori é, então, um rito de passagem, um processo que tem como

objetivo explícito transformar o ser que a ele se submete. Durante esse

processo, o/a iniciado/a deverá permanecer recolhido/a, por um determinado

período de tempo. No decorrer desse tempo receberá orientações até

chegar o momento público do rito. Essa metamorfose representará, para o/a

iniciado/a, o renascimento em uma nova vida. Revela a passagem do ser, de

sua primordial indistinção genérica às formas particularizadas e nominadas

19 BASTIDE, Roger. A Cozinha dos Deuses. Rio de Janeiro: SAPES, 1960, pp 33.

289

de sua nova existência.20

Em Novos Alagados, local de minhas pesquisas, não cheguei a presenciar

uma cerimônia de Bori, mas em muitos momentos as zeladoras reafirmaram

a importância dos alimentos como fundamental nesta cerimônia e em todas

as circunstâncias dentro do Candomblé:

Para mim o alimento é tudo, é sagrado, comida de orixá, é tudo. Serve pra

comer, serve de limpeza pra o corpo e é a parte que eu mais gosto, eu gosto

de comer uma bananinha frita, uma farofinha pra Ogum, um caruruzinho.

A comida pra mim é tudo, desde uma oferenda pra agradar meu orixá, a tudo

mais, pra limpeza e cuidar da saúde, né? Então é tudo! Tudo vai depender de

saber dar o alimento certo, de fazer como deve ser, né? .

Olhe pra mim, assim! O alimento é muito importante. Todo axé depende dos

alimentos. Vai de cada Casa, mas em todas se sabe que é importante dar

comida ao orixá e à cabeça, senão, não tem mais nada. O alimento pra mim é

tudo, no Candomblé é tudo.

Todas as entrevistadas disseram que “o alimento é tudo”; que dentro do

Candomblé o alimento fundamenta todas as atividades rituais básicas. A

falta ou o não oferecimento de comida implica em sérias consequências para

o/a adepto/a.

Assim, a proibição de determinados itens considerados prejudiciais à saúde

pela biomedicina é compreendida por essas pessoas, mas não pode ser

valorizado como algo mais importante que agradar ao seu Orixá, dono da

sua cabeça. De nada adiantaria ter um corpo alimentado adequadamente,

20 BARROS, José Flávio Pessoa. & NAPOLEÃO, E. Ewé Òrìsá:uso litúrgico e terapéutic dos vegetais nas casa de candomblé Jêje-Nagô. Rio de Janeiro: Copyright, 1998; GENNEP, Van. Os Ritos de passagem. Rio de Janeiro: Vozes, 1978.

290

mas uma cabeça faminta ou mal alimentada.

É difícil a gente não comer durante as festas. Antigamente eu comia mais, mesmo. Depois que o médico proibiu... Eu deixo uma sopa pra quando eu acordar do santo, eu beber...Agora só que o Erê, eu não posso fazer nada, né? Ele come mesmo, doce...Eu não sou chegada a doce, mas ele gosta, o que é que eu vou fazer? Come doce, caruru, queimado, fica todo melado, come tudo!

D – Come tudo? E depois?

M – É eeeeee, depois eu vou pro médico (risos) faço um check – up! O jeito é ir, né? (risos).

Somam-se a tudo isso as preferências alimentares de cada Orixá. Isto

irá influenciar no cardápio das festas e em todas as oferendas feitas no

terreiro. Cada Orixá tem seus alimentos característicos relacionados

com sua natureza mítica. Cumpre ao adepto/a, na medida em que quer

agradá-lo e comunicar-se com ele, satisfazer o seu gosto e respeitar

seustabusalimentares.

Então, na Bahia, ao encontrarmos as comidas sagradas nas ruas (Ebós,

oferendas ou mesmo a venda de Acarajés e mingaus), assistimos, todos os

dias a um ritual de multiplicação da energia vital dos terreiros de Candomblé

e dessa ação afirmativa, através da Segurança Alimentar e Nutricional do

povo negro da cidade.

Essa ação incorporou-se à vida cotidiana das pessoas, que não são

necessariamente adeptas do Candomblé: o hábito alimentar de comer do

azeite, o sangue vermelho, sagrado, cheio de energia e de saudades de uma

África mitificada em sua ancestralidade poderosa.

291

Dessa forma mantêm-se a memória coletiva, o equilíbrio espiritual,

a saúde e a Segurança Alimentar e Nutricional de um povo, cifrado e

resguardado através da sacralização de sua cultura repassada através do

idioma dos alimentos. Pois também, do ponto de vista das mulheres de

terreiro garantir a alimentação de suas comunidades é também garantir

o equilíbrio, a proteção, a saúde e a Segurança Alimentar da cidade como

um todo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se através do Candomblé conseguimos manter uma memória afetiva da

África, que pode promover saúde, através dos alimentos conseguimos manter

um diálogo com os Deuses africanos, reforçando essa memória naquilo que

nos constitui como povo negro da diáspora, herdeiros de uma matriz cultural

invisibilizada pelo racismo institucional.

A academia por sua vez, pratica seu racismo institucional, através do

epistemicídio de saberes considerados subalternos, invisibilizando essa

produção, esse pensamento, interferindo neste diálogo. Podemos encontrar

parte destes saberes nos terreiros, pois nesses espaços tais conhecimentos

foram mantidos cifrados através do idioma da sacralização.

Mas, a outra parte, para perfazermos o diálogo encontra-se do outro

lado do Atlântico invisibilzada e dificilmente alcançada. Precisamos

urgentemente dialogar com autores, que considerem a filosofia africana

ao tratar de estudos que enfoquem essa matriz cultural e desta forma

292

compreendermos e promovermos saúde a partir de outros modelos

terapêuticos, que possam ser interpretados a luz de uma epistemologia

descolonizante.

AS AUTORAS E OS AUTORES

José Bento Rosa da Silva

Possui graduação em História pela Fundação do Pólo Regional do Vale do

Itajaí (1985), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo (1994) e doutorado em História pela Universidade Federal

de Pernambuco (2001). Atualmente é professor adjunto da Universidade

Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de História, com ênfase

em História da África, atuando principalmente nos seguintes temas: áfrica -

história - diáspora, abolição - escravidão - trabalho, cidade - memória - porto,

escravidão . Vinculado ao Centro De Estudos Africanos da Universidade

do Porto(Portugal) como investigador doutorado.Estágio pós-doutoral na

Université Jean Jures - Mirail I [Toulouse- 2014-2015]. Vice-coord. do Instituto

de Estudos da Africa na Universidade Federal de Pernambuco.

Jacimara Souza Santana

É doutora em história social da África pela Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP). Mestra em história social e especialista em educação e desigualdades

raciais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Possui graduação em

294

História pela Universidade Católica do Salvador (2002). É professora de

história da África e líder do MALUNGU-Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão

sobre África e Diáspora - Universidade do Estado da Bahia (UNEB)/CNPQ. É

vinculada ao Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP),

GT- “Poderes e Identidades na África Subsaariana”. Especificamente estuda

história de Moçambique. Possui estágio doutoral pela Universidade Eduardo

Mondlane (Moçambique) e Curso de aperfeiçoamento pelo Centro de Estudios

de Asia y África-El Colégio de México. Áreas temáticas de atuação: história da

África e afro-brasileira, relações raciais e de gênero. Possui experiência com

formação de professoras/es para a implementação da Lei 10.639/03.

Giovani Grillo de Salve

Atualmente faz doutorado na área de História Social da África no Instituto

de Filosofia e Ciências Humanas - Unicamp. Já realizou pesquisa no The

Harriet Tubman Institute for Global Migrations on the African Peoples - York

University - e tem experiência de pesquisa na área de História, com ênfase em

História da África do Sul, focando problemáticas como legislação, medicina,

segregação, assimilação, identidade e política de minorias

Silene Arcanja Franco

Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional pela Uneb,

Especialista em História Social e Educação pela Ucsal, com graduação em

295

História ( Ucsal). É professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb),

atuando nos componentes Laboratório de Ensino, Estágio Supervisionado,

História da Educação, Metodologia da História, História da Africa, Relações

Raciais e de Gênero. Trabalha na formação de professores para o Ensino de

História e Cultura Africana e Afro-Brasileira. 

Danieli Siqueira Soares

É doutoranda em Sociologia na Universidade Federal da Paraíba - UFPB.

Possui graduação em CIÊNCIAS SOCIAIS pela Universidade Federal de

Pernambuco - UFPE (2004) e mestrado em ANTROPOLOGIA pela UFPE(2007).

Atualmente está realizando doutorado sanduíche no Centro de Estudos

Sociais - CES / Universidade de Coimbra em Portugal. É membro do Grupo de

Pesquisa em Saúde - GPS / UFPB, coordenado pelo Prof. Dr. Eduardo Sérgio

Soares d Sousa. Coordena o GESTAR, grupo de apoio ao gestar, nascer, parir

e nutrir. Tem experiência na área de Antropologia e Sociologia, com ênfase

em Religião, Gênero, Saúde, Cultura e Tradição. 

Kelma Luzia Nunes Otaviano

Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará

(1996), especialização em cultura africana e dos afrodescendentes pela UFC

(2011) e mestrado em Educação brasileira também pela Universidade Federal

do Ceará (2013). Profesora licenciada do curso de Serviço Social da Faculdade

296

Cearense - FAC. Consultora na área de projetos sociais, educacionais, de saúde.

Servidora da prefeitura de Fortaleza da área de saúde mental. Idealizadora,

fundadora, estudiosa e pesquisadora no Coletivo Em tempos de Ayoká de

estudos e pesquisas em cultura africana com ênfase nas práticas de saúde

da medicina tradicional africana.

João Reis da Cruz Santos

Graduado em Filosofia-Faculdade São Bento da Bahia. Sacerdote (Tata

Kaiti) do Candomblé de Angola, Educador Social, Ex-presidente do Conselho

Municipal das Comunidades Negras - CMCN - Salvador-Ba, Ex-Conselheiro

Tutelar, pesquisador do Candomblé de Angola e militante em defesa do

Templo Ecológico de Salvador Parque São Bartolomeu na Área de Proteção

Ambiental (APA) Bacia do Cobre.

Denize de Almeida Ribeiro

É Coordenadora do NEGRAS - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Raça

e Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, foi Coordenadora de

Políticas Afirmativas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB

(2014). É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, atuando

no Centro de Ciências da Saúde, CCS/UFRB. Graduada em Licenciatura em

Nutrição e Dietética pela Universidade do Estado da Bahia (1985), Bacharel

em Nutrição pela Universidade do Estado da Bahia (1993), Especialista em

297

Desigualdades Raciais na Educação pelo CEAO/UFBA, Especialista em Saúde

da Família pelo ISC/UFBA, Mestre em Saúde Comunitária pelo Instituto de

Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (2002) e Doutora em Saúde

Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia

(2013). Foi Coordenadora do GT de Saúde da População Negra, da Secretaria

Municipal de Saúde de Salvador (2009). Tem experiência na área de Saúde

Coletiva, com ênfase em Ciências Sociais e Saúde, atuando principalmente

nos seguintes temas: Saúde da População Negra, Saúde Coletiva, Políticas

de Combate ao Racismo, Genocídio da População Negra, Pesquisa Ativista,

Promoção da Equidade Racial e de Gênero, Feminismo Negro, Segurança

Alimentar e Nutricional, Povos e Comunidades Tradicionais e Saúde no

Candomblé.

Rua Acadêmico Hélio Ramos, 20, Várzea Recife, Pernambuco

CEP: 50.740-530 Fax: (81) 2126.8395

Fones: (81) 2126.8397 / 2126.8930 www.ufpe.br/edufpe

[email protected]

299

série

PESQUISASCLÁSSICOSENSAIOS

Um dos grandes problemas para o entendimento da África e sua multiplicidade de povos e culturas, no Brasil, é o conhecimento estereotipado e preconceituoso, construído ao longo dos séculos, vigente na mídia e mesmo nos meios acadêmicos. A persistência deste viés resulta de desconhecimento puro e simples decorrente quer do restrito número de centros de estudo e difusão de saber, quer da parca bibliografia produzida nos países africanos e no Brasil. O saber tem historicamente circulado unidirecionalmente de Norte para Sul gerando distorções uma vez que raramente o olhar escapa das condicionantes a partir do local de onde se olha. A criação do Instituto de Estudos da África (IEAf) da Universidade Federal de Pernambuco e a incorporação das publicações da Série Brasil &África somam forças para mudar este quadro.

Subdividida em 3 coleções – Clássicos, Pesquisas e Ensaios –, já foram publicadas importantes obras abordando temas como nacionalismo, relações de gênero em Moçambique e Cabo Verde e mortalidade feminina na Guiné-Bissau. Outras tantas virão enriquecer este quadro, dotando os brasileiros de instrumentos concretos para um profícuo e potencializado diálogo Sul-Sul direto com intelectuais africanos. O mar do desconhecimento que nos separa assim se converterá no mar que nos unirá; livre de preconceitos e libertador.

“Aprender a ir ao Sul, a partir do Sul”: a frase, do sociólogo e crítico da globalização Boaventura de Sousa Santos, poderia servir de epígrafe para esta nova série de livros. Epígrafe-mensagem, endereçada especialmente aos intelectuais universitários, que costumam encomendar seus saberes mais na Amazon.com do que no Amazonas ou no Congo. (Os pensadores da Sanzala - “povoado” em Kimbundu, com essa grafia, antes de a palavra ser escravizada pela Casa Grande – há muito tempo vêm rememorando, com dor mas também axé, as antigas trocas Sul-Sul forçadas.) Mas por que mudar de “norte”? É para pensar melhor experiências e práticas análogas, quando não ligadas historica-mente: os vendavais do escravismo, do trabalho colonial forçado, da escravidão contem-porânea; os cultos de cura populares contra males individuais e sociais; as lutas contra o racismo, a pobreza, as doenças pouco pesquisadas pela farmacopeia do Norte; as batalhas em prol dos princípios democráticos e dos direitos humanos, trabalhistas e de gênero. As três coleções da série – “Pesquisas”, “Ensaios” e “Clássicos” – trazem livros que enfocam a África, com certa ênfase nos países de língua portuguesa, ou apresentam reflexões comparativas sobre África e Brasil. Ressaltam-se, já nos volumes de estreia, frutos importantes de um intercâmbio entre professores da Universidade Federal de Pernambuco e duas universidades africanas, a Eduardo Mondlane (Moçambique) e a da Cidade do Cabo (África do Sul).

Robert W. SlenesProfessor Titular do

Departamento de História da Unicamp

ISBN 978-85-415-0842-1

978-85-415-0842-1