potencializado diálogo série · PDF fileTerreiros de Candomblé - Saberes...
-
Upload
phungkhanh -
Category
Documents
-
view
276 -
download
16
Transcript of potencializado diálogo série · PDF fileTerreiros de Candomblé - Saberes...
série
HISTÓRIA, SAÚDE E CULTURAS EM ÁFRICA E BRASIL
Jacimara Souza Santana (organizadora)
COLE
ÇÃO
PESQ
UISA
S 4
Um dos grandes problemas para o entendimento da África e sua multiplicidade de povos e culturas, no Brasil, é o conhecimento estereotipado e preconceituoso, construído ao longo dos séculos, vigente na mídia e mesmo nos meios acadêmicos. A persistência deste viés resulta de desconhecimento puro e simples decorrente quer do restrito número de centros de estudo e difusão de saber, quer da parca bibliografia produzida nos países africanos e no Brasil. O saber tem historicamente circulado unidirecionalmente de Norte para Sul gerando distorções uma vez que raramente o olhar escapa das condicionantes a partir do local de onde se olha. A criação do Instituto de Estudos da África (IEAf) da Universidade Federal de Pernambuco e a incorporação das publicações da Série Brasil &África somam forças para mudar este quadro.
Subdividida em 3 coleções – Clássicos, Pesquisas e Ensaios –, já foram publicadas importantes obras abordando temas como nacionalismo, relações de gênero em Moçambique e Cabo Verde e mortalidade feminina na Guiné-Bissau. Outras tantas virão enriquecer este quadro, dotando os brasileiros de instrumentos concretos para um profícuo e potencializado diálogo Sul-Sul direto com intelectuais africanos. O mar do desconhecimento que nos separa assim se converterá no mar que nos unirá; livre de preconceitos e libertador.
HISTÓRIA, SAÚDE E CULTURAS EM ÁFRICA E BRASIL
Organizadora: Jacimara Souza Santana
COLEÇÃO PESQUISAS
4
Recife/2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO Reitor:Profº Drº Anísio Brasileiro de Freitas Dourado COMISSÃO EDITORIAL Coordenador: Profº Drº Marco Mondaini (DSS/UFPE)Vice coordenador: Profº Drº José Bento Rosa da Silva (DH/UFPE)
CONSELHO EDITORIAL:Ana Cristina Vieira (UFPE/Brasil), Ana Piedade Monteiro (Unizambeze/Moçambique), Carlos Arnaldo (Universidade Eduardo Mondlane/ Moçambique), Colin Darch (University of Cape Town/África do Sul), David Hedges (Universidade Eduardo Mondlane/Moçambique), Dayse Cabral de Moura (UFPE/Brasil), Edilson Fernandes de Souza (UFPE/Brasil), Eliane Veras Soares (UFPE/Brasil), Eurídice Monteiro (Universidade de Cabo Verde/Cabo Verde), Gustavo Gomes da Costa Silva (UFPE/Brasil), Isabel Casimiro (Universidade Eduardo Mondlane/Moçambique), Jacimara Souza Santana (UNEB/Brasil), João Carlos Trindade (Centro de Estudos Sociais Aquino de Bragança/Moçambique), José Bento Rosa da Silva (UFPE/Brasil), Judith Head (University of Cape Town/África do Sul), Maram Mané (Escola Nacional de Saúde/Guiné Bissau), Marco Mondaini (UFPE/Brasil), Marcos Costa Lima (UFPE/Brasil), Remo Mutzbemberg (UFPE/Brasil), Robert Slanes (UNICAMP/Brasil), Solange Rocha (University of Cape Town/África do Sul), Teresa Amal (Universidade de Coimbra/Portugal), Tereza Cruz e Silva (Universidade Eduardo Mondlane/Moçambique), Valdemir Zamparoni (UFBA/Brasil).
Projeto Gráfico: Daniel L. Apolinário e Xenya Bucchioni Diagramação: Fabiola Mendonça e Karla Tenório
H673 História, saúde e culturas em África e Brasil [recurso eletrônico] / Organizadora : Jacimara Souza Santana. – Recife: Editora UFPE, 2016. (Série Brasil & África. Coleção Pesquisas, 4).
Inclui referências ISBN 978-85-415-0842-1 (online)
1. Política de Saúde – Brasil. 2. Moçambique – História – Período colonial, 1927-1970. 3. Medicina popular – Influências africanas. 4. Cultura afro-brasileira. I. Santana, Jacimara Souza (Org.). II. Título da série.
362.10981 CDD (23.ed.) UFPE (BC2016-094)
Catalogação na fonte: Bibliotecária Liliane Campos Gonzaga de Noronha, CRB4-1702
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO DA SÉRIE
RELAÇÃO DOS LIVROS PUBLICADOS DA SÉRIE BRASIL & ÁFRICA
PREFÁCIO
APRESENTAÇÃO
Cura & mandinga: a leitura de dois processos crimes envolvendo
africanos e afro-brasileiros no pós-abolição (SC-1890)
José Bento Rosa da Silva
A Saúde da População Africana ao Sul de Moçambique no Tempo
Colonial (C.1927-1970)
Jacimara Souza Santana
Medicina, segregação e assimilação urbana
na Cidade do Cabo, 1901
Giovani Grillo de Salve
“DE BOCA A OUVIDO”- Aprendizagens, práticas de curas e
7
9
11
15
23
51
109
religiosidades entre as parteiras da Bahia
Silene Arcanja Franco
Saberes de Cura e a Arte de Partejar: Brasil e Guiné Bissau
Danieli Siqueira
Terreiros de Candomblé - Saberes e práticas de cuidado e
tratamento: contribuições para a saúde mental
Kelma Luzia Nunes Otaviano
Narrativas sobre saúde na visão de adeptos do Candomblé
de Angola na Bahia
João Reis da Cruz Santos
Medicina Tradicional Africana e Segurança Alimentar
e Nutricional nos Terreiros de Candomblé da Bahia
Denize de Almeida Ribeiro
AS AUTORAS E OS AUTORES
153
187
211
249
271
293
APRESENTAÇÃO DA SÉRIE
Constituída por 3 Coleções (Pesquisas, Ensaios e Clássicos), a Série Brasil & África
expressa duas ordens de fatos fundamentais: por um lado, a virada geopolítica
ocorrida no Brasil no início do século XXI, que aponta para a mudança na ordem
de prioridades no campo das relações internacionais, com a passagem de
ênfase do diálogo “Norte-Sul” para o diálogo “Sul-Sul”; por outro lado, a tomada
de consciência da necessidade de construção de laços mais estreitos no campo
acadêmico-intelectual entre os saberes que são construídos no Brasil e no
continente africano — especialmente, mas não de maneira exclusiva, nos países
africanos de língua oficial portuguesa (PALOPs).
Fundada em tal princípio, a Série Brasil & África nasce assumindo o compromisso
ético de edificação de novos olhares que sejam suficientemente capazes de
reconhecer as novas experiências sociais e políticas antissistêmicas emergentes
no Brasil e em África, direcionadas à construção de uma nova ordem referenciada
na afirmação da democracia e dos direitos humanos compreendidos na sua
radicalidade, como forças voltadas à socialização do poder.
Dentro desse contexto, a Série Brasil & África propõe alinhar-se ao conjunto de
iniciativas surgidas na última década no sentido de aproximar universidades e
centros de pesquisa engajados no processo de reflexão crítica sobre os traços
8
universais que identificam os Estados e sociedades do Sul do mundo num mesmo
quadrante geopolítico, mas, também, sobre as suas particularidades histórico-
sociais, responsáveis pela sua diferenciação.
Inicialmente apoiada pela Pró-Reitoria de Extensão, a Série Brasil & África vincula-
se agora ao recém criado Instituto de Estudos da África (IEAf) da UFPE, uma nova
unidade acadêmica que nasce como expressão dos compromissos assumidos
pela instituição na direção da sua internacionalização.
Marco Mondaini
(Professor da UFPE e Coordenador da Série Brasil & África
e do Instituto de Estudos da África da UFPE)
RELAÇÃO DOS LIVROS PUBLICADOS DA SÉRIE BRASIL & ÁFRICA
COLEÇÃO CLÁSSICOS
Sonhar é preciso - Aquino de Bragança: Independência e
revolução na África portuguesa (1980-1986)
Marco Mondaini (organizador)
O mineiro moçambicano: Um estudo sobre a exportação
de mão de obra em Inhambane
Ruth First (coordenadora)
Cultura em tempos de libertação nacional e revolução social:
Amílcar Cabral, Samora Machel e Mário de Andrade
Marco Mondaini (organizador)
COLEÇÃO PESQUISAS
Paz na terra, guerra em casa. Feminismo e
organizações de mulheres em Moçambique
Isabel Casimiro
10
Entre os senhores das ilhas e as descontentes. Identidade, classe e gênero na
estruturação do campo político em Cabo Verde
Eurídice Furtado Monteiro
HIV AIDS e as teias do capitalismo, patriarcado e racismo:
África do Sul, Brasil e Moçambique
Solange Rocha, Ana Cristina de Souza Vieira, Evandro Alves Barbosa Filho
(organizadores)
História, saúde e culturas em África e Brasil
Jacimara Souza Santana (organizadora)
COLEÇÃO ENSAIOS
Mortalidade das mulheres em idade fértil e mortalidade materna:
Tendências, determinantes e causas numa coorte comunitária
na Guiné Bissau de 1996 a 2007
Maram Mané
“Voluntários forçados”: Discurso e contradiscurso
acerca do trabalho nas colônias lusas – (1925-1935)
José Bento Rosa da Silva
O continente demasiado grande:
Reflexões sobre temáticas africanas contemporâneas
Colin Darch
PREFÁCIO
Denize Ribeiro dos Santos
Professora de Políticas Públicas de Saúde da UFRB
Esta publicação nos chega num momento bastante oportuno, uma vez que
temos uma Política Nacional de Saúde Integral da População Negra aprovada
pelo Ministério da Saúde desde 13 de maio de 2009, que tem como uma
de suas diretrizes a valorização dos saberes sobre saúde das religiões de
matriz africana. Também é preciso considerar que já existem iniciativas de
pesquisadores de diferentes áreas, gestores, estudantes, profissionais de
saúde em diferentes partes do Brasil que apoiam a tarefa de executar tal
política.
Acrescente-se a isso as demandas dos Movimentos Sociais Negros que
reivindicam avanços na produção de estudos para o aprofundamento das
políticas afirmativas de um modo geral e no campo da saúde em particular,
valendo, portanto, todos os esforços no sentido de contribuir com análises
sobre essa temática, ainda tão pouco estudada no país.
Algumas limitações apontadas por gestores e membros de movimentos
sociais esbarram exatamente na insuficiência de produções acadêmicas,
12
de pesquisas de diferentes áreas, que se preocupem com o fenômeno da
saúde numa perspectiva interseccional, transcultural e transdisciplinar. Essa
necessidade se explica pelo simples fato de ser a saúde um fenômeno que
afeta a todos/as de diferentes perspectivas, de modo a fazer com que grupos
humanos lidem com a promoção da saúde, através de variadas práticas de
prevenção, proteção, cura e cuidados.
Os conhecimentos ancestrais de matriz africana, por exemplo, são
imprescindíveis para o campo da saúde da população negra no Brasil e
outros países da diáspora, assim como o são no continente africano. Muitos
desses conhecimentos estão preservados no campo religioso. Por isso,
líderes espirituais são comumente procurados por pessoas de diferentes
níveis sociais para cuidar da saúde, o que inclui o alcance do Estado de bem
estar social.
Isso, muito embora - apesar da comprovada eficácia do conhecimento
ervanário no tratamento de certas doenças, entre outras práticas - tais
saberes fossem historicamente subalternizados, tratados ao longo do tempo
como supersticiosos, populares, sem comprovação científica, discriminados
e negados pelo racismo institucional e pelo epistemicídio acadêmico. Urge,
portanto, estudos comprometidos com tais temáticas que reposicionem os
conhecimentos sobre saúde numa outra perspectiva.
Esta coletânea demonstra que a compreensão sobre saúde/doença/cuidado
é um produto da cultura de cada povo. Em se tratando da população negra no
Brasil, no continente africano ou outros países da diáspora essa construção
cultural também se reflete nos modelos de agência existente. Isso nos faz
13
perceber que muito ainda temos que pesquisar, recorrendo a diferentes
epistemologias pela relevância e dinâmica importância deste processo.
Nesta publicação, temos reunidos pesquisadores e pesquisadoras de várias
áreas que analisaram experiências, trajetória história e saberes sobre a saúde
da população negra que podem colaborar na implementação de políticas
públicas de saúde, de promoção da igualdade racial e ampliar o diálogo com
outras áreas do conhecimento.
APRESENTAÇÃO
Diferentes campos de estudos vêm enfatizando cada vez mais a compreensão
do termo saúde, assim como doença, na sua relação com a história e vivências
socioculturais dos indivíduos. Isso implica reconhecer que tais concepções
são sujeitas a mudanças e variações, não cabendo ostentar a atribuição de
supremacia do saber científico/laboratorial em detrimento de outros saberes
pré-existentes nas sociedades.
A prevalência do pensamento ocidental de mundo relegou à marginalidade
e ao desprestígio social maneiras distintas das suas de cuidar das doenças
e promover a cura. Tentativas de supressão de práticas populares de cura
e perseguição aos seus agentes pelo Estado foram atitudes comuns em
diferentes partes do mundo. No que diz respeito à experiência em África
e sua diáspora, a tendência foi estigmatizar tais conhecimentos como
feiticeiro, supersticioso e primitivo. Entretanto, isso não garantiu a extinção
de tais práticas, cujos agentes prosseguem sendo requisitados até os dias
atuais por clientes de nível econômico e opção religiosa variada, habitantes
de zonas rurais ou urbanas, muitos dos quais buscam solucionar problemas
não resolvidos pela medicina alopática.
16
Desde 1978 que a visão relacionada às práticas populares e os seus agentes
vêm sendo repensada no cenário internacional. Destacam-se nesse sentido,
os incentivos da Organização Mundial de Saúde (OMS) para que governos
passassem a valorizar aqueles saberes na execução das políticas de saúde
de seus Estados. Em atenção a esse pedido muitos governos africanos, na
altura dos anos 1980, buscaram desenvolver estudos específicos acerca dos
conhecimentos endógenos de saúde existentes em seus países, além de
identificar e reunir em conferências, grupos de agentes responsáveis por sua
administração. Alguns Estados africanos anteciparam-se ao pedido da OMS
por influência da ideia pan-africana de valorização do que era africano, como
uma forma de superar a colonização cultural imposta pela Europa.
No Brasil, a incorporação de novos saberes e práticas de saúde na assistência
pública tornou-se um tema de discussão de suas conferências de saúde. Os
resultados obtidos a partir do ano de 1985 indicam a ampliação de estudos
sobre o assunto, bem como o uso ainda que parcial da homeopatia, da
acupuntura e da fitoterapia. Em 2005, o Ministério da Saúde criou uma Política
Nacional de Medicina Natural e Práticas Complementares com o objetivo de
superar o caráter esporádico e informal de tais experiências. No entanto, até
os dias atuais não se encontram incluídos nesse mesmo patamar de valor
experiências de promoção de saúde vivenciadas nos espaços religiosos de
matriz africana (Candomblés e Umbanda). Trata-se de uma discussão ainda
incipiente e nova no âmbito do Ministério de Saúde.
Essa coletânea, intitulada Saúde e Cultura na África e no Brasil, reúne
contribuições que analisam concepções e maneiras de promoção de saúde
17
na perspectiva africana e afro-brasileira, assim como experiências de seus
agentes na garantia de sua existência social e do controle de seus próprios
recursos de cura.
Os capítulos também apresentam análises da assistência em saúde
disponibilizada pelo Estado para as populações na África e diáspora brasileira,
evidenciando sua configuração em termos de acesso, disponibilidade de
serviços, cuidados prioritários e iniciativas próprias dos indivíduos na busca
de resolver seus problemas de saúde ao longo do tempo.
Nas páginas deste livro podemos encontrar abordagens de distintas áreas
do conhecimento, resultado de pesquisas sobre África e Brasil, mas que se
intercruzam.
José Bento Rosa da Silva mostra a atuação de dois africanos na assistência de
saúde de moradores da região sul do Brasil, Santa Catarina: José Cabinda, de
cerca de 100 anos e oriundo da região chamada bantu, e Pedro Rocha, de 60
anos, oriundo da Costa da África (região ocidental). Ambos processados em
1890 por práticas de curandeirismo e feitiçaria.
Pesquisas já demonstraram que os tumbeiros saídos de diferentes partes do
continente africano não somente transportaram um volume de corpos em
consequência do tráfico de escravos. Junto com diferentes agrupamentos
étnicos, atravessaram a “Kalunga” (Oceano/morte/indeterminado...), línguas,
visões de mundo, religiosidades, saberes, entre outras coisas, de diferentes
culturas africanas e que na diáspora foram reinventadas. Os saberes de
cura e maneiras de cuidados africanos foi um dos legados culturais destas
18
travessias de “malungos” (irmãos de mesmo barco).
Jacimara Souza Santana fala das mudanças sofridas na assistência de saúde
usada pela população africana com a conquista e colonização portuguesa
no sul de Moçambique. O costume de cuidar da saúde com os geracionais
médicos-sacerdotes, também conhecidos nesta região pelo nome de Nyanga, foi
combatido por missionários, administradores e governo português. A orientação
de procurar os hospitais, maternidades e postos sanitários para curar e prevenir
doenças e realizar partos com médicos e enfermeiros portugueses, ainda que
auxiliados por parteiras e enfermeiros africanos, foi amplamente defendida no
período colonial. De modo concomitante, agentes coloniais buscaram rechaçar
e desprestigiar os saberes e maneiras de cura dos Tinyanga.
Santana aborda a relação entre o saber médico lusitano, arrogado de científico
e o saber médico dos Tinyanga, alcunhado por supersticioso, feiticeiro e
charlatão. Para além dos conflitos e contradições, ela mostra que tal relação
também foi marcada por iniciativas de complementariedade por parte dos
Tinyanga, alguns médicos e clientes, uma vez que, embora a população
fosse influenciada a abandonar o tratamento com Tinyanga, não o fizera. Ao
contrário, muitos passaram a transitar os dois espaços de conhecimentos
e práticas, fazendo uso de ambos segundo suas necessidades e noções de
saúde/doença, mostrando que determinadas doenças e sofrimentos somente
o Nyanga tinha a capacidade de curar porque suas origens tinha relação com
os costumes, com a ancestralidade, com forças sobrenaturais, invisíveis, que
os médicos europeus não sabiam e nem podiam manejar. A eficácia deste
tipo de tratamento era atestada até mesmo por alguns europeus.
19
Giovni Grillo de Salve problematiza a relação medicina e emergência de
políticas segregacionistas na Cidade do Cabo/ África do Sul, destacando
a agência de dois médicos (Alfred Gregory e Abdullah Abdurahman) na
reordenação dos interesses de sanitaristas, médicos e políticos coloniais
de segregar populações coloureds dos espaços urbanos sob justificativa da
necessidade de prevenir a propagação de doenças.
Tal intervenção resultaria na proteção do grupo populacional malaio daquele
processo de exclusão, apesar dos dados estatísticos no período revelarem
aquele grupo como os mais diretamente atingidos por contaminações,
portanto, com maior possibilidade de desencadear o contágio. Um caso
contrário teria ocorrido com as populações africanas no período, expulsas
dos espaços citadinos em massa.
Silene Franco analisa narrativas de mulheres parteiras, residentes em
bairros de periferia da cidade de Salvador e Lauro de Freitas, acerca de seu
aprendizado da arte de partejar, buscando dar destaque à relação existente
entre seus saberes de cura e suas experiências religiosas, em geral, marcadas
pelo universo religioso do Candomblé e da Umbanda. Franco demonstra
através das narrativas das parteiras entrevistadas o quanto o trabalho de dar
parto está intimamente conjugado com o universo cultural religioso e familiar
das mulheres. Em geral, o aprendizado de ser parteira deu-se em companhia
de mulheres mais velhas, avós, mães, tias, vizinhas e outras parteiras e o
sucesso de sua atuação mostrou-se atribuída aos seus orixás, guias e santos.
A experiência dessas parteiras fala de humanização do parto e das formas de
cuidados da saúde da mulher gestante e de seus filhos. Impacta na formação
20
de uma família alargada. As parteiras também se tornam mães das crianças
que “aparam”, ao contrário do individualismo e impessoalidade do parto e
assistência à gestante que se tornou comum nas maternidades, hospitais e
centros de saúde.
Danieli Siqueira discute numa perspectiva sociológica e comparativa
concepções e maneiras que envolvem o parto e o nascimento no Brasil e
Guiné Bissau. Em sua análise mostra como a atuação das mulheres mais
velhas, também conhecidas por comadres ou ainda aquelas que aparam
crianças e matronas no Brasil e em Guine Bissau, são atuantes na assistência
às mulheres em suas comunidades. Muito embora, no caso do Brasil, os
dados da Pesquisa Nacional Domiciliar (PNAD) subestimem sua presença
em termos numéricos e o Ministério de Saúde, bem como o arrogado saber
científico da medicina acadêmica, as vejam como veículos de danos ao invés
de produtoras e transmissoras de conhecimentos geracionais.
Seu artigo chama atenção para um repensar do lugar reservado a estas
mulheres nas políticas de saúde, alcunhadas por parteiras e reduzidas ao
corpo auxiliar de saúde para realizar tarefas onde o Estado não possui
atendimento. Destaca a forma pela qual seus saberes são tratados pelo
Estado, sobretudo revelados na atitude de formação das parteiras com
conhecimentos que não dialogam com as práticas que estas mulheres
exercem em seu cotidiano.
Kelma Otaviano mostra como as noções de saúde/doença são compreendidas
no universo do Candomblé de Nação Ketu e algumas maneiras de
cuidados com a saúde, especificamente no tratamento de doentes mentais
21
(acometidos por psicose e neurose). Através da experiência de trabalho
conjunto entre Terreiros de Candomblés e serviço de saúde, desenvolvido
no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Iracema na cidade de Fortaleza, no
estado do Ceará, Kelma Otaviano demonstra o impacto e a importância da
aplicação destes saberes de saúde de base africana e religiosa nas ações da
saúde pública. Tais maneiras de cuidados e saberes ministrados por líderes
religiosos de Candomblés contribuem para a reintegração social, criação de
autonomia e de corresponsabilidade da pessoa acometida de doença mental,
ao contrário do que ocorre nos tratamentos exclusivamente alopáticos e
demais ações manicomiais.
João Reis da Cruz Santos apresenta em seu artigo visões dos líderes religiosos
do Candomblé de Angola em Salvador/Bahia sobre saúde e doença, a partir
de narrativas colhidas em entrevistas. João Santos mostra que o saber e
o fazer de tais líderes em benefício da vida, da saúde e do bem-estar das
pessoas estão intimamente relacionados com a cultura religiosa do grupo
marcada por heranças africanas transmitidas por tradição oral de geração a
geração e adaptadas ao contexto afro-brasileiro com mudanças ao longo do
tempo.
Denize de Almeida Ribeiro fala da Medicina Tradicional de matriz afro-
indígena praticada nos terreiros de Candomblés da Bahia. Neste artigo
ela apresenta parte de suas pesquisas junto aos terreiros de Salvador,
demonstrando que tais instituições desenvolvem variadas práticas de saúde
e funcionam como espaços de cuidados tanto para adeptos/as quanto para
pessoas de diferentes classes sociais, raça/etnia e religiões. Mas, chama a
22
atenção de que tais práticas foram postas à margem do sistema oficial de
saúde, deslegitimadas por serem sem comprovação “científica”.
Esperamos com essa coletânea instigar maiores investigações e conversas
sobre o assunto.
Jacimara Souza Santana
Professora de História da África da UNEB
CURA & MANDINGA: A LEITURA DE DOIS
PROCESSOS CRIMES ENVOLVENDO AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS
NO PÓS-ABOLIÇÃO (SC-1890).
José Bento Rosa da Silva
PRELÚDIO REPUBLICANO: À GUISA DE INTRODUÇÃO
Estamos no ano de 1890, às vésperas do primeiro ano do novo regime nos
trópicos, as mudanças se faziam sentir desde a década de sessenta e setenta
do oitocentos, em decorrência dos movimentos que consideramos o ocaso
do império: leis abolicionistas, liberalismo econômico, republicanismo, e
sobretudo, o cientificismo representado pelos ‘homens de ciência’: a geração
de setenta, segundo Lila Moritz Schawarcz1. Mas as mudanças, ainda que em
ritmo acelerado, não se fizeram do dia para a noite. Uma prova disso foi que
estava em vigor até o dia onze de outubro do corrente ano, o Código Criminal
de 1830; e mais, mesmo após a publicação do Código Penal (republicano),
em 11 de outubro, muitos crimes foram julgados a partir do Código Criminal
do Império, mesmo este regime já tendo sucumbido. Os dois processos que
analisamos sobre curandeirismo estão nesta relação. Cabe aqui a alusão
1 Referimo-nos à obra: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
24
clássica: “o morto agarrava-se ao vivo”2, pois que as permanências do
império se faziam presentes nas práticas, nas mentalidades e sobretudo nas
estruturas da sociedade e do estado, não por acaso, os primeiros anos da
República brasileira foi denominada de República Velha pela historiografia e
pelas força políticas após a década de trinta do século XX.
A ‘matéria prima’ que utilizamos para analisar o período pós-abolição e início
da República, foram dois processos crimes envolvendo ex-escravos africanos
e ex-escravos crioulos, no então Estado Federal de Santa Catarina, conforme
grafado no preâmbulo de um dos processos3. Os processos como fontes de
investigação nos apontam faces da sociedade, ou seja, vão além das tramas
arroladas nos depoimentos, inquéritos e demais peças. No caso específico,
apontam para práticas curativas proibidas pelo código jurídico, mas que, no
entanto resistiam, sobretudo entre as camadas ‘subalternas’, aliás, ‘as vítimas
preferenciais’da ordem republicana estabelecida a 15 de novembro de 1889,
implantando o que a historiografia denominou de República de Espada,
seguida pela República Oligárquica, fechando o ‘ciclo da República Velha’.
AS PLANTAS QUE CURAM TAMBÉM MATAM’: OS CURANDEIROS
COMO AGENTES.
Na História do Brasil, a arte de curar tem uma relação profunda com a
2 MARX, K. “ Préface à la première édition allemande du première livre du Capital”. Cit. MARX & ENGELS. Oeuvres choisis. Moscou: Progrès, 1970, tomo III,p.483. Apud. HARDMAN, Foot e LEONARDI, Victor. História Da Indústria E Do Trabalho No Brasil. SP: Ática,1991,2a.Ed,p.112.
3 O processo no qual foi réu José Cabinda, de novembro de 1890; já no processo anterior, no qual foram réus José Marcelino, vulgo, Zé crioulo; a preta Luiz Isabel e o africano Pedro Rocha; a denominação é Estado de Santa Catarina, portanto, suprimido o Estado Federal. Mas é bom lembrar que o Brasil era conhecido como: República dos Estados Unidos do Brasil.
25
presença dos africanos, as iconografias que remontam a colônia e império
são pródigas em exemplos, basta observarmos as produções de Rugendas,
Debret, dentre outros estrangeiros que por aqui estiveram em condições
diversas. A tradicional xilografia de cirurgiões barbeiros em plena via pública
praticando as sangrias nos dão conta disso. Se na África havia distinção entre
o curandeiro e o feiticeiro, no Brasil isso não nos parece muito evidente:
aquele que fazia o bem (a cura), também podia fazer o mal (feitiço); dependia
do desejo do cliente ou do paciente4. Nos dois processos analisados
encontramos vestígios do limiar muito tênue entre curandeirismo e feitiçaria
no Brasil, mais exatamente, nos primeiros anos da república, no litoral norte
do estado de Santa Catarina.
José Cabinda, ex-escravo que dizia ter nascido em Cabinda, na Costa da África
e com cem anos de idade, foi processado por curandeirismo e feitiçarias no
ano de 1890, ao menos nas representações que dele fizeram as testemunhas
arroladas no processo, Cabinda era considerado um agente do bem e do
mal. Na denúncia do promotor público, Henrique Carlos Boiteux, datada de
7 de novembro, na cidade de Tijucas, lia-se:
[...]Há bastante tempo que o denunciado José Cabinda, inculcando-se –
curandeiro – explora a credulidade dos incautos e ignorantes, fornecendo-
lhes para diversos fins drogas e ingredientes por ele conhecidos e por ele
preparados. Para esse fim fazia reuniões noturnas em seu casebre no qual
foi encontrado e apreendida uma pequena caixa de madeira contendo
várias raízes, cascas, caramujos e outros objetos que empregava em sua
manipulações.
4 “[...] Na África tradicional, há uma clara distinção entre o manipulador de forças maléficas e os sacerdotes ou curandeiro, responsáveis pelo equilíbrio físico e espiritual do grupo. Entre alguns povos bantos, por exemplo, aquele é o ndoki, o muloji, malfeitor e proscrito, enquanto estes são o nganga e o kimbndu, merecedores de respeito e consideração”. In. LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira Da Diáspora Africana. SP: Selo Negro, 2004, p.273.
26
Pelo depoimento das testemunhas Manoel Joaquim Jacintho, Luiz Ramos
de Oliveira e Thomaz Daniel da Boaventura, constantes do dito inquérito
junto e ofícios de folhas 2 e 3 do subdelegado de polícia e inspector do 10º.
Quarteirão, evidencia-se que, diversas pessoas daquela localidade, entre elas
Antônio dos Santos, Manoel João e diversos membros de famílias de Ramos,
de Oliveira, sucumbiram vítimas da malvadeza do denunciado, o qual com as
substâncias tóxicas de que faz uso, tem conseguido desfazer-se de pessoas
que lhe são desafetas![...]5
Os crimes de Cabinda, segundo o promotor Boiteux vinham de longa data,
possivelmente anterior à república, no entanto, só denunciados neste
contexto. Não sabemos os reais motivos, mas parece-nos que havia uma
cumplicidade entre os clientes/ pacientes e o curandeiro. Já os que não
simpatizavam com as práticas de Cabinda não o denunciaram anteriormente
por medo, como ficou expresso no depoimento de uma autoridade6, Cabinda
5 Arquivo Do Fórum Da Comarca De Tijucas. Sumário Crime 1890 (Réu: José Cabinda), folhas: 02 v. Citaremos como: A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK.
6 A missiva do sub-delegado de polícia é reveladora do medo que algumas autoridades tinham de Zé Cabinda:“[...]O cidadão Doutor juiz municipal da comarca de São Sebastião de Tijucas.Procedendo na forma da lei, pelos guardas policial Martinho Lourenço de Souza e João Batista Sobrinho, remeto-vos as suas ordens o preso José Cabinda, por ter incorrido nas penas do crime, acompanha os autos de culpa, remetido ao respectivo escrivão desse juiz, quem a vós fará conclusos, acompanha também uma caixa de mandingagem do dito preso, para melhor prosseguir o que de direito for, peço-vos fazer a devida justiça de modo que o dito preso não volte nesta paróquia especialmente no Zimbros, é contido por um malvado, o que é justo e acresce mais, que a malvadeza do dito Cabinda, é conhecida também nessa comarca, Camboriú, e até no Desterro, e autoridades daqui já não fizeram a devida justiça não que não merecesse, todos os dias mas sim com receio .Saúde e Fraternidade.Porto Belo, 10 de outubro de 1890.O sub-delegado de polícia.João Eufrázio de Souza Climaco[...]”. In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 04Estas representações não ficaram no passado, ainda hoje, as práticas e ritos relacionados com a religiosidade afro-brasileira são estigmatizadas. Na música por exemplo:“[...]Não mexe comigo que eu ponho o seu nome lá no meu terreiroEu sou macumbeiro lê lêEu sou macumbeiroMeu santo é do forteCaboclo do norte que só faz o bemEle não faz o malEle só faz o bemÉ flecha encarnada, mãe santa me deuMas...Não mexe comigo que eu ponho o seu nome lá no meu terreiroEu sou macumbeiro lê lêEu sou macumbeiro[...]”Santo Forte. Autor: Cláudio Fontana. Fez sucesso nas emissoras de rádio no Brasil nos anos 70.
27
era amado por uns e temido por outros em virtude dos poderes que lhe
eram atribuídos: ‘de fazer curar’ e de ‘fazer matar’.
Boiteux, como homem de ciência que era, atribuiu às mortes provocadas por
Cabinda, aos malefícios das ervas, qual seja, não era ele que teria o poder de
fazer o mal, mas puramente o conhecimento que tinha das ervas; neste sentido
o poder estaria não em Cabinda, mas na natureza, independentemente
das potencialidades do africano. Mas há um depoimento que mostra que
Cabinda não matava apenas com as palavras, revelando outra perspectiva,
para além daquela dos ‘homens de ciência’ da época. Esta, de Boiteux,
representando a visão cartesiana, ocidentalizada; a outra, a do depoente,
simbolizando aspectos da cosmovisão advindo da África, onde a fala humana
(ou de determinados homens):
Coloca em movimento forças latentes, que são ativadas e suscitadas por
ela – como um homem que se levanta e se volta ao ouvir seu nome. A fala
pode criar a paz, assim como pode destruí-la. É como fogo. Uma única palavra
imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto
em chamas pode provocar um grande incêndio [...] ‘O que é que coloca uma
coisa nas devidas condições? A fala. O que é que estraga uma coisa? A fala. O
que é que mantém uma coisa em seu estado? A fala’[...] A palavra, não só [tem]
um poder criador, mas também a dupla função de conservar e destruir. Por
essa razão a fala, por excelência, é o grande agente ativo da magia africana7.
Manoel Joaquim Jacintho, morador dos Zimbros, foi um dos que testemunhou
no processo em que José Cabinda fora réu, dentre outras acusações atribuiu
a Cabinda a morte de um oponente do africano por disputa de madeiras,
neste está implícito o poder da palavra de Cabinda ao sentenciar: ‘hás de me
7 A fala humana como poder de criação. HAMPATÊ BA, A. In. KI-ZERBO, Joseph (Editor) História Geral Da África- Vol. I. Metodologia e pré-história da África. SP: Cortez: Brasília: UNESCO, 2011,3a.Ed., p.172-173.
28
pagar!’ Eis que dias depois... mas ouçamos do próprio Manoel o acontecido,
posto que ele fora testemunha ocular:
[...] em uma ocasião, há isto um ano mais ou menos, o réu presente procurara
a ele testemunha para ir buscar um pouco de madeiras que havia cortado no
mato do falecido Manoel João, ao que ele respondeu que sim, porém passados
alguns dias, ele réu lhe disse que o dito Manoel João lhe havia negado a dita
madeira, mas que ele lhe havia de pagar; tendo poucos dias depois falecido o
dito Manoel João[...]8
Cabinda ficou irado em virtude de o dito Manoel João haver faltado com a
palavra: prometera as madeiras ao africano e depois negara, desta forma,
deve ter atrapalhado os planos de Cabinda. O que estragara a vida de
Manoel João, se seguirmos a cosmovisão africana acima mencionada, não foi
a ‘praga’ de Cabinda, mas a própria fala de João: “O que estraga uma coisa?
A fala. O que é que mantem uma coisa em seu estado? Afala”. Nesta linha de
raciocínio fora o próprio Manoel João o causador de seu infortúnio por não
ter mantido a palavra empenhada.
Manoel Jacintho não se limitou a denunciar o crime de Cabinda contra
Manoel João, disse que era voz pública, que outras pessoas foram vítimas de
Cabinda, inclusive vários de uma mesma família. Ao responder ao juiz acerca
das demais mortes atribuídas ao africano, e quanto tempo ficou Manoel João
moribundo:
[...] Respondeu que Manoel João queixava-se de dores de estômago e
que falecera antes de um mês depois da questão dos caibros ou madeiras,
ignorando quantos aos demais, sendo porém certo que os da família Ramos
faleceram um cepas o outro até que tendo um de nome Fermiano José Alves
8 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 28v-29.
29
procurado um curandeiro de carreira: Dissera por nome Francisco Rodrigues
do Nascimento de cor preta a qual curou os que ainda estavam doentes[...]9
O que se depreende do depoimento é que as ‘mandingas’ do Cabinda eram
certeiras, não deixava ninguém sofrendo por muito tempo10: o primeiro
morrera com menos de um mês, e na família vitimada pelo mesmo, ‘faleceram
um cepas ’(sic), qual seja, foram morrendo um após outro11. Não fosse um
membro da família recorrer à um curandeiro de carreira, morreria toda a
família. Outra evidência revelada: havia na região outro curandeiro, e ao que
nos parece, mais competente, pois que tido como ‘de carreira’; também um
descendente de africanos, pois que ‘de cor preta’. A arte do curandeirismo
parece-nos ligada à identidade africana e afro-brasileira; na linguagem de
época: coisa de pretos. Na legislação republicana: prática ilegal da medicina,
charlatanismo. Motivos suficientes para serem inclusos no artigo 158 do
Código Penal de 1890; mas como José Cabinda, por ter sido julgado pelo
Código Criminal de 1830, o artigo relativo ao seu crime era o 192, leia-
9 Idem. Folhas:29v.
10 Em outro depoimento, Manoel Jacintho foi mais enfático quanto às ações de Cabinda:“[...] Perguntado se não sabe se o dito Cabinda com sua mandinga tem matado alguém?Respondeu que tem ouvido algumas pessoas naquele arraial, assim como o finado Antônio Santos, que dizem que foi ele quem matou, e é fato que o dito Cabinda tratou do finado Antônio Santos, e o dito Cabinda tem por costume, qualquer dúvida que tenha com alguém, logo diz pela forma seguinte: tu me hás de pagar. Assim como há poucos meses aconteceu, que Cabinda sem consentimento de Manoel João, foi aos matos do dito finado Manoel João e tirou uns caibros, Manoel João carregou os ditos caibros para sua casa, e o dito Cabinda disse, para Manoel João esta forma seguinte: me hás de pagar cedo . E como de fato o homem a fim de quinze dias mais ou menos morreu[...]”.In. Idem. Folhas:15.
11 Outra versão das ‘maldades’ de Zé Cabinda a partir dos depoimentos:“[...] Perguntado se o dito Cabinda tinha feito mal a ele testemunha ou outras pessoas qualquer? Respondeu que sim, tinha o dito Cabinda feito mal a toda a família de sua casa, por que há tempos passados Cabinda dava-se em casa dele testemunha e por nada retirou-se ficando todos da família doentes ignorando os médicos a moléstia e assim foi morrendo seu pai, seu irmão José , seu irmão João e afinal sua irmã Josefa, não havendo espaço um do outro maior de três meses e afinal um outro curador deu remédio ao resto da família que todos melhoraram e disse que quem fez o mal foi o Cabinda.Perguntado o que sabe mais sobre o comportamento dele, e se não causa estimação da vizinhança? Respondeu que o comportamento é péssimo e que não goza estimação de ninguém. [...]” In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas 12
30
se, relativo a homicídio12. Apesar da lei, nos chama a atenção a categoria
curandeiro de carreira. Havia ao que nos parece, a tolerância com alguns
curandeiros, sobretudo os considerados ‘de carreira’; portanto, seguindo
esta lógica, havia ‘curandeiros & curandeiros’. Zé Cabinda estaria em qual
destas categorias?
Seja lá como for ele não tinha como fim o enriquecimento ilícito, mas era
necessário sobreviver, já que não possuía bens materiais, - tão caro aos
cidadãos da jovem república -, precisava sobreviver, por isso aceitava
donativos em razão das curas que fazia: galinhas, perus e qualquer outra
coisa que porventura os clientes lhe oferecessem em ‘gratidão’ pela cura;
mas nem todos viam por este prisma. A opinião de uma autoridade sobre
Cabinda nos mostra como ele não era bem visto pela ordem estabelecida.
No caso específico, uma missiva do Inspetor do 10º Quarteirão, para o sub-
delegado de polícia:
[...] Participo a Vossa Senhoria em que a informação que me pede respeito
a José Cabinda, africano, são estas que lhe posso informar, que no dia 5
do corrente, o cidadão Guilherme Santos, na minha casa disse em que ele
foi o cabo com o irmão Manoel João e que o dito negro não tem senão um
chão de casa, não tem roça, não tem renda. Só de fazer mal para ganhar
nas coxa, não presta para melhor do que qualquer de nós, dizem que
vem passando a galinhas e perus como um grande, atacando os brancos.
Zimbros, 9 de outubro de 1890[...]13
Vale ressaltar que alguns depoimentos remontam acontecimentos passados
12 Idem. Folhas: 07.
13 Idem, Ibidem. Folhas: 06.
31
há um ou mais anos, evidenciando a reputação de José Cabinda na região, e
mais, pessoas viajavam léguas e léguas em busca das curas proporcionadas
pelo velho africano, sua casa era uma referência, um lugar de ‘peregrinações’14.
A segunda testemunha, Luiz Ramos de Oliveira corroborou Manoel Joaquim
Jacintho acrescentando que foi outro curandeiro quem salvou uma família
vitimada pelos malefícios do Cabinda, declinando o nome do dito curandeiro:
Francisco Rodrigues. O fato teria acorrido há mais ou menos doze anos
passados, e foi Francisco Rodrigues, que após curar os sobreviventes da família,
acusara o Cabinda de ter feito o malefício. Ou seja, além de curar, Rodrigues
identificou o agente da doença. Haveria ‘uma demanda’15, uma disputa de
poder entre estes dois curandeiros? Seja lá como for, o certo é que perguntado
sobre o que sabia sobre os crimes de Cabinda, Luiz Ramos respondeu:
[...] que é exato que o acusado é ali tido por curandeiro e que deu um dia chá
de uma erva que denominam timbó a um seu irmão José o qual veio a falecer
pouco depois com as “guelas” queimadas . Disse mais, que misteriosamente
seu pai adoecera e que o acusado dirigindo-se ao leito de seu pai o prevenia
que cuidasse em si, pois que seria bastante doente, que falecera pouco tempo
depois, seguindo-se seu irmão João, José e Josepha, todos em menos de um
ano [...]que atribui ser o acusado em vista de ter sido chamado um curandeiro
de nome Francisco Rodrigues o qual declarou que era o acusado José Cabinda
o autor daquelas mortes[...]16
Segundo Luiz Ramos, parente das vítimas, o próprio Cabinda lhe havia dito
14 Do depoimento de Manoel Joaquim Jacintho: “[...]Perguntado se sabe que o dito Cabinda, faz ajuntamentos em sua casa? Respondeu que sim, tem visto muita gente junta em casa dele, e destas gentes de mais de um dia de viagem, e os ditos ajuntamentos tem por costume ser de noite[...]” Idem. Ibidem. Folhas: 10v-11.
15 A expressão ‘tocar demanda’ é muito usada em algumas regiões do Brasil para caracterizar disputas no campo da religiosidade afro-brasileira.
16 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 31v-32.
32
quem nem toda a família morreria, porque ele, Cabinda não queria. Então
o juiz quis saber do depoente quais eram os sintomas que apresentavam
os doentes, e se as vítimas haviam consultado médicos da região. Luiz
respondeu afirmativamente, que procuraram o profissional Jose da Cunha
Porto, o qual os medicou sendo também consultado um médico que
esteve na região em comissão. Segundo o médico, tratava-se de beriberi e
receitou aguardente canforada. A receita não nos parece muito diferente
das garrafadas dos curandeiros tradicionais da região, no entanto, estava
‘revestida do saber médico’. Um tema muito caro aos estudos foucaultianos17.
A testemunha, talvez desconfiada do receituário, diz não ter tomado da
bebida recomendada. Quanto aos sintomas da doença eram: “dormências
nas pernas e prostração geral, dores no estômago, corpo quente, pernas
inchadas, havendo entre os doentes sintomas diferentes”18.
O negociante Francisco José dos Santos, de trinta e quatro anos de idade,
negociante, casado, morador no lugar Zimbros, em seu depoimento
acusou Cabinda de produzir um remédio abortivo, ou seja, trabalho para
uso maléfico, uma vez que atentando contra a vida de inocentes; mas por
outro lado, poderia ser visto como benéfico, uma vez que se tratava de
uma gravidez indesejada. Reside uma dicotomia entre bem e mal, entre
curandeiro e feiticeiro, constituindo campos de saberes religiosos e artes de
fazer: trabalhos de uso benéfico (ÀWÚRE), trabalhos de uso maléfico (ÀBÌLÙ)
e trabalhos de proteção contra trabalhos maléficos (ÌDÁÀBÒBÒ), conforme
17 Sobre esta questão. Ver: O nascimento da medicina social. In. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder.RJ: Graal, 1979,8a.Ed.
18 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 32.
33
as pesquisas de Pierre Verger19. Voltemos ao depoimento de Francisco José
dos Santos, incriminando o Cabinda pelos seus atos:
[...] ele, testemunha sabe de certeza, que uma filha solteira de José Martins,
tendo ficado grávida de João Quintino dos Santos, este falou com o dito
Cabinda, afim de matar a dita branca e o dito, - digo -, e consta que o dito
Cabinda fez a dita garrafada, porém parece a ele testemunha, que a dita
moça não chegou a tomar a dita garrafada por ter medo, e julga-se que não
tomasse por que a dita moça deu a luz a dita branca[...]20
A fama de Cabinda era que, além de cuidar dos males do corpo também
cuidava dos ‘males de amor’, fazendo com que pessoas apaixonadas pudessem
‘agarrar’ seus pretendentes. Aliás, Verger ‘classifica’ entre os trabalhos de uso
benéfico: trabalho para dominar alguém, trabalho para persuadir as pessoas,
trabalho para conquistar de imediato uma mulher, trabalho para ter relações
sexuais com uma mulher, para ter relações sexuais com um homem, dentre
outros21. Pois bem, José Antônio Vieira não só confirmou que Cabinda tinha
a pretensão de interromper a gravidez indesejada da filha de José Martins,
como se vangloriava de elaborar ‘filtros amorosos’ para quem o desejasse:
[...]que o dito Cabinda é contido no arraial do Zimbros por mandingagem, e a
poucos dias soube mais, que o dito Cabinda respondeu que gabou-se que tinha
dado, - digo -, feito uma garrafada de remédio para João dos Santos, afim de
que não viesse vir a luz o recém nascido que uma filha dele testemunha estava
para dar a luz, porém que sua filha apesar de estar grávida não quis tomar o
remédio, e independente disso acresce que no Canto Grande uma moça não
querendo casar com um moço, conta-se que o dito Cabinda se ofereceu para
dar remédio a dita moça a fim de a dita moça resolvesse casar com o dito moço,
19 VERGER, Pierre Fatumbi. EWÉ: o uso das plantas na sociedade Iorubá. SP: Cia. Das Letras, 2009.
20 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 12v-13.
21 VERGER, Pierre Fatumbi. Op. Cit.
34
porém se fez ou não a dita garrafada, ele testemunha não sabe[...]22
O lavrador Thomas Daniel da Boaventura descreveu aspectos do medicamento,
bem como o comportamento do curandeiro e mandingueiro José Cabinda.
Segundo ele, o remédio que um Cabinda receitara a Antônio dos Santos,
tinha uma cor esverdeada. Na verdade ele ficara sabendo a partir do relato
de sua mãe, que certo dia, cuidando do doente, presenciou-o ‘medicando’ o
enfermo, e que logo após ter bebido o dito remédio, o doente quase veio a
falecer. E de fato veio a falecer posteriormente, embora o Cabinda havia dito
anteriormente que só ele tinha capacidade de curar Antônio; talvez por isso
permitiram, ou porque já não havia mesmo o que fazer:
[...] que na moléstia do finado Antônio dos Santos, o dito Cabinda dizia que só ele Cabinda podia curar Antônio dos Santos, em como fosse assim consentido, o dito Cabinda pegou a tratar do dito doente, porém um dia levou uma garrafada de remédio, na ocasião que a mãe dele testemunha estava servindo o dito doente, e depois de ter dado uma colher do dito remédio e o doente quase morrer feito o resto do remédio (ilegível) e tinha uma cor esverdeada[...]23
Terminado o inquérito foi decretada a prisão preventiva do africano. A
‘prova material do crime’ foi um bauzinho contendo as mandingas, que foi
levado para que os peritos fizessem um rigoroso exame, averiguando o seu
conteúdo24. O exame foi realizado no dia vinte e três de outubro daquele ano
22 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas:16 -16v.
23 Idem. Folhas:15v.
24 “[...] Em vista do inquérito constantes destes autos, requeiro a prisão preventiva contra o acusado José Cabinda africano, e que se proceda perante a delegacia de polícia o rigoroso exame nos objetos contidos na caixa remetida pela sub-delegacia de polícia de Porto Belo à referida delegacia desta Vila, depois do que esta promotoria requererá o mais que julgar conveniente, à bem dos interesses da justiça.Tijucas, 13 de outubro de 1890.O Promotor PúblicoHenrique Carlos Boiteux[...]” In.A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 18.
35
de 1890, sob os olhares atentos dos peritos: Zeferino Antônio Rodrigues de
Carvalho e José Romualdo de Caldas. Foram testemunhas: Joaquim José das
Flores e Cirillo Ávilla dos Santos.
Findo o exame, os peritos, - entendidos em medicina -, segundo consta do
documento. Declararam o seguinte:
[...] que tendo examinado os ingredientes que se achavam dentro de uma
caixinha que se achava aberta, constava esses ingredientes de um caramujo
hermeticamente fechado contendo dentro do mesmo, fragmentos de cascas
de vegetais; encontraram mais um pedaço de lixa de cação; um breve
cosido(sic) e que continha fragmentos de cascas de pau- para- tudo, um
pedaço de uma vela de sebo; encontraram mais, um cálice quebrado e grande
quantidade de raízes de vegetais que eles peritos desconhecem a ação[...]25
Os ‘homens de ciência’, os peritos, não foram capazes de saber a finalidade
dos objetos constantes dentro do bauzinho. Elementos da natureza do
reino vegetal: pedaço de madeira, raízes de vegetais. Elementos do mundo
animal: lixa de peixe (cação), caramujo. A união entre reino animal e
vegetal: caramujo ‘hermeticamente fechado’ contendo dentro fragmentos
de vegetais. Pedaço de vela e um cálice: presença de objetos da religião
cristã-católica. E ainda um breve cozido: possivelmente a proteção de
José Cabinda. Daniela Calainho ao investigar os Mandingas na metrópole
portuguesa, identificou:
[...] A força das mandingas ligava-se no mais das vezes ao tratamento que
recebiam depois de preparadas. Cozidas dentro de bolsas e usadas penduradas
ao pescoço ou amarradas no braço, eram defumadas com ervas e incensos,
benzidas, enterradas à meia-noite em encruzilhadas ou postas debaixo da
pedra d’ara no altar de uma igreja para em cima delas serem rezadas três
25 Idem. Folhas: 23-23v.
36
missas, adquirindo assim mais potência e eficácia[...]26
Parece-nos que esta ‘prova material’ não foi o suficiente para incriminar o
Cabinda, como concluiu o juiz municipal Izidoro José Marques27. Malgrado
esta decisão, José Cabinda ficara dois meses preso inocentemente acusado de
mandingagem e ainda de roubo de galinhas. As custas do processo recaiu sobre
a municipalidade, talvez José Cabinda tenha saído fortalecido desta acusação,
caso ele alegasse que fora defendido pelo sobrenatural que o protegia através
das bolsa de mandinga que carregava como proteção. Ele andava com o corpo
fechado, apesar de viver em período em que o cativeiro já havia sio extinto, a
liberdade para os sujeitos egressos da escravidão ainda era muito precária,
então melhor recorrer à proteção do sobrenatural mediada pelos elementos
da natureza, que curavam e protegiam os que neles acreditavam.
Sorte melhor teve Pedro Rocha, também africano e envolvido em um processo
crime juntamente com José Marcelino, vulgo, José Crioula e sua filha, Luiza
Isabel. Era o mês de outubro do mesmo ano de 1890. Não se tratava de
mandingagem ou feitiçaria, mas crime tão correlato, uma vez que envolvia
práticas de curandeirismo.
Pedro Rocha, nascido na Costa da África, segundo o registro do escrivão, na
região de Bahó,- mas acreditamos tratar-se de Boké -, filho de Carlos Bambu,
26 CALAINHO, Daniela Bueno. Metrópoles Das Mandingas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo regime. RJ: Gramond/Faperj, 2008,p.98.
27 “[...] Vistos e examinados estes autos, julgo improcedente a denúncia de folhas 2,contra o réu José Cabinda. Em posse dos depoimentos das testemunhas, 1a., na falta das respectivos exames cadavéricos e não sendo claras e contestar aos mesmos depoimentos de folhas à folhas, diante de nenhuma prova de pode colher da culpabilidade do acusado é claro que não existe fundamento, prova, autorizo o justo despacho de pronúncia, recorro deste meu despacho para o meritíssimo doutor juiz de direito da comarca a quem o escrivão remeta o presente, por isso, pague as custas a intendência municipal.Tijucas, 12 de dezembro de 1890.Izidoro José Marques [...].In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JK. Folhas: 51.
37
que em nossa opinião é possível tratar-se de um membro da etnia Bambara,
com setenta anos de idade (mais ou menos), casado, lavrador. Pedro fora,
no passado recente, escravo de João Antônio da Rocha, de quem ‘herdara’
o sobrenome. Aliás, José Marcelino também ex-escravo, deve ter ‘herdado’ o
sobrenome do ex-senhor, Manoel Marcelino da Silva. Neste sentido, mesmo
findada a escravidão, a identidade do ex-escravo estava presa à do ex-senhor
‘até que a morte os separasse’; caso o ex-escravo não renegasse o sobrenome
por algum motivo, conforme observamos em um estudo de caso no litoral norte
do estado de Santa Catarina, mas isso não nos parece um processo comum,
tanto é que há muitos descendentes de escravizados no Brasil, carregando o
sobrenome dos descendentes dos antigos senhores dos seus antepassados28.
Fonte: http://www.africa-turismo.com/mapas/guine.htm. Acessado em : 09.12.2014.
Pedro Rocha, além de agricultor, era um exímio conhecedor das plantas que
28 Encontramos um destes casos ao investigamos o período pós-abolição na região sul do Brasil, mais exatamente no litoral norte do estado de Santa Catarina. Sobre esta questão ver. SILVA, José Bento Rosa da. Caetanos & Caetanos: tradição oral e história(em preto & branco). Itajaí: Ed. do autor, 2008.
38
curavam certamente um conhecimento herdado dos seus antepassados.
Sabia por exemplo que: matangas sweswe era um abortivo, que pau-cobra
era um bom remédio para achaques, que para apostemas era aconselhado
butua e engala, que butua também era boa para o baço e para inchaços,
para dores de ouvido cobra-carneira e gergelim, para o mal de gotas mututu,
para gonorreia muria-nhoka; sabia mais, que engaria era também excelente
contra: diarreia, disenteria, varicosidadese cólicas29. Enfim, era um curandeiro.
Na época, a gonorreia era uma das doenças venéreas que mais atormentavam
os jovens varões, sobretudo os ávidos por iniciarem-se na vida sexual, afim
de testar sua virilidade. Pessoas como: Francisco Carvalho, Miguel Lucidorio e
João Maria Paranhos, filho de Maria Lemos; já haviam recorrido a curandeiros
para se curarem; aliás, o próprio Pedro Rocha já havia feito uso de seus
próprios remédios para curar-se de uma gonorreia30.
Certo dia, José Crioulo procurou Pedro Rocha e “pediu para arranjar-lhe
um remédio para curar uma gonorreia, não lhe dizendo porém quem era
o doente”; como Pedro conhecia o ofício, não se fez de rogado, pesar dos
volumes de pedidos, atendeu ao Crioulo. Pelo trabalho, José Marcelino, vulgo,
José Crioulo, pagou-lhe a quantia de um mil réis31. Não sabia o africano que
29 Sobre as sociedades africanas e as formas de tratamentos medicinais. Ver. DIAS, José Pedro de Souza. Índice de drogas medicinais angolas em documentos dos séculos XVI a XVIII. Revista Portuguesa de Famárcia. N. 45, 4, 1995,p.174-184. Apud. DEL PRIORE, Mary e VENÂNCIO, Renato Pinto. Ancestrais: uma introdução à história da África Atlântica. RJ: campus, 2004,p.15.
30 Segundo o auto de perguntas feitas a Pedro Rocha. In. Arquivo Do Forum Da Comarca De Tijucas. Sumário Crime 1890(Réus: José Marcelino da Silva, Luiza Isabel e Pedro Rocha. Folhas: 18v.Citaremos como: A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR.
31 No depoimento de Pedro Rocha disse literalmente: “[...] haverá dois meses, mais ou menos, apareceu em sua casa o preto José Crioulo, o qual lhe pediu para arranjar-lhe um remédio para curar uma gonorreia, não lhe dizendo porém quem era o doente e como ele respondente costumava preparar com ervas um remédio do que ele próprio já fizera uso e tem fornecido a mais de uma pessoa daqui, entre eles Francisco Carvalho, Miguel Lucidorio e João Maria Paranhos, filho de Maria Lemos; prestou-se por isso a preparar meia garrafa de medicamento que o dito José
39
tal ato poderia levá-los às barras do tribunal, pois que o remédio não era
para curar gonorreia alguma, como se verá adiante.
José Crioulo estava na verdade procurando alguém que pudesse ajuda-lo a
‘consertar’ o mal que fizera à sua própria filha, Luiz Isabel. Ele a engravidara
e precisava ‘dar cabo ao mal fruto daquele ventre’. Procurou então o
[...] preto Domingos, ex-escravo de Eleutério Mafra, a este pediu-lhe que lhe
indicasse algum remédio ou droga que servisse para fazer desaparecer o
fruto de sua imprudência, ao que Domingos lhe respondera que não sabia,
inculcando-lhe o preto de nome Pedro, ex-escravo de João Antônio da Rocha,
o qual talvez soubesse ensinar-lhe alguma cousa[...]32
Parece-nos que a arte de curar era dominada pelos africanos e seus
descendentes, posto que José Marcelino foi procurar um outro preto,
Domingos, para certificar-lhe do que necessitava; podia ser também por
cumplicidade, quando os pretos se entendiam por serem todos egressos do
cativeiro, haviam passados pela experiência de ‘malungos’33. Seja lá como for
Domingos indicou o nome de Pedro Rocha, que sabia ser um curandeiro.
Embora José Crioulo não revelasse a finalidade do remédio, Pedro havia
orientado como tomar o medicamento, - a posologia -, segundo a versão
científica do processo curativo:
[...] Tendo procurado ao dito Pedro, a este se dirigiu, e expondo-lhe o que
Crioulo veio buscar depois visto como estando preparando para outros não pudera servi-lo mais depressa sendo que recebeu do mesmo José a quantia de um mil réis[...]” In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas: 18v-19.
32 Do Auto de perguntas feitas a José Marcelino da Silva. In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas:17.
33 Expressão que significava ‘companheiros de jornada’ entre alguns escravizados. Ver. LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto Do Brasil. RJ: Pallas, 2003.
40
pretendia ao que este disse- lhe que arranjaria o que era preciso e que viesse
no dia seguinte, que estaria pronto. Disse mais, que dois ou três dias depois
voltou e recebeu do dito Pedro a garrafa que lhe parece ser a mesma que
lhe foi apresentada, a qual continha um líquido que deveria ser tomado uma
colher antes do almoço, outra antes do jantar e outra antes ou depois da ceia;
por cuja garrafa pagou um mil réis., sendo que levando para sua casa o dito
medicamento, entregou à sua filha a quem recomendou não tomasse mais do
que a dose indicada. [...]34
A elaboração do medicamento requeria um tempo, por isso Pedro não o
forneceu de imediato, só estaria pronto no dia seguinte, mas não sabemos
por quais motivos, talvez em virtude do preço, José Crioulo só retirou a
encomenda três dias depois, malgrado a urgência do remédio. E mais,
Pedro Rocha estava ocupado com outras encomendas, isso mostra o quanto
era solicitado pela vizinhança e pessoas, que talvez como no caso do José
Cabinda, viajava dias para recorrer seus trabalhos curativos. Mesmo com
toda a sua ocupação, preparou meia garrafa do remédio para o solicitante
“[...]prestou-se por isso a preparar meia garrafa de medicamento que o dito
José Crioulo veio buscar depois visto como estando preparando para outros
não pudera servi-lo mais depressa[...]”35
A eficácia do remédio, ou droga, pode ser comprovado no depoimento
de Luiza Izabel; tanto na recomendação que seu pai lhe fizera quanto à
observação do posologia, quanto no perigo que pudesse lhe causar, caso
excedesse na dosagem, comprovando o dito popular já mencionado no caso
anterior: “as plantas que curam também matam”. Bastaram apenas duas
doses. Vejamos as recomendações de José Marcelino à sua filha Luiza Izabel:
34 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas: 17-17v.
35 Idem. Folhas: 18v-19.
41
[...] Perguntada se foi ela respondente quem pediu para lhe ser administrado
o remédio ou abortivo? Respondeu que não, pois ignorava o seu estado,
porém seu pai conhecendo-a grávida, por vê-la gorda, disse-lhe que ela estava
grávida, dizendo-lhe não é nada, eu vou dar as providências que dias depois
conforme já disse, tomara a droga ou medicamento que o mesmo seu pai
lhe trouxera, pensando ela fosse para bem de provocar-lhe a menstruação,
sendo-lhe na ocasião recomendada pelo seu dito pai que tomasse de cada
vez menos de meia xícara, porque se tomasse mais podia morrer [...]o que
ela fez por duas vezes, resultando que no dia 27 de julho ela abortou uma
criança de cor preta, a qual era do sexo masculino, não tendo ainda cabelos
nem penugem, nem tampouco as unhas formadas , o qual nasceu sem vida, o
que ela verificou com atenção[...]36
O exame de corpo de delito realizado no cadáver do recém-nascido, que
deveria ter, - segundo o mesmo exame -, de três a quatro meses gestação;
já em adiantada estado de putrefação corroborou o depoimento de Luiza
Izabel. Ela dissera que havia tomado duas doses da droga na véspera e na anti-
véspera do aborto. Isso comprova mais uma vez a eficácia do medicamento
preparado pelo africano Pedro Rocha. Talvez a eficácia estivesse relacionada
com a finalidade primeira do remédio, qual seja, para a cura da doença de
gonorreia; infelizmente usado com outra finalidade para ocultar o crime de
José Crioulo, incriminando o curandeiro.
Pedro Rocha conhecedor de plantas e ervas medicinais não titubeou
quando perguntado qual a composição do remédio que havia vendido a
José Marcelino, até porque, não tinha nada a temer, estava cumprindo com
a sua função de curandeiro. Entre as ervas encontramos uma já conhecida
no âmbito do curandeirismo do século XIX no litoral norte do Estado de
36 Idem. Ibidem. Folhas: 14v e 15v.
42
Santa Catarina, ela fazia parte do rol de plantas encontradas no bauzinho
de José Cabinda, acusado de ser mandingueiro, como vimos acima: estamos
nos referindo ao pau-para-tudo. Não identificamos todas as potencialidades
do pau-para-tudo, mas sabemos que é afrodisíaco, e que é recomendado
para os que sofrem de diabetes37. Outras ervas citadas pelo africano foram:
cardo branco, arruda, caroba e água. “Recomendou ainda que se houvesse
purgação que acondicionasse um pouco de vinagre na ocasião de tomar”38.
Enganam-se os que pensam que todas estas ervas eram oriundas do
continente africano, a hoje denominada ‘medicina popular’ tem elementos
de várias culturas, apontando para a circularidade que é a cultura. A erva
denominada ‘cardo branco’, por exemplo, “tem origem na Bulgária, conhecida
também como Cardo Mariano planta da família das Arteaceae, é uma planta
imponente originária da Europa e da Rússia que atualmente se encontra
espalhada por todo o mundo”39.
O conhecimento acerca do poder curativo das plantas está relacionado com
o ‘fazer-se humano’, qual seja, com as formas criadas pelas sociedades a
fim de preservar a vida. No decorrer deste processo, algumas sociedades
desenvolveram mecanismos visando a preservação deste conhecimento,
restringindo-os a determinados grupos sociais. Foi a invenção da ciência
médica, como nos adverte Michael Foucault. A partir deste momento, quem
não tivesse os conhecimentos médicos reconhecidos por um determinado
37 Pau-para-tudo:“Cinamodendron axilare” Afrodisíaco, muito indicado contra diabetes.In. http://www.arteblog.net/2008/03/22/ervas-e-plantas-medicinais-e-suas-utilidades/ Acessado em: 26.06.2014.
38 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas:19.
39 http://www.chaecia.com.br/loja/produto-111058-1637-cardo_mariano__silybum_marianum_l_100_grp. Acessado em: 26.06.2014.
43
grupo não o poderia aplicá-lo. Estava inventada a prática ilegal da medicina40.
Para regulamentar tal procedimento, dentre outros, foi necessário criar um
corpo jurídico que controlasse o campo do conhecimento médico: a ciência
jurídica41. Portanto, nesta linha de raciocínio, ciência média e ciência jurídica
são ‘irmãs siamesas’, sobretudo na sociedade ocidental a partir do advento
da idade moderna.
No Brasil este movimento remonta dois momentos do século XIX: em 1808
a fundação da faculdade de medicina na Bahia, a faculdade de direito de
Olinda foi fundada em 182742. Nesta época, o Brasil era majoritariamente
negro, onde os costumes remontavam muito mais as culturas oriundas
do continente africano, do que o europeu, inclusive no âmbito das
relações sociais. Na perspectiva do colonizador, fazia-se necessário um
‘disciplinamento’, ‘remodelação das condutas’, na expressão foucaultiana.
Insistimos que, na perspectiva dos olhares europeus, era uma sociedade
‘moralmente desajustada’; alguns atribuíam este ‘desajustamento’ à
inferioridade genética dos elementos negros, indígenas e o fruto da relação
entre eles: as teorias racialistas sistematizadas na segunda metade do
século XIX advogavam tais concepções43.
40 Sobre esta questão. Ver. FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. O nascimento do hospital. In. Microfísica do Poder. RJ: Graal,8a. Ed., 1989.
41 Sobre ‘o nascimento’ ciência jurídica. Ver. FOUCAULT, Michel. Genealogia do Poder. In. Microfísica do Poder.RJ: Graal,8a. Ed., 1989; FOUCAULT, Michel. A Ordem Do Discurso. SP: Loyola, 21a.Ed., 2011.
42 Sobre as políticas de saúde no Brasil. Ver. Políticas de saúde e instituições médicas. In.MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. A Arte De Curar Nos Tempos Da Colônia: limites e espaços da cura.Recife: Ed. UFPE, 2011,2a.ed. (revista e ampliada)
43 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Op. Cit.
44
ESCRAVIDÃO E CHAGA SOCIAL44.
Eram poucos os que conseguiam enxergar que a chaga social não era
advinda do ‘gens inferior45’ de quem quer que seja, mas da escravidão que
degradavam os seres humanos ‘metamorfoseados’ em escravos, sofrendo
as consequências de tais condições. Diante desta realidade, alguns estudos
posteriores colocaram em xeque a capacidade de reação dos escravizados,
mas esta é outra questão que não abordaremos aqui. Queremos sim pensar,
em que medida esta condição adoeceu socialmente os escravizados e seus
descendentes, sendo estes vulneráveis à algumas doenças, tais como:
alcoolismo, pressão arterial elevada, diabetes, etc. São ‘as obras deixadas
pela escravidão’46 e que só recentemente o governo brasileiro está propondo
políticas específicas no campo da saúde visando reparar o que as políticas
abolicionistas não fizeram. Diga-se de passagem, para o ‘desespero’ de um
segmento reacionário e conservador da sociedade brasileira. No âmbito da
psicanálise e da psicologia, temos muito que apreender com os estudos de
Frantz Fanon e Neusa Santos Souza47.
As famílias consideradas desajustadas dos africanos e seus descendentes
era um assunto corriqueiro no meio médico e jurídico, sobretudo no início
44 Partimos da premissa que a escravidão constituiu para os escravizados, em relação à sociedade escravista na qual estavam inseridos, uma espécie de morte social, uma vez que eram vistos como portadores de ‘um defeito original’. Sobre esta questão. Ver: As duas concepções de morte social. In. PATTERSON, Orlando. Escravidão e morte social. SP: Edusp., 2008.
45 A própria literatura encarregou-se de criar uma imagem atribuindo à genética o desajustamento moral da população negra e mestiça. Sobre esta questão. Ver: QUEIROZ JÚNIOR, Teófilo de: Preconceito de Cor e a Mulata na Literatura Brasileira. SP:. Editora Ática. Ensaios 19, 1975; BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. RJ: Mercado Aberto, 1983.
46 Para lembrar o abolicionista Joaquim Nabuco: “Não basta acabar com a escravidão, é preciso destruir sua obra”.
47 FANON, Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas.Salvador: Edufba, 2008 ; SOUZA, Neuza Santos. Tornar-se Negro. RJ: Graal, 1983.
45
da ‘jovem república’. Tempos em que se buscava a perfectividade dos corpos
através da higienização, época da ‘cruzada’ contra os miasmas sociais, onde
os negros, mestiços e pobres eram ‘as vítimas preferenciais’.
O crime cometido por José Marcelino deve ter servido de argumentos
para juristas e médicos que acreditavam na inferioridade do negro. Crime
bárbaro, animalesco, bestial; talvez tenha sido os adjetivos utilizados na roda
de conversas na São Sebastião do Rio Tijucas, no estado de Santa Catarina,
naquele outubro de 1890. Afinal, que crime cometera José Crioulo? A denúncia
do promotor público, já nosso conhecido, Henrique Carlos Boiteux é revelador:
[...] O promotor público da comarca , em vista do inquérito junto e usando
das atribuições que lhe são conferidas pelo Artigo 74 do Código (do processo)
Criminal, vem perante vós dar denúncia contra José Marcellino da Silva, vulgo
José Crioulo, Luiza Isabel (sua filha) e Pedro Rocha, preto africano, todos
moradores no termo desta vila, pelo fato que passa a expor:
Haverá dois para três anos que o denunciado José que morava nos Morretes
em companhia de Isabel em casa de Manoel Marcellino da Silva, penetrando
à noite em um quarto onde dormia uma de suas filhas por nome Luiza, ali
violentou- a tendo com ela cópula carnal.
Continuando o denunciado suas relações criminosas com Luiza, acha-se esta
grávida de seu próprio pai, o qual se conhecendo o estado da filha, tratou
de acalma-la prometendo-lhe dar as providencias necessárias para que não
aparecesse o vestígio de seu reprovado procedimento e nesse intuito, dirigiu-
se a esta vila onde muniu-se de uma droga que lhe foi fornecida (segundo
declarou) por Pedro Rocha, o qual lhe fora inculcado por Domingos, ex-escravo
de Eleutério Mafra cuja droga entregou a sua dita filha, a qual recomendou
a tomasse em doses determinadas, o que Luiza pôs em prática, resultando
abortar no dia 27 de julho do corrente ano, uma criança morta, de cor preta
e do sexo masculino, cujo feto foi sepultado em ato contínuo pela dita Luiza
em uma touceira de bananeiras próxima à casa onde residem, sendo que em
46
outra touceira foi oculta a garrafa contendo o resto da droga empregada.
Esses crimes teriam passado desapercebidos e impunes, mas a providência
divina permitiu, que no domingo, 21 de setembro, a preta Isabel, mãe de
Luiza e amásia de José, ao voltar para sua casa encontrasse o referido José
em o ato que praticava a cópula carnal com sua própria filha; o que deu lugar
a altercações de palavras as quais passaram às vias de fato e finalmente a
intervenção da autoridade policial que conseguiu descobrir os crimes e os
criminosos.
Presos os acusados José e Luiza, confessaram os crimes cometidos, o que foi
constatado pelos autos de exumação de exame a que se procedeu no feto.
Acresce ainda que o denunciado José tentou também deflorar uma outra sua
filha por nome Lourença, o que não levou a efeito em razão da relutância
desta [..]48.
Primeiramente é conveniente esclarecer aos leitores quem era o réu José49
Marecelino, conhecido como José Crioulo. Considerando a sua alcunha, José
era crioulo, ou seja, nascido no Brasil, ex-escravo, com a idade de cinquenta
anos(mais ou menos), vivia ‘amasiado’50 com Izabel com a qual teve quinze
filhos. E mais, esta convivência foi por aproximadamente trinta anos,
portanto, desde os tempo de escravidão e sob as barbas de seu senhor;
ou seja, Manoel Marcelino da Silva não era um bom cristão nos termos dos
ensinamentos da ‘Santa Madre Igreja’ pois que permitira o ‘amasiamento’
de seus escravos51, contribuindo assim, para a promiscuidade na sociedade,
48 A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas:02 -03.
49 No auto de perguntas ele respondeu chamar-se José. O sobrenome era em decorrência de ter sido escravo de Manoel Marcelino da Silva.
50 No referido auto, quando perguntado sobre a razão desavença com sua mulher, Izabel, disse: “[...]que foi por causa de uma brincadeira que teve com ela, que não é sua mulher, mas com a qual vive há trinta e cinco anos, mais ou menos, do qual tem tido quinze filhos entre mortos e vivos, cuja brincadeira costumava ter com a dita Izabel[...]”. In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas:16.
51 O depoimento de Izabel revelou esta convivência, quando perguntada “[...] Qual seu nome, idade, estado, profissão e residência?
47
- segundo os termos de época -, nada aconselhável para uma sociedade
sadia, onde a família(mesma a dos escravos) deveria ser a ‘célula mater’52.
Não sabemos quantos, dos quinze filhos gerados entre Izabel e José estavam
vivos por ocasião do processo, ou seja, em 1890. Sabemos da existência
de duas filhas: Luiza Izabel, de mais ou menos vinte anos de idade, ré (e
vítima) no processo, e Lourença, de dezoito anos (mais ou menos), serviços
de doméstica e que não habitava mais com os pais, há mais ou menos dois
anos; morava com dona Ana Joaquina da Conceição. Com o casal, além dos
filhos, morava também um sobrinho, pelo que se depreende do depoimento
de Lourença53. E mais, o crime aconteceu, segundo o réu, na casa da
senhora Ana Joaquina da Conceição, onde também trabalhava Luiza Isabel
por ocasião do crime. A mesma pernoitava na casa da patroa e dormia na
cozinha da mesma, situação possivelmente muito semelhante às do tempo
da escravidão, ou mesmo da senzala; isso por volta do ano da abolição
formal da escravidão, quando Luiza Izabel tinha mais ou menos dezoito
anos de idade54. Se estas datas subtraídas do processo estiverem corretas,
Respondeu chamar-se Izabel Luiza, com 48 anos de idade, serviços domésticos, residente nos Morretes, solteira, vive há trinta e cinco anos mais ou menos em companhia de José Crioulo e que ambos foram escravos do finado Manoel Marcellino[...] In. A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas: 27.Sobre os ensinamentos acerca das responsabilidades religiosas dos senhores para com os escravos. Ver. BENCI,Jorge. Economia Cristã Dos Senhores No Governo Dos Escravos (Livro brasileiro de 1700) – Estudo Preliminar de Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M. M. Mendes. SP: Editorial Grijalbo, 1977.
52 Sobre a polêmica acerca das possibilidades de famílias escravas. Ver. SLENES, Robert W. Na Senzala, Uma Flor : Esperanças E Recordações Na Formação Da Família Escrava – Brasil Sudeste, Século XIX. RJ: Nova Fronteira, 1999.
53 Perguntada do que sabia sobre o crime “[...]Respondeu que sabe ser verdade ter sido seu pai deflorador de sua irmã em razão de ter visto em uma noite que ela respondente dormia na mesma cama em companhia de sua irmã Luiza e de um sobrinho de menor idade, ao acordar-se, o dito seu pai deitado no lugar em que estava seu sobrinho, achando-se este deitado debaixo de uma marquesa ela então envergonhada cobriu a cabeça em cuja ocasião aproveitou-se seu pai de levantar-se e correr, sabendo tão somente agora que ela sua irmã engravidara e que abortara enterrando a criança[...]”In. . A.F.C.T/ S.C. 1890 – JM/LI/PR. Folhas:19v.
54 “[...]Perguntado quem foi que deflorara a dita Luiza, sua filha, há quanto tempo, e de quem era o filho o feto desenterrado pela autoridade policial?Respondeu que foi ele próprio quem a deflorara, que isto haveria dois anos, teve lugar em casa de sua senhora
48
Luiza Izabel não era ventre livre, nascera sobre o julgo da escravidão55.
O flagelo da escravidão não possibilitava aos escravizados e seus
descendentes constituírem famílias aos moldes estabelecidos pela
sociedade ocidental nos moldes burgueses, eram, razão pela qual estas
famílias eram consideradas desajustadas, moral e juridicamente. Como já
dissemos anteriormente, as vítimas eram, em muitos casos, como o deste
processo, ‘metamorfoseadas’ em réus. Não queremos com isso isentar
os crimes por eles praticados, apenas destacar que não se tratava de um
problema social tratado como caso de polícia durante toda a primeira
república, e que as ‘vítimas preferenciais’ eram os ex-escravos e seus
descendentes. Mais, nesta sociedade as mulheres negras eram as mais
afetadas pelas mazelas sociais.
Não houve por parte do estado brasileiro nenhuma política ao longo dos
cem anos de República, voltada para sanar as chagas sociais, das quais
os descendentes de escravizados foram os principais vitimizados. Neste
sentido, ainda vivemos problemas colocados pela escravidão que ainda não
foram resolvidos, razões pelas quais os governos dos últimos doze anos
têm construído algumas políticas de saúde voltadas especificamente para
a população negra brasileira; onde inclusive os conhecimentos tradicionais
de curas são valorizados.
Dona Ana Joaquina da Conceição ao tempo que Luiza de noite repousava em sua cama na cozinha da dita casa, sendo que já antes desta ocasião a tinha convidado para o ato desonesto a que a mesma não cedera. E que desta outra vez em que conseguiu seu maligno intento, ela Luiza sempre oferecera alguma resistência. Declarando ainda e por último que o feto desenterrado era seu filho[...]”.In. Idem. Folhas: 17.
55 Estamos nos referindo á lei de n. 2040, de 28 de setembro de 1871, chamada na época como Lei dos Nascituros, ou Lei Rio Branco, mas popularmente conhecida como Lei do Ventre Livre. Sobre esta questão ver. MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão Negra no Brasil.SP: Edusp.,2004,p.237-240.
49
Os processos aqui analisados não se constituem, portanto, um tema
do passado, mas um tema que está relacionado com o tempo presente
de uma sociedade onde mais da metade da população se autodeclara
descendentes de africanos, mas que, no entanto, suas práticas culturais,
incluindo experiências historicamente herdadas dos antepassados, ainda
são perseguidas por alguns segmentos sociais; a exemplo do que aconteceu
ao longo da república brasileira, muitas vezes com o amparo do aparelho
jurídico e repressivo do estado.
A SAÚDE DA POPULAÇÃO AFRICANA AO SUL DE MOÇAMBIQUE
NO TEMPO COLONIAL (C.1927-1970)
Jacimara Souza Santana
Padre Daniel da Cruz, ao escrever sobre sua experiência missionária no sul de
Moçambique -“em terras de Gaza”, no início do século XX (1910) - destacou,
dentre outras coisas, que havia considerável rejeição à assistência de saúde
ocidental por parte dos povos africanos deste território. A justificativa
mais comum era que “remédio de branco é bom para branco, mas a gente
é preto, o médico de preto é Yan-souro”, a quem as populações daquela
região costumavam chamar de dotôro e recorrer para solucionar todas as
dificuldades da vida1.
Yan-souro ou Nyamusoro era o nome dado a uma das especialidades dos
médicos-sacerdotes habitantes da região sul de Moçambique dentre outras
como as de Nyanga e Nyagarume. Estes atores sociais trabalham em prol da
cura e do bem-estar das pessoas, possuem amplo conhecimento fitoterápico,
podendo, ainda, realizar advinhas, proteger contra pessoas e forças nocivas
da natureza, bem como intermediar relações entre vivos e mortos. Uma
diferença significativa entre o especialista Nyamusoro e os demais é sua
1 CRUZ, Pe. Daniel. Em Terras de Gaza. Porto: Gazeta das Aldeias, 1910.
52
capacidade mediúnica, que possibilita o transe. Contudo, é preciso ressaltar
que uma mesma pessoa pode agregar diferentes especialidades, sendo
muito comum as pessoas atribuírem a estes atores sociais um termo de
natureza genérica, o de Nyanga (singular) ou Tinyanga(plural)2.
Antes do domínio colonial português, a oferta de assistência de saúde do tipo
ocidental à população africana na região sul de Moçambique era prestada, no
mais das vezes, por missionários, sobretudo da Igreja Presbiteriana (Missão
Suíça). Entretanto, era comum que pacientes africanos abandonassem o
tratamento médico nestas últimas missões em função da procura de serviços
de saúde ministrados por Tinyanga. Isso foi inclusive um dos fatores que
motivou o missionário Henri Alexandre Junod a interessar-se em escrever
sobre estes atores sociais e sua arte médica3.
Para Junod, a superstição superava o talentoso fazer dos Tinyanga. Por isso,
era favorável à ideia de que o governo pusesse fim ao exercício deste grupo
social, substituindo-o por médicos europeus ou ofertando um curso de saúde
para africanos educados na cultura portuguesa, cujo grupo social passou a
ser nominado de assimilado. O missionário suíço e médico George Liengme,
que conviveu e atuou na corte do antigo Império de Gaza entre os anos de
1893-1895, afirmou em seus relatórios que somente era procurado pelos
africanos em caso de insucesso no tratamento com o Nyanga4.
2 Ver maiores detalhes sobre o assunto em SANTANA, Jacimara Souza. Experiências dos Tinyanga,médicos-sacerdotes, ao sul de Moçambique: identidades, culturas e relações de poder (C. 1937-1988). Tese de Doutorado, história, UNICAMP, Campinas, 2014.
3 JUNOD, Henri-A. Usos e Costumes dos Bantu (Tomo 2). Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique, 1996, p. 387-503.
4 O regime colonial português instituiu um grupo social formado por pessoas da população africana que eram educados na cultura portuguesa (língua, modos de vida, religião e etc..).Em geral, estas pessoas trabalhavam como funcionários do governo, tendo acesso a uma condição melhor de vida em relação aos demais (apelidados pelos
53
Até as duas primeiras décadas do século XX, a organização da assistência
ocidental de saúde por parte do Estado colonial estava mais voltada para
a garantia do sucesso das campanhas militares de conquista, ocupação e
domínio efetivo da região sul. A partir desta etapa, a referida assistência
tendeu a tornar-se cada vez mais estruturada e seu processo de organização
foi marcado por uma conflitante convivência com a visão dos africanos sobre
saúde e com as maneiras utilizadas pela população para cuidar desta5.
A emergência e a afirmação de um saber médico ocidental, durante o
período colonial, foram acompanhadas de forte rejeição aos saberes
endógenos de cura ministrados por Tinyanga. Médicos e demais autoridades
europeias (missionários, governo, administradores) desqualificaram estes
conhecimentos, enxergando-os como saberes primitivos, supersticiosos
e nocivos à saúde das pessoas, podendo levá-las a óbito. Neste discurso,
a imagem de dotôro atribuída a pessoa do Nyanga por seu público usuário
passou a ser associada à de feiticeiro e charlatão. As pessoas deveriam
cuidar da sua saúde nos hospitais e postos sanitários e as mulheres não
deveriam realizar seus partos em casa. Este discurso também não deixou
de ser reproduzido por um ou outro africano reconhecido como assimilado.
Com o estabelecimento do domínio português, o governo impôs que a oferta
portugueses como “indígenas”). Contudo, o fato de ser assimilado nem sempre significava a recusa das tradições africanas nem que estes seriam tratados como cidadãos portugueses. Maiores discussões sobre o assunto podem ser encontradas nas obras: CABAÇO, José Luís. Moçambique. Identidades, Colonialismo e Libertação. Maputo: Marimbique, 2010; HONWANA, Raúl Bernardo. Memórias. Maputo: Marimbique, 2010; PENVENNE, Jeanne. African Workers and colonial racism: Moçambican strategies and struggles in Lourenço Marques (1877-1962). Portsmouth: Heinemann, 1995.
5 GULUBE, Lucas Langue. Aspectos do Sistema de Organização da rede sanitária colonial na região suldo Save, 1960-1974: problemas e perspectivas. Monografia de Licenciatura, história, Universidade Eduardo Mondlane, 1997.
54
de serviços de saúde à população africana fosse uma atribuição exclusiva
do Estado colonial. Tal decisão deveu-se a alguns fatores, como à extrema
necessidade de garantir mão de obra para a produção colonial, atender às
exigências internacionais acerca das relações de trabalho na colônia, bem
como a premente necessidade de defender Portugal das críticas contra o
regime de exploração em suas colônias, apregoado como escravo no cenário
europeu.
Também não se pode desconsiderar o fator cultural. Autoridades coloniais
e, de modo especial, missionários católicos, reivindicavam que Tinyanga
deixassem de realizar a tarefa de assistência de saúde e/ou religiosa porque
sua ação impedia e/ou dificultava que costumes portugueses – incluindo a
religião cristã – fossem aceitos entre as populações africanas. Além disso, a
desqualificação dos métodos endógenos de cura africana concorria para o
processo de afirmação e legitimidade do saber de saúde lusitana em terras
africanas.
Desde 1923, a assistência em saúde colonial disponibilizada para as populações
africanas incluía o estudo e levantamento estatístico das nosologias e
das condições de morbi-mortalidade prevalentes, em especial, aquelas
contraídas em territórios estrangeiros em decorrência da emigração. A este
trabalho vinculou-se a tarefa de pesquisa etnográfica sobre as formas usuais
de habitação dos povos africanos, seus hábitos alimentares e de higiene,
as modalidades de assistência médica e acompanhamento do número de
óbitos, nascimentos e emigrações. Para a realização deste trabalho, foram
contratados alguns médicos para o cargo de subdelegados e prevista a
55
construção de Postos Sanitários e enfermarias em diferentes distritos, cuja
estrutura e recurso técnico se diferenciavam em termos de qualidade em
relação aos centros destinados ao cuidado da saúde dos europeus6.
Nos relatórios administrativos da colônia de Moçambique não faltavam
queixas sobre a exígua distribuição de postos sanitários e vagas nos hospitais
destinadas aos africanos, às más condições de higiene no atendimento, à
insuficiência de recursos técnicos e humanos. Na maior parte das vezes, os
enfermeiros africanos foram os únicos profissionais de saúde com os quais
as populações podiam contar além dos Tinyanga, especialmente em lugares
mais distantes do interior, o que possibilitava a estes atores agir com mais
autonomia7.
Até o fim dos anos 1920, esta grave situação na assistência foi atribuída ao
déficit financeiro do Estado colonial, muito embora já houvesse arrecadação
de impostos em prol destes serviços. Esta situação não apresentou mudanças
significativas até mesmo após a instauração do governo do Estado Novo que,
em meio a radicais mudanças, permitiu a reserva de uma verba destinada
aos serviços de saúde daquela população e decretou nova reorganização
dos serviços de saúde (decreto nº 34.417), cujo objetivo era o de “amparar,
defender e aumentar a população indígena, melhorando seu estado sanitário
e o nível de vida das populações africanas, bem como promover uma melhor
adaptação dos colonos às regiões tropicais”8.
6 AHM.F.G.G. Cx 383. Assistência Médica aos Indígenas e Processos Práticos de sua Hospitalização. Memórias do 1o Congresso de Medicina Tropical. Loanda, Julho de 1923; AHM.F.R.S. Cx 169. Relatório do delegado de Saúde, 1918.
7 AHM.FRS. Cx 169. Relatório sobre Assistência Indígena de 1917.
8 AHM.F.G.G. Cx 383. Assistência Médica aos Indígenas e Processos Práticos de sua Hospitalização, op.cit.;
56
Neste texto, analiso como o grupo de Tinyanga reagiu à imposição dos serviços
de saúde ocidentais em detrimento de sua assistência e quais influências
podem ter ocorrido entre estes distintos saberes. Também busco analisar
como a política de assistência em saúde destinada à população africana se
configurou em termos de acesso, disponibilidade de serviços e cuidados
prioritários a partir das reformas introduzidas pelo governo do Estado Novo.
UM OLHAR COLONIAL DA SAÚDE DAS POPULAÇÕES AFRICANAS
Na fase do Estado Novo, o modelo de assistência colonial em saúde
direcionado às populações africanas manteve a realização de estudos sobre
o seu perfil nosológico, o incentivo a hospitalização para tratamento e a
aplicação de medidas preventivas, reconhecidas na época como higiênicas e
profiláticas, cuja prioridade consistiu no controle da vacinação e na eventual
destruição de focos insalubres. Um modelo de assistência bem próximo
daquele desenvolvido na Inglaterra do século XIX9.
Nos relatórios, as doenças mais presentes entre africanos foram a tuberculose,
a lepra, a sífilis (introduzida em Moçambique a partir da fixação europeia
no interior) e afecções cutâneas, como micoses. Também possuíam grande
incidência de doenças de ordem parasitária, sobretudo a ancilostomíase e
a esquistossomose (também conhecida pelo termo bilharziose), além do
AHM.F.R.S. Cx 35, Relatório de Inspecção. Assistência de Saúde Indígena, 1928;AHM. F.R.S. Cx 169. Assistência Médica aos Indígenas. Relatório de 1918; AHM.F.R.S. Cx 20, Distrito de Gaza,1922; GULUBE, 1997; AHU.M.U.DGSA. Relatórios das Repartições Províncias dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique. Boletim Sanitário do ano de 1932; SOARES, Tertuliano. Resultados da Política de Saúde Pública em Moçambique. Moçambique. Curso de extensão Universitária. (1964-1965). Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina.
9 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
57
paludismo (malária), da varíola e do alcoolismo10.
A tuberculose e as doenças venéreas como a sífilis foram detectadas de
modo mais frequente entre os trabalhadores das minas em África do Sul,
sendo consideradas como um dos fatores de maior morbimortalidade
desta categoria. Em 1923, o Chefe dos Serviços de Saúde constatou que,
nos hospitais de África do Sul, a tuberculose alcançou a porcentagem de
16,3% de mortalidade geral entre indígenas emigrados e, nos hospitais da
Província, atingiu aproximadamente 27,3%. Este índice ainda se mostrou
elevado nas décadas seguintes. Em 1964, ao menos na cidade de Lourenço
Marques, segundo Rita-Ferreira, os exames de autopsia realizados em 2.044
africanos apontaram a tuberculose como a maior causa de óbito do total de
examinados (429 mortes, o que correspondia a 20,8%11).
Até 1931, autoridades médicas acusaram em seus relatórios como causa
etiológica da tuberculose o alcoolismo e fatores climáticos, ao invés do tipo
de trabalho executado nas minas e suas más condições. Com base nessa
justificativa, a campanha contra o consumo de bebidas (em especial bebidas
africanas) foi reforçada, alcançando importância significativa na política de
saúde criada pelo Estado colonial para indivíduos africanos (assim como o
combate à prostituição como forma de prevenir a sífilis12).
10 Ibid.; AHM.F.G.G.Cx 383. Assistência Médica aos Indígenas e Processos Práticos de sua Hospitalização. Op. cit., 1923; AHU.M.U.DGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique . Boletins Sanitários, 1934-1937.
11 AHU.M.U.DGSA. Relatórios das Repartições Províncias dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique. Relatório do Chefe dos Serviços de Saúde, 1931; RITA-FERREIRA, Antônio. Os Africanos de Lourenço Marques. Memória do Instituto de Investigação Científica de Moçambique. no 9, Série C, 1967-1968, p. 422-441.
12 AHU.M.U.DGSA. Relatórios das Repartições Províncias dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique. Relatório do Chefe dos Serviços de Saúde, 1931; AHU.MU.ISAU. Cota A2.49001/3500210, Circunscrição dos Muchopes, 1941-1957.
58
Outra medida de controle foi a exigência da realização de exame médico
antes da contratação para o trabalho nas minas e ao final do período do
contrato. Aurélio Langa, ao rememorar sua trajetória de vida, afirmou que
em Manjacaze (Gaza) por volta do início dos anos 1950, a maior parte dos
exames médicos destinados ao recrutamento de homens para o trabalho nas
minas do Rand era realizado pela empresa W.N.L.A., e que tal procedimento
restringia-se à verificação do peso e do corpo de cada candidato13.
Trabalhadores empregados na cidade de Lourenço Marques também eram
obrigados a realizar tais exames admissionais. Segundo Aurélio Langa, os
candidatos tinham o dever de se dirigir à Junta Médica Santa Filomena para tirar
um atestado médico, serviço que era descontado do salário do trabalhador
após sua contratação, ainda que se tratasse de empresa pública. Nas zonas
rurais, os serviços de saúde prestados aos trabalhadores de empresas
privadas por funcionários do Estado também eram comercializados. Isto
ajuda a explicar o fato do predomínio de dados masculinos nas estatísticas
dos serviços de saúde coloniais. Realizar tais exames também rendia lucro
aos cofres do Estado colonial e para alguns médicos em particular14.
Pessoas contaminadas por tuberculose, quando identificadas, eram
submetidas a tratamento nos hospitais. Ao menos na cidade de Beira, entre
os anos de 1955-1957, tais pacientes eram medicados com ácido nicotínico
e estreptomicina. O uso obrigatório da vacina BCG somente entrou em vigor
a partir de 1968. A tuberculose era uma das doenças que muitas pessoas
13 LANGA, Aurélio Valente. Memórias de um Ex-combatente da Causa. O passado que levou o verso da minha vida. Maputo: CIEDIMA, SARL, 2011, p. 59-60; AHU.M.U.DGSA. Relatório do Chefe dos Serviços de Saúde, 1931, op.cit.
14 LANGA, 2011.
59
africanas preferiam tratar na palhota do Nyanga, ao invés de se dirigir aos
hospitais. Retomaremos a este assunto mais adiante15.
As campanhas de erradicação do paludismo (malária) também atraíram
singular atenção do governo colonial. Neste sentido, sua política sanitária
incluiu o trabalho das equipes de saúde que eram conhecidas pelo nome
de Brigadas Sanitárias. Esta equipe de saúde tinha como principal tarefa
identificar lugares, alimentação e práticas consideradas insalubres para
garantir o cumprimento de medidas reconhecidas de higiene, condição
considerada necessária para a manutenção do estado de saúde pública.
Nos relatórios dos Boletins Sanitários publicados entre os anos de 1933-1937,
funcionários do governo registraram reclamações contra a falta de limpeza em
lugares habitados por populações africanas, incluindo suas casas (palhotas)
e o terreno em seu entorno, havendo quem ainda reclamasse da falta de
higiene nos mercados onde africanos comercializavam seus produtos16.
É notável, nos relatórios, a flagrante tendência das autoridades médicas
em classificarem as populações africanas residentes em Lourenço Marques
como anti-higiênicas. Apesar do trabalho de vigilância sanitária exercida
por funcionários do Estado colonial e das orientações de higiene dada às
populações, as condições marcantes de insalubridade predominavam
naquele meio. A situação descrita sobre os espaços urbanos de outros
15 AHU.MU.DGSA. Delegacias de Saúde da Colônia de Moçambique, Cx 148. Relatório da Delegacia de Saúde de Inharrime. Delegado Saul Campos Mário Jorge, 1949; AHU.MU.DGSA.Delegacias de Saúde da Colônia de Moçambique, Cx 147. Relatório da Delegacia de Saúde de Manica –Sofala. Delegado Carlos Fernando de Pimentel, 1958; RITA-FERREIRA, 1967-1968, p. 442-441.
16 AHU.M.U.DGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique . Boletim Sanitário do ano de 1934, Lourenço Marques.
60
distritos não parece ter sido diferente. Pensar que esta associação não
estivesse isenta da visão preconceituosa em relação a estes povos e seus
costumes não constitui nenhum exagero.
Na opinião do médico João Baptista Bizarro de Assunção, africanos não se
importavam com a higiene dos espaços onde moravam ou trabalhavam.
Pensamento similar teve o administrador Antônio Rita-Ferreira, ao sugerir
que havia uma falta de aceite das recomendações básicas de higiene pela
maioria dos indivíduos africanos e isto refletia o seu estado de ignorância
a respeito da visão científica de como determinadas doenças eram
transmitidas e a sobrevivência de suas interpretações culturais das causas
das doenças mesmo entre aqueles que habitavam em áreas urbanas, o que
os fazia recorrer aos cuidados de seus Tinyanga e Bangoma para tratarem
da saúde, sobretudo, em casos de doenças graves e/ou de tratamento
prolongado17.
Também se pode pensar, como o supracitado médico, que esta situação tivesse
como agravante a insuficiência de funcionários para o cumprimento da tarefa
de vigilância na recolha de lixo, dejetos, aterro de charcos e etc. Neste caso, é
possível que a área mais habitada por colonos tivesse prioridade. Entretanto,
a teimosa condição insalubre entre as famílias africanas moradoras nos
espaços urbanos ainda pode indicar outras evidências:
a) a tentativa das autoridades coloniais de impor controle à presença africana
nas cidades;
17 AHU.MU.DGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, Moçambique . Boletim Sanitário do ano de 1934, Lourenço Marques; RITA-FERREIRA, Antônio. 1967-1968, p. 442- 441.
61
b) a condição social e de saúde das populações africanas eram mais
vulneráveis em relação a outros indivíduos (portugueses, indianos, alguns
africanos assimilados, etc.);
c) indivíduos africanos resistiam a obedecer as normas de higiene impostas
pelo governo colonial.
A constante relação entre pessoas africanas e anti-higienismo, ressaltada nos
relatos da Brigada Sanitária, parecia mesmo colaborar com a tentativa das
autoridades administrativas de impor controle à presença dos trabalhadores
africanos e suas famílias nos espaços urbanos. Nas cidades, a população era
majoritariamente europeia. A presença africana restringia-se às funções de
prestação de serviços, havendo uma ou outra exceção no caso de africanos
assimilados de elevada condição social e da população indiana. Para o
subdelegado João Baptista Bizarro de Assunção, os subúrbios não faziam
parte da cidade e eram justamente estes lugares que, de um modo geral,
eram habitados por africanos, muitos oriundos das zonas rurais.
A experiência de convívio de Aurélio Langa naquela cidade, a partir de 1959,
lhe fez ver o quanto a vida do africano era cuidadosamente discriminada
em termos de espaços, direitos e acesso em relação aos colonos brancos
e africanos assimilados. Esta separação era garantida por força policial e
imposição de normas sociais, como, por exemplo, a exigência de distintas
formas de habitação e o consumo de alimentos. Exceção era feita aos
africanos reconhecidos como cidadãos portugueses devido ao processo de
assimilação cultural. Somente a este grupo social de africanos era permitida
a compra de determinados alimentos europeus nas cidades18.
18 LANGA, 2011, p. 67-92.
62
Esta iniciativa do Estado colonial de agregar indivíduos africanos em áreas
específicas – chamadas de bairros, subúrbios ou aldeamentos – e os relocar,
constitui reveladora expressão da tentativa de controle da presença africana
nos espaços citadinos.
Nas zonas rurais, espaços onde viviam a maior parte da população africana que
compunha a mão-de-obra das cidades e das minas, não houve necessidade
de criar espaços específicos. Permanecia entre as autoridades do governo,
contudo, a preocupação com a ameaça de epidemias que pudesse emergir
naquele meio. Chefes africanos eram orientados a incentivar os habitantes
de sua povoação a procurar os serviços médicos ofertados pelo governo
colonial em detrimento do tratamento com o Nyanga.
Os inspetores, alguns deles médicos e delegados de saúde, constantemente
chamavam atenção das autoridades africanas neste sentido. O Inspetor
Francisco de Melo e Costa, em sua visita de inspeção ao distrito de Gaza
no ano de 1941, destacou a seguinte orientação quanto à assistência de
saúde:
Mostrar aos indígenas que o Governo manda prestar gratuitamente
assistência médica, não devendo ter relutância em recorrerem aos médicos
e enfermeiros do Estado, abandonando os curandeiros e feiticeiros, nunca
esquecendo que o médico cura e nada recebe, e o curandeiro não cura, mas
nunca deixa de receber; as mulheres devem recomendar seguir os conselhos
das parteiras oficiais, recorrendo aos seus conhecimentos19.
Administradores, missionários e médicos acreditavam que a otimização
19 AHM. FISANI. Cx 21, Gaza, 1941.
63
dos serviços de saúde, adicionada à difusão da religião cristã e o contato
com a cultura “civilizada” dos portugueses, poderia pôr fim à existência
dos Tinyanga. A ideia do desenvolvimento dos serviços de saúde ocidental
como modo gradual e persuasivo de reprimir o exercício dos Tinyanga é
destacada por alguns administradores em resposta ao questionário de
1947, que indagava acerca da atuação e presença dos “curandeiros” nos
distritos20.
O médico Antônio Policarpo de Souza Santos, em sua visita de inspeção ao
distrito de Gaza, no ano de 1957, orientou as autoridades africanas, entre
outras coisas, a incentivar as populações habitantes de suas povoações a:
[...] Construir casas mais seguras e mais confortáveis, introduzindo-lhe
cadeiras e mesas, habituando os indígenas a comer nestas com colheres e
garfos, incutindo-lhes hábitos de higiene [...] Ensinar os indígenas a vestirem-
se decentemente, mandar os filhos à escola devidamente lavados, limpos21 [...]
O discurso higienista colonial em defesa da saúde pública, mesmo em zonas
rurais, não somente procurou normalizar o corpo dos indivíduos africanos,
mas também seu comportamento social. Costumes como comer com as
mãos, morar em palhotas de caniço e capim ou sentar no chão deveriam ser
abandonados por indicar grau de atraso do estado pessoal de civilização e
condições desfavoráveis à saúde pessoal e pública.
20 AHM. F. Governo do Distrito de Beira. Cx 621. 1961-1965; AHM.FDSNI, Cx 148, Lourenço Marques. 1947; AHM.FDSNI, Cx 148, Circunscrição de Buzi/Manica-Sofala, 1947.
21 AHU.MU.ISAU. Cota A2.49.001/35.00210. Relatório de Inspecção à Extinta Circunscrição dos Muchopes, 1941-1957.
64
Às mulheres era exigido realizar partos nas maternidades do Estado colonial,
suprimindo-se o trabalho autônomo de algumas mulheres africanas que já
faziam esse serviço, algumas delas também Nyanga. Muitas dessas parteiras
foram tornadas funcionárias auxiliares dos serviços de saúde colonial,
passando a assumir a tarefa de incentivar sua antiga clientela e vizinhas
a frequentar os hospitais, assim como auxiliar os médicos na execução do
parto.
Na prática, este controle mostrou-se mais como um desejo do que uma
realidade. No relatório da delegacia de saúde de Inharrime (Inhambane) do
ano de 1949, o delegado de saúde, Saul Campos Mário Jorge, registrou que
as maternidades do Estado naquele local não realizaram nenhum parto,
porque as gestantes manifestavam relutância em parir em hospitais. Igual
reclamação apresentou o delegado de saúde de Bárue, na vizinha região
central do distrito de Manica e Sofala. Segundo o Dr. Mário José Pires, as
mulheres grávidas se negavam a hospitalizarem-se para dar a luz e as
poucas que aí chegavam eram por força das rusgas, transportadas à força.
Além disso, somavam-se dificuldades na prestação da assistência àquelas
que moravam a mais de 200 km da sede. Parece, entretanto, que esta
situação variava de local para local. Provavelmente, o trabalho das parteiras
africanas exercia muita influência entre as mulheres22.
Em1942, o número total de maternidades em toda colônia era de 42, subindo
22 AHU.DGSA.M.U. Delegacia dos Serviços de Saúde de Moçambique, Cx 147. Relatório da Delegacia de Saúde de Inharrime por Saul Campos Mário Jorge; Relatório da Delegacia de Saúde de Manica e Sofala, por Mário José Pires, 1949; AHU.DGSA.M.U. Delegacia dos Serviços de Saúde de Moçambique, Cx 147. Relatório da Delegacia de Saúde de Zavala, por Francisco Castelo Rodrigues, 1949.
65
em 1961 para 17723.
Com o avanço da exploração do domínio colonial na fase do Estado Novo, as
condições de vida e saúde da maioria africana se agravaram gradativamente,
sobretudo nas zonas rurais, com grande repercussão em sua dieta alimentar,
habitação, tempo de vida, qualidade da água para consumo, etc.. 24
A prioridade do plantio de produtos de exportação (trigo, algodão e arroz),
imposta pelo governo colonial e empresas concessionárias em algumas
áreas, se dava em prejuízo do plantio de alimentos de subsistência, por vezes
não somente restrito, mas proibido, sendo cada vez mais recorrente a prática
da compra de alimentos em cantinas a preços desproporcionais ao ganho da
venda do produto do trabalho agrícola25.
Se nas zonas rurais a alimentação tornava-se escassa para as famílias
africanas, nas cidades esta situação não era diferente. Segundo informações
de Rita-Ferreira, em Lourenço Marques, até a primeira metade dos anos
1960, muitos produtos que faziam parte da dieta africana já não eram
consumidos por se encontrarem em falta ou por sua produção estar em
baixa. Predominava o uso de raízes e milho, bem como produtos de origem
europeia, alguns dos quais somente colonos e alguns africanos assimilados
tinham o direito de consumir26.
23 SOARES, 1964-1965.
24 AHM.FGG. Cx 383. Assistência Médica aos Indígenas e Processos Práticos de sua Hospitalização. Op.cit., 1923.
25 AHU.MU.ISAU. Cota A2.49001/3500210, Circunscrição dos Muchopes, 1941-1957.
26 AHM. RITA-FERREIRA, 1967-1968, p. 442-441.
66
Outro agravante das condições de vida e de saúde das populações africanas
naquele distrito era a constante concessão de terrenos em favor dos europeus
que, por vezes, obrigavam, violentamente, famílias africanas a se deslocarem
para outras áreas (em condições menos favoráveis do que aquelas em que
viviam antes) ou a passarem à condição de desterrados. Famílias africanas
sem terras também se tornaram reféns das campanhas de concessão de
terrenos do governo. Muitas destas foram removidas para o Vale do Limpopo
a partir de 1951, quando houve a campanha de colonização desta área27.
As campanhas de vacina antivaríola constituíram-se noutra medida
considerada de higiene pública de grande destaque na política de saúde
colonial destinada à população africana. Nos dados estatísticos de vacinação,
o número de indivíduos africanos mostrou-se bastante elevado em relação
ao de europeus, mixtos28 e demais grupos sociais (como os asiáticos). Na
campanha do 2º trimestre de 1937, por exemplo, de um total de 78.363
vacinados 77.819 eram de africanos. O volume crescente de africanos entre
os vacinados parece sinalizar uma preferência das autoridades coloniais
por este público para o desenvolvimento das campanhas de medicalização
antivaríola. Este mesmo perfil aparece nas estatísticas do atendimento
hospitalar29.
No Boletim Sanitário de 1937, nota-se, no registro de entrada dos doentes no
hospital da Vila de João Belo (Conselho de Gaza), o seguinte levantamento:
27 AHU.MU.ISAU. Cota A2.050.02/01400079, Conselho de Gaza, 1954; COVANE, Luis Antônio. O Trabalho Migratório e a Agricultura no Sul de Moçambique (1920-1992). Maputo: Promédia, 2001, p. 217-223.
28 Filhos de pais portugueses com africanos ou indianos (Arábia, Índia, Turquia etc..) nascidos em Moçambique.
29 AHU.MU.GGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde de Moçambique. Cx 4, 1934-1937.
67
Tabela 1 – Entrada de doentes no hospital do Conselho de Gaza (1937)
Classificação Homens Mulheres TotalAfricanos 634 298 934Europeus 22 9 31Mistos 24 9 33Indo-português 3 0 3Indo-britânicos 9 2 11
AHU.MU.DGSA. Relatório das Repartições.Provinciaisde Saúde, Cx 4, 1909-1939. Boletim Sanitário, 1937.
Conforme indica a tabela do Boletim Sanitário daquele ano, em Gaza, africanos
eram os que mais frequentavam os hospitais, predominando os do sexo
masculino. Desde 1931, o Chefe dos Serviços de Saúde da Colônia já chamava
atenção para este fato, atribuindo à frequência de africanos nos hospitais
em todo o Moçambique o índice de 70 a 80%. Nos relatórios de saúde dos
anos 1932-1934, encontra-se o seguinte levantamento geral para a colônia:
Tabela 2 – Total de entrada e óbitos nos hospitais da Colônia (1931-1932)
Ano Africanos Europeus Entrada Óbito Entrada Óbito
1932 9.757 624 2.633 971934 10.145 674 2.159 105Total 19.902 1.298 4.792 202
Fonte AHU. MU.DGSA.Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, 1932-1934
Se compararmos os dados acima com as informações lançadas no ano de 1937,
68
veremos que, de fato, as estatísticas tenderam a reafirmar aquela ideia de que
o número de doentes africanos tratados em hospitais coloniais era sempre
mais elevado do que o número de europeus. Conforme registro constante do
relatório dos serviços de saúde do referido ano para a colônia de Moçambique:
Tabela 3 – Total de frequência nos hospitais da Colônia por gênero e grupo
social (1937)
1937 Homens MulheresEuropeus 1.122 649Africanos 8.511 5.857Mistos 392 569
Fonte AHU. MU. DGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, 1932-1939
A predominância de africanos como usuários dos serviços de saúde ocidental
constatada na estatística do Conselho de Gaza também se repete nos
levantamentos da colônia como um todo. Apesar dos dados, ao longo do tempo,
enfatizarem essa discrepância numérica de africanos, o que parece insinuar a
ideia de que africanos recorriam mais aos hospitais do que os próprios europeus.
Se ainda fizermos uma comparação aproximada daqueles dados com o total
populacional dos primeiros, veremos que esta procura se mostrou bastante
reduzida. Numa perspectiva local, tomando como referência o recenseamento
de africanos indígenas no Conselho de Gaza para os anos de 1930 e 1940, nota-se
que a entrada dos 900 africanos nos hospitais se configuraria aproximadamente
em torno de 1,5 % e 1,2 % do total populacional (no recenseamento de 1930, a
população neste local era de 58.576 subindo para 74.036 no ano de 1940).
No caso do atendimento em postos sanitários do Estado colonial, bem como
69
das missões estrangeiras e portuguesas, a frequência anual de africanos
sobe de modo considerável no ano de 1937. O relatório do Boletim Sanitário
deste ano mostrou que, em média, eram atendidos anualmente 17.618
africanos nestes serviços, sendo-lhes ministrados 128.662 procedimentos
(curativos, injeções, consultas, etc.). Estes valores, quando comparado ao
total populacional daquele Conselho, no ano de 1930 corresponderia a 30%,
e, em 1940, a 23.7%. Contudo, ao relacionar estes dados do Boletim Sanitário
com as informações fornecidas nos relatórios de inspetores, veremos uma
baixa significativa na porcentagem de frequência dos africanos nos centros
de saúde locais. O inspetor Policarpo dos Santos, por exemplo, informou
que, em 1956, o movimento no posto sanitário de Chidenguele (Circunscrição
dos Muchopes), foi de 6.175 africanos. A população total daquele ano, sem
subtrair o número dos emigrados para o Rand, foi de 107.900. Ou seja,
apenas 0,057% frequentaram este posto de saúde naquele ano30.
Em relação ao alto índice do ano de 1937, é preciso considerar aqui uma
diferença: a de que muitas missões religiosas e alguns postos sanitários
trabalhavam com uma assistência móvel, o que facilitava o deslocamento
dos funcionários de saúde às povoações africanas.
Provavelmente, nas ocasiões de visitas de médicos ou enfermeiros europeus,
os tratamentos eram ministrados a grupos inteiros ao mesmo tempo. Outro
detalhe é que o trabalho cotidiano nos postos sanitários era feito pelos
30 AHU.MU.ISAU. Cota A2.49001/3500210, Circunscrição dos Muchopes, 1941-1957. Em 1937, prestavam assistência de saúde em Gaza as seguintes missões católicas e estrangeiras: Missão de Nossa Senhora de Lourdes de Chongoene, Missão de Chicumbane, Missão de Maciene, Missão de Maússe, Missão Tavane, Missão Nossa Senhora Benedito de Muchopes, além dos Postos Sanitários de Guijá, de Chongoene, de Alto Changane (sendo fechado neste ano o de Machacualane por falta de funcionários.
70
enfermeiros africanos, que costumavam manter uma relação diferenciada
com as populações em comparação àquela tecida por médicos e enfermeiros
europeus. Também não se deve esquecer que, naquela ocasião, o governo
português já tentava defender-se das acusações contra seu regime de exploração
colonial, apregoado como escravo. O registro de elevados índices de assistência
não teria sido mais uma maquiagem de dados para o governo colonial mostrar-
se cumpridor de suas obrigações perante o cenário internacional?
Já em relação à baixa significativa verificada na Circunscrição dos Muchopes,
é preciso atentar para o fato de que o fluxo de doentes nos principais centros
urbanos era totalmente desigual em relação aos localizados no interior.
O Conselho de Gaza era uma das sedes principais do distrito de Gaza.
Ademais, existe dado de que o governo manifestou dificuldades em manter
o funcionamento das instalações sanitárias com o passar do tempo31.
O número de missões religiosas (sobretudo católicas) na assistência de
saúde às populações africanas tendeu a ampliar-se na fase do governo
salazarista. Por influência ou não de pressões internacionais, o governo
colonial reconhecia ser exígua a distribuição territorial de postos sanitários.
Todavia, parece que o fato de disponibilizar maiores possibilidades de
serviços através das missões não foi suficiente para resolver o problema da
assistência de saúde às populações africanas, apesar do número elevado de
pacientes africanos e procedimentos apresentados nas estatísticas sanitárias
coloniais. Exceção se fazia ao atendimento feito por missões estrangeiras32.
31 GULUBE, 1997.
32 O período no qual foi lançado o decreto 34.417 para reorganização da saúde em atenção às populações africanas coincide com a fase em que o governo resolve elevar ao máximo a produção em suas colônias. Nesta ocasião, trabalhadores de ambos os sexos foram sujeitos a uma carga excessiva de trabalho, péssima alimentação
71
A péssima condição das instalações de saúde que atendiam os africanos
tornou-se uma reclamação constante nos relatórios de inspetores e demais
autoridades coloniais. As queixas se referiam desde a inadequação do
espaço físico à falta de transporte e, insuficiente distribuição dos postos
sanitários, medicamentos e demais instrumentos de trabalho, bem como
de funcionários. Os funcionários europeus, com o avanço do movimento
nacionalista no continente africano, tenderam a evadir-se para Portugal,
quando não se negavam a trabalhar no “mato”, alegando sua boa formação.
O inspetor Antônio Policarpo dos Santos listou uma série destas dificuldades
em seu relatório dos anos 1942-1957, inclusive a queixa que recebeu de um
dos Chefes africanos da Circunscrição do Limpopo, segundo o qual havia
morrido, em 1955, 50 pessoas de sua povoação sem a menor assistência33.
Entre os anos de1961-1974, Gaza era o distrito que menos recebia valores
do orçamento governamental reservado para a saúde. Nas zonas rurais, a
distância (até mesmo dos postos sanitários), dificultava o acesso das famílias
africanas aos serviços de saúde colonial. Os habitantes do interior podiam
gastar até dois dias para chegar à sede da delegacia de saúde, fazendo com
que pessoas gravemente enfermas morressem sem receber assistência.
Ademais – acrescentou o autor – em geral, centros de saúde melhor
equipados se localizavam mais nos centros urbanos e principais Vilas onde
e más condições de vida, agravando sensivelmente o quadro de saúde das populações africanas em toda colônia. É também neste período que Portugal tenta defender-se das acusações contra seu regime de exploração colonial, apregoado como escravo.
33 AHM. S.E.a.II P.9 no 114 (a,b). Relatório Io vol. 1966; AHU.MU.ISAU. Cota A2.49001/3500210, Circunscrição dos Muchopes, 1941-1957. AHM.ISANI.Relatórios e Documentos referente a Inspecção da Circunscrição do Limpopo. Postos de Massagena, Saúte e Mavúe. Cx 4 Por Antônio Policarpo de Souza Santos, Guijá, 1957; AHM.ISANI. Relatório de Inspecção do Concelho de Bilene. Cx 21, por Leovigildo Lisboa Santos. Bilene, 1961; AHM. S.E.a.II P.9 no 114 (a,b). Relatório Io vol. 1966.
72
residia a maioria europeia.34
O alto índice nas estatísticas sanitárias e demais registros, até então, mostram
que uma parte da população africana utilizava com certa frequência serviços
de saúde coloniais, sobretudo os homens. Neles, povos africanos aparecem
como os mais anti-higiênicos, doentes e/ou favoráveis ao desenvolvimento de
endemias, também os que mais necessitavam de vacinas, de investigações, das
ações da vigilância sanitária e do atendimento nos hospitais ou postos sanitários.
No entanto, esta maior relevância numérica para populações africanas não
evitava a reincidência de certas doenças entre elas, nem a morte de seus
membros ou que estes adoecessem menos. No levantamento da colônia,
por razões de adoecimento e morte entre africanos e europeus dos mesmos
relatórios, pode-se ainda encontrar:
Tabela 4 – Causas de adoecimento e morte entre europeus e africanos
Gripe Desinteria Tuberculose Menigite Outras
Ano DOENTES (D) MORTOS (M)
D M D M D M D M D M
1932-1934
AFRICANOS 458 57 474 70 320 150 41 28 4.039 112
EUROPEUS 101 0 86 0 109 22 02 0 209 3TOTAL 559 57 564 70 438 172 43 28 4.248 115
Fonte AHU.MU.DGSA.Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Cx 4, 1932-1934
Nos dados dessa amostra, vemos que, por causas similares, o número de
34 GULUBE, 1997.
73
mortes por adoecimento se mostrou crescente entre os africanos, o que
não se faz notar em relação aos europeus. Entre 1932-1934, nota-se que
europeus não morriam por gripe, meningite ou disenteria. Contudo, entre
os africanos houve um aumento desproporcional dos óbitos, especialmente
aqueles causados por tuberculose e por aquilo que aqui se classifica por
“outras doenças”. A diferença é também significativa em relação à causa de
adoecimento. Conforme dados da tabela acima, enquanto o total de doentes
entre os africanos por “outras doenças” chegava a 4.039, entre os europeus, o
total era de apenas 209. Muito embora se note certa diminuição na incidência
de doença e morte por meningite entre os africanos, esta queda, quando
comparada aos outros dados, perde sua relevância.
As estatísticas e relatórios mostraram um direcionamento massivo e quase que
exclusivo de investigações e procedimentos médicos para o público africano, o
que parece projetar, neste grupo social, a imagem de grande ameaça à saúde
pública na colônia, senão a única. Afinal, o que teria justificado tal predominância
em diferentes procedimentos de saúde ao longo de um tempo?
Para Aurélio Langa, as formas de discriminação imposta aos indígenas
naquela cidade não se justificavam pelo fato de os africanos serem mais sujos,
ignorantes ou desorganizados como os relatórios parecem mostrá-los, e sim
como estratégia das autoridades coloniais para impor seu domínio. Ao longo
do período colonial, o governo tentou controlar a migração africana das zonas
rurais para a cidade Lourenço Marques e outros centros urbanos da colônia,
valendo-se de diferentes leis que exigiam, daqueles que se deslocassem,
o porte de passes, bilhetes de identidade, cadernetas de trabalho onde
74
constasse a devida autorização, o motivo e o prazo de seu trânsito35.
Outro fator a considerar é o valor econômico que certos procedimentos
de saúde, incluindo a medicalização, podiam render aos cofres do Estado
colonial, como por exemplo, a doses de vacinas antivaríola a empresas
particulares36.
Também não se pode desconsiderar que a realização massiva de
procedimentos em pacientes africanos nos hospitais, enfermarias ou
povoações, não deixava de ser uma oportunidade de a classe médica colonial
se especializar na cura de doenças, nominadas de tropicais.
Pode-se imaginar a infinidade de saberes que médicos dispersos pelo
continente africano podiam adquirir e/ou transferir de África para as
academias europeias e Congressos de Medicina. Provavelmente, médicos
granjeavam fama ao circularem os resultados de suas investigações sobre o
que ficou conhecido por “medicina tropical”, contribuindo, desta forma, para a
afirmação da área médica portuguesa no cenário nacional ou internacional37.
O interesse de investigação dos médicos portugueses em terras africanas
não se limitou ao estudo das doenças típicas, mas também das maneiras
endógenas de cura, em especial, aquelas relacionadas com a fitoterapia.
Embora pareça tratar-se de uma iniciativa individual e esparsa ao longo do
35 LANGA, 2011; RITA-FERREIRA, 1967-1968, p. 153-163.
36 AHU.MU.DGSA. Relatórios das Repartições Provinciais dos Serviços de Saúde. Província de Moçambique, Cx 04, 1909-1939.
37 BARRADAS, Antônio. Aspectos Científicos do Congresso Médico de Lourenço Marques. Moçambique. Documentário Trimestral, no 16, out/nov/dez. Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1938.
75
tempo, médicos portugueses se interessaram em indagar sobre as doenças
que tratavam (e de que forma), produzindo inventários de uma série de
ervas com suas funções curadoras, apesar de, em seus registros, não
deixarem de desqualificar a figura do Nyanga e seus saberes de curador ou
de dotôro. Conforme argumentou o médico Júlio Afonso da Silva Tavares da
Circunscrição de Magude-Gaza, em relatório do ano de 190938:
[..] A par de muitos conhecimentos errôneos, filhos de sua superstição e
ignorância, surpreendem-nos eles de vez em quando com algumas noções
exactas sobre a contagiosidade de algumas afecções (varíola, tuberculose,
lepra, doenças venéreas), do mesmo modo que nos maravilham dados o
desacerto e o desconhecimento absoluto das mais elementares noções
etiológicas e patogênicas, com a idoneidade de certas medidas terapêuticas
de que fazem uso (balneação em doenças febris, revulsivos nas dores
reumatoides e etc) [...] É opinião minha que á parte meia dúzia de drogas são
dignas de ser estudadas as outras não tem valor algum [...] Lamento não ter
aqui os meios necessários para poder ensaiar o valor terapêutico de algumas
drogas, o que só pode ser feito em um hospital movimentado [...]39
Parece que o contato com Tinyanga fez o médico Silva Tavares admitir que
alguma coisa aqueles “outros” sabiam, mas ainda assim tratava-se de um
conhecimento a ser testado, provavelmente com os próprios africanos. Não
teria sido esta a situação nos hospitais posteriormente?
Também o médico Antônio Maria do Soveral, no mesmo ano e distrito, na
cidade de Xai Xai, descreveu uma listagem considerável de ervas e o modo
como eram utilizadas. Essas informações foram fornecidas por Tinyanga.
Inclusive, o Nyanga Caiâne, reconhecido na época dentre a população do lugar
38 TAVARES, Júlio Afonso da Silva. Relatório dos Serviços de Saúde da Circunscrição de Magude, 1909. Documento Trimestral, no 53. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1948.
39 TAVARES,1948.
76
como um dos mais afamados, foi quem chamou a atenção de Soveral para
a dimensão religiosa que o uso das ervas e suas raízes podiam ter. Ele, por
exemplo, utilizava algumas no ritual pós-morte com finalidade de proteção
dos membros da família da pessoa morta, informação que o referido médico
julgou sem importância, não hesitando em subestimá-la. Tal atitude não
deixou de atuar como uma provocação para o Nyanga Caiâne, não hesitando
ele, em manifestar seu pensamento acerca dos médicos europeus, conforme
registro do médico Soveral:
[..] E quando lhes dizíamos que nos parecia não ter as suas mezinhas grande
utilidade, respondeu-nos logo com ares altivos:-que podíamos pensar o que
quiséssemos, mas que ele estivera com Muzila, Manicusse e Gungunhana e
que eles o respeitavam e aos seus feitiços; que bem sabia que os brancos
não os temiam, mas que experimentássemos e observássemos se os pretos
lhe tinham ou não o maior respeito; e com uma gargalhada, acrescentou que
podia parecer pouco o que ele sabia ou fazia, porém que isso chegava para
se governar e foi-se em paz, a exercer sua profissão, que talvez não deixe de
ser rendosa40 [..]
O curioso é que aquele médico resolveu considerar em sua lista a indicação
dada pelo Nyanga Caiâne do uso de raízes “para banho quando falece uma
pessoa na povoação”. Talvez sua atitude possa ter sido influenciada menos
pela segurança com que aquele Nyanga demonstrou exercer sua prática,
apoiado na antiguidade de seus saberes de cura e no respeito que tinha
da população, como acontecia com outros Tinynga, e mais pelo desejo de
mostrar que aquele conhecimento era limitado por incluir uma dimensão
ritualística, sendo por isto, necessária à investigação da eficácia de tais
40 AHM. Ct D500R. SOVERAL, Antônio Maria do. A Arte de Curar entre os Indígenas da Circunscrição de Chai –Chai. Relatório, 1909.
77
drogas em laboratórios e assim desejou fazê-lo na época, contudo impedido
por falta de estrutura para este procedimento.
Ao longo do período colonial, a investigação portuguesa sobre as
potencialidades fitoterápicas do saber de cura dos Tinyanga permaneceu
como foro íntimo de médicos, suas academias e associações. Dos registros
que se teve acesso sobre o assunto, ao menos até o ano de 1950, nota-se na
que alguns administradores se mostraram receptivos a ideia de o governo
incorporar saberes de cura dos Tinyanga na assistência de saúde, inclusive
como uma estratégia política para atrair a ação daquele grupo em favor dos
interesses do Estado colonial. Vejamos alguns desses exemplos, segundo o
inspetor superior dos Negócios Indígenas, Carlos Henrique J. da Silveira:
[...] É sabido que recursos medicamentosos são obtidos e, ainda hoje, alguns
dos mais sensacionais pelo estudo da arte de curar dos povos primitivos e,
quem possui como nós tão vastos domínios ultramarinos deve interessar-se
por essa investigação [...]
O administrador da Circunscrição de Buzi, região central, também se
mostrou favorável a esta proposta, embora não precisasse o lugar, afirmou
este funcionário ter visto algures a ideia do aproveitamento pelos médicos, dos
serviços destes curandeiros indígenas. Cremos que seria de-facto interessante
essa política de atracção de que poderíamos advir extraordinários benefícios.
Também admitia a necessidade de realizar uma observação científica dos
métodos e medicamentos da arte de curar dos indígenas, da influência e dos
meios de atracção usado pelos curandeiros e feiticeiros41.
41 AHM.FDSNI. Cx 148. Confidenciais. Buzi,1947.
78
Nas entrevistas realizadas no distrito de Alto Changane, na atual província
de Gaza, algumas pessoas afirmaram que um e outro médico, em segredo,
trabalhavam com determinados Tinyanga.
Um exemplo disto é o caso que se passou com a mãe do chefe de bairro Alberto
Zacarias Tivane, a qual era Nyanga e se chamava Njoasse Balane, cuja família
residia em Chibuto. Contou-nos Tivane que, por volta do ano de 1963, sua
mãe foi procurada por uma mulher grávida, sofrendo de dores de parto, que
havia fugido do hospital também situado em Chibuto, por desejar que uma
“curandeira” resolvesse o problema de seu parto, pois o médico do hospital
não conseguira fazê-lo: temia morrer grávida. Segundo o chefe Tivane, sua
mãe realizou alguns procedimentos que possibilitou a grávida entrar em
trabalho de parto ainda às portas da palhota sagrada, momento em que ele, o
Tivane, foi obrigado a sair daquele espaço por ordem de sua mãe. Conforme
explicação do Sr. Tivane acerca do que se passara com aquela mulher:
[...] Nós temos uma complicação em termos de espírito. Nós os indígenas, nós
os africanos. Por exemplo, este rapaz (moça) pode conceber para dar parto,
mas quando há conflitos das ideias em casa ou mesmo em companhia dos
pais ou do marido. Introduz-se. Quer dizer ela é uma vÍtima de um espírito
por outra pessoa só para lhe castigar. Então, uma das raparigas saídas de
uma zona chamada (sic), mas quando chega no hospital tudo fica fechado e
os médicos não conseguem ver se ela está perto para o parto ou muito para
o parto42 [...]
O Sr. Tivane insinuava que aquela mulher grávida teria sido vítima de um
“feitiço”, tendo sido enviado um espírito para lhe fazer sofrer, tratando-se de
42 TIVANE, Alberto Zacarias. Alberto Zacarias Tivane: depoimento [jul. 2012]. Entrevistador(a): Jacimara Souza Santana (língua portuguesa), Alto Changane-Chibuto, 2012, Arquivo mp3 (acervo pessoal).
79
coisas que os médicos não compreendiam e nem podiam intervir, ao contrário
dos dotôros ou dotôras da terra. Ademais, acrescentou o Sr. Tivane, que, após
tomar conhecimento do fato, a autoridade médica e administrativa intimou
sua mãe a comparecer na administração, a pedido do médico Manuel Pataca
Dias, ocasião em que sua mãe recebeu uma licença para continuar atuando
nestes casos em colaboração com aquele médico.
Como afirmou Sr. Tivane, isto foi uma grande surpresa. Ele próprio já
tinha solicitado ao pastor africano da Assembléia de Deus, João Balan, que
escrevesse uma carta para o seu pai, que trabalhava nas minas em África do
Sul, de modo a comunicar sobre a prisão de sua mãe. Segundo ele, sua mãe
seguiu sendo consultada pelo serviço médico local numa ocasião de grande
epidemia de tuberculose, sífilis e malária, entretanto, por iniciativa de médicos
em particular, não sendo uma liberação do governo colonial de um modo
geral. Este caso mostra que a relação entre médicos e Tinyanga não somente
fora marcada por experiências rivais, mas também de complementariedade.
Até os dias atuais, em diferentes partes de Moçambique, notam-se conflitos
entre populações e servidores de saúde, muitos alcunhados popularmente
de “chupa sangue”. Isso reflete a experiência passada de massivas campanhas
de vacinação, exames laboratoriais e demais procedimentos direcionados
à população africana. Situações como as descritas nesse texto sobre as
condições de saúde e assistência da população africana no tempo colonial
se mostra contínua no contexto atual de Moçambique, segundo Dra. Isabel
Casimiro. Isto também não soa estranho na história e análises atuais das
condições de saúde da população afro-brasileira.
80
Em todo o mundo, a prevalência do pensamento ocidental relegou à
marginalidade e ao desprestígio social maneiras distintas das suas de cuidar
das doenças e promover a cura, apoiado na pretensa crença na supremacia
do seu saber por sua natureza científica/laboratorial. Em diferentes lugares da
África, assim como ocorreu em sua diáspora, apesar das inúmeras tentativas
de supressão de tais saberes, seus agentes continuaram sendo requisitados
por clientes de variados níveis econômicos e opções religiosas, sejam eles
habitantes de zonas rurais ou urbanas na busca de solucionar problemas
não resolvidos pela medicina alopática.
A MANEIRA NYANGA DE CURAR: “EU NÃO TRATO SÓ DA SAÚDE, MAS
TAMBÉM DAS DIFICULDADES DE CADA UM”.
Muitos africanos ao longo do período colonial e também após a independência
permaneceram utilizando uma assistência plural de saúde. Por julgar tratar-
se de doença incurável por médicos europeus ou por Tinyanga ou em razão
de superar a exígua e deficiente assistência que o Estado colonial lhes
disponibilizava, tanto nos centros urbanos quanto nas zonas rurais, entre
aqueles mais pobres ou de condição social mais elevada. Como afirmou o
Nyanga, Aurélio Moraes, em entrevista no ano de 2010, atualmente já falecido,
todos vêm nos procurar até os ministros, basta acontecer alguma coisa no
Gabinete, eles não vêm de dia, mas vêm de noite43.
Se africanos continuaram a procurar Tinyanga, apesar das dificuldades criadas
pelo Estado colonial para tal acesso, é porque a assistência prestada por
43 GULUBE, 1997.
81
membros deste grupo possuía um diferencial em relação à ocidental. Afinal,
o que os atraía para a assistência com Nyanga? Em que este atendimento
singularizava-se? Esta atitude pode ter se configurado como uma estratégia
contra a exigência de abandono às consultas com Tinyanga, imposto pela
classe médica e missionária europeia, mas tambémpode ser um equívoco
restringir a frequência de africanos aos centros de saúde coloniais a um
mero resultado da imposição portuguesa. O saber médico europeu, ao longo
de um tempo, não teria alcançado no meio africano certo reconhecimento?
Para introduzir nosso diálogo sobre esse assunto, proponho retomar um dos
episódios da vida de Raúl Bernardo Honwana, o qual relata em seu livro de
memórias. Na época, Honwana era africano assimilado, habitante da cidade
de Lourenço Marques e que fazia parte do quadro de funcionários do Estado
colonial. Entre os anos de 1932-1934, depois de ele enfrentar constantes
insucessos nas tentativas de solucionar os problemas de saúde que atingiam
a si e a sua família com médicos ocidentais, resolveu por força de pressões
familiares, aceitar a proposta de buscar tratamento com um Nyanga. Isto,
apesar de não acreditar muito em “curandeiros”, conforme mostra alguns
trechos de suas memórias que seguem abaixo:
Um belo dia veio visitar-nos a tia Matchimbe uma irmã de meu pai, que vivia
em Marracuene (distrito de Gaza). Ao ver-nos assim doentes falou com o
tio Hassan Tricamo dizendo-lhes que se os médicos tinham falhado era
necessário recorrer à medicina tradicional, aos curandeiros. O tio Tricamo
chamou-me e pôs-me ao corrente do problema. Eu recusei-me. Não queria ir
morrer para o mato. Por outro lado eu confiava mais nos médicos da cidade.
O tio Hassan Tricamo então me fez ver que não deveria contrariar a minha
própria tia, que por ser irmã de meu pai, tinha autoridade sobre mim. Assim
acedi em acompanhar a tia a Marracuene. Comigo seguiram a minha mulher e
82
os meus dois filhos. No dia seguinte a nossa chegada, tivemos que viajar para
Bobole onde vivia o curandeiro de minha tia [...]
Chegados à casa do curandeiro, ficamos lá todo o dia sentados. Eu não sentia
fome ou cansaço, sentia-me apenas abandonado, negligenciado. O curandeiro
não nos ligava nenhuma. Só ao fim da tarde, após despachar toda a gente, ele
se chegou a nós. Além de curandeiro ele era também adivinho e chamava-se
Nwa Mahlanguana [..]
Em primeiro lugar, deitou os ossos e esteve a “lê-los” durante um tempo.
Depois me preparou uma infusão e além do suadouro eu tive de tomar
alguns remédios. Pela primeira vez em muitos dias, eu tive fome. Deram-
me de comer depois dormimos [...] Voltamos para a casa da tia Matchimbe
a Marracuene e continuei o tratamento. Após um mês eu já estava muito
melhor e regressamos a Lourenço Marques, acompanhados pela esposa do
curandeiro [...] Nunca tive grande fé em curandeiros, mas não há dúvidas que
o Nwa Mahlanguana sabia o que fazia, e lá tinha os seus poderes.44
Assim como Raúl Honwana, provavelmente outros africanos dentre o
grupo de assimilados, atribuíram ao saber médico europeu superioridade e
confiança, ao contrário dos tratamentos ofertados por qualquer Nyanga, mais
atuantes em zonas rurais naquela época. Assim como a sua tia Matchimbe,
muitos africanos também continuaram a procurar tratamentos com Tinyanga
quando a medicina ocidental não surtia o efeito desejado, também é provável
que alguns somente utilizassem o tratamento com Nyanga, sobretudo, quem
morava mais afastado dos centros urbanos, distantes do raio de ação dos
delegados de saúde.
Na ocasião em que Raúl Honwana se encontrava enfermo, médicos europeus
tinham apresentado um diagnóstico controverso. Sugeriram doenças como
44 HONWANA, Raúl Bernardo. Memórias. Maputo: Editora Marimbique, 2010.
83
paludismo (malária), “angina de peito” e problema cardíaco mediante suas
queixas de dores nas articulações e no peito, enfermidades cujo tratamento
os médicos demonstraram, na época, ter um restrito conhecimento. Uma
mostra disso esteve na solução dada ao caso, Raúl Honwana foi afastado por
90 dias do seu trabalho para ficar em Naamacha, por ser considerado um
lugar de clima mais favorável à saúde.
Na visão da tia Matchimbe, o problema de saúde do seu sobrinho Honwana
estava além dos sintomas físicos por ele apresentados, não sendo o suficiente
para a sua cura, administração de remédios ou outros procedimentos da
medicina ocidental. Numa perspectiva bantu africana, saúde se define
como um estado de harmonia entre os seres humanos, o meio ambiente e
os antepassados. Ocorrendo o desequilíbrio desta relação, há emergência
de doenças e infortúnios. Isto não significa dizer que todo tipo de doença
ou morte seja interpretado como uma ação sobrenatural, o que se leva
em conta nesta interpretação é a persistência do estado enfermo do
paciente mediante cuidados médicos e a sua emergência concomitante a
outros fatores que venham atingir a si ou membros de sua família, como
o adoecimento de algum parente e/ou ocorridos graves ou desagradáveis,
como, o desemprego, a perda de moradia ou plantação por uma enchente
e etc. Esta foi justamente a situação que se mostrou na vida de Honwana no
início dos anos 193045.
45 HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos Vivos, Tradições Modernas. Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Nova York: Ela por Ela, 2002; FU-KIAU, Kimbwandende Kia Bunseki. African Cosmology of the Bântu-Kôngo. Principles of Life e Living. Canada: Copyright, 2001, pp 1-43; LANGA, Aurélio Valentim. Memórias de um Ex-combatente da Causa. O passado que levou o verso da minha vida. Maputo: CIEDIMA, SARL, 2011; MENESES, Maria Paula G. “Quando não há problemas, estamos de boa saúde, sem azar, sem nada”: para uma concepção emancipatória de saúde in: SANTOS, Boaventura dos Santos (org). Semear Outras Soluções. Os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp 424-461.
84
É também como afirmou o Dr. Leonardo Simão, em entrevista, o mesmo que
trabalhou no Gabinete de Medicina Tradicional, logo após a independência,
enquanto estudante do curso de medicina, chegando a ocupar, anos mais
tarde, o cargo de ministro da saúde de Moçambique, o trabalho do Nyanga
é marcado por uma dimensão cultural, um fato que ele notou ser relevante
durante o seu trabalho de investigação sobre as maneiras de curar dos
Tinyanga, na fase em que esteve no governo, na condição de estudante,
conforme sua explicação:
[...] A doença na medicina tradicional tem uma filosofia por detrás. Algumas doenças são o resultado de uma má relação ou provocados por antepassados ou por terceiros, é o que chamamos de feiticeiro. O feiticeiro é um espírito maligno que pode ser mobilizado para provocar dano a alguém, portanto, é o praticante de medicina tradicional que através de seus búzios vão determinar a origem da doença que o paciente tem. Ele pode dizer, o teu problema é um antepassado que está insatisfeito, porque você nunca mais prestou atenção para ele, às vezes, a pessoa tem o seu nome (do antepassado).Nós temosnomes tradicionais, os nossos nomes são nomes de um familiar nosso e, muitas vezes, é de um familiar que já morreu, portanto há uma ligação entre o vivo e o dono original do nome e então é preciso restabelecer esta relação entre o recipiente do nome e o dono do próprio nome.
Se aquele que tem o nome é negligente nesta relação, digo, se esta relação não é boa, o antepassado pode se manifestar por meio de doença. Por isto, quando se tem uma dor é preciso saber qual a origem e qual o tratamento da doença. O tratamento tem que incluir duas componentes: uma que refaça,
reponha esta relação com o antepassado por um lado e outra que trate
os sintomas que a pessoa tem. Portanto a pessoa pode seguir um ritual e
também tomar qualquer coisa que lhe dê o alívio para tratar os sintomas de
sua doença46[..].
Segundo a crença, a emergência de doenças e infortúnios na vida de uma
46 Entrevista com Dr. Leonardo Simão, Ministro da Saúde de Moçambique em 1988. Por Jacimara Souza Santana. Língua portuguesa. Maputo, dezembro de 2012.
85
pessoa pode se dá em decorrência de diferentes fatores: descontentamento
dos antepassados, a manipulação não intencional das condições ecológicas, o
descumprimento de alguma norma social do costume ou ainda um resultado
de ações de “feitiçaria”/wuloy, enviadas à pessoa por vingança ou inveja.
No sul, em diferentes línguas (Xichangana, Xitshwa, Cindau, Cizulu, Xironga e
Xichope) o ato de feitiçaria é conhecido pelo termo wuloyi e a pessoa feiticeira
por noyi, no singular e no plural valoyi. Os significados destes últimos termos
são distintos daqueles em português (feitiçaria e bruxaria) e também abrigam
variadas formas de entendimento e manifestação47.
Entre os povos de origem Changana e Chope, wuloyi é compreendido como
parte integrante da essência do indivíduo reconhecido como noyi e, segundo
a crença, trata-se de algo transmitida pela via materna, mas também
existe a possibilidade de sua aquisição por compra. Aos valoyi é atribuída a
responsabilidade de causar prejuízos às pessoas e objetos, de comê-los no
sentido metafórico; no caso de pessoas, por exemplo, acredita-se que valoy
as matam e comem sua carne humana e, embora o corpo aparentemente
se mostre íntegro, sua essência é roubada, passando o seu espírito a servir
como um escravo do indivíduo noyi que são reconhecidos pelo nome de
xingono e podem ser enviados a outras pessoas para lhes causar doenças,
mortes, desavença na família e demais situações de sofrimentos em geral48.
Em Gaza, durante o período em que dediquei a entrevistas, ouvi diferentes
47 AHM. FDNSI. Cx 1645. Código Penal dos Indígenas da Colônia de Moçambique. Projeto Definitivo. Lourenço Marques: Imprensa Nacional de Moçambique, 1946; MACHUNGO, Fernanda. O Aborto Inseguro em Maputo. Outras Vozes, no 7, maio de 2004., pp11-13.
48 LANGA, A. O., 1992.p. 62-67.
86
pessoas associarem wuloyi a certos comportamentos de cobras, macacos,
ratos e corujas por crer-se que os valoyi podem manifestar-se através de
animais ou recursos naturais, como: fogo, pedra, raios, entre outras coisas.
Comentou o antropólogo Moisés Nhatumbo, natural de uma povoação
de nome similar ao seu sobrenome, e situada em Gaza, que a coruja se
tornou um animal extinto naquele local devido àquela associação. A ideia de
relacionar a presença do noyi a uma espécie de labareda de fogo também se
estende a outras regiões do país, como a central49.
Mas wuloyi não somente pode ser visto como fonte geradora de malefícios.
Conforme constatou Peter Geschierre e Harry West, restringir-se a essa
compreensão é empobrecer a dimensão múltipla e ambígua de suas
manifestações. Tio Anastácio e o antropólogo Nhatumbo, ambos de Gaza,
comentaram em entrevista que wuloyi também era usado como forma
de enriquecer e ter acesso a lugares de poder, ainda que, geralmente,
esse sucesso fosse acompanhado de graves consequências como a
emergência de doenças seguida de mortes de variados membros da família.
Provavelmente por esta razão é que as acusações de wuloyi são direcionadas
predominantemente a membros da família. A relação entre “feitiçaria”,
parentesco e mudanças modernas foi algo para o que Geschierre prestou
atenção em sua pesquisa50.
49 NHATHUMBO, Moisés (antropólogo), depoimento. Entrevistador(a): Jacimara Souza Santana (língua português), Xai-Xai, 2012, Arquivo mp3 (acervo pessoal); TINYANGA. Tinyanga (grupo de) – Xai-Xai, jul. 201; Paulina Chiziane em seu livro “O sétimo Juramento” mostra a saga de uma família, cujo pai de família em busca de maior acesso a cargos de poder em sua empresa põe a perder todos os membros de sua família atingindo também vizinhos, a manifestação do noyi apresentada pela autora nesta obra é justamente a imagem de uma cobra e uma ardente labareda de fogo.
50 GESCHIERE, Peter. The Modernity of Witchcraft. Polics and the occult in postcolonial Africa.E.U.A: University of Virginia, 1997; WEST, Harry G. Kupilikula. O poder e o invisível em Mueda-Moçambique. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Imprensa de Ciências Sociais, 2009.
87
Há notícias também de que os valoyi se caracterizam por uma personalidade
dinâmica, tratando-se de pessoas inteligentes, pessoas respeitadas. Wuloy,
desta maneira, mostrase como uma força perigosa e poderosa diante da
qual as pessoas demonstraram ter duas atitudes: apropriar-se ou proteger-
se. Ambos os processos podem ser intermediados pelo Nyanga.
Wuloyi tanto pode causar doenças como curar. O diagnóstico realizado pelo
Nyanga visa identificar os sofrimentos que atingem as pessoas, os quais
podem ser causados por um xicuemboxingono, espírito enviado por noyi;
por manifestação de um xicuembomphukua, espírito de uma pessoa morta
que “ressuscitou” para se vingar ou ainda, para manifestar algum desejo
dos ancestrais familiares. Estas situações podem resultar em diferentes
tratamentos, como a realização de algumas cerimônias em memória dos
ancestrais, tratamentos de reversão do woloyi ou iniciação de um novo
Nyanga, ou ainda, simplesmente na aplicação de cuidados com ervas
da doença apresentada. É como bem disse o tio Anastácio, wuloy é parte
integrante do fazer dos Tinyanga, pois para neutralizar ou prevenir seu efeito,
tais profissionais também se valem dessa energia e conhecimento. Uma das
Tinyanga de Chibuto durante a entrevista, ao comentar sobre o seu processo
de iniciação na carreira de Nyanga deu mostras dessa ambiguidade:
Morreu meu bisavô e deu aquele trabalho que ele estava a fazer. Por ciúme
matava as pessoas ou fazia com que elas fossem para outro sítio e estava
morrendo muitas pessoas e quando ia ao curandeiro indicavam que era a
vovó que mandava matar as pessoas, ela recebeu o espírito do bisavô. Daí
foi ao curandeiro e o espírito pediu uma filha e a vovó me deu e quando
eu chegava na escola ficava tremendo, não podia concentrar para aprender
nada. Eu recebi isto e estava dentro da barriga da mãe sem saber o que estava
sendo dado, mas a criança que saiu da barriga da mãe e os pais procura o
88
nome da criança, vê que tem que fazer o trabalho dos avós e o trabalho dos
avós era com este espírito que não era muito bom.
Esta criança que nasceu tinha que ficar na casa do curandeiro. Se sair o sol
tinha que tomar banho com água fria (na madrugada) no curandeiro já com
tratamento de curandeiro. Depois toca Tingoma (tambores) para o espírito
sair e o coração bate forte e eles já não estão a ouvir mais nada e então o
espírito através da miúda diz ao pai, o curandeiro o que o bisavô quer e a
partir deste momento a miúda já é considerada uma Nyanga (...) O curandeiro
fez o trabalho então saiu o espírito do bisavô e pergunta o que o bisavô fazia
antigamente e por que está a sair na neta. 51
É desta contradição que provavelmente pode ter originado o termo
“curandeiro-feiticeiro”, de modo a indicar que não somente trata doenças com
ervas, ou seja, é ervanário, mas também malefícios gerados por wuloyi, o que
se poderia ainda entender como ações de antifeitiçaria ou contrafeitiçaria.
Tal definição é bem distinta da designação portuguesa do termo “feiticeiro”.
Conforme entrevista com Tinyanga, em Xai Xai, têm-se:
Para ser feiticeiro é preciso ter dom. É quando se ouve que você come galinha
porque não me dá? Existe aquele ódio. É como a Igreja Universal que faz
aquela magia para comer dinheiro (...) é feitiço! É uma maneira que a pessoa
faz para sobreviver. Um feiticeiro também é respeitado porque quando pede
qualquer coisa logo lhe dão porque se não der vai morrer52.
A noção de “feitiçaria” manifestada por esta Nyanga ainda pode ser associada
à ideia de mau olhado tão comum na cultura afro-brasileira, em especial
51 TINYANGA. Tinyanga (grupo de) – Chibuto: depoimento [out. 2012]. Entrevistador(a): Jacimara Sousa Santana (língua Changana). Trad. da Língua Changana Vânia Daniel Macuácua. Chibuto, Arquivo mp3 (acervo pessoal).
52 TINYANGA. Tinyanga (grupo de) – Chibuto, out. 2012. A Igreja Universal está presente tanto na cidade de Maputo como em Gaza, segundo entrevista com Tinyanga de Xai Xai e Chibuto, a matriz originária de seus núcleos é brasileira. Assim como no Brasil e especialmente na Bahia, a política de expansão eclesial da Igreja Universal é seguida pela prática da “intolerância religiosa”, desqualificando, sobretudo as instituições e experiências religiosas reconhecidas como “tradicionais”, embora copie destas, muitos ritos.
89
baiana, segundo a qual se acredita que existem pessoas que têm a habilidade
de esvaziar a capacidade vital dos objetos e indivíduos através de uma
energia interna integrante de sua personalidade que, convencionalmente,
é considerada como negativa. Ela é movida pela inveja ou ambição e
despertada pelo que vêem e desejam. Tais pessoas são reconhecidas como
aquelas que têm olho gordo, podendo ser apelidadas de zoião e identificadas
quando, de modo frequente, seguida a sua presença ou admiração por algo
ou alguém ocorrem doenças ou destruição do objeto desejado ou admirado.
Em Moçambique, o noyi é reconhecido por suas ações, mas a sua identidade
pode ser confirmada por um Nyanga através de meios diversos: consulta do
tinhlolo (sessão de advinhação com ossos, sementes, búzios etc), cerimônia
de kufemba, ritual para fazer sair o espírito a fim de consultar qual o seu
desejo ou ainda, o uso do mondzo.
A prática de wuloyi, conforme o costume africano era considerada crime,
podendo o suposto noyi ser condenado à morte.
Assim, os sintomas físicos são vistos apenas como um sinal de que algo
não está bem na vida do indivíduo, devendo a causa ser identificada e
resolvida. Por isto o Nyanga Nwa Mahlanguana, antes de ministrar remédios,
primeiramente consultou a advinha53.
Nesta primeira fase do tratamento ministrado por um Nyanga, não
somente se diagnostica a doença, mas também se inicia a cura. Isto rompe
profundamente com a concepção ocidental cartesiana que separa o corpo
53 HONWANA, Alcinda Manuel. Espíritos Vivos, Tradições Modernas. Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Nova York: Ela por Ela, 2002; LANGA, 2011.
90
da mente. Parafraseando Alcinda Honwana, o ato da advinha consiste em
uma espécie de ritual, através do qual o Nyanga busca a revelação e a análise
lógica das causas das doenças e infortúnios através da consulta aos espíritos
e dos questionamentos que fazem aos seus clientes e/ou sua família, que
geralmente acompanha a pessoa enferma, existindo neste processo uma
inter-relação entre o individuo e o grupo social, bem como, os fatos do
passado e do presente, a presença do mundo visível e invisível54.
Em entrevista, os enfermeiros Albino Maheche e João Coloane afirmaram que
antes de se ausentarem de suas povoações para trabalho em terra estranha,
longe dos membros de sua família vivos e mortos, eles costumavam recorrer
às advinhas seguido de rituais de proteção, o que os Tinyanga passaram a
chamar de “vacina”. Seu procedimento consiste na aplicação de um líquido
de aspecto oleoso originado da mistura de diversas ervas com gordura de
cobra em pequenos cortes feito no corpo. Conforme explicaram os Tinyanga
Maciene F. Zimba e Carolina J. Tamele, em entrevista com Maria Paula Meneses,
A vacina é feita contra os valoyi, contra “infecções” de feiticeiros, contra remédios
maus que podem ter sido enterrados nas proximidades da casa do paciente,
contra maus sonhos, raios e balas e para atrair boa sorte. Os tratamentos com
finalidade de proteção ainda podem incluir outros tipos de procedimentos
como o uso de amuletos, banhos de ervas, defumadores e etc55.
Acredita-se que o ambiente pode vir a estar poluído por forças ocultas, quer
54 HONWANA,Op.cit; GRANJO, Paulo. O que é que a adivinhação advinha. Cadernos de Estudos Africanos. Lisboa:Instituto Universitário (ISCTE), 2011, p 65-93. Sobre definição de adivinhação ainda consultar: SILVA, Sônia. Vidas em Jogo. Cestas de adivinhação e refugiados angolanos na Zâmbia. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2004.
55 COLOANE, João e MAHECHE, Albino Maheche , depoimento. Entrevistadora: Jacimara Souza Santana (língua portuguesa), Maputo. Arquivo mp3 (acervo pessoal).
91
seja, decorrente de espírito de pessoa que morreu no local de modo violento
e/ou de súbito, cuja energia torna-se extremamente perigosa e nociva. Isso
ocorre em consequência do morto não ter tido acesso aos devidos rituais de
sepultamento. Conforme a crença, tais energias nocivas que se encontram
espalhadas na natureza pode dar origem ao fenômeno mphukua, que
permite ao morto ressucitar, podendo a pessoa atingida ser possuída por
espírito de outra já morta, manifestando-se no corpo receptor através de
doenças e sofrimentos.
Quando o diagnóstico do doente não indica que tal espírito possa ser envido
por um feiticeiro/noyi, a pessoa atingida pode tornar-se Nyanga (doença do
chamamento) Segundo a crença, antepassados também podem se manifestar
através de formas similares caso não tenham sido respeitados os rituais em
sua homenagem (timbamba), ou tenha ocorrido alguma violação de normas
sociais costumeiras por membros da família. Crê-se ainda que o ambiente
pode contaminá-los por “germes” de doenças liberados dos corpos de outras
pessoas que ali estiveram56.
A associação do termo vacina, bem como do seu sentido a um secular
procedimento do saber de cura Nyanga é um exemplo de como aquele
saber, alcunhado por tradicional, estava sujeito a reinvenções, a ponto de
incorporar conhecimentos de outros sistemas de cura em suas práticas, não
somente da biomedicina como de outros sistemas de culturas africanas.57
56 HONWANA,2002; MENESES, Maria Paula G. Maciene F. Zimba e Carolina J. Tamele. Médicos tradicionais, dirigentes da Associação de Médicos Tradicionais. Entrevistados por Maria Paula Meneses. In: SANTOS, Boaventura dos Santos (org). As Vozes do Mundo. Reinventar a Emancipação Social para novos manifestos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009., pp 404-462.
57 O termo vacina associado a procedimentos de proteção pode ser identificado nas publicações de Sansão Muthemba no Jornal o Cooperador (1970-1972); LANGA, Aurélio: depoimento [out 2012]. Entrevistadora: Jacimara
92
A compreensão de vacina, ritualmente empregada como uma forma de
proteção das pessoas contra certas doenças e agressões do meio social
e ecológico presente tanto no mundo visível quanto invisível em muito se
diferencia da noção de variolização comentada por Sidney Chaloub ao se
referir aos processos de criação da vacina e sua rejeição popular. Muito
embora a noção do agente dual que causa a doença e que também cura não
esteja ausente de outras formas de tratamento ministrado pelo Nyanga, um
exemplo disso é a conhecida prática de inoculação das pessoas picadas de
cobra com o próprio veneno, prática amplamente adotada entre os Tinyanga
de Moçambique58.
Pode-se imaginar a contradição que o uso das vacinas ministradas por serviços
coloniais causavam quando sua aplicação, geralmente em aspecto seco,
causava sinais da doença nas pessoas, uma vez que, a introdução de líquidos
tinham a função de proteger das doenças, azares, feitiços e etc. Depois, tratava-
se de uma aplicação ritual que era ministrada apenas pelo Nyanga e tal tipo de
vacina ritual era parte integrante de sua iniciação, que podia ser precedida por
uma doença, a doença do chamamento ao exercício da profissão.
Assim como ocorreu no Brasil imperial, houve casos de rejeição das
vacinas ministradas pelo Estado colonial entre os africanos do sul de
Moçambique, incentivados às vezes por um ou outro Nyanga, no próximo
tópico apresentamos alguns desses exemplos. Entretanto eram forçados a
receberem aquela medicação e a utilizar outros serviços médicos, conforme
Souza Santana (língua portuguesa), Maputo, 2012. Arquivo mp3 (acervo pessoal). HONWANA, 2002.
58 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
93
já comentamos sobre o caso das mulheres africanas grávidas que eram
obrigadas a dar parto nas instalações do Estado colonial.
Acho pouco provável que essa rejeição fosse apoiada nas concepções de
eleição ritual comentada por Chalhoub para o contexto carioca de finais
do XIX e início do XX. O aparecimento de uma doença pode significar várias
coisas, entre as quais, a vontade de um ancestral que o individuo adoecido
passe pelo processo de iniciação Nyanga. Ao invés de ela ser divinizada, como
propuseram alguns autores para o caso da varíola segundo a cosmologia
yorubana ou mina, ela é um sintoma de que algo está por acontecer. A vacina
ministrada por funcionários do governo, inclusive, enfermeiros africanos
estavam destituídas de todo esse arquétipo59.
Uma pesquisa sobre as razões de abandono do tratamento da tuberculose em
hospitais e centros de saúde em Maputo, no ano de 1983, mostrou uma crença
fortemente arraigada entre as pessoas entrevistadas de que a tuberculose
era uma doença gerada mais pela falta do cumprimento de normas culturais
de convivência ou de ação de wuloy. Das normas pontuadas entre as pessoas
nas entrevistas tem-se: manter relações sexuais com mulheres que tinham
abortado ou se tornado viúva sem que esta tivesse passado por cerimônia
de purificação, consumir alimento cozido por mulher menstruada, não ter
realizado cerimônias fúnebres, sendo também considerado um estado
perigoso para a disseminação de doenças, as relações sexuais feitas com
mulheres logo após o parto60.
59 CHALHOUB, 1996, p 144-145. Esse autor apresenta diferentes interpretações em seu livro sobre o assunto.
60 FELICIANO, José Fialho. Antropologia Económica dos Thonga. Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique. Estudos 12, 1998; COSTA, João Leopoldo. Tuberculose Pulmonar e alguns fatores culturais vinculados ao abandono do tratamento In: Revista Medicina tradicional, 198, p 142- 178;HONWANA, 2002.
94
Em geral, a tuberculose era uma doença vista como relacionada ao
comportamento sexual das mulheres, de modo que, por regra, constantemente
membros femininos deveriam recorrer a rituais de purificação para recuperar
sua condição saudável. Numa sociedade onde os casais viviam separados
por constantes e longos períodos devido à imigração para o trabalho nas
minas do Rand, estas e outras regras podiam atuar como tentativas de impor
controle à sexualidade feminina e também colaborava na reprodução de um
modelo de organização social baseado no costume61.
Em decorrência da relevante crença nas causas endógenas da tuberculose é
que a primeira atitude da maioria das pessoas contaminadas pela doença era
consultar um Nyanga, podendo passar por rituais de purificação associando
por vezes a este tratamento, as medicações e procedimentos da medicina
ocidental.
Apesar de Raúl Honwana não comentar qual teria sido o diagnóstico do
Nyanga Nwa Mahlanguana e inicialmente recusar acreditar em Tinyanga,
pareceu insinuar que o seu caso também pudesse ter sido efeito de wuloy. É
Interessante notar que somente na consulta com o Nyanga é que ele tornou
conhecido um sintoma que tinha omitido na consulta com médicos europeus,
o de alucinações, um problema não ignorado no tratamento ofertado pelo
Nyanga, conforme recordou:
Voltamos para a casa da tia Matchimbe, a Marracuene e continuei o
tratamento. Após um mês eu já estava muito melhor e regressamos a
Lourenço Marques acompanhados pela esposa do curandeiro que me disse
que ao chegar em casa eu veria coisas estranhas mas não teria medo. Assim,
61 LOFORTE, Maria Ana. Gênero e poder entre os Tsonga de Moçambique. Maputo: Promédia, 2000.
95
na primeira noite após a nossa chegada, tomei os meus remédios e fui deitar-
me. Algo de estranho aconteceu. Era como que um sonho. Eu vi caras, algumas
desconhecidas e outras não, a entrar furtivamente no meu quarto e a avançar
para mim, querendo forçar-me a comer algo. Aí a minha reação era rir-me,
sem medo, e as figuras fugiram.
Entretanto já em 1931 voltei para Bela Vista numa noite de chuva, estava eu a
dormi calmamente quando tive outra vez o mesmo tipo de alucinação e vi um
cipaio fardado a entrar no meu quarto e a avançar para mim com os dentes
arreganhados. Eu então na minha alucinação corri contra ele e insultei-o e
ele fugiu. No dia seguinte perguntei na administração quem era o cipaio que
estivera de guarda à noite e lá me indicaram o mesmo que eu vira durante
a minha alucinação que tive. Dirigi-me então aquele cipaio e perguntei-lhe o
que tinha ido fazer de noite ao meu quarto.Ele respondeu-me que apenas
se fora abrigar da chuva na minha varanda, mas mostrou-se atrapalhado e
comprometido.62
Esta narrativa de Honwana faz recordar as análises de Peter Geschierre a
respeito dos discursos sobre feitiçaria nos Camarões. Conforme observou o
autor citado, o acesso a bens materiais ou a conquista de uma posição social
diferenciada da maioria, vista como equivalente à aquisição de riqueza não
somente atraía para o seu proprietário (a) a acusação de ser um feiticeiro,
cujo poder de manipulação de forças ocultas lhe dava acesso a bens
materiais, como o tornava uma vitima de ataques de pessoas feiticeiras que
por inveja podiam investir na sua destruição e de sua família ou de seus bens
materiais. Honwana deixa subjacente em sua recordação que o Nyanga,
além de tratar os seus sintomas físicos também o tinha blindado contra
o medo e as agressões de “fantasmas” manifestos em suas alucinações,
alguns, segundo ele, conhecidos seus, ou colega de trabalho que ocupava
62 HONWANA, Raúl Bernardo. Memórias. Maputo: Editora Marimbique, 2010.
96
uma posição inferior a sua, como era o caso daquele cipaio63.
Talvez Honwana insinuasse com esta abordagem que o seu histórico crônico
de doença, assim como o de sua família, incluindo a morte de seu primo
Juma em África do Sul após “vomitar sangue” tivesse a interferência de
forças sobrenaturais, cujos autores se manifestavam em suas alucinações.
Possivelmente, na visão médica europeia, o sintoma de alucinação sofrido
por Honwana seria interpretado como um estado de loucura e depois
sua atitude de omissão se relacionava com a ideia muito divulgada entre
os africanos de que médicos coloniais desconheciam tratamentos para
doenças de espíritos ou de wuloy.
Somente depois do diagnóstico através da advinha, o Nyanga Nwa
Mahlanguana iniciou o processo de cura com remédios e suadoros,
provavelmente à base de folhas, raízes, frutas, flores ou mesmo elementos
de origem animal, durante mais de 30 dias, seguindo com este tratamento
em sua palhota sagrada e também na casa de seus pacientes, como afirmou
Honwana, a esposa do Nyanga permaneceu em sua casa por um tempo.
Como era comum entre outros Tinyanga, o Nwa Mahlanguana agregava
diferentes especialidades, a de Nyagarume, Nyanga e Nyamusoro, que lhe
permitia realizar advinha com objetos como pedras e ossos, ministrar
remédios com ervas e neutralizar as ações de wuloy.
Diferente resultado apresentou Honwana e sua família após tratamento
realizado com aquele Nyangaem Gaza, inclusive essa melhora significativa
63 GESCHIERE, Peter. The Modernity of Witchcraft. Polics and the occult in postcolonial Africa. E.U.A: University of Virginia, 1997.
97
o fez reconhecer algum valor para o saber de cura africano, ao menos
daquele Nyanga com quem alcançou bons resultados.
O tratamento ministrado pelo Nyanga denota concepções de saúde e
doença distintas daquelas preconizadas por europeus. Não se limitava ao
imediatismo de cuidar dos sintomas físicos apresentados por seu cliente.
Além disso, abrangia uma visão mais holística de cuidado. Antes de iniciar
o processo de cura que possibilitou aos seus clientes sentirem ânimo para
dormir, comer e, sem temor, enfrentar as alucinações, o Nyanga procurou
identificar e analisar o contexto social no qual seus clientes adoeceram,
buscando investigar como andava a relação do doente com os seus
antepassados, com o meio ambiente, seus familiares e vizinhos.
Por acreditar na inexistência de uma divisão entre corpo, mente e espírito
é que africanos não abandonavam a interpretação endógena da origem
das doenças e por isto, privilegiavam o atendimento Nyanga, por vezes
conjugando-o com o tratamento médico ocidental. Para garantir o acesso às
consultas da medicina africana, seu público usuário assim como membros
do grupo Tinyanga buscaram desenvolver diferentes estratégias, além do
uso paralelo dos dois tipos de medicinas e incorporação de conhecimentos
da prática médica ocidental no modo endógeno de cura africana, investiram
esforços na desqualificação dos serviços de saúde ocidentais.
A desqualificação dos serviços de saúde ocidental por Tinyanga
Se o saber de cura ministrado por Tinyanga era alvo de constante desqualificação
por parte das autoridades coloniais, o saber médico ocidental também não
98
passava imaculado das críticas e campanhas contrárias ao seu uso por estes
primeiros. Por meio dessa atitude, Tinyanga reivindicavam a exclusividade de sua
secular função de cuidar da saúde pública e pessoal dos africanos. Nos boletins
de informação dos órgãos do governo destinados ao registro de ocorridos
cotidianos dentre as populações africanas, em decorrência de suspeitas de
ações “subversivas”, é possível encontrar alguns exemplos neste sentido.
O registro de situações cotidianas foi uma prática adotada pelo governo
português a partir de finais dos anos 1950, em decorrência da eclosão
do movimento nacionalista nas colônias africanas e da ameaça de sua
emergência em Moçambique. Para tentar impedir a proliferação destas ideias
em Moçambique, o governo tomou várias iniciativas, entre elas: a criação de
uma Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a PIDE, responsável por
identificar, investigar, controlar e punir quaisquer manifestações de adesão
à luta nacionalista. Houve também a criação dos Serviços de Centralização
e Coordenação de Informações, o SCCI, cuja função consistiu no registro de
atividades religiosas consideradas ilegais, movimentos “subversivos” ou fatos
suspeitos “dentre a população nativa, nacional ou estrangeira”.64
A coleta de informações gerou um número considerável de correspondências
e envolveram funcionários do governo, pessoas da população e missionários
da Igreja Católica. Em entrevista, um Nyanga de Alto Changane, província de
Gaza comentou que as confissões se tornaram uma armadilha, quando em
caso de “suspeitas”, padres repassavam informações para a PIDE, conduzindo
64 Arquivo do Distrito de Bilene-Macia. Correspondência do administrador J. G. T. Pereira Vila, 3 de novembro de 1959.(documentação sem classificação).
99
algumas pessoas a prisão antes mesmo de saírem da Igreja65.
Por parte das autoridades coloniais, havia fortes suspeitas de que o grupo de
Tinyanga manifestasse apoio à causa nacionalista através do seu trabalho.
Consideravam que membros daquele grupo fossem pessoas de autoridade,
cujos conselhos as populações costumavam escutar e muitos dentre este
grupo por gozar de prestígio considerável recebiam visitas de africanos
estrangeiros, podendo facilmente fazer circular informações, por isso o
governo colonial passou a dedicar cuidadosa vigilância a este grupo.
O boletim de julho de 1963 indica que o Nyanga Malaia Munhai foi denunciado
ao Corpo da Polícia de Segurança Pública da Província de Moçambique,
depois de conversar com alguns trabalhadores dos Caminhos de Ferro de
Moçambique (CFM) sobre o tipo de assistência de saúde que eles deveriam
privilegiar, conforme registro:
Hoje cerca de 12:30 nos CFM junto ao refeitório, o africano Malaia Munhai,
curandeiro, encontrava-se a advertir os africanos, dizendo que ele é capaz
de tratar das dificuldades que eles tenham. Dizia também que os europeus
andam a enganar-nos porque dizem que para se ser doutor é preciso estudar,
mas eu não estudei e sou doutor e o saber que eu tenho eles não podem
adquirir, eu não trato só da saúde mas também das dificuldades de cada um,
e os doutores europeus não sabem destes remédios.66
O Nyanga Munhai ao fazer propaganda de seus serviços junto aos
trabalhadores africanos, não hesitou em mostrá-los mais vantajoso em
65 TINYANGA. Tinyanga (grupo de) – Vila de Mácia: depoimento [ago. 2012]. Entrevistador(a): Jacimara Sousa Santana (língua Changana). Trad. da Língua Changana Nyanga Secina. Vila de Macia, 2012, Arquivo mp3 (acervo pessoal).
66 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e a Subversidade, no 144. Boletim de Informação, 19 de maio de 1966.
100
relação ao ocidental, enfatizando uma das singularidades do tratamento da
cura africana, contemplar a dimensão social de seus pacientes, oferecendo-
lhes uma assistência integral com fins de proporcionar o seu completo estado
de bem estar. Munhai também contradisse a ideia de eficácia e verdade
atribuída exclusivamente ao conhecimento médico ocidental, ao afirmar que
ele também era doutor e como tal, era dotado de um saber de cura embora
não tivesse estudado medicina nas escolas européias.
De um modo geral, a pessoa para se tornar Nyanga, é submetida a uma intensa
formação baseada na tradição oral e na experiência durante alguns anos na
casa do (a) seu (sua) mestre, também conhecido (a) por B’ava (pai). É nesta
ocasião em que a pessoa é iniciada na profissão, aprende a conviver com
seus espíritos, a manipular suas vestes e instrumentos de trabalho, inclusive
os que são destinados à realização da advinha, conhece as ervas e os seus
usos entre outras coisas. Todo processo ocorre mediante a realização de
diferentes cerimônias tanto privadas quanto públicas. Nem todos Tinyanga
entram em transe, contudo é comum a afirmação de ser a sua prática
orientada por espíritos familiares ou estrangeiros agregados a família67.
Outro Nyanga envolvido em campanha contra os serviços de saúde ocidental,
segundo informantes anônimos do governo colonial, foi o Zeferino Maguzulana
Cossa. No boletim de informação de abril de 1970 registrou que esse Nyanga
de 65 anos também era chefe da povoação Maguzulana, em Magude, e era
reconhecido como um renomado “curandeiro”, havendo muita procura por
67 HONWANA, Alcinda. Espíritos Vivos, Tradições Modernas, op.cit; LANGA, Adriano Ofm. Questões Cristãs à Religião Tradicional Africana, op.cit; MUTHEMBA, Sansão. Um Médico Tradicional do Sul de Moçambique com duas Especialidades: Mungoma e Nyamusoro.op.cit; Entrevista com um grupo de Tinyanga em Chibuto por Jacimara Souza Santana. Língua Changana, tradução Adelina Vânia Daniel Macuácua, 17 de julho de 2011.
101
suas consultas, de tal modo, que ele chegou a construir em seu terreno um
grande edifício de alvenaria, de bom acabamento e instalações próprias para receber
europeus e outras pessoas civilizadas, uma espécie de casa de saúde, com 6 quartos
numerados e com mobiliário. Sua especialidade era fornecer talismãs e amuletos68.
Esse Nyanga foi preso durante 20 dias na administração local por lhe ser
atribuída a responsabilidade do insucesso da campanha de vacina BCG, e
por ser acusado de coletar dinheiro da população para apoiar o movimento
“subversivo”, tendo recolhido um montante de 500$00 escudos dos habitantes
de sua área para este fim. Também havia notícias, logo após a sua saída da
prisão, de que aquele Nyanga intencionava matar o administrador Júlio dos
Santos Peixe por lhe ter dado ordens de prisão com uma mistela, “feitiço”, que
seria providenciado por seu B’ava, Nyanga Julai Matusse, também conhecido
por Nenguassune, a quem o Nyanga Cossa também havia solicitado ajuda
na realização de rituais que lhe restabelecesse seu prestígio muito abalado
depois da prisão.69
O prosseguimento das investigações coloniais não negou o ato de o Nyanga
Cossa boicotar a campanha de vacinação, mas em relação aos demais fatos,
concluiu tratar-se de um boato gerado por seus aprendizes por razão de
insatisfação com o seu mestre. Não se sabe se esta foi a forma encontrada
por aquele grupo de formandos para desviar a atenção das autoridades
68 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e a Subversidade, no 144. Boletim de Informação, Distrito de Gaza, João Belo, 16 de abril de 1970.
69 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e a Subversidade, no 144. Boletim de Informação, Distrito de Gaza, João Belo, 16 de abril de 1970; FRY, Peter. Spirits of Protest. Spirit-mediums and the articulation of consensus among the Zezuru of Southern Rhodesia (Zimbabwe).Cambridge, University Press, 1976.
102
coloniais da figura de seu mestre Nyanga Cossa. O próprio B’ava deste Nyanga,
o Julai Matusse ou Nenguassune há tempos estava na mira da investigação
portuguesa pelo mesmo motivo, suspeita de envolvimento com atos de
subversão contra o regime colonial.70
O Nyanga Julai Matusse ou Nenguassune também tinha fama de bom curador e
habitava nas terras de Limpopo, em Gaza, mas era procurado constantemente
por sul-africanos. Ademais não tinha passado despercebido das autoridades
coloniais seu manifesto apoio à política insurrecta do régulo Joshua Nkomo,
um líder nacionalista da então Rodésia (Zimbábue), fundador do partido
People’s Caretaker Council (PCC) em 1962, o mesmo que antes tinha liderado
o partido Zimbabwe African People’s Union (ZAPU) e foi preso pelo governo
britânico em 1965, após o banimento daquelas e outras organizações que
pretendia a independência do Zimbábue. Apesar de algumas autoridades
portuguesas avaliarem o Nyanga Matusse como potencialmente favorável
ao governo colonial, inclusive depois de ele ter manifestado grande apoio à
nova tentativa da campanha de vacina BCG, incentivando a população a se
vacinar, sua ausência prolongada das terras (quase um ano desde a prisão
de Joshua Nkomo), longe de suas 60 mulheres, cerca de 120 filhos e centenas
de cabeças de gado ainda mantinha desperta suspeitas a seu respeito.71
O incentivo de boicote dos serviços de saúde ocidental parece ter sido uma
prática comum entre Tinyanga. Nos boletins de informação também se pode
70 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e a Subversidade, no 144. Boletim de Informação, Distrito de Gaza, 24 de março de 1966; Boletim de Informação. Baixo Limpopo, 31 de janeiro de 1963; Boletim de Informação do Governo de Gaza, 12 de dezembro de 1962, p 109.
71 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e a Subversidade, no 144. Boletim de Informação, Distrito de Gaza. João Belo, 16 de abril de 1970; Boletim de Informação do Distrito de Gaza, 24 de março de 1966.
103
identificar a declaração da NyangaB’ava Catarine, residente no bairro do
Caniço em Lourenço Marques, de que a procura dos hospitais por africanos
não passava de uma perda de tempo. Também o Nyanga Manhaia Tivane,
morador nas terras do Conselho de Bilene, foi denunciado por informantes
do governo, sendo tal registro identificado nestes termos:
[...] Costuma fazer propaganda em desabono dos Serviços de saúde afirmando
que os tratamentos feitos nos postos de socorros e hospitais não valiam de
nada e que é mais uma maneira dos portugueses roubarem o dinheiro dos
africanos.
Os africanos deviam decidir em conjunto não mais recorrerem aos
tratamentos dos hospitais e deixarem-se apenas tratar pelos curandeiros que
são os únicos que se interessam pela saúde e futuro dos africanos, pois são
seus irmãos. 72
Não se pode deixar de reconhecer que o fato de os Tinayanga desencorajarem
a freqüência de africanos aos serviços de saúde ocidental também estava
relacionado à defesa de clientela visando garantir ganhos econômicos.
Os serviços ministrados por Tinyanga eram pagos assim como o era nas
repartições do Estado colonial, quer seja através dos impostos ou no ato da
prestação de serviços. E é provável que as mudanças econômicas introduzidas
com o colonialismo tenham impactado nos custos dos serviços de cura
Nyanga ao longo do tempo. A condição financeira da pessoa Nyanga foi um
dos aspectos que despertou a atenção de algumas autoridades coloniais
quando estas passaram a exercer uma vigilância mais detalhada no cotidiano
daquela figura social. O boletim do ano de 1966, por exemplo, informa que
72 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Carta ao Exmo. Comandante do Corpo da Políciade Segurança Pública. Lourenço Marques, 5 de abril de 1967; ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Boletim de Informação. Lourenço Marques, 21 de março de 1966.
104
a Nyanga Delfina Fadugo Mungunhane, moradora da Circunscrição dos
Muchopes, cobrava por consulta aos seus doentes no ano de 1966, 50$00
escudos, acrescido de 100$00 escudos caso ficassem curados.
O Nyanga Macheluane Lucas Malule, morador da povoação de Olombe,
situada na área do Baixo Limpopo também escapou de ser preso pelo mesmo
motivo: campanha de boicote dos serviços de saúde colonial. O Nyanga
Malule teve a seu favor um antigo comerciante do local que afirmou para
os informantes do governo desconhecer que ele andasse desencorajando
africanos a frequentarem os serviços de saúde ocidental. Também pode
contar com a sensatez do informante que afirmara em seu relatório ser
quase impossível impedir que africanos deixassem de consultar Tinyanga,
não somente pela antiguidade destes no trabalho de cura, mas também pela
deficiente assistência em saúde que o Estado colonial dispensava naquela
parte da colônia, conforme seu parecer:
[...] A Delegacia de Saúde em Vila Alferes Chamusca, fica a mais de 100
quilômetros daquela zona. Não existem postos sanitários, salvo os das Aldeias
do Colonato, que só prestam assistência aos colonos e trabalhadores da
Brigada Técnica do Limpopo, com exceção dos primeiros socorros em caso
de agressão ou acidente, e mesmo os postos que ficam mais próximos são os
da Aldeia de Madragoa e Senhora da Graça, a cerca de 40 km. Neste Conselho
a Delegacia de Saúde possui apenas um posto sanitário na Aldeia Pegões, que
também fica a grande distância73 [...]
Segundo opinião deste informante, a distância dos postos sanitários
coloniais e o costume não deixavam de atuar como um incentivo para a
população de Baixo Limpopo buscar a assistência dos Tinyanga. Mas o fato
73 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Relatório de Notícias. Baixo Limpopo, 2 de novembro de 1966.
105
da distância ou inexistência de postos sanitários coloniais não era o motivo
mais fundamental para isso, às vezes se percorria longas distâncias para ter
acesso a um tratamento de cura endógeno.
Fontes do período colonial mostram não ter sido rara a migração de pessoas
em busca de consultarem-se com Tinyanga, havendo ocasião em que
estes também migravam para exercer o seu ofício em lugares distantes da
povoação de sua origem. Correspondências e processos jurídicos entre os
anos de 1954-1971 mostraram ter havido um constante fluxo migratório de
Tinyanga e clientes entre o sul de Moçambique (de modo mais predominante
Gaza e Maputo), Zimbábue, África do Sul e Suazilândia.
Nos boletins de informação do governo, é comum encontrar registros de
um ou outro Nyanga habitante de Gaza, que por seu prestígio, atraía muitos
clientes. No boletim de dezembro de 1968, consta que o Nyanga Matabule,
por curar infertilidade tanto em mulheres quanto em homens, atendia
clientes de longa distância que viajavam para consultarem-se com ele. Isto
recorda o já mencionado Nyanga Cossa que também residia e consultava em
Magude seus vizinhos e migrantes da África do Sul. 74
Possivelmente, a fama de boa curadora foi o motivo que atraiu no ano
de 1966 - à casa da Nyanga Chetereca Zandamela, residente no distrito
de Gaza - uma comitiva dos filhos do rei de Suazilândia, Sobuza, os quais,
insistentemente a convidaram para assumir o cargo de Nyanga real em
74 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Boletim de informação. Distrito de Gaza. Conselho do Caniçado, 22 de dezembro de 1969; Boletim de informação. Conselho de Magude, 1968;AHM. Fundo da Direção dos Serviços dos Negócios Indígenas. Seção A/25.Feiticeiros e Curandeiros. v. 1, cota 83. 1951.
106
decorrência do falecimento do anterior, proposta que foi recusada, ainda
que eles se mostrassem dispostos a solicitar uma autorização ao governo
colonial português. Anos mais tarde, em 1972, por ocasião do mesmo rei
se encontrar doente, 58 suazis retornaram a Gaza, em Baixo Limpopo, à
procura de outra Nyanga. Havia suspeitas de que a doença resultava de ação
de wuloyi, algo que foi confirmado na advinha.75
O boletim de setembro de 1964 registrou a denúncia de que, através da
fronteira de Goba, situada entre Suazilândia e Moçambique, ocorria um
permanente “comércio clandestino de medicamentos” entre africanos
moradores do território Suazi e a Nyanga de nome Escudos.76
Também em 1954, Joseph Mondlane solicitou autorização à Curadoria dos
Indígenas Portugueses na África do Sul para tratar-se com o Nyanga Enoc
Mahlulani de Xai Xai pelo período de cinco meses, mas seu pedido não foi
aceito. Em virtude das tentativas de controle sobre a migração de africanos
e sobre o movimento pro-nacionalista, aqueles que retornassem à colônia
portuguesa sem o devido conhecimento das autoridades poderiam ser
surpreendidos com interrogatórios policiais. Foi o que ocorreu aos sul-
africanos, Mahotela Sanson Macheke, Shedzane Willian Baloy e Eliasse
Macheke que se deslocaram sem autorização prévia ao Conselho de
Caniçado-distrito de Gaza, para consultarem um Nyanga que lhes indicasse o
suposto feiticeiro (a) provocador da doença da esposa de um deles.77
75 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Boletim de informação, Lourenço Marques, 30 de dezembro de 1966; Boletim de informação, Conselho do Baixo Limpopo, 24 de abril de 1972.
76 ANTT. FSCCIM. Feiticismo e Subversidade no 144. Boletim de informação, Lourenço Marques, 30 de dezembro de 1966. Serviços de Saúde e Higiene. Lourenço Marques, 9 de setembro de 1964.
77 AHM. FDNSI. Cx 83, 1954.
107
Um processo administrativo do ano de 1954 ainda mostrou que Tinyanga de
Pafúri, região de Alto Limpopo-Gaza, eram muito procurados por moradores
de Zimbábue, não deixando de também migrarem para esta terra para iniciar-
se, trocar conhecimentos de cura ou exercer a sua função de Nyanga. Luis
Mtupo Sibanda, por exemplo, depois de trabalhar um tempo no Corpo da
Polícia de Moçambique, em Lourenço Marques, deslocou-se para Bulayaio-
Zimbábue, onde foi iniciado como Nyanga, passando a exercer tal profissão em
Niassalândia (Malaui) e depois em Beira, Moçambique. Segundo informações
obtidas pelo sub-chefe da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE),
Eugênio José de Castro Spranger, até 1968 foram identificados mais de 150
Tinyanga residentes na fronteira de Moçambique com a Rodésia, local muito
próximo do distrito de Chipinge, cujos habitantes tinham grande preferência
em ser atendido por Nyanga da colônia portuguesa. Similar opinião movia
pessoas de outras áreas daquela colônia.78
Migrar para territórios vizinhos constituiu outra estratégia adotada por
Tinyanga e seus clientes em resposta às medidas de controle e coibição imposta
pelo Estado colonial. Isto confirma que as fronteiras criadas por europeus não
impediram a continuidade de relações sociais entre seus habitantes. Pessoas
se deslocavam independente da autorização de governos coloniais para fins
diversos: vender mercadorias, trabalhar nas minas, docas ou agricultura,
visitar familiares e também, os Tinyanga. Também não era raro que africanos
fugindo de pesados impostos, sanções judiciais, perseguição política e demais
sofrimentos experimentados na colônia do governo português se evadissem
78 AHM.FDNSI.Cx 83. Conselho Administrativo de Alto Limpopo, 1954; ANTT.SCCI.Feiticismo e Subversidade, no 1444. Boletim de Informação de 7 de julho de 1965, Lourenço Marques.
108
para territórios de colônia britânica.
Diante do exposto, sugiro que a inter-relação entre os saberes de cura
africano e ocidental foi uma iniciativa anterior às discussões propostas pela
Organização Mundial de Saúde a partir de 1978. Embora oficialmente, o
Estado rivalizasse com os serviços do grupo Tinyanga se interessou pelos
saberes ervanários em poder desse grupo e, em segredo, ainda que por
iniciativas individuais de médicos, enfermeiros europeus e africanos, Tinyanga
ou clientes (não somente africanos, mas também europeus), experiências
complementares de assistência de saúde foram desenvolvidas.
Tinyanga incorporaram novos conhecimentos às suas práticas de cura, não
somente oriundo do contato com grupos de médicos-sacerdotes distante do
seu local de morada, mas também por incorporação de certas práticas do
universo médico ocidental.
109
MEDICINA, SEGREGAÇÃO E ASSIMILAÇÃO URBANA
NA CIDADE DO CABO, 1901
Giovani Grillo de Salve
A medicina colonial ocidental e as primeiras experiências de segregação racial
urbana na Cidade do Cabo estão intimamente vinculadas a uma história de
negociações políticas e sociais complexas, devendo, portanto, ser entendidas
como filhas de um mesmo espaço e tempo. Sendo assim, não podem ser
relacionadas sob uma visão unilateral, guiada pelas influências que a
primeira teve sobre a segunda, mas sim compreendendo o compartilhar de
experiências, negociações, avanços e resistências que se entrecruzam em
diversos momentos e são sempre reveladas em situações limítrofes.
Este capítulo apresenta um panorama da história da epidemia de peste
bubônica do ano de 1901 na Cidade do Cabo e aponta atitudes políticas de
dois diferentes médicos em relação ao avanço segregacionista do início do
século XX, em especial como suas atuações antagônicas são representativas
das possibilidades médicas do período. De forma mais específica, o texto
revela como as experiências dos doutores Alfred John Gregory e Abdullah
Abdurahman podem ser lidas como contrapontos de atuações médicas
dentro de um processo que culminou na elaboração de políticas específicas
110
de segregação para as populações nativas africanas ao passo que também
consolidou a assimilação de outras populações de cor1 aos espaços urbanos
da Cidade do Cabo.
Após esta breve introdução, iniciaremos o capitulo compondo um quadro
mais amplo do debate historiográfico que envolve a questão. Em seguida,
contextualizamos o surto de peste bubônica de 1901, trazendo à tona os dois
sujeitos privilegiados em nossa análise. Por fim, fazemos um balanço de como
os doutores Dr. Alfred Gregory e o Dr. Abdullah Abdurahman representam
dois extremos de um prisma de possibilidades médicas e políticas do período.
Sabemos, contudo, que ao dedicarmos nossa análise apenas à atuação
destes dois médicos coloniais não prestamos justiça a outros agentes desta
história2. Porém, temos um motivo para isto: por mais que enfermeiras,
parteiras, médicos tradicionais, tais como os adivinhos (diviners) e herbalistas
(herbalists),3 também mereçam a devida atenção historiográfica, seus papeis
políticos em relação às remoções forçadas do início do século XX não foram
tão profundos e significativos quanto aquele dos médicos ocidentais.
Antes de analisarmos mais especificamente as relações estabelecidas
1 Ao longo dos séculos XIX e XX o termo black foi recorrentemente utilizado para descrever todos aqueles grupos que não pertenciam a minoria dominante branca. Em nosso texto optamos por utilizar populações ou pessoas de cor, ou ainda não-brancos, para nos aproximar da forma como o termo black é utilizado social e politicamente na África do Sul.
2 Como bem escreveu Roy Porter, “os eventos médicos são frequentemente complexos rituais que envolvem famílias e comunidades da mesma forma que os afligidos e médicos” in: PORTER, Roy. “The Patient’s view: Doing Medical History from below”, in: Theory and Society, Vol. 14, no2 (Mar., 1985), pp. 175-198. (p. 175).
3 Estes eram os dois termos coloniais utilizados para dividir os médicos tradicionais. Como escreveu o autor que assina como W. G. em Notes from the Transkei upon witchcraft, “Doctors among the natives are two kinds, Herbalists and Diviners. There are some herbalists who are not diviners and some are both. Among herbalists, you have doctors for almost every disease with which they are acquainted – head- doctors, back-doctors, stomach-doctors, &c. Of these, some have a particular root known only to themselves, and handed down as an heir-loom, which when administered, is supposed to be a specific for the particular disease they are capable of treating.” in: W. G., “Notes from the Transkei upon witchcraft”, The Kaffir Express – An English Kaffir Journal, Lovedale, vol. IV, no41, 7th of February, 1874, (p. 5).
111
entre a medicina colonial e as primeiras experiências de segregação racial
urbana é preciso exatamente atentar para o uso do conceito segregação na
África do Sul. Apesar de constantemente vinculada à política do Apartheid,
a segregação institucional precede em quase um século o conjunto de leis
implementados após 1948 pelo Nationalist Party4. De fato, existe um amplo
debate historiográfico acerca de quando é possível utilizar a conceito de
segregação para explicar contextos políticos sul-africanos.
William Beinart e Saul Dubow, por exemplo, acreditam que o termo assumiu
o sentindo que nos é claro ainda no início do século XX. Segundo esses
autores, a segregação teria surgido para definir “um conjunto de políticas
governamentais e práticas sociais que pretendiam regulamentar as relações
entre brancos e não-brancos, colonizadores e colonizados”.5 Segregação, de
maneira ampla, definiria “uma ideologia complexa e um grupo de práticas
que procuravam legitimar diferenças sociais e desigualdades econômicas
em todos os aspectos da vida cotidiana”6.
John W. Cell, de maneira muito similar, entende que o conceito segregação
também teria surgido no início do século XX, porém, ao seu ver, só assumiu um
sentido claro e específico à luz das proposições da Unificação sul-africana de
1910. 7Ao comparar a história da África do Sul com aquela do sul dos Estados
4 Para uma breve porém detalhada explicação dessa política ver: “The National Party Minister Explains Apartheid, 1950” in: WILLIAMS, John A. From the South African Past: Narratives, Documents and Debates, Boston: Houghton Mifflin Company, 1997. (p. 252).
5 BEINART, William and DUBOW, Saul (eds.) Segregation and Apartheid in Twentieth-Century South Africa, London: Routledge, 1995. (p. 1).
6 Idem (p. 4).
7 CELL, John W. The highest stage of white supremacy: The origins of segregation in South Africa and the American South, New York: Cambridge University Press, 1982.
112
Unidos da América, John Cell entende que, no primeiro caso, foi o processo
de Unificação sul-africana que fez com que antigas práticas de subjugação
passassem a ser utilizadas de maneira mais uniforme pelos governos locais.
Cell afirma que a “segregação estava associada de perto com o que nós
comumente chamamos de índices de modernização: cidades e vilas, os níveis
iniciais de industrialização, com classe e Estado (ou partidos) em formação”.8
Apesar de certa tendência acadêmica em aceitar que a segregação só pôde
ser vista nitidamente neste período, identificamos uma segunda vertente
historiográfica que identifica diversos elementos que compunham as práticas
segregacionistas ainda no período colonial holandês.9
Richard Elphick e Hermann Giliomee são bons representantes desta escola. Em
seu clássico estudo The Shaping of South African Society, os autores compõem
uma coletânea de artigos nos quais demonstram que as estruturas coloniais
do Cabo, principalmente em relação ao acesso a direitos sociais e políticos,
foram sequencialmente marcadas por estratificações hierarquizadas entre
diferentes grupos populacionais.10 Segundo estes,
(...) entre 1652 e 1820 os colonialistas possuíam poder suficiente para impor
e manter uma ordem racial que diferia dos comprometimentos iniciais
da Companhia das Índias Orientais Holandesas e assim estruturaram uma
sociedade balizada por uma linha entre escravos e livres (...). Portanto,
entre 1652 e 1820 foi desenvolvida na África do Sul uma estrutura racial de
dominação e convicções compartilhadas entre os europeus acerca da ‘correta
8 Idem. (p. x).
9 WORDEN, Nigel. The making of modern South Africa, Cambridge: Blackwell, 1995.
10 ELPHICK, Richard and GILIOMEE, Hermann (eds.) The Shaping of South African Society, 1652- 1820, Cape Town: Longman Penguin Southern Africa, 1979.
113
ordem’ da sociedade.11
Nigel Worden também faz importantes apontamentos neste sentido. Este
especialista em História da Escravidão na África do Sul relata que “percepções
da superioridade racial branca eram aparentes desde os primeiros encontros
coloniais entre os colonos holandeses e as populações pastoris Khoi do
Cabo”.12 Entretanto, para Worden, isto não poderia ser considerado como
segregação, pois ainda que existisse uma tradição de supremacia branca na
África do Sul antes do século XIX, foi apenas no início do século XX que a
segregação tornou-se uma realidade social e política. O autor grifa que:
A segregação precisa ser distinguida da supremacia branca. Apesar da última
estar apoiada nas percepções das diferenças raciais e ter se desenvolvido na
sequência da conquista colonial, a segregação na África do Sul não era apenas
uma ampla ordem de subordinação racial. Segregação implicava princípios
que reforçavam a separação, não apenas subordinação, de não-brancos e
brancos nas esferas do trabalho, residência e governo.13
Talvez a principal diferença entre interpretações históricas da segregação
repouse justamente no fato de que até meados do século XIX a noção
científica de raça ainda não era o elemento definidor das fronteiras entre
segregados e assimilados – o que reforça o argumento de Beinart, Dubow e
Cell acerca da importância do início do século XX na demarcação de uma nova
qualidade das relações desiguais entre não-brancos e brancos. Por outro
11 Idem. (pp. 385-386).
12 WORDEN, Nigel. The making of modern South Africa, Cambridge: Blackwell, 1995. (p. 66)
13 Idem. (p. 72).
114
lado, é inegável a existência de um processo histórico no qual diferentes
populações locais foram constantemente hierarquizadas e subjugadas,
fazendo com que, enquanto umas recebessem benefícios, outras tivessem
suas possibilidades de avanços sociais negadas. 14
Neste aspecto, as considerações de Nigel Worden são extremamente
importantes. Independentemente do argumento historiográfico a ser
seguido, nos importa admitir que ao final do século XIX existia na Cidade
do Cabo uma fluidez de limites sociais. Esta área embaçada na qual a
segregação ainda não era codificada legalmente viabilizava esperanças em
muitas pessoas de cor, que fizeram de suas vidas um campo de constante
luta pelo acesso a direitos políticos em termos não raciais.15 Por isto, o que
mais nos interessa nessa historiografia é o fato de que até 1910 havia uma
parca definição sobre quem deveria, ou poderia, ser segregado, criando-se
assim brechas políticas e sociais que foram recorrentemente utilizadas para
estender, reduzir ou modificar as proposições segregacionistas do período.
Será fundamental lembrarmos deste ponto ao longo do texto pois este é o
problema central que queremos abordar.
Portanto, é importante entender que quando falamos de segregação lidamos
com um conceito e principalmente com determinado período que lhe confere
historicidade, período este que pode alongar-se ou contrair-se mediante a
posição de análise adotada. Seria possível, inclusive, apontar que até o final da
14 Um interessante estudo sobre as múltiplas formas e limites destas hierarquias pode ser encontrado em: ROSS, Robert. Status and Respectability in the Cape Colony, 1750-1870 – A tragedy of manners, Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
15 SPITZER, Leo. Vidas de entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental, 1780-1945. Rio de Janeiro: Ed. Uerj, 2001.
115
primeira metade do século XX privilégios não raciais puderam coexistir com
os posicionamentos altamente perniciosos das elites brancas sul-africanas –
dificultando ainda mais um recorte claro para o início da segregação. Assim,
este capítulo trabalha com elementos móveis em múltiplos níveis e contribui
com esse rico debate historiográfico ao apresentar de perto um momento
chave da história da África do Sul.
A história da medicina e do tratamento médico acompanha e reflete as
ideologias e condições vigentes de divisão social.16 Homens e mulheres,
crianças e adultos, pobres e ricos, brancos e não-brancos foram
constantemente submetidos a distintos olhares e tratamentos clínicos.
Na Cidade do Cabo isto não era diferente. Desde o final do século XIX, por
exemplo, o New Somerset Hospital, à época o maior e mais importante hospital
da cidade, já possuía alas separadas entre homens brancos e homens de
cor, mulheres brancas e mulheres de cor. Harriet Deacon e Elizabeth van
Heyningen descreveram estas separações em diversas instituições médicas
da colônia e concluíram que tratamentos racializados já existiam desde a
década de 1830. Ao identificarem o início desta prática, também perceberam
que ao longo do século XIX as atitudes médicas em relação a estas separações
modificaram-se continuamente até estabelecerem uma maior uniformidade
no início do século XX.17
No âmbito político as mudanças operadas pelos tratamentos médicos
16 BICKFORD-SMITH, Vivian. “South African Urban History, Racial Segregation and the Unique Case of Cape Town?”, in: Journal of Southern African Studies, Vol. 21, no 1. Special Issue: Urban Studies and Urban Change in Southern Africa (Mar., 1995), pp. 63-78 (p. 67).
17 DEACON, H. and van HEYNINGEN, E., “Opportunities Outside Private Practice before 1860”, in: DEACON, H., PHILLIPS, H., van HEYNINGEN, E. The Cape Doctor in the Nineteenth Century: A Social History, New York: Rodopi, 2004.
116
direcionados aos pacientes de cor foram importantes para construir ideologias
de organização urbana. Desta forma, diversos discursos racializados e racistas
proferidos por médicos fomentaram debates políticos que ampliavam as
clivagens institucionais de forma que elas pudessem também ser utilizadas
para definir relações em outros níveis da vida cotidiana da cidade.
Observando, por exemplo, a produção das legislações de época, sobretudo
as médicas e sanitaristas, é possível encontrar ricos debates balizados
por argumentos de médicos que acreditavam ser preciso transportar
as estratificações sociais contidas em suas práticas para outros setores
da sociedade. Esta seria a única maneira de evitar que catástrofes
epidemiológicas, como aquela da varíola da década de 1880,18 voltassem a
atingir as populações europeias do Cabo.
Entretanto, não se deve acreditar que todos os médicos coloniais seguissem
os mesmos preceitos. Da mesma forma que é inegável a existência de diálogos
e debates entre médicos, políticos e legisladores em prol da segregação,
é preciso lembrar que as posições políticas destes médicos nunca foram
harmônicas. Pelo contrário, eram geralmente confusas e frequentemente
negociadas à luz de seus interesses, variando em tom, profundidade e
consciência – por isso, trabalhar como este tema é lidar com um verdadeiro
campo de batalhas.19
Ao reconhecer que as mudanças do período e a efetiva codificação jurídica
18 PHILLIPS, Howard. Epidemics: The story of South Africa’s five most lethal Human Diseases, Athens: Ohio University Press, 2012.
19 DEACON, Harriet. “Racism and Medical Science in South Africa’s Cape Colony in the Mid- to Late Nineteenth Century”, in: Osiris, 2nd Series, Vol. 15, Nature and Empire: Science and Colonial Enterprise (2000), pp. 190-206.
117
das práticas de segregação eram negociadas e não simplesmente dadas por
médicos e sanitaristas, passamos a entender diferentes vivências do espaço
urbano da Cidade do Cabo. Assim, experiências de trabalho, convívio social
e embasamento científico devem ser cuidadosamente filtradas para que
nossa análise escape àquela do “discurso médico-científico”20. É impossível
entender o contexto de época sem mencionar as redes de sociabilidade nas
quais os médicos estavam inseridos.
Consequentemente, o surgimento da segregação institucionalizada não
pode ser lido como processo previamente ordenado e com fins claros. As
análises devem apontar as complexas relações do período para que um
entendimento amplo do tema seja alcançado. Descrevê-lo a partir de cima,
como se a segregação fosse um dos frutos da agência de um ser irreal
continuamente nomeado de medicina é um erro primário. Nenhuma das
remoções forçadas, ou ainda as perniciosas atitudes racistas do período,
eram unânimes ou foram dadas a priori; foram construídas em situações de
constante negociação política no qual opera um intrincado jogo de interesses
e crenças. Sem investigar como os próprios sujeitos que conformaram a
elaboração, aplicação e fiscalização dessas leis21 pensavam a segregação,
acabamos esvaziando um rico campo de pesquisas. É neste sentido que os
médicos, para além de um discurso generalizante da medicina, assumem um
papel importante.
20 DUBOW, Saul. A Commonwealth of Knowledge: Science, Sensibility and White South Africa 1820- 2000, Oxford: Oxford University Press, 2006.
21 LARA, Silvia H. e MENDONÇA, Joseli M. N. (eds.) Direitos e justiças no Brasil, Campinas: Editora Unicamp, 2006. (p. 13).
118
Maynard W. Swanson escreveu em 1977 um artigo seminal que abriu o campo
para muitas das pesquisas que propuseram aproximar a medicina colonial das
práticas de segregação. Maynard Swanson afirmava em seu texto que tanto
as primeiras experiências de remoções forçadas do início do século XX como
as primeiras codificações legais da segregação passavam por proposições
médicas. Existiria assim uma correspondência temporal “entre as primeiras
práticas de segregação e as emergências epidemiológicas”22, o que, de fato,
revelaria o papel que a medicina ocidental desempenhou no acirramento da
segregação. Na época em que o artigo de Swanson foi publicado, levantou
um intrigante problema historiográfico e, por este motivo, passou a ser
recorrentemente utilizado por especialistas da área. O texto tornou-se um
clássico e foi formativo para muitos pesquisadores, servindo de influência
para que seu conceito central – o da existência de uma “Síndrome Sanitarista”
na Cidade do Cabo no início do século XX – fosse aprofundado.
O texto de Maynard Swanson serviu de partida para as teses de doutorado de
Howard Phillips23 e de Elizabeth van Heyningen24 e para os trabalhos de Saul
Dubow25, Harriet Deaco26, Anne Digby27, Premesh Lalu28, entre outros. Todos
22 SWANSON, M. “The Sanitarion Syndrome: Bulbonic Plague and Urban Native Policy in The Cape Colony, 1900-1909” IN: The Journal of African History, Vol. 18, no3, 1977. (p.388)
23 PHILLIPS, Howard. Black October, the impact of the Spanish Influenza Epidemic of 1918 on South Africa, Cape Town: University of Cape Town, PhD thesis, 1984.
24 Van HEYNINGEN, E. Public Health and Society in Cape Town, 1880-1910, Cape Town: University of Cape Town, PhD thesis, 1989.
25 DUBOW, Saul. ScientificracisminSouthAfrica. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
26 DEACON, Harriet. “Racial Segregation and Medical Discourse in Nineteenth-Century Cape Town” in: Journal of Southern African Studies, Vol. 22, No. 2, Jun. 1996.
27 DIGBY, Anne. Diversity and Division in Medicine: Health Care in South Africa from the 1800s, Oxford: Peter Lang, 2006.
28 LALU, Premesh. “Medical Anthropology, Subaltern Traces, and the Making and Meaning of Western Medicinein South Africa: 1895-1899” in: History in Africa, Vol. 25 (1998), pp. 133-159.
119
estes autores contribuíram para um melhor entendimento dos vínculos
entre medicina colonial e segregação urbana, transformando o campo de
pesquisas e ampliando seus objetos e problemas. Assim, se na década de
1970 a história social da medicina na África do Sul era quase inexistente, hoje
ela é uma área bem estabelecida e respeitada. Contudo, mesmo com todos
os avanços alcançados, alguns problemas persistem.
Poucos foram aqueles que trouxeram à tona as vozes dos sujeitos
envolvidos neste processo, principalmente quando estes não tiveram
atitudes políticas e médicas centrais à história narrada. Em muitos textos
os médicos apresentados são apenas alegóricos e servem para justificar
um argumento maior, i.e., o da importância da Medicina para o surgimento
da segregação urbana, como pensava Maynard Swanson. Acreditamos
ser importante rever alguns destes paradigmas e buscarmos uma maior
aproximação destes sujeitos ao contexto da Cidade do Cabo. Desta forma,
ao destacarmos oposições dentro das atitudes políticas de dois médicos
coloniais, caminhamos no sentido de propor uma renovação de pesquisas,
debates e metodologias – principalmente em relação ao uso das fontes – que
amplie ainda mais uma área extremamente importante para a história da
África do Sul.
Foram três as pandemias de peste bubônica. A terceira, e mais recente, teve
início na segunda metade no século XIX no sul da China, espalhou-se por todo
o globo e provocou mudanças históricas na Cidade do Cabo.29 Os primeiros
casos da doença foram identificados em fevereiro de 1901, durante o auge
29 ECHENBERG, Myron. “Pestis Redux: The Initial Years of the Third Bulbonic Plague Pandemic, 1894-1901” in: Journal of World History, Vol. 13, no2 (Fall, 2002), pp. 429-449.
120
da Guerra Anglo-Bôer e, apesar de já no mês de maio de 1901 a epidemia
ter sido contida, casos esporádicos continuaram a ocorrer pelo interior da
colônia durante a primeira década do século.
A primeira suspeita da doença na Colônia do Cabo ocorreu ainda em novembro
de 1900 na pequena King William’s Town. Um médico local enviou um pedido
urgente requisitando uma visita médica oficial para confirmar suas suspeitas
da existência de casos de peste bubônica entre oito africanos, três dos quais
já haviam falecido. Neste final de século a falta de confirmações laboratoriais
e a crescente preocupação com a peste geraram diversos alardes médicos
pela colônia do Cabo. Qualquer morte não explicada era potencialmente vista
como um caso da doença. Foi exatamente por este motivo que o Dr. Mitchell,
o bacteriologista colonial, o Dr. Hornabrook, que já havia trabalhado com
casos da doença na Índia, e o Dr. Gregory, diretor do Medical Officer of Health
(MOH), viajaram para King William’s Town.30 Após uma ampla investigação
junto aos pacientes, seus familiares, amigos e, principalmente, em suas
moradias, os especialistas coloniais confirmaram que a doença em questão
era febre tifoide e não peste. As investigações ainda apontaram que um surto
de febre tifoide estava ocorrendo em toda a região, chegando até a missão
de Lovedale, em Alice, também no Cabo Oriental. Dada a amplitude da
epidemia, o Dr. Mitchell prontificou-se a permanecer na região e a cuidar dos
doentes, visitando outros pacientes que também apresentavam sintomas de
febre tifoide e mantendo-se atento a qualquer sinal da peste.
Enquanto o Dr. Mitchell continuou a trabalhar em King William’s Town
30 “The outbreak of disease” in: The Christian Express, a journal of missionary news and Christian work, VOL. XXX, no 363, Lovedale, December 1st, 1900.
121
e região, o Dr. Alfred Gregory retornou ao seu posto na Cidade do Cabo
para dar continuidade à sua agenda de trabalho. O ano de 1900 havia sido
extremamente conturbado para o Dr. Gregory, principalmente por ter
recentemente assumido o posto de representante colonial do MOH, uma
posição importante e que demandava muitos esforços, especialmente pela
eminência e pelo medo da chegada da peste à colônia.
O Dr. Gregory já havia sido informado pelo Secretário Colonial, Sir Thomas
Lynedoch Graham, que seria sua obrigação impedir que a pandemia
gerasse um caos na cidade. Por isso, já há algum tempo, ambos discutiam
a possibilidade da construção de uma área de contato para possíveis casos
de peste na região de Uitvlugt, a cerca de cinco milhas do centro da cidade.
A região em questão já havia sido apontada como ideal para a construção
de uma reserva nativa pelo Subsecretário Colonial Noel Janisch.31 De fato,
após retornar de King William’s Town o Dr. Gregory conseguiu apoio para
estabelecer um hospital de campanha na região para que possíveis casos da
doença fossem ali tratados.32 À época, uma comissão formada por médicos e
políticos decidiu que remoções compulsórias não deveriam ser empregadas
até que outros meios para tratar a doença fossem testados.
O alarde do final de 1900 foi o último fato a convencer o Dr. Gregory da
importância de um hospital de campanha para tratar os casos da doença, que
não demoraram a aparecer. Em fevereiro de 1901, E. A. McCallum, um homem
branco, funcionário das docas e que há algumas semanas vinha recolhendo
31 Western Cape Repository Archives, Native Affairs, NA, box 456 folio 377.
32 Western Cape Repository Archives, Native Affairs, NA, box 457 – “Report to the Honourable Thomas Lyndoch Graham, g. C. M. L. C., Colonial Secretary of the Colony of the Cape of Good Hope”.
122
ratos mortos para alimentar cães que por ali vagueavam, apresentou um
quadro grave de glândulas inchadas, dores nas juntas e febre alta. Ele foi
diagnosticado como sofrendo de um caso agudo de febre tifoide e logo foi
encaminhado ao recém-construído Rodenbosch Cottage Hospital, um dos
muitos hospitais temporários construídos no Cabo para auxiliar nos esforços
de guerra. Os sintomas apresentados por McCallum, contudo, causaram
muito estranhamento em alguns médicos e uma amostra de seu sangue
foi encaminhada aos cuidados do Dr. Gregory para uma investigação mais
cuidadosa. Na época, o Dr. Mitchell ainda encontrava-se em King William’s
Town trabalhando com os pacientes de febre tifoide e, por isso, o Dr. Gregory
requisitou ajuda do bacteriologista Alexander Edington, do laboratório
colonial de Grahamstown. Em 13 de fevereiro de 1901, Edington confirmou
as suspeitas do Dr. Gregory: a peste havia chego à Cidade do Cabo.33
Os agentes do MOH agiram rapidamente. Primeiro foram criados postos
policiaispara controlar o trânsito de entrada e saída das docas. Depois,
pavilhões das docas foram desocupados e neles foram construídas
enfermarias temporárias para tratar os infectados in loco e colocar casos
suspeitos sob observação. Por fim, E. A. McCallum e todos aqueles que
com ele estiveram em contato foram isolados no hospital de campanha
de Uitvlugt. Apesar destas medidas e de todas as precauções e cuidados
tomados, a doença atingiu a cidade nas semanas seguintes. Em março de
1901 a epidemia já era uma realidade e cerca de 130 casos já haviam sido
registrados, sendo que 56 deles acabaram em óbito. Algumas semanas mais
33 ECHENBERG, Myron. Plague Ports: The global urban impact of Bubonic Plague, 1894-1901, New York: New York University Press, 2007. (p. 271).
123
tarde, esses casos já chegavam a 320 e os óbitos continuavam a aumentar.
À velocidade com que a doença avançava e à alta taxa de mortalidade eram
somadas imagens aterrorizantes da Peste Negra do século XIV. A impressa
local fazia questão de lembrar o caos que poderia se estabelecer a qualquer
momento. O terror visível nas páginas dos jornais foi logo espalhado pela
cidade na forma de violentas inspeções sanitaristas que combatiam um
inimigo mortal, porém invisível e ainda pouco conhecido, mas ao mesmo
tempo amplamente associado às populações de cor. Sem saber muito bem o
que estavam combatendo, os oficiais do MOHagiram pontual e rapidamente.
Decidiram que era preciso tomar uma atitude em relação aos infectados e,
especialmente, às populações de cor da cidade. Casas foram invadidas34
e seus habitantes tiveram suas roupas e pertences pessoais queimados.
A truculência dos inspetores era imensa. Em diversos momentos eles
foram acusados de roubos e assaltos.35 Ao contrário do que fora previsto
anteriormente em relação às remoções forçadas, algumas semanas após o
início da epidemia grandes barracas de lona (assim como barracas menores
feitas às pressas e com materiais improvisados) que conseguiam abrigar até
cem pessoas foram construídas em Uitvlugt para abrigar os cerca de seis mil
africanos removidos à força da Cidade do Cabo.36
34 Western Cape Repository Archives, Medical Officer of Health, MOH, box 8.
35 Western Cape Repository Archives, Colonial Hospital Board, CHB, box 233, folio 190.
36 A história desta área de controle epidemiológico inaugurou o período da segregação urbana na Cidade do Cabo e seus impactos são vistos até hoje. O que começou como um campo de isolamento para uma população vista como potencialmente susceptível à epidemia anos mais tarde se tornou uma reserva exclusiva para a população nativa africana e, novamente na década de 1920, sofreu uma série de remoções forçadas. A reserva foi totalmente destruída e transferida para uma região no Cape Flats, o que é hoje a township de Langa, uma das regiões mais pobres da Cidade do Cabo e habitada por mais de 50 mil pessoas em uma área de cerca de três quilômetros quadrados.
124
Howard Phillips definiu que a trajetória do surto de praga foi repentina, com
um início agudo, o que gerou muita trepidação e pânico conforme as mortes
rapidamente aumentavam. Contudo, segundo Phillips, depois de poucos
meses houve uma diminuição dos casos e uma contínua diminuição da
doença pontuado por esporádicos casos no interior.37 Ao todo, o número de
óbitos na cidade foi de cerca de 360, entre os 735 oficialmente infectados, um
número relativamente baixo quando comparado a outras cidades coloniais.
Acontece que, mesmo com o rápido controle da doença, algumas das atitudes
tomadas pelo MOH não foram revertidas após o término da epidemia. Os
nativos africanos não puderam retornar às suas casas por outras questões
que transcendiam a justificativa epidemiológica e repousavam mais em
argumentos raciais de suas incapacidades de convívio nos espaços urbanos.
Portanto, é possível dizer que epidemia foi apenas o impulso inicial utilizado
por médicos como o Dr. Gregory para dar corpo a uma antiga vontade
das classes dominantes da cidade, i. e., remover as populações de cor dos
espaços urbanos do Cabo.
Desde meados do século XIX construiu-se uma imagem negativa das
populações de cor da África do Sul, principalmente dos Mfengu e dos
AmaXhosa. Em Impartial Analysis of the Kafir Character, por exemplo,
o Reverendo Niven escreveu ainda em 1840 que os “Kafirs”38 seriam
completamente ociosos e personificavam a total indolência humana. Em
resumo, seu texto apresentava uma imagem de que os africanos, em uma
37 PHILLIPS, Howard. Epidemics: The story of South Africa’s five most lethal Human Diseases, Athens: Ohio University Press, 2012. (p. 45)
38 O termo derrogatório Kafir, ou Kaffir, ou Cafre em português, era utilizado neste período para se referir às populações africanas nativas, especialmente os AmaXhosa.
125
escala de humanidade, estariam apenas a “alguns graus acima do zero”.39
Assim como o reverendo, grande parte da população branca do Cabo via
nos hábitos e costumes dos nativos provas negativas de sua civilização.
Segundo Leonard Thompson, “os africanos, a quem eles chamavam de Kaffirs
[seriam]: preguiçosos e estúpidos, mentirosos inveterados, incapazes de
mostrar gratidão, ignorantes de seus próprios interesses”.40 Vivian Bickford-
Smith atesta que na segunda metade do século XIX, dois discursos sobre os
africanos surgiram na Cidade do Cabo. O primeiro apontava que os africanos
seriam “imorais” e “indecentes”, principalmente por andarem seminus pelas
ruas da cidade. O segundo sugeria que essas populações seriam “perigosas”
e “selvagens” por descumprirem os códigos de conduta que os ingleses
forçavam manter como regras estritas.41 Opiniões pejorativas como essas
continuaram a reverberar pela cidade, especialmente após a década de
1870, com o crescente influxo migratório causado pelas guerras coloniais e
pela busca de empregos remunerados na Cidade do Cabo.42
Enquanto a presença dos africanos era constantemente questionada e
criticada, era também justificada e defendida dada a necessidade colonial de
acesso a uma fonte de mão-de-obra barata e passível se ser controlada sobre
forte violência. Esta forma contraditória de lidar com a presença africana
por parte dos colonos tornava-se mais complexa conforme se assistia ao
39 In: CRAIS, Clifton. White Supremacy and Black Resistence in Pre-Industrial South Africa: The Making of the Colonial Order in the Eastern Cape, 1770-1865. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. (p. 132)
40 THOMPSON, Leonard. The Political Mythology of Apartheid, Binghamton: Yale University Press, 1985. (p. 82).
41 BICKFORD-SMITH, Vivian. Ethnic pride and racial prejudice in Victorian Cape Town: Group identity and social practice, 1875-1902, New York: Cambridge University Press, 1995. (p. 80-81).
42 SAUNDERS, Christopher. “Africans in Cape Town in the Nineteenth Century: an outline”, in: Studies in the History of Cape Town, Vol. 2, Cape Town: University of Cape Town, 1980.
126
aumento da violência urbana, da prostituição, alcoolismo e, principalmente,
pelas moradias superlotadas, que se reproduziam também como uma
“epidemia”. Estes problemas sociais levaram os governos municipal e
colonial a investir esforços na pesquisa de soluções possíveis e capazes de
satisfazer a demanda por trabalho ao mesmo tempo em que se respondiam
os temores sociais das classes dominantes da cidade.43 A ideia de remover
esta população para uma reserva não era, deste modo, nova. Em 1879,
por exemplo, Charles Stevens, um dos responsáveis coloniais por realizar
contratos de trabalho com populações nativas e indianas, já havia proposto
a criação de uma reserva nativa separada da cidade para, primeiramente,
controlar o fluxo desses trabalhadores, e também, para conter qualquer
surto epidemiológico que afligisse os nativos.
Stevens obteve sem muitos esforços permissões para construir uma reserva
destinada a abrigar trabalhadores nativos em uma região paralela à linha de
trem que ia para Salt River, ao leste da cidade. Após diversas cabanas terem
sido construídas por nativos, Stevens deu início a uma campanha para atrair
trabalhadores a ocupar ainda mais sua reserva. Contudo, seus planos foram
frustrados e em pouco tempo a localidade estava abandonada. É importante
entender que nesta época os africanos da cidade tinham liberdade para
escolher outros lugares para morar e a decisão de onde iriam se estabelecer
dependia basicamente de suas fontes de renda e da aceitação dos locatários.
Assim, a reserva de Stevens tornou-se um abrigo para os mais pobres
e desprovidos, enquanto que muitos daqueles que haviam conseguido
acumular o mínimo necessário optavam por viver em regiões mais centrais
43 BICKFORD-SMITH, V. Ethinc pride.... (p. 81).
127
da cidade, como, por exemplo, no sexto distrito, próximo ao antigo castelo
da Companhia das Índias Orientais Holandesas, e no primeiro distrito, aos
pés de Signal Hill.
Caminhar pelos seis distritos da Cidade do Cabo era extremamente fácil
nesta época. Cercada por montanhas e pelo oceano Atlântico, a região central
da cidade se estende por poucos quilômetros e isso forçava a população
europeia a viver muito próxima das populações de cor, garantindo à cidade a
impressão de possuir a população “mais diversificada do mundo”.44 No final do
século XIX, diversos relatos narraram a experiência de circular por essas ruas
e a impressão que se tinha desta pluralidade urbana. Em 1900, por exemplo,
o jornalista britânico G. W. Steevens descreveu a Cidade do Cabo como uma
cidade que parecia pertencer ao oeste norte-americano, mas com um leve
odor de Índia: uma “Denver com traços de Délhi”. Seus olhos identificavam
nas largas ruas e construções ornamentadas – com notável irregularidade
no padrão e altura – características norte-americanas, enquanto seu corpo,
por outro lado, sentia que “a batalha entre o sol escaldante e o cortante
frio da manhã” só poderia ser comparada às regiões do norte da Índia. Os
belos bondes, que lembravam aqueles americanos, tinham motorneiros “de
fato importados daquele clima agitado” e poderiam facilmente enganar o
observador mais desatento, pois, se “o maquinário é do Ocidente, o espírito
é do Oriente ou do Sul” uma vez que “em outras cidades com bondes eles são
apressados, aqui são vagarosos”.45
44 PURVES, John (ed.). Letters from the Cape by Lady Duff Gordon. London: Humphrey Milford, 1921. (p.158).
45 STEEVENS, G. W. From Capetown to Ladysmith – An Unfinished Record of the South African War. Edinburg: William Blackwood and Sons, 1900. (pp. 2-3).
128
Para Steevens, o Cabo era um espaço intermediário onde este ocidente
moderno e oriente tranquilo repousavam à sombra da Table Mountain. Sua
descrição ilustra bem como ele lidava com essa percepção:
(...) a Cidade do Cabo dá a ideia de não ser muito rica nem muito pobre, nem muito
industrializada nem muito preguiçosa, decentemente sucedida, racionalmente
feliz, de todo coração calma e tranquila. As construções públicas – o que eu vi
delas – confirmam a ideia de uma quieta meia prosperidade. O lugar não é um
neném, mas também não se deu ao mínimo trabalho de crescer.46
Richard Cadbuny, dois anos mais tarde, também descreveu seu estranhamento
com esse “novo país”. Ele notou que as roupas “inglesas deram lugar a leves
chapéus de feltro, a um leve vestuário, e cores brilhantes”. Os espertos e
lustrosos cavalos ingleses, no Cabo, haviam sido substituídos por mulas
e bois, ou por “cavalos magros e de olhar infeliz, com todas as costelas
aparecendo por debaixo de sua pele”. Caminhando pela cidade, Cadbuny
percebeu que as “principais ruas são bem construídas e possuem um bom
passeio, mas em quase todas as ruas paralelas os caminhos são obstruídos
por pórticos e varandas, o que faz com que os pedestres tenham que ir para
a rua, uma experiência nada agradável no tempo úmido”, quando “as ruas
estão constantemente algumas polegadas abaixo de lama.”47
A situação urbana da cidade também apresentava características específicas
que chocavam os observadores estrangeiros. David Kennedy, um cantor
escocês, ao visitar a cidade em 1879 escreveu que ela era “empoeirada e
suja de dia, e desagradável de noite”. E, para além do nojo que sentiu pelo
46 Ibidem. (p. 4).
47 CADBUNY, Richard. Everyday Life in Cape Colony – In time of Peace. London: T. Fischer Unwin, 1902. (pp. 15–16).
129
espaço urbano, seus olhos não podiam ignorar a pluralidade populacional.
Ele escreveu, por exemplo, que no Cabo a população era composta
basicamente por “europeus, holandeses, malaios, moçambicanos, indianos,
cafres e os ‘meninos da Cidade do Cabo’ (Cape Town Boys) (...) todas as
gamas de cores indo do mais negro da noite, através do crepúsculo dos
meia e um quarto de casta, até o puro branco europeu”.48 Todos ocupando
este mesmo espaço urbano.
William John Ritchie Simpson, considerado por muitos como o “mais
distinto sanitarista tropical do Império Britânico”49, também fez relevantes
considerações sobre a pluralidade desta população e como estes estavam
inteiramente ligados aos problemas urbanos e sociais da cidade e, por
consequência, como também se relacionavam ao aumento das doenças.
Em um discurso proferido em uma filial local da British Medical Association
em 31 de maio de 1901 ele argumentou que:
Depois de Bombaim, a Cidade do Cabo é uma das mais propícias cidades que eu conheço para a epidemia da peste. (...) [Há], um grande número de favelas (slums) velhas e sujas, ocupadas por uma população heterogênea; os Africanos que vivem na cidade não são aptos à vida urbana; os pobres coloureds são ainda mais sujos em seus hábitos, enquanto os Malaios e os Indianos possuem os hábitos dos Asiáticos, e a classe pobre dos Portugueses, Italianos, Levantinos e Judeus são quase tão imundos quanto os outros. (...)
Vivendo nas mesmas áreas não saudáveis, frequentemente vivendo nas mesmas casas, as diferentes raças e nacionalidades estão misturadas de modo insolúvel, então qualquer doença que afeta um certamente afetará ao outro.50
48 BICKFORD-SMITH, V. Ethic Pride, (p. xiii).
49 BAKER, R.A. & BAYLISS, R. A. “William John Ritchie (1855-1931): Public Health and Tropical Medicine” IN: Medical History, 1987, no31. (p. 461).
50 SIMPSON, W. J. Lecture on Plague. Cape Town, 31 May 1901, apud. BICKFORD-SMITH, V. & HEYNINGEN, E. van &
130
Foi exatamente quando as impressões negativas produzidas pelas classes
dominantes sobre as pessoas de cor tornaram-se diretamente associadas
à própria sobrevivência epidemiológica das “raças brancas” da África do
Sul que os pedidos para que os não-brancos (principalmente os nativos
africanos) fossem removidas da cidade começaram a aumentar. Em 3 de
julho de 1897, por exemplo, um dos principais jornais da Cidade do Cabo, o
conservador Cape Times, apresentou uma opinião editorial que manifestava
os sentimentos mais vis contra as populações de cor. Segundo o texto, a
Cidade do Cabo “quase que precisava de uma visita da praga para que as
vassouras necessárias fossem aplicadas.”51 Alguns anos mais tarde esta
vontade seria materializada.
As populações de cor eram descritas como “perigosas” e “selvagens” e sua
presença na cidade “alimentava crimes, doenças, bebedeiras, profanidade e
imoralidade – desafiando em seus próprios termos os valores hegemônicos
ingleses”.52 Era preciso “limpar” a cidade desta “ameaça” pois, em todos os
aspectos, representavam um ataque direto à integridade moral e física dos
colonos brancos. Caberia aos médicos coloniais apontar justificativas válidas
para colocar estes pedidos em prática e definir quais destas populações
deveriam ser segregadas.
O historiador sul-africano Vivian Bickford-Smith refletiu profundamente
WORDEN, N. Cape Town in the Twentienth Century: An Illustrated Social History. Cape Town: David Philip Publishers, 1999. (p.18-19),grifo nosso.
51 Cape Times, 3rd July 1897, apud: ECHENBERG, Myron J. Plague Ports: The Global Urban Impact of Bubonic Plague, 1894-1901, New York: New York University Press, 2007. (p. 279)
52 BICKFORD-SMITH, V. Ethic Pride... (p. 83).
131
sobre a as primeiras segregações urbanas na Cidade do Cabo. Em seu
livro Ethnic pride and racial prejudice in Victorian Cape Town, Bickford-Smith
colocou uma importante pergunta para a historiografia: por que a solução
da segregação dos africanos às reservas nativas não foi adotada antes de
1901? Sua resposta é intrigante. Bickford-Smith argumenta que a natureza
das atividades econômicas da cidade foi central para que a segregação
urbana tivesse início apenas em 1901, quando muitos setores da produção
industrial necessitavam de um maior controle sobre a mão-de-obra africana.
No passado, ele argumenta, as unidades de produção eram pequenas e isso
facilitava o controle individual sobre os empregados nativos e sobre suas
residências. Em 1901, contudo, a economia da cidade encontrava-se em um
momento de mudanças. A atividade portuária e industrial alavancava um
novo sistema de trabalho e o controle sobre a mão-de-obra deveria ser mais
efetivo e rígido. Nesse âmbito, as remoções forçadas geradas pela peste
bubônica em 1901 são vistas como o estopim de um contexto econômico
maior que procurava aumentar o controle que as classes dominantes tinham
sobre os trabalhadores da cidade.
A tese defendida por Bickford-Smith ilumina aspectos importantes do
período. Realmente, a história da África do Sul pode ser narrada através da
exploração e controle da mão-de-obra nativa. Neste aspecto, a análise de
Bickford-Smith é impecável. Contudo, os pontos privilegiados por abordagens
de matiz econômica como esta implicam que o papel de outras personagens
do processo, como por exemplo, os médicos, seja secundado ou tido como
de pouca importância.
Em nossa visão, ocorre que as remoções forçadas de 1901 só puderam existir
132
da maneira como existiram graças à atuação de determinados médicos,
uma vez que estes traçaram e administraram os principais planos para sua
efetivação. Médicos como o Dr. Gregory atuaram desde a validação dos
argumentos sanitaristas, participando das inspeções em casas e casebres,
até a efetiva escolha da região para a construção da reserva nativa, passando
pelas campanhas de vacinação compulsórias e pela fiscalização e aplicação
das medidas segregacionistas ao longo da primeira década do século XX.
De maneira mais ampla, quase todos os médicos da cidade se dedicaram
ao combate da epidemia, atuando inclusive junto às negociações políticas
da segregação (ora reforçando argumentos da necessidade das remoções,
ora defendendo outras populações de cor, como a dos coloureds e malaios,
por exemplo). E este é um elemento central de nosso trabalho. Por que os
coloureds e os malaios não foram segregados da mesma forma que os nativos?
E, ademais, como estes grupos puderam permanecer na cidade mesmo
quando foram as mais atingidas pelo surto de peste bubônica e quando
também habitavam moradias superlotadas e muito similares àquelas dos
africanos?
Para adentrarmos às agências médicas do período e entendermos este
processo com maiores detalhes temos que compreender melhor o
funcionamento da medicina na Cidade do Cabo. Até a década de 1920 não
existia uma escola médica na África do Sul. Todos os médicos coloniais eram
formados fora da África, sobretudo na Inglaterra e na Europa Continental53,
o que geralmente implicava uma formação de olhar imperial no que diz
respeito aos sujeitos não-europeus.
53 PHILLPS, Howard. “Home taught abroad: the training of the Cape Doctor, 1807-1910” in: DEACON, H., PHILLIPS, H., van HEYNINGEN, E. The Cape Doctor in the Nineteenth Century: A Social History, New York: Rodopi, 2004. (p. 105).
133
Premesh Lalu identificou que esta forma de olhar os pacientes de cor resultava
em três relações médicas/políticas fundamentais. Primeiramente, estes
grupos eram enxergados como possuidores de uma identidade social aparte
daquela europeia e, por isto, os médicos constantemente os mapeavam em
busca de diferenças que escapassem a uma norma pré-estabelecida. Em
diversos artigos publicados pelo South African Medical Journal, por exemplo, as
diferenças físicas e culturais dos não-brancos eram utilizadas para justificar a
susceptibilidade destas populações a determinadas doenças.
Em segundo lugar, Premesh Lalu aponta que era comum ordenar as
diferenças encontradas em um discurso biológico apoiado na própria
história e tradição política local. Isto era feito de forma que os médicos
conquistassem privilégios de trabalho e também a confiança dos governos
coloniais, reforçando assim o controle sobre as populações de cor. Doenças
como a lepra ou a varíola, endêmicas na colônia do Cabo ao longo do século
XIX, eram constante apontadas como doenças degenerativas ligadas a estas
populações de cor, e mesmo quando um paciente branco era acometido
por uma das duas os médicos coloniais procuravam encontrar o empregado
de cor responsável pela transmissão da doença. Estes procedimentos eram
não apenas incentivados pelos governos coloniais, como também eram
regularmente elogiados. Por fim, e como terceiro ponto, este processo fez
com que os médicos conquistassem a confiança dos governantes locais,
criando uma área embaçada que nos dificulta delimitar as fronteiras entre
os interesses de cada um deles.54
54 LALU, Premesh. “Medical Anthropology, Subaltern Traces, and the Making and Meaning of Western Medicinein South Africa: 1895-1899” in: History in Africa, Vol. 25 (1998), (pp. 133-159).
134
Os médicos que se estabeleciam na África do Sul, portanto, ao contrário de
seus pares que permaneciam na Europa, entendiam que para obter sucesso
nesta colônia era preciso atuar da maneira exposta acima. Assim, faziam do
âmbito político um referencial para validar seus argumentos científicos, e
não o oposto. Para quase todos estes médicos, o caráter científico de sua
profissão era menos importante do que a experiência de trabalho adquirida
em campo e a aceitação política que essa experiência garantia. Isso impunha
profundas singularidades às suas formas de observar as populações de cor,
conforme indica Premesh Lalu.
A historiadora Harriet Deacon também caminha nesta direção. Ela defende
que os cientistas coloniais eram mais colecionadores de fatos do que teóricos
guardiões de conhecimentos científicos. Em relação às formas com que estes
cientistas apresentavam seus argumentos racistas, Deacon afirma que os
médicos na África do Sul geralmente expressavam suas teorias acerca das
diferenças raciais dentro das especificidades locais, evitando seguir diretamente
as grandes teorias imperiais.55 Ela explica, por exemplo, que o Eugenismo (que
tem sido apontado mundialmente como uma das principais teorias utilizadas
para segregar pessoas de raças consideradas como inferiores) desenvolveu-se
muito tardiamente na Cidade do Cabo, apenas após 1920, o que fortalece nosso
argumento de que as primeiras segregações urbanas eram constantemente
balizadas por experiências pessoais destes médicos.
Na verdade, podemos entender que quase todos os médicos do Cabo
raramente escapavam ao “amador investigador científico”.56 Muitas de suas
55 DEACON, Harriet. Idem.
56 DUBOW, Saul. (2006), op. cit. (p. 166).
135
teorias e práticas eram inconstantes, ambíguas e contraditórias. O editor do
South African Medical Journal, o Dr. Darley-Hartley, por exemplo, expressou que:
(...) eu descobri há muito tempo que artigos baseados em experiências
pessoais e erros pessoais são frequentemente muito mais bem aceitos pelos
profissionais gerais e normais do que os mais cientificamente estilizados
tratados que já emanaram da mente humana.57
Representativo do momento profissional dos médicos do Cabo, a opinião do
Dr. Darley-Hartley nos revela como muitos dos médicos da colônia, alguns
deles responsáveis pelos despachos do MOH, atentavam mais às experiências
individuais de seus companheiros do que a projetos síntese e sistemáticos
de soluções sanitárias de base científicas.
Este contexto de trabalho e esta forma política de entender seus pacientes
também fazia parte do repertório do Dr. Alfred John Gregory, secretário
do Medical Officer of Health durante o surto de peste bubônica de 1901 e
um dos idealizadores da reserva nativa de Uitvlugt. Nascido em 1851 na
Inglaterra, A. J. Gregory estudou medicina em Londres e obteve seu diploma
pelo Royal College of Surgeons e pelo Apothecaries Society of London no ano
de 1886. Em seguida, Alfred Gregory continuou seus estudos em Durham,
onde ainda obteve o Medical and Bachelor of Surgery em 1888 e tornou-se
doutor em medicina no ano de 1891. Como muitos administrados, militares,
engenheiros, aventureiros e médicos do período, o Dr. Gregory viu nas
possessões coloniais um caminho para fazer carreira. Partiu assim para a
Índia e, após um breve período por lá, optou por estabelecer-se na Colônia
57 DARLEY-HARTLEY, W. “Cases Illustrating the utility of Iron Salts in Syphillis” IN: South African Medical Journal, Wednesday, August 4th, 1886. (p. 26).
136
do Cabo da Boa Esperança. Ao chegar à Cidade do Cabo, o Dr. Gregory, por
motivo desconhecido, não requisitou seu registro como médico colonial
e assumiu um posto de trabalho junto ao Cape Colony Census Office, uma
experiência que marcaria todo o desenvolvimento de sua prática médica e
administrativa nos anos seguintes.
Em 1893, durante as reuniões da Comissão da Lepra, congregada para rever
a legislação referente ao tratamento e ao isolamento dos pacientes leprosos
da colônia, o Dr. Alfred Gregory escreveu um amplo relatório intitulado
The public health of the Cape Colony, chamando assim a atenção de outros
médicos coloniais que não sabiam de sua formação em medicina, fato pelo
que foi profundamente questionado. Em 1896, após ter se aproximado
da prática médica novamente, o Dr. Gregory foi apontado para trabalhar
como auxiliar do Dr. George Turner, então secretário do Medical Officer of
Health. A vaga que assumiu não havia sido anunciada publicamente e muitos
questionaram as razões e justificavas de sua indicação. Alguns historiadores,
inclusive, consideram este episódio como um dos ápices dos atritos entre
médicos no final do século XIX.58 Contudo, independente das reclamações
e das oposições que recebeu, o Dr. Gregory assumiu o cargo e tornou-se
secretário do MOH no ano de 1900.
Apesar da formação altamente qualificada, a carreira do Dr. Gregory nunca
foi reconhecida publicamente como a de um médico teórico. Inclusive, por
isto, conseguiu facilmente dialogar com os interesses políticos do período
e galgar altas posições dentro da administração colonial. A sua perspicácia
58 BURROWS, Edmund H. A History of Medicine in South Africa up to the end of the Nineteenth Century, Cape Town: A. A. Balkema, 1958.
137
administrativa e sua atuação prática eram tão expressivas que, quando se
aposentou, a sede da British Medical Association na Cidade do Cabo convidou
diversos médicos para realizarem um balanço de sua carreira. Em um
memorial exposto pelo Dr. Matthew Hewat, foi dito que “seria impossível
encontrar outro homem com o conhecimento prático das condições da
África do Sul.” Segundo o Dr. Hewat, toda a carreira do Dr. Gregory havia se
baseado “não no que era teoricamente desejado, mas no que era realmente
possível”.59 Aqui encontramos uma primeira chave para compreender o perfil
das remoções forçadas de 1901.
O Dr. Gregory sabia que teria o apoio para indicar a remoção das populações
africanas se fizesse isso dentro de um jogo político correto. Desde o final
do século XIX muitos membros das elites brancas sul-africanas já ansiavam
por se livrar destes africanos e, neste sentido, controlar o acesso à sua
mão-de-obra, como propõe Vivian Bickford-Smith. Contudo, o Dr. Gregory
também estava certo de que outras populações de cor não poderiam ser
tratadas da mesma maneira, apesar de representarem um problema maior
para a saúde pública da cidade, conforme demonstravam as muitas tabelas
e levantamentos censitários que ele colecionou quando passou ao Medical
Officer of Health.
Contudo, o entendimento deste contexto começou antes de ocupar o cargo
de secretário do MOH. Ainda como auxiliar do Dr. George Turner, o Dr. Alfred
Gregory teve a chance de viajar pela África do Sul e de aprender muito sobre
formas de tratar problemas socialmente contagiosos e como as diferentes
populações de cor deveriam ser endereçadas. Assim como outros colegas
59 British Medical Association, C.G.H. (Western) Branch in: South African Medical Journal, July 22nd, 1911. (p. 203).
138
de profissão, o Dr. Gregory sabia que ser um médico colonial implicava “ser
um consultor de questões relacionadas a lunáticos, criminosos, alcóolatras,
prostitutas e ‘charlatões’”,60 mas, acima de tudo, implicava também reconhecer
os limites de quem poderia ser segregado a partir de pressões e negociações
entre diferentes médicos, sanitaristas e políticos.
Foi pensando em abordar estas patologias sociais a partir das possibilidades
do período que o Dr. Alfred Gregory começou a estudar e a preparar planos
práticos para controlar um possível surto de peste bubônica na colônia. Em
fevereiro de 1899, dois anos antes dos primeiros casos da doença na Cidade
do Cabo, ele ajudou a organizar a Conferência Interestadual da Praga em
Pretória e participou de uma expedição que visitou o interior do Transvaal e
partes de Moçambique, onde alguns casos da doença haviam sido apontados.
Dada a eminente possibilidade de que a epidemia atingisse a África Austral,
a conferência assumiu uma importância ímpar entre os congressos médicos
do período e foi atendida por muitos interessados. Assim, mesmo com os
atritos políticos e militares existentes, e a eminência de uma nova guerra
entre ingleses e bôeres, representantes médicos das colônias inglesas do
Cabo e do Natal, dos Estados bôeres do Transvaal e do Estado Livre de
Orange e da colônia portuguesa de Moçambique reuniram-se para discutir
as melhores formas de prevenir e combater a doença.
Uma das principais questões debatidas ao longo da conferência foi a forma
como ocorreria o contágio da peste e como o mesmo poderia ser impedido.
Antes de prosseguirmos, é preciso refletir um pouco sobre o uso da palavra
60 LALU, P. “Medical Anthropology...” (p. iii).
139
contágio neste período. Segundo Phillip Curtin, a utilização do termo contágio
ao longo do século XIX pode ser confusa. Apesar de a palavra parecer
familiar, no século XIX seu uso era completamente diferente do atual, e isso é
importante para entender a agência dos médicos coloniais. Segundo Curtin,
Contágio não era pensado como um organismo que se move de uma pessoa para a outra nem era necessariamente uma causa específica de uma doença particular. Ao contrário, era algo que emanava do corpo de uma pessoa que havia contraído a doença, ou de um corpo de uma pessoa que havia morrido graças a essa, ou dos corpos de pessoais que nem mesmo estavam doentes, se esses estivessem abarrotados em um lugar sem ventilação.61
Era assim que os médicos reunidos em Pretória pensavam o contágio. O
Dr. Alfred Gregory conta, por exemplo, que o Dr. Martins, representante
da colônia portuguesa de Moçambique, fez questão de narrar os casos
identificados em Lourenço Marques. Segundo o Dr. Martins, três indianos
vindos da região do Rio Save, ao norte da colônia, apresentavam glândulas
muito aumentadas em suas virilhas e outras glândulas aumentadas por todo
o corpo. Os primeiros sintomas haviam sido febre alta e vômito, o que poderia
caracterizar sintomas da peste. Contudo, o que mais o preocupava era o fato
de que “todos eles moravam em uma casa na cidade, que se encontrava
muito suja, e na qual moravam mais dezenove indianos”.62
O Dr. Alfred Gregory, como os demais quarenta e sete médicos atuantes na
Cidade do Cabo neste período,63 sabia que diversas habitações da cidade
61 CURTIN, Phillip. “Medical Knowledge and Urban Planning in Tropical Africa”, in: The American Historical Review, Vol. 90, no 3 (Jun., 1985), pp. 594-613. (p. 596).
62 GREGORY, A. J. “Notes on some recent cases of Plague in South Africa” in: South African Medical Journal, August, 1899. (p. 83).
63 Juta Directory of Cape Town, Suburbs & Simon’s Town for 1901, Cape Town: J. C. Juta & CO, 1901. (pp. 354-355).
140
apresentavam estas mesmas condições insalubres e favoráveis ao contágio
de doenças. Durante a década de 1890, o conhecimento da situação havia se
tornado ainda mais nítido com os diversos relatos médicos que circulavam
pelo Cabo. Um dos mais famosos panfletos do período foi escrito pelo Dr.
Johannes Hendricus Meiring Beck, um dos fundadores da South African
Medical Association. Nascido em 1856 e formado pela Universidade de
Edimburgo no ano de 1879, o Dr. Beck possuía grande interesse na questão
sanitária da cidade. Foi por isto que lecionou no ano de 1887 uma eloquente
palestra intitulada The Cape Sanitary Puzzle. Dias após a palestra, o conteúdo
apresentado foi transcrito e passou a circular em forma de um panfleto
educativo entre vários médicos e sanitaristas da cidade. A argumentação
central do Dr. Beck era a de que a superlotação das moradias tornara-se um
problema tão disseminado que implicava um alto risco para a manutenção
das mínimas condições sanitárias da cidade. Em suas próprias palavras:
No curso de minhas peregrinações, dois quartos foram apontados para mim, com menos de doze pés quadrados, em cada um deles quinze pessoas, homens e mulheres amontados todos juntos, têm dormido durante a noite, e junto ao cômodo existem as passagens onde filas de seres humanos se alinham até os fundos até mesmo sobre o jardim. De quarenta a cinquenta pessoas de todos os sexos arranjadas dessa maneira em uma casa ou um casebre. (...)
Essas favelas (slums) você poderá encontrar dispersas nas vizinhanças da Buitenkant, Harrington, Boom, Canterbury, Constitution, Hanover, Stuckeris e tantas outras ruas tão numerosas para serem mencionadas – a mesma situação ocorre nas vizinhanças da Rua Waterkant, à qual podem ser incluídos os quarteirões Malaios aos arredores das Ruas Rose e Chiappini, que, se não são sujos, estão certamente superlotados. No extremo leste da cidade eu vi um cômodo de cerca de dez pez quadrados ocupados por quinze cafres (kafirs) amontoados quase ao ponto de sufocarem.64
64 BECK, J. H. M. The Cape Town Sanitary Puzzle: A lecture delivered in the Hall of the Young Men’s Christian Association
141
Ao descrever especificamente as pessoas que ocupavam esses espaços o
Dr. Beck escreveu que eles “eram todos coloureds, cafres, homens da costa
ocidental, Moçambicanos e os chamados de Malaios”. Vivendo sem móveis e
dormindo apenas com um saco para cobri-las, essas pessoas passavam dos
milhares e o que mais o chocava era que “o senso de uma decência comum,
se um dia existiu, já os deixou faz tempo, e eles estão agora reduzidos a um
estado de mero animalismo”.65
Era necessário rever a situação daquela cidade colonial e resolver o problema
destas populações de cor que ameaçavam a existência das populações
brancas sul-africanas. Contudo isto não poderia ser feito de maneira
desmedida. Outros médicos, com destaque para o Dr. Abdullah Abdurahman,
não aturariam tais medidas.
Quando a peste eclodiu na Cidade do Cabo, um dos principais grupos
identificados como responsáveis pelo contágio da doença foram os coloureds
e os malaios. Ambas as populações, que ora eram incluídas dentro de
uma mesma categoria e ora descritas como grupos distintos, possuíam
uma relação histórica com a ocupação dos espaços urbanos do Cabo;
muitos, inclusive, possuindo títulos de posse de suas casas. Aos olhos dos
colonialistas, contudo, ambos os grupos eram vistos a partir de seus status
políticos e sociais intermediários, entre merecedores de benefícios e inimigos
da civilização, entre brancos e nativos.
É importante ressaltar que na África do Sul, ao contrário do que acontece em
on 18th April, 1887.
65 Idem
142
outros contextos de colonização britânica, o termo coloured não é utilizado
para definir pessoas de cor de uma maneira geral. A definição para coloured
é pautada basicamente em duas vertentes, uma histórica e outra fenotípica.
Mohamed Adhikari, um dos maiores especialistas sobre história deste grupo,
definiu que o termo coloured
Alude a um grupo de pessoas fenotipicamente divergentes descendentes em grande maioria dos escravos do Cabo, das populações indígenas Khoisan e outras populações de descendência africana ou asiática que foram assimiladas à sociedade colonial do Cabo no final do século XIX. Sendo também parcialmente descendentes dos colonos europeus, a população coloured tem sido popularmente considerada como uma ‘raça mista’ e eles têm um status intermediário na hierarquia racial da África do Sul, distintos portanto da minoria branca historicamente dominante e das numericamente preponderantes populações africana.66
Os malaios, por sua vez, eram constantemente associados ao grupo coloured,
recebendo apenas uma distinção clara quando detalhes eram observados.
Reclamavam por exemplo, uma história de sofrimento e sua diáspora era
contada como a de um grupo que fora tomado por criminosos políticos, dada
a resistência às investidas coloniais colocadas em prática pela Companhia das
Índias Orientais Holandesas em suas possessões asiáticas. Em um segundo
momento desta história, a Companhia passou a escravizar as populações
locais e a enviá-las para o Cabo. Por isto os malaios são recorrentemente
associados aos ex-escravos coloniais. Ao manterem o Islã como sua religião
e continuarem a reproduzir na Cidade do Cabo hábitos alimentares e
indumentários, este grupo tornou-se uma comunidade visivelmente distinta
das demais populações de cor. Isso criou complicações políticas ao passo que
66 ADHIKARI, Mohamed. ‘Hope, Fear, Shame, Frustation: Continuity and Change in the Expression of Coloured Identity in White Supremacist South Africa, 1910 – 1994’. IN: Journal of Southern African Studies, Vol. 32, No 3 (Sep., 2006), (p. 468).
143
administrativamente os malaios eram pensados como pertencente ao grupo
coloured, mas, socialmente eram entendidos como uma entidade a parte.
Como vimos anteriormente, muitos dos viajantes e sanitaristas que
descreveram a população da cidade se preocuparam em apontar a
proximidade que coloureds e malaios tinham com aquelas moradias sem
condições sanitárias e, por isso, estes grupos eram tidos como perigosos
para a manutenção da saúde pública do Cabo. De fato, desde as epidemias
de varíola da década de 1880, uma maior atenção era direcionada a estas
populações. Não foi diferente em 1901, quando, inclusive, estes foram os
mais atingidos pela peste, contabilizando quase cinquenta e sete por cento
de todas as mortes confirmadas por peste. O alto número de contágios e
óbitos entre os grupos coloureds e malaios reforçava o racismo e as práticas
discriminatórias em relação à sua presença na cidade. Contudo, e apesar
de serem reconhecidos como problemas para a condição sanitária geral,
logo após o término da epidemia os pacientes infectados e todos aqueles
que foram removidos para Uitvlugt por serem considerados como fontes
de contágio puderam retornar às suas casas e às antigas condições em que
viviam. O que fez com que isto fosse possível?
A historiografia tem repetidamente falhado ao responder esta pergunta.
Na verdade, enquanto o contexto apresentado até o momento é
recorrentemente utilizado para reforçar a narrativa acerca da história da
segregação na África do Sul, poucos perceberam que este mesmo processo
garantiu privilégios a outras populações de cor da cidade. A segregação
produziu limites que estabeleceram certos privilégios para determinadas
populações de cor. E isso só foi possível pela atuação de alguns médicos.
144
Aqui identificamos apenas um destes, talvez o principal destes. Um médico
de cor que desde cedo em sua carreira atuou em prol daquilo que ele
acreditava como correto dentro do jogo político e histórico do qual a
medicina fazia parte. Trata-se do Dr. Abdullah Abdurahman, a quem John
H. Raynard teceu extensos elogios públicos nas semanas que seguiram sua
morte em 1940. Raynard escreveu que
É inquestionável que os historiadores do futuro pagarão tributo a ele ao
reconhecerem que ele era um dos grandes homens de seu tempo, e que a
posterioridade irá honrar sua memória como a de um homem, um patriota,
nascido como líder, quem sem medo lutou contra a injustiça e a opressão, e,
além de tudo, morreu de armadura lutando a causa de seu povo com uma fé
imortal na justiça de sua causa.67
O Dr. Abdullah Abdurahman é realmente um personagem fascinante que
construiu uma rica carreira como médico e sempre esteve profundamente
envolvido com a vida política da Cidade do Cabo.
Como filho de um teólogo Muçulmano que estudou em Al-Azhar no Cairo e
como neto de escravos do período colonial holandês, Abdullah Abdurahman
cresceu em um ambiente cercado por ricas e múltiplas influências culturais.
Ainda jovem, estudou no reconhecido South African College, que anos mais
tarde se tornaria a Universidade da Cidade do Cabo. Estudar era algo
importante em sua vida e, com a ajuda de sua família e comunidade, pôde
viajar para a Escócia onde se formou em medicina pela Universidade de
Glasgow. Após terminar a faculdade, em 1893, o Dr. Abdurahman passou
algum tempo em Londres onde melhorou suas qualificações como médico
67 ADHIKARI, Mohamed. Dr. A. Abdurahman, a biographical memoir by J. H. Raynard, Cape Town: Friends of the National Library of South Africa in Association with the District Six Museum, 2002. (p. 23).
145
cirurgião. Em 1895 ele retornou à Cidade do Cabo casado com uma escocesa,
Hellen Porter James.
Enquanto trabalhava como médico na Cidade do Cabo o Dr. Abdurahman
percebeu as condições adversas nas quais as populações de cor da cidade
viviam. Mais do que problemas de saúde, ele viu que a “comunidade
Muçulmana” e os coloureds do Cabo sofriam com a falta de educação,
trabalhos desqualificados e, acima de tudo, com um contínuo e reiterado
racismo.
Como muçulmano convicto, o Dr. Abdurahman passou a reconciliar as
práticas da medicina ocidental com as tradições médicas muçulmanas
às quais ele conhecia e tinha acesso.68 Ao fazer isso, Abdurahman atraiu
muitos pacientes coloureds que continuamente resistiam às novas medidas
sanitaristas criadas pelo MOH no início do século XX. Trabalhando com
estes pacientes, visitando suas moradias e indicando maneiras de resolver
os problemas sanitários encontrados sem ferir os preceitos do Islã,
Abdurahman foi capaz de melhorar a condição de vida de muitos daqueles
que atendeu, criando assim argumentos políticos e demonstrações públicas
contra a remoção destas populações durante a epidemia de peste bubônica.
Na verdade, o Dr. Abdurahman foi tão importante neste processo que, o
próprio Dr. Gregory reconheceu suas capacidades de trabalho junto às
populações de cor e o contratou como médico responsável pelas populações
muçulmanas do Cabo durante os meses em que a epidemia estava em seu
ápice. Segundo o Dr. Gregory, o Dr. Abdurahman não deveria interferir
68 DIGBY, Anne. Diversity and Division in Medicine: Health Care in South Africa from the 1800s, Oxford: Peter Lang, 2006. (p. 382).
146
nas medidas propostas, mas apenas administrar a situação para que os
pacientes de cor não se revoltassem contra as imposições do MOH. Sem
contrariar diretamente esta ordem, o Dr. Abdurahman encontrou outras
formas de auxiliar a população que pretendia defender.
Mesmo antes do início da epidemia, Abdurahman já vinha chamando atenção
de médicos e pacientes pela cidade. Por isto, passou a ser reconhecido e
tratado pela impressa e demais colegas como “o Doutor”. Conforme escreveu
John H. Raynard, “seu nome logo se tornou um abrigo entre europeus e não-
europeus na cidade e nos subúrbios. Em todo lugar as pessoas estavam
falando sobre o ‘inteligente e jovem médico malaio’. Ele inspirava confiança
em sua habilidade entre seus pacientes”.69
Sua resistência às remoções forçadas foi inicial, porém não direta e em
oposição às ordens do MOH.
Com o início da epidemia da peste bubônica o Dr. Abdurahman realizou
serviços notáveis para a cidade. Em uma disputa entre médicos do Governo
e da equipe do Conselho da Cidade, em relação a um certo paciente ao qual
eles atendiam e a quem estes médicos haviam pronunciado como um caso
de peste, e querendo removê-lo para o ‘Campo’, ‘o Doutor’ negou que aquele
caso fosse de peste e assim ganhou uma aposta de £200 que havia feito com
estes médicos.70
Após esta disputa técnica e social seu papel dentro da campanha pelo
combate da doença cresceu. Assim, ficaria responsável por realizar análise
e diagnóstico dos casos entre as populações coloureds e malaias, atuando
69 ADHIKARI, Mohamed. Dr. A. Abdurahman, a biographical memoir by J. H. Raynard, Cape Town: Friends of the National Library of South Africa in Association with the District Six Museum, 2002. (p. 23).
70 Idem.
147
diretamente entre os mais contaminados pela peste.
Com um contrato temporário com o MOH, feito a pedido do Dr. Alfred
Gregory, o Dr. Abdurahman passou a visitar frequentemente o campo de
contato em Utivlugt, especialmente a ala dedicada à população malaia. Com
muita habilidade, convenceu os pacientes infectados a seguirem os preceitos
da medicina ocidental e a aceitar os cuidados dos médicos e enfermeiras do
hospital. Uma das principais resistências apresentadas pelos malaios era o
cuidado com os corpos daqueles que viessem a óbito. Seguindo suas práticas,
era preciso banhar o corpo e perfumá-lo, fazendo um cortejo público até
um cemitério muçulmano para depois realizar o enterro. Esta prática era
abominada pelos agentes do MOH. Abdurahman sabia que sob nenhuma
hipótese o órgão aceitaria um corpo contaminado sendo carregado pelas
ruas da cidade. Por isto, antes da contratação do Dr. Abdurahman pelo MOH,
muitos malaios foram presos e sofreram violências físicas por romperem as
regras de contenção da epidemia. O Dr. Abdurahman, neste aspecto, soube
como negociar com essa população e, de fato, muitas destas práticas foram
abandonadas enquanto durou a epidemia.
Contudo, seu trabalho não ficou restrito ao campo e ao hospital de Uitvlugt.
Sua clínica particular, localizada à Loop Street, ficava a apensas duas quadras
do bairro malaio, o Bo-Kaap, no Distrito 1. Enquanto morava no Distrito 6
e trabalhava no Distrito 1, atravessa a cidade inteira, reconhecendo casas
ocupadas por coloureds e malaios e convencendo-os a organizar, limpar e
desinfetar suas casas antes das vistorias sanitaristas. Em alguns momentos,
inclusive, o Dr. Abdurahman interveio junto às autoridades policiais e políticas
questionando a truculência dos agentes sanitários e requisitando que as
148
casas desocupadas pelos infectados fossem mantidas intactas aguardando
o retorno de seus proprietários.
O Dr. Abdurahman acreditava na perfectibilidade humana e construiu a partir
desta perspectiva uma série de argumentos políticos em prol da assimilação
dos grupos pelo qual ficou responsável durante o surto de peste de 1901. Sua
agência foi tamanha que, de fato, as primeiras experiências de segregação
urbana na Cidade do Cabo não foram capazes de remover estas populações,
que representavam também um enorme perigo conforme as preocupações
sanitaristas do Dr. Gregory.
Desta forma, as ações do Dr. Abdurahman durante o surto da peste nos
abrem para a problemática já mencionada acima, e que tem sido em grande
medida ignorada pela historiografia: como que o processo de segregação
racial na África do Sul foi capaz de garantir direitos e privilégios para grupos
que representavam a própria essência daquilo que os racistas e as classes
dominantes mais temiam?
A conclusão de nosso texto parte da resposta a essa questão. Existiram
sujeitos na Cidade do Cabo que, apesar de nunca terem recebido a devida
atenção historiográfica, foram capazes de negociar as tendências políticas
do período em seus próprios termos. Muitos destes sujeitos atuavam como
médicos coloniais. Anne Digby talvez tenha sido a historiadora que mais
perto chegou deste problema. Em seu artigo Early Black Doctor in South
Africa71, ela notou que “a carreira dos primeiros doutores de cor envolvia
consideravelmente mais problemas, como também maiores complexidades
71 DIBGY, Anne. “Early black doctors in South Africa” in: Journal of African History, 46 (2005).
149
ao escolher seus objetivos profissionais, do que era típico aos seus colegas
brancos sul-africanos”. Segundo Digby, muitos idealizavam a profissão de
maneiras irreais e acreditavam que através das práticas médicas seria possível
salvar as populações com as quais estes médicos mais se identificavam.
Exatamente por esta razão que muitos dos médicos de cor do início do
século XX dedicaram-se exaustivamente a uma prática política para além
da medicina. Contudo, apesar de iluminar o problema, Digby não enfoca o
período aqui trabalhado e falha ao perceber que estes médicos possuíam
mais do que idealizações irreais. É preciso perceber que alguns deles, entre
os quais o Dr. Abdurahman se destaca, foram cruciais para negociar os
termos e as formas da implementação de segregações urbanas no ano de
1901.
O Dr. Abdurahman, por exemplo, foi tão importante ao longo da epidemia
que alguns anos mais tarde, em 1904, ele foi reconhecido por suas
capacidades políticas e tornou-se a primeira pessoa de cor a ocupar um
cargo no Conselho da Cidade do Cabo. Nesta instância, presidiu diversos
comitês, sendo que o primeiro deles foi exatamente o de Construções e
Saúde Pública, responsável por fiscalizar e propor solução para os problemas
infraestruturais e epidemiológicos da cidade. Sua eleição ao Conselho e a
presidência do comitê de Saúde Pública garantiram que diversas proteções
às populações coloureds e malaias fossem novamente criadas e mantidas.
Assim, ao passo que o campo de contato de Uitvlugt foi transformado na
reserva nativa de Ndabeni e as populações africanas foram removidas da
cidade, sendo obrigadas a carregar passes de trânsito quando fora da reserva,
as populações coloureds e malaias do Cabo permaneceram na cidade. E,
150
de fato, estes privilégios perduraram pelo menos até a década de 1950, já
durante o período do Apartheid, período que encerra características a serem
tratadas em uma análise específica.
O ano de 1901 marcou o início da segregação urbana na Cidade do Cabo. Após
os primeiros casos da peste bubônica o Medical Officer of Health, personificado
nas atitudes do Dr. Alfred Gregory, deu início a um violento processo de
remoção das populações de cor da Cidade do Cabo, especificamente das
nativas africanas. Entretanto, ao contrário do que seria esperado, os
principais afetados pela doença, os coloureds e os malaios, logo retornaram
às suas casas e até a década de 1950 permaneceram como parte do cenário
urbano da cidade. Contudo, e apesar dos problemas historiográficos que
isto levanta, esta história não tem recebido a atenção que merece. Pouco
foi escrito sobre o outro lado da segregação urbana e quase nada sobre as
agências de coloureds e malaios na resistência a este processo. Na verdade,
como escreveu Mohamed Adhikari72, a história da população coloured da
Cidade do Cabo continua a ser constantemente marginalizada em prol de
uma leitura que privilegia os “caminhos” que conduziram a África do Sul ao
Apartheid e à luta pela liberdade.
Nosso intuito com este capítulo foi exatamente o de apontar como a
história da segregação urbana na Cidade do Cabo é muito mais complexa
do que simplesmente um caminho em direção ao Apartheid. Através do
posicionamento e das agências de médicos como Alfred Gregory e Abdullah
Abdurahman pudemos nos aproximar de um cenário no qual os limites
72 ADHIKARI, Mohamed. Not White Enough, Not Black Enough: Racial identity in the South Africa Coloured Community. Cape Town: Ohio University Press, 2005.
151
desta segregação eram colocados à prova e também modificados mediantes
as possibilidades sociais e políticas do período.
“DE BOCA A OUVIDO”- APRENDIZAGENS, PRÁTICAS DE CURAS E
RELIGIOSIDADES ENTRE AS PARTEIRAS DA BAHIA.
Silene Arcanja Franco
Escrever sobre as trajetórias de vida das parteiras constitui-se em uma tarefa
carregada de grandes compromissos, por serem herdeiras de um legado
histórico africano e indígena que se reconstruiu no Brasil, enfim, é de grande
responsabilidade penetrar no cotidiano destas mulheres, ouvindo suas
histórias, memórias, lutas cotidianas, travadas no seio de suas comunidades,
nem sempre marcadas pelos sabores da vitória. Da mesma forma é
comprometedor ouvir suas narrativas, com vozes por vezes esganiçadas,
trêmulas e estridentes e por outras vezes firmes e serenas: vozes marcadas
pelo tempo. Este texto se propõe a analisar nas histórias de vida das parteiras
da cidade de Salvador e Lauro de Freitas na Bahia, como estas mulheres
aprenderam a realizar partos e a relação das práticas de curas empregadas
por elas, com as religiões de matriz africana, aqui me refiro ao Candomblé e
a Umbanda.
O texto faz parte da dissertação de mestrado, intitulada “AWO: Segredo de
Mulheres parteiras- Trajetórias históricas, vivências religiosas e práticas de
cura das mulheres parteiras, Salvador e Lauro de Freitas”, defendida no
Programa de Pós-graduação em Cultura, Memória de Desenvolvimento
154
Regional da Universidade do Estado da Bahia. Para esta investigação foram
entrevistadas oito parteiras, moradoras dos bairros de São Marcos, Engenho
Velho da Federação, Pernambués, Mussurunga, em Salvador e do bairro
de Itinga em Lauro de Freitas. O caminho trilhado para o encontro com
as parteiras foi o da História Oral por acreditar que esta metodologia nos
permite visibilizar as trajetórias e histórias de vida das “pessoas comuns”,
provocando uma mudança de perspectiva na compreensão de quem
protagoniza a história.
As parteiras que encontrei, são donas de casa que vivem do mercado informal,
como vendedoras ambulantes, domésticas, algumas já aposentadas. Muitas
moram com a família, com filhos e maridos. Nos locais onde residem são
bastante conhecidas onde estreitaram laços de confiança e solidariedade
a partir do conhecimento que possuem e que sempre colocam a serviço
da comunidade. As suas atividades vão além de realizar partos: receitam
remédios caseiros, chás, banhos, rezam. Estas parteiras atribuem o seu saber
a um dom especial, divino, sendo assim, só realizam os partos por caridade.
O dom no qual estas mulheres se referem, faz das parteiras detentoras de
um “saber/poder” que se relaciona com as Iyás dos terreiros de candomblés,
poder de dar a vida aos Orixás, fazendo delas, assim como, das parteiras
transmissoras de uma energia vital.
Ao ouvir as trajetórias de vida das mulheres parteiras, pude perceber como
as aprendizagens adquiridas no seio de suas famílias, junto às mulheres mais
velhas, avós, mães, tias, vizinhas, outras parteiras, marcam as formas como
elas dão significado á sua existência. O aprendizado de realizar partos se
155
insere nesta realidade transformando estas mulheres em instrumentos no
qual o sagrado atua. Sagrado este que deixa sua marca nos procedimentos
de cura realizados por elas: banhos, chás, orações, massagens são apenas
pequenas formas de diálogos entre o mundo dos deuses e o mundo dos
homens. Nesse momento são várias as explicações para o milagre da vida
que elas protagonizam, atribuindo este milagre aos seus orixás, guias e
santos.
No Brasil, a presença feminina no ambiente do parto tem sua origem na
herança cultural africana, ameríndia e também européia. Na África, entre o
povo Luvale, havia uma tradição no qual cada recém nascido era apresentado
à comunidade através de um pequeno ritual em que a parteira dançava e
transportava o bebê de porta em porta. Em seguida, os vizinhos, amigos,
parentes traziam prendas à mãe e a parteira.1 Nos bairros populares de
Salvador esta tradição foi reinventada: após o nascimento do bebê, famílias,
amigos e vizinhos comemoram presenteando a mãe e à criança, aos homens
é servindo uma bebida conhecida como meladinha, feita com ervas em
infusão na cachaça.
Na tradição Tupinamba, o homem desempenhava algumas funções na hora
do parto: cortava o cordão umbilical da criança de sexo masculino, além
de comprimir o ventre da mulher com o objetivo de apressar o nascimento.2
Em algumas sociedades européias, as habilidades profissionais, aliadas aos
1 SILVA, Sonia. Mães da Solidão: Sociabilidade, Empatia e Emoções no sul da África central. Tecnográfica, vol, IX(2), 2005., p. 318
2 RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. In: PRIORE, Mary Del. História das Mulheres no Brasil. 2a ed. São Paulo: Contexto, 1997, p. 12-13.
156
conhecimentos de orações e receitas mágicas, fizeram das parteiras figuras
indispensáveis na hora do parto.3 Em todas as civilizações, foram figuras
presentes na hora do nascimento, sua ação não se perdeu na noite dos
tempos. Ela resiste até nossos dias, vivendo como anônimas nos bairros
populares de Salvador e de municípios vizinhos como Lauro de Freitas.
Poucas informações sabemos sobre elas. Neste texto ao discutir trajetórias
de vida das parteiras e suas práticas religiosas, procuro dar voz a estas
mulheres silenciadas e invisibilizadas, ao tempo em que procuro perceber
quais elementos de suas trajetórias de vida se relacionam com a trajetória de
vida dos africanos e seus descendentes, em quais momentos as experiências
religiosas se aproximam das religiões de matriz africanas e como essa
religiosidade dialoga com o saber fazer parto.
De mãos dadas com Omolu e Senhora Santana: As Parteiras de Lauro de
Freitas.
Fui católica, agora estou no Candomblé. Sou do candomblé. Uma casa de
Lauro de Freitas. Apareceu-me uma doença, os médicos não curaram quem
me curou foi o candomblé. Eu não sei, o negócio era que eu só vivia doente.
Como era essa doença? Assim, tipo empaludismo, uma coisa assim, uma
doença assim, atoa, eu ia para o médico, os médicos me davam remédio, mais
não passava. Teve um pai de santo, este pai de santo já morreu, ele me disse:
Você só vai ficar boa se você fizer obrigação de seu santo, ele quer ser feito.
Foi quando fiz, fiquei boa, nunca mais eu tive nada na minha vida, estou nessa
idade e não sinto nada. Continuei. (Parteira Valtíria)
Dona Val, como é conhecida em sua comunidade, é moradora da Rua do
3 BARRETO. Maria Renilda Nery. Nascer na Bahia do século XIX. Salvador (1832-1889). Dissertação de mestrado, história, UFBA, 2000, p. 81-82.
157
Povo, na cidade de Lauro de Freitas e mãe de oito filhos, todos nascidos
através de parteiras, primeiro a parteira Lúcia depois a parteira Domingas.
Afirma dona Val ter morado a vida toda com seus pais, a mãe trabalhava em
casa e seu pai era agricultor. Sua narrativa traz à cena a relação do Candomblé
com os processos de cura que ocorrem dentro deste espaço religioso, nos
remetendo aos diversos sentidos que a doença possui para os terreiros e os
motivos que levam as pessoas a procurarem a religião: desemprego, morte
sucessiva de filhos na primeira infância, desajustamentos conjugais, porém,
o mais frequente é a doença.4
No caso da parteira acima, a doença se relacionava à obrigação ao seu Orixá,
Omolu, uma vez cumprida a obrigação, o sintoma da doença desapareceria.
Assim, a doença alegada pela parteira Val pode ser lida como sendo a
manifestação do seu orixá, a energia dele presente em seu corpo. A “cura”
aconteceu na hora em que a parteira, atendendo à vontade do orixá, realizou
a obrigação. O que nos leva a refletir sobre a importância dos terreiros de
Candomblés para as pessoas pobres que vivem no seu entorno, que encontra
neste espaço uma alternativa para cuidar da sua saúde física e espiritual.
Desse ponto de vista, a doença faz parte do mistério no qual nem mesmo o
médico pode resolver, por se tratar da manifestação do mundo invisível.
Já a parteira Miúda, do bairro de Itinga, ao narrar sua experiência religiosa
faz o seguinte depoimento:
- “Tem 27 anos que sou cristã, foi depois do acidente. Antes eu era católica,
4 LIMA, Vivaldo da Costa. A família de Santo nos Candomblés jejês-nagôs da Bahia: um estudo da relações intergrupais. 2a ed. Salvador: Corrupio, 2003.p.67-68; CARNEIRO, Edson. Os Candomblés da Bahia. 9a ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002, p.94.
158
graças a Deus eu era católica apostólica e romana, depois eu fui para igreja
por causa deste acidente, mas olhe a pessoa que é parteira eu acho que tem
um guia divino que ilumina, pois, na hora de um parto, sempre a pessoa
senti um tipo de incorporação, nunca vive só”.
Dona Miúda tem 82 anos e é muito conhecida na rua em que mora. Vive com
uma filha e seus netos em uma casa de construção, de chão batido. Chegou
a Itinga nos anos setenta do século vinte. Segundo ela, não tinha casa, não
tinha nada, tudo era mato. Itinga é o bairro mais populoso do município de
Lauro de Freitas, o seu nome tem origem indígena, remonta às inúmeras
aldeias que existiram na região.
Na vivência religiosa dessa parteira não existe conflito em ter sido da Igreja
católica, ou ser cristã e acreditar na possibilidade de uma incorporação,
atribuída geralmente, aos membros do Candomblé.
“Ah! Não a pessoa sente uma diferença sim, não é dizer assim que dê alguma
coisa não, não dê. Mas a pessoa sente assim, uma diferença assim, parecendo
um calor que, parecendo que a pessoa não está sozinha até; entendeu? Não
que seja alguma coisa não. Se alguém disser está mentido porque eu mesmo
nunca dei (risos) agora que parece que a pessoa não esta ali só, parece que
tem ali uma ajuda isso é verdade.”
Ao afirmar que nunca deu alguma coisa, a parteira sorri, revelando ter
consciência do que sentia. O que ela revela é uma dimensão muito própria
da cosmovisão africana, a relação entre o mundo visível e o invisível. Sobre
este aspecto, Oliveira (2003) afirma: “Para o africano o visível constitui
159
manifestação do invisível. Para além das aparências encontra-se a realidade,
o sentido, o ser que através das aparências se manifesta”5. Desta forma
se torna possível que a parteira Miúda sinta a energia do ser que para ela
representa o sagrado, o invisível, o seu guia. A energia na qual ela se apega
nos momentos especiais, esta energia tal qual cita Oliveira, que não está
dissociada do indivíduo, nem do todo que o rodeia.
Dona Miúda afirma ter feito o parto de quase todos na região em que mora.
“Filho de umbigo quer dizer a pessoa cortou o umbigo daquela criança
chama-se filho de umbigo. Nas maternidades, ninguém é filho, ninguém,
é pai, nínguém é nada. Agora se tem consideração de mãe de umbigo, na
minha terra é muito respeitada, aqui não que ninguém respeita ninguém,
na minha terra é muito respeitada. E assim, foi que aconteceu a minha vida
estou aqui até hoje.”
A fala da parteira reflete uma crítica à impessoalidade dos partos dentro
das maternidades, onde não existe nenhuma relação entre os indivíduos
envolvidos no nascimento. Dar a vida neste local não é um acontecimento
e sim uma rotina. Por outro lado a sua fala registra a lembrança de sua
terra onde as pessoas respeitavam as mães de umbigo, aquela que cortou
o umbigo da criança. O umbigo representa o laço entre a criança e a mãe
sanguínea e o ato de cortá-lo, longe de significar ruptura, inaugura um laço
de parentesco com aquela que ajudou a vir ao mundo: a parteira. Conta que
possui vários filhos de umbigo, muitos já rapazes e moças, alguns frequentam
5 OLIVEIRA, Eduardo apud Ribeiro (1996). Cosmovisão Africana no Brasil – Elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: LCR, 2003, p.40
160
sua casa até hoje, quando a encontram na rua toma a benção.
A parteira Rosalinda, moradora do bairro de Itinga, afirma que não tem
religião, porém já frequentou o Candomblé: “Já fui muito em Igreja mais
nunca frequentei. Quando era moderna já frequentei o Candomblé. Levava
remédio na casa de Leonor, ela não conhecia”. O que fica implícito na fala da
parteira é que Candomblé, não é religião, hábito comum entre a população
mais idosa é se referir ao Candomblé como seita. No entanto, nesta mesma
declaração, o candomblé figura como uma alternativa religiosa ao ser
comparada à Igreja.
Donana, também parteira moradora da cidade de Lauro de Freitas, afirma
não se lembrar em que momento começaram a lhe chamar por este nome,
só sabe que ficou. Porém prefere ser chamada de Ana, pois lembra a mãe
de Maria, Santa Ana. Também conhecida como Senhora Santana. Donana
é católica fervorosa, afirma frequentar a igreja da cidade e ser devota de
Senhora Santana, na qual herdou o nome.
Senhora Santana, na Bahia é associada ao orixá Nanã. Este orixá frequentemente
é associado às aguas paradas, à lama, aos pântanos, à criação. De acordo
com a Yalorixá do Terreiro Vintém de Prata, localizado na Estrada Velha do
Aeroporto em Salvador, Mãe Marlene, este orixá é sincretizado com Senhora
Santana, por causa de sua antiguidade, senioridade:“Nanã é considerada um
dos orixás mais antigos, relacionado à velhice, por isso, muitos membros do
candomblé chama ela carinhosamente de vovó. Da mesma forma, Senhora
Santana é também uma santa antiga, avó de Deus, filho de Maria, é esta a
relação.” Nos reportemos à mitologia para entender a importância dos orixás
161
para as religiões de matriz africana.
Dizem que quando Olorum encarregou Oxalá de fazer o mundo e modelar o
ser humano, o orixá tentou vários caminhos. Tentou fazer homem de ar, como
ele. Não deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer de pau,
mas a criatura ficou dura. De pedra ainda a tentativa foi pior. Fez de fogo e o
homem se consumiu. Tentou azeite, água e até vinho-de-palma, e nada. Foi
então que Nanã Burucu veio em seu socorro. Apontou para o fundo do lago
com seu ibiri, seu cetro e arma, E de lá retirou uma porção de lama. Nanã deu
a porção de lama a Oxalá, O barro do fundo da lagoa onde morava ela, A lama
sob as águas, que é Nanã. (...) Nanã deu a matéria no começo Mas quer de
volta no final tudo o que é seu.
A história acima revela a presença do masculino e feminino presente na obra
da criação, simbolizados pelos orixás Oxalá e Nana. Oxalá é considerado pai
de todos os Orixás, veste-se totalmente de banco, sendo um dos orixás mais
reverenciados pelos iniciados no candomblé.
Na história acima estes princípios (masculino/feminino), não são forças
opostas e sim complementares, sinalizando a importância destas forças
para a criação. Sem estes elementos não se gera a vida, não se cria coisas.
Não fosse pela matéria cedida por Nana o trabalho de criação do mundo
não se realizava. “Nana deu a matéria no começo, mas quer de volta tudo o
que é seu” significa dizer quer não há separação entre morte e vida para o
africano, estes fazem parte de um mesmo princípio, neste sentido “os mortos
e os ancestrais são considerados seus filhos”.6 Assim, quando esta parteira
invoca este orixá, ela cita o princípio de todas as coisas, o início da criação
que significa dotar de vida todos os seres.
6 THEODORO, H. Op.Cit. p. 86.
162
A COTA, A ANGOLANA E A FILHA DE OYA: AS PARTEIRAS DE
SALVADOR.
O Engenho Velho da Federação é um bairro muito antigo, reúne um grande
número de terreiros de candomblés e representa um dos espaços da cidade
com grande concentração da população negra. Sua história remonta ao
século XVII, grande engenho de açúcar interligando o Engenho velho da
Federação ao Engenho Velho de Brotas. A rua onde dona Lindaura mora fica
em frente a uma padaria que também serve de ponto de ônibus.
Em seu depoimento afirma ter vivido 28 anos dentro deum Terreiro de
Candomblé, localizado também no Engenho Velho da Federação. Para esta
parteira, o espaço do terreiro se constitui uma extensão de sua própria casa,
haja vista, o sentimento de pertencimento contido em suas palavras: “Lá no
meu Candomblé era candomblé de velhos, a mais moderna era eu e mais
outra...”. A este respeito D“ Alessio (1998) escreve: “O sujeito que pode se
auto reconhecer em lugares familiares que o situem, preserva seu eu, vale
dizer, protege-se da sensação de isolamento, de anonimato, de abandono,
construindo seu próprio aconchego.”7
Na verdade, dizer que mora atrás do Terreiro do Cobre dá a essa parteira um
sentimento de permanência, de continuidades, como se o tempo não tivesse
passado. É o espaço onde sua memória atua, é o elemento que a leva de
volta a um tempo passado formador de sua identidade. Nele suas histórias
tornam-se vivas.
7 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. In: Revista do Programa de Estudos Pós- Graduados em História. São Paulo: PUC, 1988, p. 37-38.
163
Para o povo de santo os terreiros são espaços de restituição de axé, local
onde se estabelece relações com o orixá, onde se fortalecem para enfrentar
as mazelas do dia a dia, são locais carregados de significação. Atualmente,
ainda que marginalizado por uma parcela da população, tem se configurado
como símbolo de resgate de identidade para a população negra. O que
outrora foi considerada uma religião marginal, cultuada de forma camuflada
e escondida, hoje, no caso da parteira Lindaura, é lugar de memória, pois a
remete a um passado vivido. O espaço do terreiro para esta parteira constitui-
se em território de identidade. A este respeito Sodré, tece as seguintes
considerações:
A ideia de território coloca de fato a questão da identidade, por referir-se
à demarcação de um espaço na diferenciação com outros. Conhecer a
exclusividade ou a pertença das ações relativas a um determinado grupo
implica também localizá-lo territorialmente. É o território que, à maneira do
Raumheideggeriano, traça limites, especifica o lugar e cria características que
irão dar corpo à ação do sujeito.8
Deste modo, podemos inferir que a vivência desta parteira dentro do Terreiro
imprimiu marcas no seu modo de ser e estar no mundo, influenciando a leitura
que faz de sua atividade como parteira. Ao ser questionada como aprendeu
a fazer parto, responde: “Foi Iansã, se eu nunca vi pessoa nenhuma parir!”.
Ela afirma ser de Iansã o que nos leva a perguntar: dona Lindaura estava
incorporada na hora que fez o parto? Ela afirma que não, pois Iansã nunca
a “pegou”. No entanto, sua vivência no candomblé, a relação de intimidade
e confiança que estabelece com seu orixá faz com que ela acredite na sua
8 BRAGA,Julio. Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 1995, p.21
164
presença na hora do parto.
O sentido que imprime a sua vivência religiosa, a fé que possui em seu Orixá
e a forma como vivencia a religião faz com que seja possível a presença do
orixá em sua vida, orientando, aconselhando, ajudando, nas horas difíceis
e também castigando, experiência partilhada pelos adeptos da religião do
Candomblé. A narrativa da parteira Lindaura nos revela um sentimento
religioso que liga santos e orixás. Muitas vezes estas divindades participam
de momentos importantes da comunidade, como no caso desta parteira
onde Nanã se torna sua comadre após batizar seu filho. Fatos como estes
são muito freqüentes dentro dos terreiros de candomblés, cuja presença
dos Orixás, caboclos, erês se torna comum quando algum acontecimento
extraordinário abala a vida dos seus membros. Este acontecimento pode ser
de cunho religioso ou não. As divindades se fazem presente para aconselhar,
medicar, orientar, punir, testemunhando um fazer religioso que interage o
tempo todo com os acontecimentos da vida.
Outra entrevistada foi dona Cotinha ou Cota como é conhecida pelos
moradores de Pernambués. Dona Cotinha é casada e mãe de catorze filhos,
todos aparados pela sua mãe. Logo no início de nossa conversa, ao indagar
o seu nome, se mostrou reticente na presença do gravador, afirmando: “Não
vou dizer meu nome não, depois dá algum problema, está aí gravado, me
chame Cotinha, ou Cota todo mundo aqui me conhece como Cotinha”.9
Na tradição Angola, o nome Cota se refere à mãe – pequena, Cotasororó. É
9 LOPES, Nei. Kitabu: O livro do saber e do espírito negro-africano. Rio de Janeiro: Editora Senac. Rio, 2005, p.242.
165
a segunda pessoa da mãe de santo, aquela que á ajuda na administração do
terreiro. Também conhecida como Iyakekerê nos Candomblés de tradição
Ketu. Encontramos na obra de Carneiro (1991) a figura da mãe-pequena como
sendo a substituta imediata da mãe de santo, sua sucessora em ocasiões
eventuais. Sua função está relacionada ao contato mais direto com as filhas
e iniciados, auxiliando a mãe de - santo nas cerimônias religiosas. É chamada
de mãe pelas filhas que também lhe toma a benção e lhe fazem reverência.10
Provavelmente a preferência desta parteira em ser identificada pelo nome
Cota esteja relacionada a este cargo, haja vista, na entrevista ao ser inquirida
sobre a sua ligação com o Candomblé ou com alguma religião afro-brasileira
ser de silêncio. Sendo este um elemento de grande significação para as
religiões afro-brasileira. O segredo ao lado do silêncio constitui em prática
institucionalizada dentro dos terreiros de candomblés e dinamiza as relações
do grupo, configura-se como elemento de comunicação do processo iniciático,
compondo o conjunto ritualístico pelos quais os ensinamentos secretos são
transmitidos.11
Este aspecto esteve presente a todo o momento no encontro com as
parteiras. Aquilo que constituía segredo era ocultado em forma de silêncio,
simplesmente as parteiras não respondiam ou então resmungavam
balançando a cabeça, o que segundo a Iyalorixá do Terreiro Vintém de Prata,
constitui uma linguagem nos Terreiros.
O nome na vida do indivíduo representa sua identidade, uma marca. Ele
10 Carneiro, Edson. Op.Cit.p.112
11 SODRÉ Muniz. O Terreiro e a Cidade. A forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 23.
166
fala do indivíduo, o nome carrega uma história que geralmente faz parte da
história da família, traz uma ancestralidade, uma continuidade. Nos terreiros
de Candomblé o nome tem uma função sagrada e social. No período de
iniciação uma das cerimônias é a festa do nome de Yaô. Nela é anunciado
publicamente o pertencimento da pessoa à comunidade através da feitura
do seu orixá. “Desta forma, leva-se ao conhecimento de todos que “a família
de santo” conta, doravante, com um novo membro”12.
Bastide, ao descrever a cerimônia do “dom do nome”, em africano Orunkó,
o associa ao ato de nascimento. “A ou as iaô entram, o corpo curvado em
ângulo reto, os braços pendentes para frente, as mãos quase tocando a
terra, exatamente como crianças que acabam de nascer e que não tem força
para assumir a posição vertical”13. Nesta associação podemos dizer que a
mãe - de - santo, tal qual a parteira, tem o dom de dar a vida.
Sendo assim, acredito que ao optar ser chamada de Cota, ela o faz pelo
significado que ele possui em sua vida. Cota representa para ela um
sentimento de pertencimento a uma comunidade. Quiçá uma comunidade
de Axé, pois “a repetição de nomes próprios em diferentes gerações, numa
mesma família, encontra-se em muitas sociedades e simboliza a continuidade
da família que recria no presente o seu passado”.14
Ao contar como começou a fazer parto, dona Val relata: - meu primeiro parto
12 SIQUEIRA, Maria de Lourdes. AgoAgoLonan – Mitos, Ritos e Organização em Terreiros de Candomblés da Bahia. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1998, p. 131
13 BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. 2a ed. São Paulo: Ed. Nacional; [ Brasília ] : INL, 1978.
14 COSTA, Ana Benardda. As crenças, os nomes e as terras: Dinâmicas identitárias de famílias na periferia de Maputo. http: // ceas.Iscte.pt/etnográfica/docs/vol 8, pp 335-354. Acessado em 05 de dezembro de 2015.
167
foi de urgência, vieram me chamar aqui, eu disse eu não sou parteira, não,
minha mãe era, como vi já tinha feito, acho que aprendi vendo minha mãe
fazer, era nova, minha mãe me chamava para acompanhar... via minha mãe
cortando o umbigo.
A narrativa traz para a reflexão um aspecto muito importante para a nossa
sociedade, o aprendizado pelo exemplo, pela observação, pelo testemunho.
Aprender com um mais velho. As famílias ao se responsabilizarem pela
transmissão do conhecimento estavam formando, educando, mas, além
disso, estavam garantindo a continuidade de um saber às gerações futuras.
A mãe de dona Cotinha não a levava só para acompanhá-la na viagem, ela
queria garantir a continuidade deste saber. Esta forma de transmissão de
conhecimento está presente na tradição oral africana:
A educação tradicional começa, em verdade, no seio de cada família, onde
o pai, a mãe ou as pessoas mais idosas são ao mesmo tempo mestres e
educadores e constituem a primeira célula dos tradicionalistas. São eles que
ministram as primeiras lições da vida, não somente através da experiência,
mas também por meio de histórias, fábulas, lendas, máximas, adágios, etc.15
De certo, se os terreiros de Candomblés constituem o espaço onde os
negros historicamente têm cultivado o seu sentimento de pertença com o
continente africano, as trajetórias de vida das parteiras na Bahia, a exemplo
desta parteira constituem exemplo vivo das várias Áfricas que coexistem no
meio de nós.
“Minha vó era angolana do tempo da pedra”. Esta frase marcou a entrevista
15 Bâ, Hampâté A. A tradição Viva. In: História Geral da África – Metodologia e pré- História da África. São Paulo: Ática; Paris: UNESCO, 1982, p. 194.
168
com dona Iara, parteira de 47 anos, moradora do bairro de Mussurunga.
Ao narrar sua história, lembra-se da avó com quem aprendeu a fazer parto,
acompanhando-a em seus atendimentos. Na família só ela e a prima Solange
aprenderam a arte de partejar. Esta prima hoje tem um Terreiro no Alto das
Pombas, conhecido bairro de Salvador.
“Minha vó era angolana do tempo da pedra” traduz o sentimento desta parteira
no que diz respeito à sua noção de pertencimento a uma ancestralidade
africana. Fica a indagação: essa descendência diz respeito ao local de origem
de nascimento da avó de dona Iara ou está vinculada a uma das nações de
candomblé aqui na Bahia, o candomblé de angola? Optamos pela primeira
alternativa, haja vista, os filhos de santo dos candomblés da nação Angola
se autodenominarem “angoleiros” e não angolanos como é o caso da avó
desta parteira, conforme informação oral do professor Vilson Caetano. Outra
opção para entendermos o significado desta expressão é compreendê-la
no sentido de determinar a antiguidade da vó desta parteira em relação ao
tempo em que ela viveu no terreiro de Candomblé.
Dona Iara nasceu em Praia Grande, foi iniciada no Candomblé ainda
pequena, é filha de Ogum com Iansã. Afirma que passou parte de sua vida na
Federação, perto do Terreiro do Gantois. Hoje ela é doméstica e ambulante,
mas aprendeu a fazer parto desde pequena. Será que a vivência de dona Iara
junto a um terreiro de Candomblé, o Gantois, influenciou no seu aprendizado
de fazer parto? A mãe de dona Iara e sua avó também frequentavam o
terreiro? Eram iniciadas na religião do Candomblé? Na sua entrevista, dona
Iara não deixou isso claro.
169
Ao lado do papel de mãe, esposa, tia e madrinha de muitas crianças na
comunidade, esta parteira também vende cerveja na praia e nas festas de largo
de Salvador, faz faxina, conta que já realizou mais de 50 partos nos bairros
da Boca do Rio, Fazenda Coutos, Bairro da Paz e Mussurunga. Sua história
assemelha-se a de muitas outras mulheres que no passado exerceram a arte
de partejar. Pinto (2002) ao retratar as histórias de mulheres parteiras na
região do Tocantins, já chama atenção para os vários papéis desempenhados
por estas mulheres.
Desde a formação dos antigos quilombos na região, parteiras, curandeiras
e benzedeiras vêm desempenhando múltiplos papéis, como chefes de
famílias, organizadoras e condutoras de rituais religiosos, líderes fundadoras
de povoados. (...) Além de cuidar dos filhos, cozinhar, varrer, lavar vasilhas e
roupas.16
Ao narrar sua história, a lembrança da mãe e da avó, parteiras, toma conta
de dona Iara. Esta lembrança está sempre associada a uma transmissão
de conhecimento, a um saber baseado nos anos de experiência que estas
passaram, exercendo a atividade de parteiras, saber acumulado, saber
ancestral, saber de velho. Nas Comunidades – Terreiro este saber/poder se
relaciona à figura das mães de santo.
Concordo com Joaquim (2001) que ao se referi às mães-de-santo revela que
as mesma possuem um papel fundamental na distribuição da força vital, sua
palavra se transforma em ação pelo axé que carrega. Mãe de todos os orixás,
pois possui o poder de trazê-lo à terra. Sua liderança e carisma se assentam
no conhecimento sagrado que possui e na preservação do axé que garante a
16 PINTO, Benedita Celeste de Morais. Vivências Cotidianas de parteiras e “ experientes” do Tocantins. Revista Estudos Feministas, no 2, 2002 p. 442.
170
continuidade da vida nos terreiros.17
As narrativas das parteiras sobre suas experiências religiosas nos informam
a respeito de uma tradição que mescla símbolos das expressões religiosas
indígenas, africanas e também do catolicismo. Esta forma de se experimentar
a religião predominou na sociedade brasileira desde a colonização. No caso
das parteiras esta experiência pode ser entendida tomando como referência
as trajetórias das mulheres negras africanas e afro-brasileiras, no que se
refere à guarda e transmissão das tradições religiosas e culturais. Para
Theodoro (1996), “o papel das mulheres nas religiões negras e nos cultos
afro-americanos se relaciona à guarda e transmissão das tradições religiosas
e culturais, sendo o elo que liga o sagrado à vida comunitária”. 18
Nas trajetórias de vida das parteiras analisamos ser estas mulheres herdeiras
de um saber/fazer que está a serviço de uma coletividade. Saber/fazer que
testemunha a presença do divino em suas vidas, auxiliando na hora do parto.
- “Mais olhe a pessoa que é parteira eu acho que tem um guia divino que
a ilumina, pois na hora de um parto, sempre a pessoa sente um tipo de
incorporação”. (dona Miúda)
- “Foi Iansã, se eu ainda não vi mulher nenhuma parir.” (dona Lindaura)
- “Aprendi pela consciência de Deus. Foi Deus que ensinou, pois não tenho
leitura. Quando dá a hora é que Deus mostra.” (dona Rosalinda)
17 JOAQUIM, Maria Salete. O papel da Liderança religiosa feminina na construção da identidade negra. Rio de Janeiro: Pallas: São Paulo: Educ, 2001, pp 103-104.
18 THEODORO, Helena. Mito e espiritualidade: Mulheres negras. Rio de Janeiro: Pallas editora.1996, p. 59.
171
As falas acima testemunham a presença de um ser superior denominado
de “guia divino”, “orixá”, Deus, cuja presença na hora do parto as parteiras
atribuem o sucesso de sua realização. Para elas, é indispensável ter fé para
que o parto aconteça. Consideram-se instrumentos pela qual a força divina se
realiza e só desta forma encontram explicações para o saber que possuem.
Suas narrativas dizem respeito à forma como as suas vivências religiosas são
construídas. A crença de que Deus, Caboclos e Guias revelam-se no cotidiano
de suas vidas partilhando de angústias, dúvidas e também das vitórias. É na
vida diária que experimentam e recebem o poder divino. Vida e religião se
complementam. Aliás, este é um dos elementos da cosmovisão africana que
se encontra presente nas histórias de vida destas mulheres.
Hama e Ki-zerbo (1982) ao se referir ao papel das mulheres nas sociedades
africanas, analisa o seguinte aspecto: “Apesar de sofrer uma segregação
aparente nas reuniões públicas todos sabem na África que a mulher está
onipresente na evolução. A mulher é a vida. É também a promessa de
expansão da vida”.19
As cantigas, os textos míticos, as lendas são discursos utilizados pelo africano
como formas de comunicação e ensino. Neste sentido recorreremos à
mitologia para apreender o lugar dispensado à mulher nas sociedades
africanas:
Oxum faz as mulheres estéreis em represália aos homensLogo que o mundo foi criado, Todos os orixás vieram para a terra,E começaram a tomar decisões e dividir encargos entre eles,
19 Hamma, Babou. Lugar da História na sociedade africana. In: KI-ZERBO, J. História Geral da Àfrica I – Metodologia e pré-história da África. Editor. 2a ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010, pp, 30-31.
172
Em reuniões nos quais somente os homens podiam participar.Oxum não se conformava com essa situação. Ressentida pela exclusão, ela vingou-se dos orixás masculinos. Condenou todas as mulheres à esterilidade.De sorte que qualquer iniciativa masculina No sentido da fertilidade era fadada ao fracasso. Por isso, os homens foram consultar Olodumare. Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer Sem filhos para criar nem herdeiros para quem deixar suas posses, Sem novos braços para criar novas riquezas e fazer as guerras E sem descendentes para não deixar morrer suas memórias. Olodumare soube, então, que Oxum fora excluída das reuniões. Ele aconselhou os orixás a convidá-la, e às outras mulheres, Pois sem Oxum e seu poder sobre a fecundidade Nada poderia ir adiante Os orixás seguíamos sábios conselhos de Olodumare.E assim suas iniciativas voltaram a ter sucesso. As mulheres tornaram a gerar filhos.E a vida na terra prosperou.20
Criação, esterilidade, fertilidade, fecundidade, descendência, prosperidade,
são elementos presentes na história acima e nos revela justamente como
na cosmovisão africana os orixás partilham de história e sentimentos que
os ligam às pessoas na terra. Indica também a presença das mulheres na
dinâmica da criação e da continuidade da vida sobre a terra. Ou seja, o papel
das parteiras pode ser entendido como continuidade do papel desempenhado
por Oxum. O papel de propiciar a vida, a criação, a continuidade das famílias,
entre outros aspectos.
São várias as ligações que unem as parteiras a este Orixá, no entanto, cabe
aqui salientar a sua ligação com o ato de gerar a vida, através do poder que
detém sobre as águas, “sem a qual a vida na terra não seria possível”. Trata-
20 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das letras, 2001 p.345.
173
se de um conhecimento transmitido de geração para geração, testemunhas
de um poder que cria vida que se envolve nas relações das parteiras com
a comunidade . Assim, tanto em Salvador, como em Lauro de Freitas, a
presença das parteiras mostra-se necessária e nos revela uma especificidade
do atendimento pré-natal, no que diz respeito ao atendimento de urgência,
ao acompanhamento diário, os quais os serviços públicos de saúde não dão
conta, conforme noticiado amplamente:
“É muito difícil levar uma mulher daqui para as maternidades. Quando dá, a
gente pede ajuda aos policiais. Mas quando a viatura chega, a mulher pode já
estar em trabalho de parto. Outras vezes não tem vaga na maternidade, ou
então, não tem o dinheiro do transporte para voltar”.21
Testemunho publicado no jornal Correio da Bahia, de uma moradora do
Bairro da Paz em Salvador, localizado na Avenida Paralela, mostra como para
uma parcela da população a existência das parteiras não significa uma etapa
do passado de nossa história, indica sim, a continuidade de um saber, que
simboliza vida e esperança para muitas mulheres na hora de dar a luz, mesmo
com o desenvolvimento dos serviços de saúde com suas maternidades e
posto de atendimento.
O saber das mulheres parteiras tem função social, não está desconectado da
vida, tem uma utilidade prática. É um saber a serviço de uma coletividade.
Os conhecimentos foram adquiridos na vida cotidiana e estão baseados
nas vivências e práticas, imersos em valores, ideias, crenças, intimamente
vinculados aos ensinamentos transmitidos por suas ancestrais.
21 Jornal Correio da Bahia.
174
Vivência religiosa e prática de cura de mulheres parteiras
“Tendo fé minha filha, água cura tudo”. Estas palavras foram pronunciadas
pela parteira Lindaura do Engenho Velho da Federação ao ser questionada
sobre a utilização de remédio na hora do parto. O conteúdo desta afirmativa
mostra que as práticas de cura utilizadas pelas parteiras são frutos de um
tipo de relação com a vida, com o universo, um construto cultural, nos quais
os elementos da natureza como água, plantas e a terra se constituem fonte
de reposição de energia vital, capazes de proporcionar a cura de algum
mal. Síntese de várias concepções de mundo, estas práticas conseguiram se
manter viva, pelos significados construídos pelas pessoas que as utilizam,
como também, pela sua eficácia na cura das enfermidades cotidianas.
Encontrando aceitação até os dias atuais por dialogar com aspecto da vida que
mistura medicina e religião, onde a fé se constitui em elemento primordial,
como também, “por ter conseguido sobreviver em uma cidade que desde
o século XIX têm se ocupado em varrer das ruas suas africanidades”. Para
Nascimento (2007) foi a capacidade dos indivíduos de articular e incorporar
as suas práticas populares de cura ao mundo moderno que garantiu a sua
sobrevivência.22
Os processos de cura realizados pelas parteiras em suas comunidades
são resultados de uma tradução das práticas vivenciadas pelas suas mais
velhas. Desta forma, pela tradução a tradição se mantém e se renova. Haja
vista, muitos aspectos utilizados como palavras, gestos, estarem encerradas
em suas memórias, ou até mesmo algum tipo de ervas, plantas não mais
22 NASCIMENTO, Vilma Maria. Sagrado/Profano no trato do corpo e da saúde na “metrópole negra”: Salvador nos anos 1950/1970. Tese de doutorado, história, PUC/SP, 2007,p.87.
175
existirem, sendo necessária a sua substituição por uma equivalente.
Neste sentido, as parteiras que encontrei nos bairros de Salvador e Lauro
de Freitas, ao tempo em que são símbolos de resistência e guardiãs de uma
prática cultural que compreendem os males do corpo e do espírito como
fruto de um mesmo processo, são também protagonistas de mudanças que
se processam no fazer cotidiano. As experiências religiosas, apreendidas
junto aos seus antepassados, serviam e ainda servem para amenizar e até
mesmo curar estas duas dimensões: corpo e espírito.
As parteiras se constituíam em alternativas para as mulheres pobres. Estas,
ao procurarem os seus serviços não só esperavam cura para os males do
corpo, como também desejavam ouvir conselhos para os cuidados com os
filhos e trato com o marido, receitas caseiras e acima de tudo graças para
as suas vidas. Neste particular coube à família a preservação e manutenção
de um conjunto de valores, crenças, códigos cujo objetivo era articular as
formas culturais presentes em suas memórias de um passado africano, com
a nova realidade que se apresentava em terras brasileiras. Nos remetendo às
parteiras, a família tem um papel primordial para a perpetuação e transmissão
de suas práticas de cura. É junto aos mais velhos que se aprende a usar as
plantas, assim como, as receitas e orações.
As parteiras entrevistadas sempre se reportam à família para legitimar o
seu aprendizado. Entre elas, talvez a memória de dona Venância seja amais
enfática:
-“Olhe essas coisas aí eu ouvi os mais velhos falar no interior, né. Eu sempre
176
fui curiosa... quando eu nasci foi com parteira e eu ouvia muito minha vó
falar né, conversar, comentar aí eu aprendi assim.”
Esta parteira tem 51 anos e mora em Salvador há vinte um anos. Nasceu “no
dividimento de Bahia com Sergipe”. Antes de chegar a Salvador, viveu em
Aracaju, perto de Mangue Seco. Para dona Venância a alternativa encontrada
para driblar as dificuldades diárias e garantir a sua sobrevivência e a dos
seus filhos, foi trabalhar como doméstica, até juntar dinheiro e conseguir seu
próprio negócio. O fato de “aparar crianças” ajudou a se tornar conhecida nos
lugares em que morava, o seu conhecimento no cuidado com as crianças,
facilitava na hora de buscar os serviços nas residências.
Ouvir o mais velho falar, conversar, comentar, ser curiosa são posturas
utilizadas por dona Venância para adquirir seu aprendizado. A continuidade
deste tipo de conduta será a garantia de que no momento certo algum destes
mais velhos lhe iniciará no primeiro contato com o parto.
Na trajetória de vida das parteiras um dos aspectos evidenciados foi
o conhecimento de práticas de cura utilizadas para sanar ou aliviar as
dores das mulheres na hora do parto. Essas práticas são permanências
de um saber ancestral herdadas de suas mães, tias, avós e também por
outras parteiras. Consistem em orações, rezas, massagens e uso de
plantas medicinais. No entanto as estratégias de curas não se limitavam
a estas citadas pelas parteiras entrevistadas. Santos (2001) registra outros
procedimentos utilizados pelas parteiras e rezadeiras da cidade de Santo
Antonio de Jesus, tais como: banhos de folhas, defumadores, ebós. Estas
práticas se relacionam diretamente com suas vivências religiosas, tirando
177
daí a certeza de que o tratamento será eficaz.23
Por outro lado, o trabalho das parteiras não estava só na arte de ajudar as
mulheres a parir, não se resume apenas àquelas relacionadas diretamente ao
parto e sim de todo o tipo de doenças que se relacionava ao corpo feminino.
Este aspecto é discutido por Del Priore no seu estudo sobre o corpo feminino
na colônia, onde nos informa sobre a presença das mulheres para resolver
questões relativas às doenças das mulheres, assim como, os processos de
cura utilizados por elas:
Desprovidas dos recursos da medicina para combater as doenças cotidiana, as mulheres recorriam a curas informais, perpetrando assim uma subversão: em vez dos remédios, eram elas que, por meio de fórmulas gestuais e orais ancestrais, resgatavam a saúde. A concepção da doença como fruto de uma ação sobrenatural e a visão mágica do corpo as introduzia numa imensa constelação de saberes sobre a utilização de plantas, minerais e animais, com
as quais fabricavam remédios caseiros que serviam aos cuidados terapêuticos
que administravam.
Na transcrição acima, as mulheres cumprem o papel de transgressoras,
através deste ato elas dão continuidade a uma forma de ser, crer e fazer
que se constituiu em alternativa de cura numa sociedade que padecia. São
estes cabedais de saberes presentes nas histórias de vidas das mulheres
de nossas comunidades, que são acionados pelas parteiras. Assim sendo,
quando perguntamos sobre suas práticas de cura, a parteira Venância faz o
seguinte relato:
23 SANTOS, Denilson Lessa. Rezadeiras, Benzedeiras e Curandeiros. Uma história das práticas culturais/medicinais/religiosas populares na terra de Santo Antônio – Recôncavo Sul – Bahia, Monografia, história, UNEB, 2001, p. 77.
178
- “Erva cidreira, se for para ter a dor aumenta, se não a dor passa logo e não
tem mais. Erva cidreira dá para beber e lavar a barriga”.
A utilização da erva cidreira é uma prática muito comum na sociedade.
Geralmente é utilizada como calmante ou no combate a insônia. Nos terreiros
de Candomblé possui função religiosa. Dona Gersonita (73 anos), Yabassé do
Terreiro Vintém de Prata, localizado na Estrada Velha do Aeroporto, Salvador-BA,
viveu quase vinte sete anos na Umbanda, já tem sete anos no candomblé. Ao
falar do uso da erva cidreira revela:
- “Ela pode ser usada como calmante ou para cólicas intestinais. No terreiro
nós utilizamos também, como chá em algumas obrigações”.
Ser yabassé de um terreiro de Candomblé, dentro das hierarquias dos cargos
nos terreiros, é cuidar da comida dos santos, dar de comer ao orixá. Ser
a responsável pela cozinha nos terreiros. Segundo Vivaldo da Costa Lima,
“é a responsável pela cozinha, isto é, desde o recebimento dos bichos após
o sacrifício, até a entrega das comidas prontas.” O autor explica também
a origem do termo: “ o termo se origina do ioruba Iyagba-se, “ velha que
cozinha” ,indicando ser uma dos critérios para assumir esta função/cargo, a
experiência, a maturidade, a idade de santo.24
A função que dona Gersonita ocupa neste espaço religioso permite que ela se
aproprie da utilização das ervas e plantas nos rituais sagrados do candomblé.
“O algodão crioulo... se for para nascer, nasce logo, se não for também...”
24 LIMA. Vivaldo da Costa. A família de Santo nos Candomblés da Bahia: um estudo de relações intragrupais. 2a ed. Salvador: Corrupio, 2003, p. 85
179
(D. Venância). Várias são as propriedades medicinais de algodão, dentre
elas podemos citar antidisentérica, antiinflamatória, antivirótica, bactericida,
emoliente e hemostática, no entanto sua utilização é restrita entre a
população pela falta de conhecimento destas propriedades. O algodão pode
ser usado para a expulsão do catarro, nas desinterias, diarréia, dismenorréia,
dores musculares, ferida, furúnculo, hemorragia, inchaço, infecções renais,
inflamação, menorragia, queimaduras, síndrome pré-menstrual, trabalho
de parto. As plantas medicinais geralmente são usadas em chás, banhos
comuns ou banhos de assento.25
Assim, não podemos ler a utilização dos procedimentos de cura pelas
parteiras apenas como falta de recursos ou ausência de uma medicina
oficial. Estas mulheres ao acreditarem que não há separação entre o corpo
e espírito, também creem que homem e natureza estão interligados, desta
forma, vão encontrar em seu universo cultural o saber necessário para a
utilização destas plantas. Aliás, trata-se de uma tradição já assinalada por Del
Priore: “As mulheres e suas doenças moviam-se num território de saberes
transmitidos oralmente, e o mundo vegetal estava cheio de signos das
práticas que as ligavam ao quintal, à horta, as plantas”.26 Nos dias atuais, os
espaços do quintal, da horta e das plantas estão cada vez mais escassos, pois
quase já não existem as casas de outrora com seus quintais. Em seus lugares
estão os prédios e edifícios. Alguns terreiros de candomblés,a exemplo
de Terreiro Vintém de Prata, localizado na Estrada Velha do Aeroporto,
25 CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. As plantas na medicina popular e nos rituais afro- brasileiros.Apresentado no II Seminário Internacional de Relatos de Pesquisa em Folclore e V Encontro com o Folclore e cultura popular. Unicamp/Unesco. WWW.aguaforte.com/herbarium/plantas.html. Acesso em 14.07.2007.
26 PRIORE, Mary Del. Op. Cit. O. 94
180
constituem espaços de resistências onde plantas com funções medicinais
são plantadas e conservadas para fins religiosos.
O espaço “mato” cobre quase dois terços do “terreiro”. É cortado por arvores,
arbustos e toda a sorte de ervas e constitui um reservatório natural onde são
recolhidos os ingredientes vegetais indispensáveis a toda a prática litúrgica.
É um espaço perigoso, muito pouco frequentado pela população urbana do
“terreiro”. Os sacerdotes de Ósanyin, órìsa patrono da vegetação e, em geral,
os sacerdotes pertencentes ao grupo dos órìsa caçadores – ògún e ósósi –
realizam os ritos que devem ser executados no “mato”. De um modo geral o
“mato” é sagrado.27
Conforme Santos, O espaço do mato é sagrado porque contém vida, energia,
axé, Orixá. Portanto sagrado também há de ser os procedimentos medicinais
que fazem uso destes vegetais, não por pertencer a esta ou aquela religião
e sim por acreditar no poder de cura que possuem. Para dona Venância
inclusive,
- “A mulher também tá gestante e ela temer perder e não quiser perder ela
pode tomar um chá de milho alpiste, ela toma, segura o bebê não perde, isso
eu tenho experiência com a minha filha, eu já dei a essa”.
O alpiste ou milho alpiste como é conhecido popularmente, segundo
a Iyabassê do Terreiro Vintém de Prata também é usado para quem tem
problema de retenção de urina, hipertensão. Para fins religiosos pode ser
usado como descarrego, limpeza.
Candomblés e Umbanda são as religiões com maior incidência no uso
de plantas nas cerimônias religiosas e nos rituais de cura. Estas plantas, 27 SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Padê. Asesé e oculto Égun na Bahia. Traduzido pela Universidade Federal da Bahia. Petrópolis, Vozes, 1986, p 34.
181
conhecidas na medicina popular e tradicional por estarem inseridas no uso
cotidiano de uma grande parcela da população, possuem uma importância
fundamental nos rituais de candomblé, sendo utilizadas nos banhos,
bebidas, remédios, incensos, cachimbos, charutos.28 Nascimento (1999), ao
estudar o cotidiano dos vendedores ambulantes em Salvador, analisando a
apropriação pelos ervanários dos produtos utilizados nas cerimônias e rituais
do candomblé, nos informa sobre toda uma prática cultural desenvolvida
pela sociedade baiana, dos mais variados níveis sociais, com distintas opções
religiosas, no que se refere ao uso de práticas populares de cura próprias dos
terreiros de candomblés. Revela ainda como estas práticas de cura fizeram
emergir em Salvador, todo um comércio de itens relacionados com esta
religião, constituindo-se em um comércio específico dentro da cidade, com
toda uma organização montada e redes de solidariedades construídas.29
Segundo Serra, na cosmologia do candomblé nagô todas as plantas são
sagradas, pois todas possuem axé, no entanto algumas são consideradas
especialmente sagradas. Esta distinção se faz devido ao seu “especial valor e
importância”, definida pelo uso em rituais iniciáticos. Estas plantas formam
um grupo simbólico nuclear com presença e característica dominante na
liturgia iniciática.30
A parteira Rosalinda, moradora do bairro de Itinga, além de realizar partos,
trabalhou muito tempo na feira, vendendo folhas e ervas, desta forma
28 CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. Op. Cit.
29 NASCIMENTO. Vilma do. Op. Cit.
30 SERRA, Ordep..et al. O Mundo das folhas. A Etnofarmacologia dos Terreiros Nagô-baianos. Salvador, Ba: CEAO, 1996:143
182
adquiriu muitos conhecimentos. Conhecedora das propriedades medicinais
existentes nas folhas e o seu uso ritual, pode-se mensurar que a Ialorixá do
terreiro frequentado por esta parteira, resolveu mantê-la por perto, a fim de
aprender com ela o conhecimento necessário ao desempenho de sua função.
Por outro lado, não podemos esquecer que uma das cerimônias na religião
dos orixás liga-se diretamente ao uso das folhas dentro do candomblé, a
Sassanhe. Significa cantar para Ossain, ou “cantar a folha”. Sendo assim, a
presença de dona Rosalinda no Candomblé de dona Leonor tinha uma ligação
direta com a realização deste ritual. As rezas e orações, ao lado das plantas,
figuram com possibilidades de cura. Este conhecimento é passado por outra
parteira e a fé é o parâmetro para que o parto aconteça com tranquilidade.
A este respeito, Dona Miúda, parteira do bairro de Itinga revela que na hora do
parto coloca uma bolsinha (tipo patuá) no pescoço da gestante, com a oração
de N. Sª. do Montesserrat. Os patuás ou bolsas de mandingas como eram
chamados no período colonial, segundo Laura de Souza e Melo (1986), foi a
forma mais tipicamente colonial de feitiçaria no Brasil. O seu uso atravessava
todas as camadas sociais, sendo o resultado de hábitos europeus, africanos
e indígenas. O seu uso foi registrado nos finais do séc. XVII se generalizando
no séc. XVIII.
Na oração a Nossa Senhora de Monte Serrat encontramos toda uma devoção
religiosa à figura da Virgem Maria. Dona Miúda se denominava evangélica e sua
opção religiosa não era impedimento quanto a necessidade invocar os santos
e rezar uma oração na hora de realizar um parto, muito embora Bessa (1997)
compreenda que: “As parteiras protestantes não acreditam em santos nem
183
em orações dessa natureza e, sendo assim, não as utilizam em sua prática” .
Porém, além da oração de Nossa Senhora de Monte Serrat, várias outras eram
utilizadas pelas parteiras durante o parto. Bessa fez o registro das seguintes:
Oração de São Bartolomeu, Rosários apressado, Salve Rainha, Oração para
ajudar no desprendimento da placenta, para estancar hemorragia.31
As orações figuram ao lado de outras práticas de cura utilizadas por africanos,
índios e mestiços durante todo o período colonial. Através das orações
cuidavam-se não só de males físicos como também os males do coração.
SOUZA (1986) narra os momentos em que eram empregadas as orações:
Para fins amorosos utilizava-se a oração de São Cipriano: Meu glorioso São
Cirpiano, foste bispo e arcebispo, pregador e confessor do meu Senhor Jesus
Cristo pela Vossa Santidade, e pela Vossa virgindade, vos peco São Cipriano
que me tragais fulano de rastos, e chorando...32
O significado do emprego das orações pelas parteiras pode ser compreendido
pelo valor dado à palavra proferida dentro da comunidade em que estas
mulheres estão inseridas. Nestas comunidades é comum procurar uma
benzedeira que em muitos casos também são parteiras, para curar alguma
enfermidade. São geralmente idosas, iniciadas por algum mais velho no
poder de curar através das palavras. Também neste momento, a fé é um
ingrediente fundamental. Através da fé, as palavras dão vida, como também
tira. Curam como também matam, por que ela é divina.
O interessante é que sendo do candomblé, na hora de fazer o parto
31 BESSA, Lucineide Frota. Condições de Trabalho de Parteiras Tradicionais: Algumas características no contexto domiciliar rural. Dissertação, mestrado, UFBA. 1997, p. 148-149.
32 SOUZA, Laura de Melo. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia de Letras, 1986, p. 232.
184
donaValtíria, filha de Omolu, moradora da Rua do Povo em Lauro de Freitas,
diz invocar São Raimundo Nonato. “... eu chamava por São Raimundo e Nossa
Senhora do Parto, São Raimundo Nonato é parteiro”.
Assim, como a parteira Miúda, que mesmo sendo evangélica afirmou que
sentia uma incorporação na hora de realizar o parto, dona Val, sendo iniciada
em um terreiro de candomblé, acionou um santo católico, o que revela que
a experiência de fé das parteiras, ultrapassa os limites das denominações
religiosas.
Segundo a tradição católica São Raimundo Nonato foi extraído do corpo
da mãe morta no parto. Pela sua difícil vinda ao mundo, é invocado como
patrono e protetor das parturientes e das parteiras. “São Raimundo Nonato
socorrei a todas as parturientes e os Recém-nascidos pela graça e amor de
Deus”. Já Nossa Senhora do Parto tem sua devoção ligada a divergências
teológicas quanto a sua maternidade divina, mesmo assim é cultuada no
Brasil no dia 08 de novembro.
ORAÇÃO A NOSSA SENHORA DO PARTO
Virgem Santíssima, Virgem antes do parto, Virgem no parto, Virgem depois do
parto, tal foi a obra do Espírito Santo, que gerou em vosso ventre imaculado o
Esplendor do mundo, vosso adorado e precioso Filho Jesus Cristo, infinita foi a
vossa alegria em conduzir em vossos braços esse penhor de eterna duração,
essa fonte de riqueza que vos fez subir ainda mais a esse trono, que tanto vos
glorificou como Rainha dos anjos, e incomparáveis mágoas, sobretudo quando
vistes crucificado o vosso adorado Filho, nessa hora que tudo para vós era
aflições, nunca achastes quem vos consolastes senão a vossa ternura de Mãe
185
Santíssima; a todo momento precisam os pecadores de vosso amor e bondade,
mas nunca como nesta hora, dando-me um bom sucesso e a todos quanto
implorarem o vosso Santo Nome.Amém.
O que vem ser uma oração, senão uma evocação, uma palavra bem dita.
Em algumas sociedades a palavra é origem e princípio de tudo. No livro
do gênesis é através da palavra que Deus cria o homem e todas as coisas
que existem nele. “Haja luz e houve a luz”. (gen.1,4). Nas religiões de matriz
africana, a palavra é transmissora de axé.
Proferir uma palavra, uma fórmula é acompanhá-la de gestos simbólicos
apropriados ou pronunciá-la no decorrer de uma atividade ritual dada. Para
transmitir-se àse faz-se uso de palavras apropriadas da mesma forma que se
utiliza de outros elementos ou substâncias simbólicas.
As curas mágicas através de palavras refletem a crença no caráter divino da
mesma. Desta forma ao utilizar das rezas e orações as parteiras utilizam-se
de certos procedimentos gestuais que garantem a eficácia da palavra. Dona
Rosalina, parteira, feirante reza a seguinte oração: Assim como Jesus Essa
criança vai nascer e Deus vai me dá Em nome do Senhor.
Donana, moradora também de Lauro de Freitas, católica praticante e devota
de Senhora Santana reza baixinho uma Ave Maria e uma Salve Rainha. Mesmo
as parteiras protestantes não se esquivam em utilizar os ensinamentos
recebidos de seus mais velhos. O que conta neste momento é a fé, tanto da
parteira como da gestante.
Ao se referir aos processos de curas dentro dos Candomblés, Souza Junior,
186
chama atenção para os diversos sentidos que a doença possui para os
terreiros, relacionando-os à prática de “banho de pipocas” cultivados por
algumas pessoas como pagamento de cura das enfermidades. Esta prática
encontra continuidade até hoje e é freqüente nos dias de segunda-feira, que
é consagrado ao orixá Omolu, na porta da Igreja de São Lázaro. Neste mesmo
estudo, Souza Junior apresenta um sistema de classificação relacionando os
tipos de enfermidades aos orixás:
Em linhas gerais, as doenças de pele, as mais superficiais, ou seja, que atingem
apenas a epiderme são associadas à Ode, entendido como “a terra que
reveste os ossos” e as mais profundas, “ as que vêem de dentro”, fazendo a
pele estourar, ligam-se a Obaluaiyê, que em linhas gerais possui o domínio
sobre todas as enfermidades da terra. À Oxumaré, ancestral do crescimento,
é consagrado o umbigo dos recém-nascidos e em muitos casos é associado
ao vitiligo. Oxum se ocupa com as doenças de dentro, as que atingem as
entranhas; da barriga, por exemplo. A obesidade, o colesterol, é domínio de
Xangô, a impotência sexual de Exu, os ferimentos de Ogum, o cirurgião; Oya
cuida das doenças respiratórias e Oxalá, as coisas dos ossos e do coração. [ }
Ossain é o princípio ativo presente em todos os vegetais. E a seiva que circula
dentro de todos os caules e de todos os corpos. Nana é a vacina.
De acordo com o autor acima, são aos Orixás que os membros dos candomblés
recorrem quando estão doentes. Ancorados nesta visão de mundo, para
muitos ir ao médico constitui verdadeiro horror. Sendo assim, a presença
das parteiras, constitui uma possibilidade de religação com o sagrado que
pode ter sido rompido por meio da doença. Representa também canal de
ligação entre o divino e as pessoas, já que o divino se materializa através de
suas mãos que recebe a vida.
SABERES DE CURA E A ARTE DE PARTEJAR: BRASIL E GUINÉ BISSAU
Danieli Siqueira
O presente artigo aborda o contexto do parto e nascimento no Brasil e na
Guiné-Bissau, pretende fazer esta reflexão a luz da experiência das parteiras
“tradicionais” em ambos os países. Passando pela discussão a respeito da
transição do parto do ambiente domiciliar para o ambiente hospitalar, dos
cuidados do saber classificado como popular para o saber dito científico. A
construção deste artigo só foi possível visto o apoio dado pela Pró-reitoria de
extensão da Universidade Federal de Pernambuco - PROEXT que possibilitou a
participação de uma comitiva de professores da UFPE na I Semana de Capacitação
e Oportunidades na Guiné-Bissau, realizada pela Associação Força Guiné – AFG,
em parceria com a PROEXT-UFPE, e Embaixada brasileira na Guiné-Bissau.
No referido evento, enquanto professora da UFPE na altura, participei como
palestrante da Roda de Saberes - “De parteira para parteira. Diálogos entre
tradições: Brasil e Guiné-Bissau”. Na oportunidade estavam presentes
matronas, parteira-enfermeira e estudantes da área de saúde da Guiné-
Bissau. Também foi realizada pesquisa de caráter exploratório a respeito do
parto e nascimento em comunidades de Bissau, na maternidade do hospital
Simão Mendes e no Centro Materno.
188
No que se refere ao contexto do partejar no Brasil, os dados utilizados neste
artigo são resultantes da minha pesquisa de doutorado em sociologia que
está em curso.
De acordo com dados do IBGE1 foram registrados em 2010 no Brasil 2.747.373
nascidos vivos, deste quantitativo 98,83% nasceram no hospital e cerca de 1%
nasceu no domicílio. Temos que considerar que há em nosso país uma taxa
de sub-registro civil de nascimento (13 % em 20062), ocasionada por diversos
fatores como falta de condições financeiras para ir até o cartório devido à
distância, não reconhecimento da paternidade da criança, o cartório que não
registra crianças nascidas de partos atendidos por parteiras. E neste caminho
há uma sub-notificação dos partos atendidos nos domicílio brasileiros. Em
todo caso a maioria dos partos hoje ocorre no ambiente hospitalar. Isso se
deu devido a um processo de transição do cuidado no que se refere à saúde
da mulher do saber popular da parteira, para o saber médico.
No início do século XX, grande parte dos partos era realizado no próprio
domicílio da parturiente destinando aos hospitais o atendimento das
mulheres de baixa renda. Contudo, o avanço da medicina e o surgimento
da tecnologia propiciaram o aumento dos partos hospitalares apoiado nos
ideais médicos, ao considerar o hospital o local mais seguro para o parto.
Este processo ocorreu de maneira impositiva, através de represália. Vejamos,
As parteiras enfrentavam suspeição, porque se entendia que elas poderiam
provocar aborto, promover esterilidade, acobertar mulheres adúlteras e
1 Estatísticas do Registro Civil, v.37, 2010.
2 Indicadores sociodemográficos e de saúde no Brasil 2009 – IBGE.
189
praticar feitiçaria. Tinham, então, ao contrário dos homens, controle sobre a
reprodução, fenômeno muito importante pelas suas implicações políticas e
econômicas. Era, portanto necessário restringir sua atuação como profissionais
ou relegá-las a um plano inferior, negando o seu poder em relação àquele
fenômeno biológico. [...] Houve a negação do saber das parteiras como
estratégia de reduzir a importância de seu papel. (RODRIGUES, 2008:178).
Vemos neste contexto algumas variáveis importantes para serem pensadas.
Primeiramente a ideia de que o imaginário coletivo contemporâneo pautado
num modelo ocidentalizado de construção de identidades e de relações sociais
engloba o que chamo de “arquétipo tecnológico”, onde as máquinas e as
substâncias sintéticas, produtos diretos do validado saber científico, é que são
capazes de cuidar do nosso corpo, em detrimento dos cuidadas advindos do
saber popular, por exemplo. Propaga-se a ideia de que outros saberes, para
além do classificado como científico, não devem ser considerados seguros.
E neste sentido a medicina utiliza como suporte de suas ações a imagem do
que é “seguro”, para justificar a aplicabilidade do modelo hospitalocêntrico
imposto por uma lógica utilitarista, mercadológica inclusive, onde o hospital
passa a ser o centro dos contextos da saúde.
Apresenta-se então mais uma variável relevante para se pensar este
processo transitório do parto dos cuidados da parteira em âmbito domiciliar
para os cuidados do médico em âmbito hospitalar: o mercado. O modelo
hospitalar envolve a indústria farmacêutica traduzindo modificações nas
relações humanas advindas da implementação de um sistema capitalista de
produção. Desta maneira a saúde em certa medida passa a ser condicionada
pela lógica esmagadora do mercado que tem como representante mor, neste
caso, a indústria de fármacos. E este provavemente é um ponto nelvrálgico
190
para pensar a realidade guineense no que se refere ao processo que o
Brasil enfrentou e ainda enfrenta, referente aos saberes direcionados ao
atendimento e cuidados ao parto, gestação e puérperio.
PARTO E PARTEIRAS NO BRASIL
A experiência das parteiras tradicionais no contexto do partejar no Brasil
contemporâneo engloba temáticas específicas, algumas delas serão
apresentadas no decorrer deste artigo por serem recorrentes. A relação com
o sistema oficial de saúde; a atuação junto às gestantes durante o processo da
gestação; da nutrição e amamentação; puerpério, ou seja, a configuração das
práticas do partejar realizadas pelas parteiras. Além da regulamentação da
profissão e da relação entre o conhecimento tradicional do partejar e religião.
Para contextualizar o universo do parto e nascimento no Brasil vejamos os
seguintes dados:
• No Brasil, ocorrem cerca de três milhões de nascimentos ao ano.
• O relatório global do UNICEF - Situação Mundial da Infância 2011-
mostrou que a taxa de cesárea no Brasil é a maior do mundo, de 52%.
A Organização Mundial da Saúde estabelece que apenas 5 a 15% dos
partos devem ser por intervenção cirúrgica.
• O processo de hospitalização do parto no Brasil se deu na década
de 1960 e apesar do pouco tempo histórico esta transição ocorreu
de forma bastante intensa, fazendo com que a maioria dos partos no
191
Brasil hoje ocorra no ambiente hospitalar.
• Além de o parto ter sido tornado um evento para ser vivenciado no
hospital, ele também deixou de ser considerado um evento fisiológico,
para ser tratado como uma patologia a ser submetida a processos
medicamentosos e cirúrgicos.
O parto passa a ser constituído na lógica do mercado, num modelo
economicista, a perspectiva medicamentosa passa a reger este universo,
sendo cada vez mais incorporadas metodologias diagnósticas e intervenções.
O uso de medicamentos como ocitocina sintética, anestésicos, dentre outros
passam a ser, neste contexto, parte quase indissociável do ato de parir.
O relatório Saúde Brasil 2011: uma análise da situação de saúde e de
evidências selecionadas de impacto de ações de vigilância em saúde3
apresenta algumas informações relevantes para a presente abordagem,
revelando fenômenos que são consequentes do processo de medicalização
do parto. Vejamos,
• A taxa de cesariana no Brasil em 1994 foi de 32%, elevando-se para
52% em 2010, sendo menor no Norte e Nordeste.
• Mulheres submetidas a cesáreas tiveram 3,5 vezes mais probabilidade
de morrer (entre 1992–2010) e cinco vezes mais de ter infecção
puerperal (entre 2000–2011) do que as que tiveram parto normal.
3 Publicação do Ministério da Saúde Brasil – disponível online no Portal da Saúde.WWW.portaldasaude.saude.gov.br
192
• No período, a proporção de prematuros elevou-se, mais nas cesáreas
(7,8%, sendo 6,4% nos partos normais em 2010).
• Em 2010, hospitais não públicos apresentaram taxas maiores (63,6%)
e maior aumento no período de 2006 a 2010 (14,0%); para os públicos,
as taxas foram de 47,8% (federais), de 39,6% (estaduais) e de 34,0%
(municipais).
A elevação da taxa de cesariana também representa a elevação da taxa
de lucro dos hospitais, em especial os da rede privada, visto que o evento
cirúrgico envolve uma série de custos com medicamentos, equipe profissional
entre outros, e que são repassados para quem está sendo atendido, no
caso a gestante. Esse é um dos motivos pelos quais as cesarianas são mais
recorrentes em hospitais particulares, as mulheres vão sendo envolvidas e
induzidas a “optarem” pela cirurgia, a partir de justificativas de intercorrências,
grande parte das vezes não condizentes com a realidade4, apontadas por
profissionais médicos, além de outros fatores como a construção social a
respeito do medo da dor.
No Brasil há um contexto contraditório no que diz respeito à atuação das
parteiras tradicionais e a relação com o sistema oficial de saúde, em especial
pela forma como o Estado lida com esta situação. O Estado brasileiro
reconhece as parteiras de fato, mas não as reconhece de direito.
O Projeto de Lei 7.531 de 2006 estava tramitando no Congresso Nacional
4 Como circular de cordão no feto, pressão alta, tamanho do bebê (grande demais ou pequeno de mais), falta de dilatação, etc.
193
com esta finalidade, porém em setembro de 2010 o projeto foi retirado por
fins políticos. O debate perpassa a polêmica de que a regulamentação da
profissão subjulgaria o ofício das parteiras tradicionais ao saber médico, já
que estas obrigatoriamente seriam supervisionadas por outro profissional
de saúde, médica/o, enfermeiro/a. Desta forma alguns grupos de defesa
das Parteiras afirmam que esta situação limitaria as práticas da tradição.
Já outra vertente defende a regulamentação como primeiro passo para o
reconhecimento de direito.
As reconhece de fato através da realização de programas específicos como
é o caso de capacitações para parteiras que em certa medida são realizadas
com a intenção de “ensiná-las” a utilizarem instrumentos e agirem a partir de
lógicas específicas que fazem parte do saber dito científico, como respirador,
luva, entre outros elementos que não faz parte do saber da parteira e sim
vem de outro referencial. Desta forma o Estado brasileiro “aceita” a atuação
das parteiras até onde ele não consegue chegar, mas busca enquadrar o
saber popular na lógica da racionalidade científica acadêmica.
A Secretaria Nacional de Direitos Humanos no ano de 2010 promoveu um
Programa que tinha como objetivo a erradicação do sub-registro civil de
nascimento no Brasil e entendeu que as Parteiras podem ser participes nessa
busca. Logo, o Estado inseriu as Parteiras neste projeto visando realizar
diagnóstico e sensibilização.
Este processo da relação do Estado brasileiro com as parteiras tradicionais
envolve contradições que perpassam pelo reconhecimento e não
reconhecimento do saber e da atuação destas mulheres.
194
Na Pesquisa Nacional por Domicílio – PNAD as parteiras estão classificadas
junto as auxiliares de enfermagem sem formação, na última PNAD foi
registrada a existência de 5151 parteiras. Esta informação não coincide com
os dados coletados pela ONG Cais do Parto, a qual realizou cadastro de
Parteiras Tradicionais no Brasil e estima que há cerca de 60.000 parteiras
hoje, dentre atuantes e não atuantes.
ESPIRITUALIDADE, RELIGIÃO E O PARTEJAR
A atuação das parteiras está pautada no modelo da solidariedade e do dom.
Em geral as parteiras tradicionais no Brasil relatam que entraram na vida
do partejar movidas por um dom que foi revelado nos sonhos, ou numa
situação de emergência em que ela teve que atender um parto na estrada,
ou o seu próprio parto. Este dom esta ligado a uma perspectiva divina, mas,
não unicamente. Neste caminho a prática do partejar tradicional funciona
numa abordagem mágico-religiosa que fundamenta a ação.
Elas utilizam constantemente justificativas pautadas na espiritualidade
para realizarem manobras e rezas durante o parto, ervas nos cuidados
com a gestante e com o recém-nato. Práticas que outrora foram atribuídas
à bruxaria, feitiçaria e acumularam às Parteiras à perseguição realizada
pelo conluio entre a Igreja e o Estado na Idade Média, no período da
Inquisição.
Um exemplo destas práticas é a relação da parteira tradicional com a
placenta. A placenta é encarada como um órgão sagrado. Em nenhum dos
relatos das Parteiras que acompanhei apareceu ocorrência de descarte
195
da Placenta no lixo, como é feito nos hospitais, geralmente as parteiras
pedem para o pai da criança, enterrar (ou plantar) a placenta, pois a
energia masculina do pai se equilibra com a energia feminina da placenta,
afirmam. A parteira Maria dos Prazeres de 75 anos, atuante no município
do Jaboatão dos Guararapes, por exemplo, indica para as gestantes que no
pós-parto seja feito um ritual para plantar a placenta, afirmando que não
se deve utilizar a expressão “enterrar a placenta” e sim “plantar a placenta”,
visto que a placenta não se sepulta, pois não está morta, está viva, repleta
de nutrientes. Agradecer a Deus por aquela placenta que nutriu nove
meses a criança, esta deve ser a postura da família, de acordo com ela.
Enterrando ou plantando, em todo caso elas devolvem a placenta para terra
ritualisticamente. Algumas Parteiras rezam para Santa Margarida, caso
a placenta demore a sair: “Santa Margarida, santa Margarida, não estou
prenha, nem parida, tira de dentro de mim esta carne já sem vida”. Outras
fazem medicamento com a placenta, a tintura de placenta, que é utilizada
para fins terapêuticos.
MULHERES NA GUINÉ-BISSAU
Uma série de questões sócio-culturais está envolvida no contexto do parto
tanto no Brasil, quanto na Guiné-Bissau, no caso deste último podemos
observar o seguinte trecho do Relatório Nacional sobre a Implementação da
Plataforma de Acção de Beijing:
No país estima-se que em 100 mil nados vivos morrem 800 mulheres, sendo
a mortalidade materna, maior causa da mortalidade da mulher e uma das
mais elevadas da África (media de 620). Três quartos destes óbitos registram-
196
se durante o parto, sendo uma parte significativa explicada pelos fatores
socioculturais. (p.17)
De acordo com relato (PEREIRA, 2012) de uma enfermeira-parteira guineense
que atua há mais 20 anos nas comunidades e também na maternidade,
uma das principais causas da mortalidade materna na região de Gabú
na Guiné-Bissau é a anemia, devido aos hábitos alimentares com pouca
proteína, mesmo sendo este país grande produtor da mancarra (amendoim)
extremamente rico em proteína. Esta enfermeira-parteira dirige a Plataforma
de ONG da Região do Gabú e um dos trabalhos realizados é levar informação
à população através da rádio comunitária a respeito da importância da
ingestão de alimentos como a mancarra.
Outra questão de alta relevância neste contexto e que é referida na experiência
da parteira é o casamento precoce, prática cultural que faz com que muitas
mulheres sejam levadas a se casarem muito cedo, com 13 ou 14 anos de idade.
E logo engravidam. O fato é que o corpo destas meninas não está preparado
para dar à luz, o que faz com os partos sejam de alto risco. Vejamos,
O casamento precoce é observado em 20% destas adolescentes; entre as
mulheres que têm idade entre 20 e 49 anos, um terço casou-se antes dos 18
anos. (p. 21-22)5
A mutilação genital feminina6 também é uma das causas que podem
ser apontadas como fator relevante para as altas taxas de mortalidade
materna, já que as mulheres que foram submetidas a tais práticas podem ter
5 Relatório Nacional sobre a Implementação da Plataforma de Acção de Beijing.
6 “O último inquérito de 2010 (MICS-4/IDSR) indica que 44,5% das mulheres com idades compreendidas entre 15 e 49 anos foram sujeitas a prática de excisão na Guiné-Bissau”. (PEREIRA, 2012:139)
197
complicações graves durante o parto.
Cerca de 50% das raparigas e mulheres no país são sujeitas à Mutilação Genital
feminina (MGF) sofrendo consequências para a saúde ao longo da vida, e
particularmente durante o parto. A MGF consiste na maior parte das vezes
na excisão (41,8%), mas ainda quase 6% das raparigas sofrem de infibulação.
O maior número de mulheres submetidas à MGF encontra-se no meio rural
(57,2%) e particularmente nas regiões do leste (93,5%). Na maioria dos casos
a MGF é praticada em condições sanitárias não adequadas e traumatizantes
para a rapariga. Igualmente a gravidez precoce afeta 30% de adolescentes da
faixa etária entre 15 e 19 anos. (p. 21)7
Este contexto demarca uma situação de “violência obstétrica” vivenciada
por estas mulheres e que começa muito antes delas engravidarem. Direito
das mulheres é temática cara para esta discussão, tanto no Brasil, quanto na
Guiné-Bissau. Direitos na sua integralidade, desde a perspectiva obstétrica,
até a atuação profissional. Este aspecto não será focado no presente artigo,
mas deverá ser desenvolvido em outra oportunidade abordando o “cenário
da violência obstétrica” nos dois países supra- referidos.
PESSOAL TÉCNICO EM SAÚDE NA GUINÉ-BISSAU
A publicação de 2005, Guiné-Bissau em números, do Instituto Nacional de Estatística
e Censos, mostra o cenário do pessoal técnico em saúde em todo território nacional
classificando entre área rural e urbana, gênero, idade e setor de atuação.
Tabela 18- Pessoal técnico de saúde 2005
7 Relatório Nacional sobre a Implementação da Plataforma de Acção de Beijing.
8 GUINÉ-BISSAU EM NÚMEROS / INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA E CENSOS 1 / 2005 INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA E CENSOS
198
Categoria Nº Total Área Gênero IdadeTotal Público Privado SFL* Urbana Rural Feminino < 30
Anos30 – 50 Anos
≥ 50 Anos
Médicos Clínica Geral 152 150 0 2 104 48 31% 0 97% 3%
Especialista 23 22 0 1 23 0 35% 0 78% 22%
Pós Graduado 13 12 0 1 10 3 31% 0 80% 20%
EnfermeirosEnf Prof Registados
11 10 1 0 11 0 45% 0 64% 36%
Enf Geral P. Grad 13 13 0 0 7 6 8% 0 100% 0%
Enf Inscritos CG 293 264 6 23 158 135 65% 5% 85% 0%
Enf Geral Especialis
36 31 0 5 19 17 14% 0 99% 1%
Enf Auxiliares 559 559 0 0 221 338 55% 0 40% 60%
ParteirasParteiras Inscrito Geral
122 121 0 1 45 77 100% 0 99% 1%
Parteira Especialista
3 3 0 0 1 2 100% 0 100% 0%
Part. Auxiliar 35 33 0 2 19 16 100% 0 100% 0%
Parteiras tradicionais
2131 2131 0 0 0 2131 100% 0 2% 98%
DentistasDentista (Estomatolog)
3 3 3 3 2 1 33% 0 100% 0%
Téc. Dentário 6 6 0 0 4 2 16% 0 100% 0%
Téc. Prótese 2 2 0 0 2 0 50% 0 100% 0%
FarmacêuticosTéc. Farmácia 17 16 1 0 8 9 59% 0 100% 0%
Farmacêutico 13 11 2 0 10 3 31% 0 100% 0%
Aux. Farmácia 10 10 0 0 7 3 45% 0 80% 20%
Agentes de Saúde ComunitárioAgente S. Comunitário
2355 2355 0 0 0 2355 0% 0 0% 100%
Fonte: - Serviços de Estatística do Ministério da Saúde SFL* – Sem fins lucrativos
199
Podemos observar na tabela acima que dentre o quantitativo total de Parteiras
na Guiné-Bissau no ano de 2005, as classificadas como tradicionais é que
representam o maior número, 93,01% do universo de 2291 profissionais da
categoria. 98% das Parteiras Tradicionais estão na faixa etária de 50 anos
ou mais, enquanto que entre as Parteiras gerais, especialistas e auxiliares
a maioria está entre os 30 e 50 anos de idade, respectivamente 99%, 100%
e 100%. Esta é uma informação relevante para o contexto da valorização
ou não do saber dito “tradicional”, já que as mais jovens passam a seguir
com menos frequência o saber recebido das suas ancestrais, e se interessam
menos pelo mesmo. Esta também é uma realidade no contexto brasileiro. A
desvalorização do saber de cura e cuidados tradicionais em detrimento do
saber da técnica classificada como científica.
De acordo com a tabela 1, 100% das Parteiras Tradicionais estavam na área
rural. Este indicador aponta para a informação que nos centros urbanos
da Guiné-Bissau não havia ou havia poucos partos atendidos por Parteiras
Tradicionais, também conhecidas como matronas.
Em 2013, em pesquisa exploratória na capital Bissau, recolhi alguns relatos de
mulheres que informaram terem sido atendidas por matronas (ou mulheres
sábias), que são classificadas como parteiras tradicionais, nas comunidades
da área urbana. Desta maneira questionamos se os indicadores aplicados de
fato dão conta de identificar estas profissionais, além de buscar compreender
como ocorrem os mecanismos de desencorajamento da prática do partejar
do saber popular. Apesar de as parteiras tradicionais serem apontadas como
a categoria de pessoal técnico quantitativamente mais representativa no
país, mais de que médicos, dentistas, enfermeiros o discurso oficial da saúde
200
não as põe necessariamente num lugar de destaque e de reconhecimento.
A parteira geral é uma técnica em saúde com formação profissional de três
anos que concluiu com sucesso o programa de estudos em parteira geral,
adquiriu as qualificações requeridas e é autorizada por lei, a desempenhar
os cuidados de Parteiras/Enfermagem básicos, em patologias médicas,
cirúrgicas, ginecologia, obstetrícia, saúde infantil e saúde reprodutiva.
A parteira tradicional ou matrona não tem necessariamente formação
acadêmica e seu conhecimento e práticas estão pautadas no saber popular.
BRASIL E GUINÉ-BISSAU: EM DIÁLOGO
Num país onde há poucos recursos disponíveis, seja no setor educacional,
seja no setor da saúde e mesmo nos serviços mais básicos, como eletricidade,
um dos estabelecimentos que mais se repetiram aos nossos olhos foi a
Farmácia (alopata). E talvez seja por este ponto que devo começar a fazer
a ponte entre a experiência do Brasil e da Guiné-Bissau no que se refere
à Saúde e especificamente ao parto. Visto que o processo o qual envolve
a contemporanização do parto no prisma ocidental está pautado na
sobreposição de saberes. Neste sentido, a saúde e o parto seguem as vias da
medicalização.
Como dito anteriormente, há a estimativa de que na Guiné-Bissau em 20109 a
taxa de mortalidade materna era de 800 óbitos/cada 100 mil nascidos vivos,
ocupando assim a sexta posição no ranking mundial, enquanto que o Brasil
9 http://www.indexmundi.com/map/?v=2223&l=pt
201
ocupava a 69ª posição com 56 óbitos/cada 100 mil nascidos vivos
De acordo com o INEP em 201010 na Guiné-Bissau 42% dos partos foram
realizados nas instituições de saúde. Neste sentido a maior parte dos partos
naquele país ocorria fora das instituições de saúde, geralmente nas tabancas e
nas comunidades. Entre partos desassistidos, ou auxiliados por uma parteira
formada, matrona ou enfermeira. Nos dois percentuais (partos hospitalares
e não hospitalares) há um alto índice de mortalidade materna. Vejamos,
Em 1995 morreram, na Maternidade do Hospital Nacional Simão Mendes, 55
mulheres nos trabalhos de parto em um universo de 6.363 nados vivos, o
que implica mortalidade materna intra-hospitalar de 864/100.000 (MINSAP,
1996). As principais causas apontadas foram hemorragia pós-parto (21 casos),
eclampsia (8 casos) e septicemia (6 casos). (UNICEF, 1995).
Ao abordar e perguntar para algumas mães guineenses sobre o local que
ocorreu o seu parto e quem a atendeu, ouvi em vários relatos: foi à mulher
velha, a mulher experiente ou a mulher sábia. Esta surpresa do lugar de
pesquisa me fez repensar a própria definição do conceito de Parteira. O
que é Parteira? Será que estas mulheres se reconhecem como tal? Ou será
que é mais uma tentativa de classificação do pensamento ocidental para
enquadrar um grupo de pessoas às suas amarras? E neste sentido me pus a
pensar que a própria classificação parteira é uma categoria ocidentalizada.
Tanto no contexto guineense, quanto no contexto brasileiro.
Na Guiné-Bissau mulheres que atendem outras mulheres são as mulheres velhas
ou matronas. As parteiras ali são profissionais de saúde formadas, que já foram
10 Indicadores sociodemográficos e de saúde reprodutiva e de inquérito por amostragem aos indicadores múltiplos na Guiné-Bissau 2010.
202
submetidas ao crivo do chamado saber científico. Ao procurar parteiras nas
comunidades não encontrei, pois na verdade elas são as matronas, as mulheres
velhas, que atuam a partir de um saber popular ou “tradicional”, adquirido com
a experiência e com o repasse inter-geracional. A partir destas reflexões remeti-
me imediatamente a minha pesquisa junto as Parteiras no Brasil.
Em alguns lugares há certa dificuldade de encontrar as parteiras, não porque
nunca estiveram ali e sim porque em alguns casos elas se reconhecem e são
reconhecidas pela comunidade como mulher que corta umbigo, aparadeira,
comadre, mãe Zezé, mãe Maria, mãe Francisca. Neste sentido surgiu
mais uma questão de pesquisa: quais as influências que as classificações
ocidentalizadas tiveram sobre a prática do partejar no contexto brasileiro e
no contexto guineense? Classificar estas “mulheres velhas” como parteiras é
uma forma de controlar sua prática?
De fato o saber utilizado pelas “mulheres velhas” em grande medida não é
considerado como válido, em especial pelo dito saber científico do campo da
saúde. Perspectiva esta que se propaga pelo imaginário coletivo da sociedade
como um todo. No Brasil este fenômeno parece está muito mais arraigado.
Ainda que se perceba na Guiné-Bissau a iniciativa de diversos atores do
sistema oficial de saúde (como médicos, enfermeiras, parteiras formadas,
diretor do hospital/ maternidade, componentes da Escola Nacional de
Saúde11) em renegar ou tomar como inferior o conhecimento tradicional,
como se este último fosse um dos grandes responsáveis pelas altas taxas
11 Pesquisa exploratória realizada em Setembro de 2013 na Guiné-Bissau, pela pesquisadora Danieli Siqueira – UFPE/UFPB.
203
de mortalidade materna e neonatal, por exemplo, o contexto social-cultural
daquele país influencia a forma de relação das pessoas com o saber popular
ou tradicional como um todo e em especial no que se refere ao universo do
parto.
A população da Guiné-Bissau é constituída por mais de 20 etnias, com línguas,
estruturas sociais e costumes distintos. Os Balanta, representando 27% da
população, Fula 22%, Mandinga 12%, Mandjaco 11%, Papel 10%.12
Esta estrutura étnica está presente nas tabancas, mas também na capital
Bissau, em contextos distintos, mas ainda assim as pessoas se reconhecem
em suas etnias, inclusive as comunidades em certa medida se constituem a
partir desta vivênia étnica.
Ao estar em Bissau no mês de setembro de 2013 tive a oportunidade de
entrevistar pessoas (entre mães, gestantes, parteiras e líderes religiosos)
das etnias Balanta, Fula, Mandinga e Papel. E a partir das falas, observa-se
que o parto é tido pela comunidade como um momento ritual que envolve
diversas temáticas transversais, como religião e sistemas de solidariedade,
além de especificidades culturais de cada etnia.
No Brasil observamos que a incidência de partos atendidos por parteiras
tradicionais, ou “mulheres velhas” ainda é alta em algumas localidades, ao se
comparar com o contexto urbano. Por exemplo, no Arquipélago de Bailique,
que pertence ao município de Macapá-AP, e no município de Melgaço-PA, 100%
12 Publicação do Ministérios da Administração Territorial – República da Guiné-Bissau: “CONTEXTO GERAL DA GUINE BISSAU”. Disponível em www.amcod.info/.../guinea_bissau/contexto_geral_da_Guine_bissau.doc.
204
dos partos são atendidos por parteiras tradicionais (BRASIL/MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2010). Vemos aqui uma das características da tradição: a resistência.
Vejamos a fala de uma parteira tradicional em Pernambuco/Brasil,
Parteira: Na capacitação, a gente até ganhou um kit que tem respirador para reanimar o bebê.
Pesquisadora: A srª leva o respirador quando vai atender um parto?
Parteira: Levo não.
Resistência não em termos da lógica racional moderna, e sim no sentido de
rebeldia em defesa de seus costumes, como afirma Thompson (1998).
A assistência ao parto e ao nascimento no Brasil não ocorre de forma
homogênea. Há uma diversidade no que se refere ao local e aos/as atendentes
do parto. Apesar da maior parte dos partos no Brasil contemporâneo ocorrer
no ambiente hospitalar, as parteiras tradicionais ainda praticam seu ofício no
país, com maior incidência nas regiões norte e nordeste. Na maioria das vezes
as pessoas envolvidas neste contexto, do partejar tradicional, tanto as parteiras,
quanto às gestantes, estão à margem, em situação de exclusão e isolamento
social, sem respaldo. São-lhes tiradas (ou tentam) a “agência” e a “estrutura”.
Ainda de acordo com a publicação do Ministério da Saúde do Brasil (2010)
“a diversidade da situação socioeconômica, cultural e geográfica do país
exige, a adoção de diferentes modelos de atenção integral à saúde da
mulher e da criança e a implementação de políticas públicas que atendam às
especificidades de cada realidade, procurando-se considerar o princípio da
equidade e resgatar à dívida histórica existente em relação às mulheres e às
205
crianças assistidas por parteiras tradicionais”.
Há uma subnotificação no Brasil sobre quem são as parteiras e onde elas
estão. Isto se deve em grande medida a uma falha nos indicadores. Como
procurar por uma parteira se ela não se reconhece como tal. Ela é a que
apara, é a mãe de umbigo. Parece que é preciso repensar os indicadores e as
formas de coleta, se de fato o objetivo é estimular a revalorização do saber
tradicional do partejar.
Considerar estas mulheres velhas, mulheres sábias, mães de umbigo,
aparadeiras como agentes de saber e não apenas como auxiliares do
Sistema Único de Saúde, por exemplo, parece ser um desafio semelhante
aquele proposto pela ecologia dos saberes do Boaventura de Sousa Santos
(2002). Será que o SUS é pensado (ou deveria ser) também a partir da ótica
dos saberes populares? Desde a década de 80 a OMS (1978) recomenda a
inclusão das “práticas tradicionais de saúde” nas políticas de Estado.13
Modelos de hegemonia e dominação entre saberes, sob qualquer roupagem
não são legítimos, esta é a proposta da ecologia dos saberes de Santos (2002).
Este autor faz uma crítica à razão ocidental afirmando que a mesma ‘diminuiu’
a multiplicidade do mundo e o expandiu ao mesmo tempo, só que a partir de
suas regras, ou seja, neste contexto há um abismo entre vários aspectos da
vida e em especial entre os diferentes saberes, os que não operam a partir
da lógica da razão metonímica são postos à margem, tidos como inexistentes
e desta forma são excluídos. Vejamos,
13 OMS-WHO (1978). Primary health care. Genova: World Health Organization.
206
A razão metonímica [...] se reivindica como a única forma de racionalidade e,
por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou,
se o faz, fá-lo apenas para torná-las em matéria-prima (SANTOS, 2002:240).
Há pelo Ministério da Saúde algumas iniciativas, como o Programa
trabalhando com as Parteiras tradicionais, que promove capacitações para
as parteiras. Revalorização do saber tradicional é um dos pontos abordados
pelo Programa. Uma pesquisa mais acurada poderia ser feita em busca de
entender a percepção das parteiras brasileiras com relação às capacitações,
bem como qual a troca que efetivamente este Programa promove entre os
saberes relacionados ao parto. De acordo com alguns relatos14 de parteiras
tradicionais que já participaram das capacitações, o processo parece
apresentar em alguns aspectos teores mais dicotômicos do que dialógicos.
Vejamos o relato de uma parteira tradicional de Pernambuco,
Eu participei da capacitação. Foi muito bom. As doutoras nos ensinam muitas
coisas.15
Fleisher (2011) em sua pesquisa sobre as parteiras no município de Melgaço
no Pará aponta caminhos semelhantes aos presentes na fala da parteira
pernambucana citada acima. Apesar de estas capacitações serem uma
iniciativa importante, há lacunas que precisam ser trabalhadas, pois se não
houver troca efetiva entre os saberes, serão reproduzidas relações de poder
e modelos de imposição, já vivenciados por iniciativas anteriores no Brasil. As
políticas precisam ser contínuas para que atinja objetivos mais amplos, como a
inserção do atendimento dos partos realizados por parteiras na Atenção Básica,
14 Pesquisa de doutorado junto a Parteiras tradicionais em Pernambuco - Brasil.
15 Pesquisa de doutorado junto a Parteiras tradicionais em Pernambuco - Brasil.
207
do Sistema Único de Saúde – SUS que é apontada como um dos caminhos
possíveis, por diversos atores que lidam com esta problemática. Para isso,
se faz necessário que haja políticas eficazes em âmbito da conscientização,
sensibilização para que as parteiras sejam compreendidas na sua agência,
enquanto produtoras de conhecimento e não como produtora de danos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O contexto brasileiro de atendimento ao parto e nascimento e os diversos
saberes envolvidos pode ser pensado em paralelo a vivência da Guiné-
Bissau, com intercâmbio de experiências para que ambos possam traçar
caminhos que deem atenção à mulher na sua completude e empoderamento
(lembrando que há particularidades culturais entre os dois países), e que
valorize as múltiplas formas de atenção e cuidado.
No que se refere à Guiné-Bissau, faz-se necessário o compromisso de
diversos atores sociais no sentido de atentar, para que não se reproduzam
sobreposições entre saberes no processo de democratização do país,
que a lógica de desenvolvimento a ser aplicada seja pautada em valores
mais amplos do que a ocorrida no processo de implementação do modelo
desenvolvimentista no Brasil, particularmente ao se analisar os reflexos
deste no universo do parto e nascimento. Desenvolver a partir da atenção
à diversidade cultural, às racionalidades e saberes múltiplos é um caminho
que os governantes e a sociedade guineense como um todo podem primar,
em especial no que se refere à realidade do parir e nascer, para que a lógica
não esteja pautada na ideia de transição do parto do ambiente domiciliar
para o ambiente hospitalar, da supressão e desvalorização do saber popular.
208
Com relação ao Brasil, o intercâmbio cultural com a Guiné-Bissau pode nos
apontar mecanismos e instrumentos importantes de revalorização de algo
que parece está perdido, mas que ao mesmo tempo se mostra presente em
algumas localidades e contextos específicos no país, que é o sentido ritual
do parto, bem como a força do saber da tradição referente ao partejar.
É possível que haja entre os atores dos diversos campos do conhecimento,
um diálogo pautado na solidariedade e não mais na lógica da apropriação
e produção de não-existências. A partir de um diálogo efetivo, várias
questões podem ser reconstruídas, tanto do lado de um saber, quanto do
outro, originando, inclusive, novos saberes. Como por exemplo, a prática
de abafar ou colocar algum pó no coto umbilical, que faz parte do saber
tradicional, mas que em alguns casos pode causar tétano. E por outro lado o
saber científico com uma série de intervenções desnecessárias que podem
colocar a vida da gestante e do bebê em risco. Para Santos (2002), todos os
saberes são incompletos, podem e devem dialogar entre si, o que possibilita
resultar em práticas diferentemente sábias. A ecologia dos saberes permite
superar a ideia de que o saberes ‘não científicos’ são alternativos ao saber
científico.
Desta forma, pode-se fazer importante a participação de intelectuais,
pesquisadores, movimentos sociais e da comunidade no processo de
mediação da relação entre o sistema oficial de saúde e os saberes tradicionais
no que se refere ao universo do parto e nascimento
209
ANEXOS
Cartaz em exposição em Centro Materno em Bissau.
Icnografia para o Programa “Trabalhando com parteiras” do Ministério da
Saúde/Brasil.
TERREIROS DE CANDOMBLÉ - SABERES E PRÁTICAS DE CUIDADO E
TRATAMENTO: CONTRIBUIÇÕES PARA A SAÚDE MENTAL
Kelma Luzia Nunes Otaviano
A COSMOVISÃO AFRICANA NO BRASIL
A Cosmovisão africana é um sistema cultural-filosófico diverso presente
em diferentes partes do continente africano e sua diáspora no mundo.
Apesar de suas diferenças, este sistema possui elementos comuns que
peculiarizam o que chamo de pensamento negro-africano, algo que exerce
influência na concepção de vida de distintos grupos populacionais de
africanos e seus descendentes. No Brasil, aquele sistema cultural-filosófico
deu origem a formas específicas de organização social, política, econômica,
ética e cultural.
Esses elementos são essenciais para se entender o pensamento africano e
as diversas instituições fundadas pelos negros no Brasil, como as Religiões
de Matriz Africana. Segundo Oliveira, esses elementos são a base fundante
desse pensamento, a começar pela concepção de universo considerado
a interação constante e incessante entre mundo visível e invisível, entre o
que se constitui segredo e revelado, uma teia tecida entre visível/aparente e
212
invisível/essência/criador 1.
Nessa perspectiva, a vida é concebida como força vital e energia em movimento
que tem a palavra como energia geradora construtiva e/ou destrutiva,
conforme o uso que se faça dela. É a expressão do hálito divino, por isso
a palavra é sagrada, produtora de Àse (força vital) e uma vez pronunciada
adquire força de realização, modificando e interferindo na construção do
mundo presente e na dinâmica da vida das pessoas.
O tempo é compreendido como não linear e voltado para o passado e o
presente sem preocupações excessivas com o tempo futuro, pois nas
sociedades tradicionais africanas é no passado em que estão todas as
respostas para os desafios e mistérios do tempo presente. É onde moram os
ancestrais e onde reside toda a sua sabedoria.
O homem na Cosmovisão Africana é entendido como uma singularidade
elaborada no coletivo e sua socialização um processo de responsabilidade
da sociedade como um todo, a qual se estrutura em famílias matriarcais ou
patriarcais, constituída de pessoas e de seus antepassados ou ancestrais
divinizados, que são cultuados e de onde provém a referência para a
existência da comunidade e do grupo familiar.
Dessa forma, a finalidade da existência do homem está estabelecida no
Universo do qual recebe influência direta dos seres da natureza. Portanto,
a finalidade da vida é orientada pela condição de sua riqueza simbólica, por
1 OLIVEIRA, David Eduardo. Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: Ibeca, 2003.
213
suas qualidades oriundas de sua hereditariedade, de sua família, do poder
religioso, das doutrinas mitológicas e de uma filosofia da ancestralidade.
Dessa ligação intrínseca com a natureza - pois o homem é parte integrante
dela – nasce um dos fundamentos de sua existência e uma maneira peculiar
de organização socioeconômica que prima pela preservação dessa mesma
natureza, porque o africano não concebe a terra como propriedade privada
sua. Ele faz uso dela e a partir dela retira seu sustento. Para isso estabelece
uma política pactuada com o sagrado, ou seja, ao mesmo tempo em que é
uma atribuição dos homens, o poder da regência da política está sob a égide
dos antepassados, da ancestralidade, que somente se torna ancestralidade
pelo processo ritual de morte.
Desta feita, a morte adquire expressiva e fundamental importância para os
povos negro-africanos, tornando-se um processo essencial e ritualizado,
pois é potencializadora da ancestralidade. É por ela e somente por esse
meio que se formam os cultos aos ancestrais, antepassados divinizados,
Òrìsà, estabelecendo-se um elo, um intercâmbio permanente entre o mundo
material (Àiyé) e mundo imaterial (Òrun).
Na África negra estes cultos acontecem de forma constante e são a pedra
fundante da Cosmovisão Africana que se alimenta nas fontes desses
cultos, pois é a partir deles que se realiza a síntese de todos os elementos
constitutivos que dão logicidade ao pensamento filosófico de base ancestral,
o qual se perpetua ao longo do tempo por meio de uma forte tradição oral
expressa em uma rica construção mitológica, conforme nos diz Luz2:
2 LUZ, Marcos Aurélio de Oliveira. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2000, p 21.
214
Somente o mito poderá falar das diversas dimensões do existir característico
da cultura negra, onde o Ser é, e o não Ser também é: o mundo dos vivos,
o existir dos ancestrais, as forças cósmicas que governam o universo. Esse
mundo e o além, em processo de interação permanente. Em suma, o mito é o
discurso capaz de representar a vida e a morte, o tudo e o nada, o pleno e o
vazio, o visível e o invisível, o dito e o inefável, o mistério da existência.
O mito constitui-se nesse discurso que elabora e pode realizar o processo
da alteridade humana, diferentemente do que argumenta e afirma a ciência
totalizadora eurocêntrica, fechada hermeticamente em seus conceitos,
racionalizadora da vida material e que tende a desqualificar todo e qualquer
processo que fuja dos padrões criados por sua racionalidade e lógica.
Os mitos africanos são para os povos negro-africanos referenciais de
vida transmitidos pela oralidade. No panteão africano, os ancestrais ou
antepassados divinizados moram no mundo imaterial (Òrun) e zelam pela
pessoa, pela família, pelo grupo e pela comunidade, tendo uma ligação
direta com os homens, a natureza e a terra (Àiyé). A sociedade é dirigida
pelos homens que comungam fraternalmente com os seus ancestrais, em
uma demonstração de que a vida é um complexo sistêmico Òrun- Àiyé, o
qual origina uma filosofia da ancestralidade que embasa e dá sentido à vida
material. Um pensamento de povos bantu expressa bem essa dinâmica
dialógica para nosso entendimento:
O conhecimento da realidade e a imaginação reflexiva sobre as compreensões
das consequências das relações instituídas entre os seres da natureza, animados e inanimados (nas sociedades africanas tudo tem vida), constitui parte das filosofias africanas vindas das sociedades ligadas às questões da ancestralidade, da identidade territorial, da transmissão dos conhecimentos pela palavra falada pelos seres humanos e pelos tambores.Formas de filosofar
215
coletivas de conhecimento geral, produzindo valores éticos que regulam as vidas cotidianas das sociedades africanas, ditas tradicionais (tradição no sentido da repetição no tempo com modificações e inovações, mas sempre referidas a uma história do passado e transmitida por um ritual social normativo). Sociedade que os textos de Chinua Achebe [...], Sobonfu Somé [...] e José Flavio Pessoa [...] bem nos descrevem e nos ensinam sobre os seus princípios, valores e forma de organização. São formas filosóficas de refletir e ensinar e aprender sobre as relações dos seres da natureza, do cosmo e da existência humana. São filosofias pragmáticas da solução dos problemas da vida na terra, profundamente ligados ao existir e compor o equilíbrio de forças da continuidade saudável destas existências, sempre na dinâmica dos conflitos e das possibilidades de serem postas em equilíbrio. A contradição e a negociação. Os problemas da existência física e espiritual fundamentam-se nos da existência de uma totalidade que governa as gerações e que permite a continuidade dinâmica da vida pela interferência humana. São formas de pensar, tomadas dos mitos, dos provérbios, dos compromissos sociais que formam uma ética social, refletem, inscrevem [...] registrado na oralidade os condicionantes da existência humana, da formação social, das relações de poder e justiça, da continuidade da vida. A
natureza como respeito profundo à vida.3
De tal modo, dessa filosofia ancestral originam-se os conceitos da Cosmovisão
africana e o conceito de saúde é elaborado tendo como referência a
compreensão da vida humana como um conjunto de conexões dialógicas
que pressupõe o equilíbrio entre o corpo (material e imaterial), a natureza e
a ancestralidade.
Nesse sentido. a saúde mental adquire essencial papel nesse processo,
pois a cabeça (Orí)4 para os povos negro-africanos é a parte do corpo que
expressa a dimensão material e imaterial da vida humana. É na cabeça (Orí)
que as conexões neurais realizam-se intensamente, em um fluxo constante
3 BARROS, N. F. A construção da medicina integrativa: um desafio para o campo da saúde. São Paulo: Hucitec; p. 82, 2006.
4 Oríacabeçatemduasdenominações.OríòdequeseriareferenteàpartefísicaeOríInúquediz respeito à parte interior, espiritual, a personalidade, a alma. Para não haver distinção durante o texto, iremos utilizar a palavra iorubana Orí referindo-se sempre a duas dimensões da cabeça.
216
e incessante, no qual a pessoa constrói o que se intitula racionalidade,
ideias, conceitos, mas também todas as conexões emocionais e os diversos
sentimentos, como medo, angústia, tristeza, ansiedade, alegria, felicidade,
vivenciados em sua existência. Bàbátundé Lawal, da Universidade de Ilè-Ifé,
Nigéria, refere-se assim à Orí–cabeça:
Na maioria das esculturas africanas tradicionais, a cabeça é a parte mais
proeminente porque, na vida real, é a parte mais vital do corpo humano. Ela
contém o cérebro - a morada da sabedoria e da razão; os olhos - a luz que
ilumina os passos do homem pelos labirintos da vida; os ouvidos - com os
quais o homem escuta e reage aos sons; a boca - com a qual ele come e
mantém o corpo e alma juntos. As outras partes do corpo são abreviadas
para enfatizar suas posições subordinadas. Tão importante é a cabeça como
a sede da personalidade e destino do homem.5
Orí – a cabeça – durante o nascimento é quem vem primeiro abrindo espaço
para o restante do corpo da criança, por isso ela é a morada da consciência
e dos principais sentidos físicos e emocionais. Orí é desta feita o local por
excelência da saúde mental. Esse destaque dado à Orí não subjuga outros
órgãos do corpo humano, mas destaca a sua importância para as culturas
negro-africanas como a parte do corpo que reúne todos os atributos
necessários à vida do homem na terra.
No Brasil, esse legado negro-africano expandiu-se de forma grandiosa
e de tal maneira que os valores e princípios civilizatórios africanos foram
resguardados e estão vivos na memória e na tradição das Religiões de Matriz
Africana como o Candomblé, conforme bem ressalta Oliveira:
5 BENISTE, José. Òrun – Àiyé:o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yorubá entre o céu e a terra.7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
217
Na diáspora africana, o que vem para o Brasil não é a estrutura físico-espacial
das instituições nativas africanas, mas os valores e princípios negro-africanos.
[…] Pensar a cultura negra é pensar a reterritorialização dos negros no Brasil.
O território afro-brasileiro não é espaço físico africano, mas a forma como
os negros brasileiros singularizaram o território nacional. O espaço físico
reterritorializado é um espaço simbólico-cultural. Este território, singularizado
pela cultura negra, por seu real vivido, por sua filosofia imanente, por sua
dinâmica civilizatória, marcou definitivamente a formação social brasileira.
Foram os aspectos civilizatórios africanos que, reinterpretados no Brasil,
desenham o projeto ético-político dos afro-brasileiros. [...] no Candomblé que
tais aspectos podem ser melhor percebidos. 6
Uma dessas contribuições pode estar presente na contribuição de povos Jêje
(ewe-fon) e iorubás/nagôs, respectivamente, a qual se intitula de complexo
cultural Jêje-nagô, que se traduz em um conjunto de valores e princípios que
são expressos pela linguagem religiosa africana dos terreiros. Nesse complexo,
a relação constante e dialógica entre o mundo visível – Àiyé e o mundo invisível
– Òrun dá sentido à existência, conforme relata Luz: “A comunicação entre
esses dois mundos se dá através de uma concepção vitalista do mundo, que se
caracteriza pelo conceito de axé [...] que exprime a ideia de forças circulantes
capazes de engendrar a criação e a expansão da vida”7.
A relação dos seres humanos com o mundo natural e com os ancestrais
realiza as conexões necessárias para a obtenção de Àse, a força vital presente
no corpo humano, na natureza e no universo. Nesse caso as plantas são
elementos constituintes de Àse, assim como os minerais e os animais.
O conceito de doença inscreve-se nesse contexto como a ausência ou
6 OLIVEIRA, David Eduardo. Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: Ibeca, 2003.
7 BENISTE, José. Òrun – Àiyé:o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yorubá entre o céu e a terra. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p 33.
218
enfraquecimento de Àse na pessoa, na família, no grupo ou comunidade e a
saúde a sua presença fortalecida.
A saúde mental é a representação da cabeça (Orí) fortalecida, capaz de trazer
a realização pessoal que é sempre perpassada pela noção de conjunto, nunca
uma pessoa individualizada, mas a mesma inserida no contexto cultural,
social, político-econômico e comunitário em uma relação dialógica entre
essas partes.
Assim sendo, saúde mental para o Candomblé é pensar em um conjunto
articulado de procedimentos que vai desde o fortalecimento da cabeça (Orí),
o fortalecimento do Òrìsà Orí, até o fortalecimento do grupo, a ressignificação
da subjetividade, a reconexão com a natureza e com os ancestrais em rituais
específicos que envolvem a manipulação e o uso de ervas e plantas em
banhos, infusões, chás, sacudimentos de folhas e escuta atenta e particular
do relato do que vem causando sofrimento, seja ele de ordem emocional,
psíquica, clínica, social, econômica, política, pois no referencial de saúde
dos Terreiros de matriz africana tudo está conectado e o que pode causar
sofrimento pode ser também o fator de alívio deste. Ou seja, o sujeito e
a expressão de seu sofrimento são trabalhados de forma que ele possa
compreender seu processo de adoecimento como um acontecimento no
qual estão implicados vários elementos contextualizados como: sua forma
de vida, a sociedade onde ele está inserido, sua família, seu grupo social, sua
condição econômica, sua comunidade, sua ancestralidade.
No paradigma da Cosmovisão Africana presente nos Terreiros, não se
adoece sozinho e também não há tratamento sozinho, todos estão de certa
219
forma implicados no sofrimento de Um e todos se responsabilizam em seu
tratamento. Essa perspectiva conduz a outras formas de elaboração de
abordagens e práticas em termos de acolhimento, cuidado e tratamento
no campo da saúde e especialmente para a saúde mental. A definição de
homem como uma singularidade forjada no coletivo, parte constituinte da
natureza e em conexão com a ancestralidade gera o que podemos apontar
como uma Terapia de base ancestral africana no campo da saúde mental,
pois para os povos negro-africanos o que se intitula de medicina africana
tem como base fundamental e primordial a participação essencial da
ancestralidade.
Na África negra, essa noção de ancestralidade tem uma dimensão
imprescindível - assim como para os Terreiros de Matriz Africana – o que está
presente nas práticas sociais e cotidianas de saúde como nos relata Leite8:
O fundamento da noção de ancestral está no princípio de imortalidade,
segundo Leite [...] “imortal em sua dimensão mais histórica, portador de carga
social diferencial que é a da sociedade a que pertence, o homem pode ser
compreendido pela sociedade como ser total que se manifesta durante sua
existência visível – quando é o pré-ancestral – e após ela”. A massa ancestral
em suas manifestações míticas e históricas é constitutiva do ser, e sua
atualização ocorre em cada pessoa, unida profundamente à sua sociedade,
formação social que ela prolonga e justifica.
Ancestralidade e Àse (força vital), então, são elementos importantes
para construirmos um entendimento do conceito de saúde mental, de
adoecimento, de prevenção, tratamento e cura, pois os Terreiros de Matriz
8 BARROS, N. F. A construção da medicina integrativa: um desafio para o campo da saúde. São Paulo: Hucitec; p. 82, 2006, p 29.
220
Africana - como é o caso do Candomblé - resguardam muitos elementos
da medicina tradicional africana. Esta última constitui-se em um método
de intervenção na relação saúde-doença que envolve a transmissão oral
de conhecimentos de pai para filho, de práticas de cura que são guardadas
zelosamente como um bem precioso, inigualável em África e como podemos
perceber nos relata de Barros9:
A grande distinção que se faz é entre a medicina ocidental racionalista
moderna e aquelas religiosas ou mágicas. Estas últimas englobam os sistemas
populares de interpretação e tratamento das doenças e a medicina de povos
não ocidentais. No âmbito da medicina tradicional distingue-se a medicina
popular e aquela iniciática. A primeira é elaborada a partir de um arsenal de
remédios, interpretações da doença e de técnicas, patrimônio de uma vasta
população, que não requerem para serem utilizadas uma preparação particular
do terapeuta. A segunda é patrimônio de poucos indivíduos especializados e
cuja história, características pessoais e iniciação resultem particulares.
No entanto, em ambos os paradigmas de medicina tradicional africana
anteriormente descritos estão presentes o uso de recursos da natureza,
porém na medicina tradicional iniciática o terapeuta é preparado de forma
específica e a consulta constante à ancestralidade é cerne de seu trabalho.
Os médicos tradicionais possuem uma capacidade singular de domínio do
sistema sociocultural do povo e uma condição plena de manipulação de
elementos da natureza. Os componentes utilizados por eles incluem as
plantas, as ervas, as raízes, as sementes, os minerais, os animais, os jejuns e/
ou as dietas terapêuticas, a manipulação da coluna vertebral e as massagens,
as terapias de cura radiante, a hidroterapia, a escuta terapêutica e o ocultismo
terapêutico como maneiras de tratamento preventivo e curativo. Tudo isso
9 Ibidem, p. 1
221
associado a orações, invocações e encantamentos para a restituição e/ou
fortalecimento do Àse (força vital) que traz saúde e reconecta a pessoa no
plano material à sua ancestralidade, expressando a filosofia ancestral que
perpassa as ações dos povos negro-africanos.
Diferentemente do paradigma africano, no pensamento ocidental o
conhecimento científico foi apartado da arte, a razão da emoção, causando
um reducionismo ao campo material no entendimento do homem e da
natureza. Absorvido e reproduzido pela ciência biomédica, esse pensamento
criou as pesquisas experimentais que não consideram as experiências no
campo sensitivo, do vivido no mundo do sagrado, diferentemente da medicina
tradicional africana que trabalha em conjunto com os valores culturais e
ancestrais da comunidade, o que lhe conferem logicidade e legitimidade
sociocultural, pois tem como base as relações do mundo visível dos homens
(Àiyé) com o mundo invisível dos ancestrais (Òrun):
Os conceitos fundamentais de saúde e doença na medicina africana são ligados
à ideia de equilíbrio e interdependência dos elementos constitutivos (visíveis
ou não) que se influenciam entre si, segundo Koumaré (1988, p.24): “desde o
nascimento, o ser humano está sujeito ao controle de elementos naturais e
a sobrevivência depende da capacidade de encontrar um equilíbrio em um
ambiente que contém elementos favoráveis e desfavoráveis. O conhecimento
destes elementos confere poder de conservar ou alterar aquele equilíbrio que
representa a saúde”10.
No que concerne ao campo da saúde mental em África, a pessoa é concebida
como uma unidade indissolúvel de corpo material (Ara), corpo imaterial
(Orí Inu) e sua ancestralidade, porém, quando os colonizadores trouxeram
10 BARROS, 2006, p. 7,8.
222
o pensamento da medicina psiquiátrica ocidental, houve um processo de
estranhamento para esses povos como consta nos relatos de Barros:
No final do século XIX e início do século passado, missionários e militares
médicos em missão de exploração e conquista descreveram fenômenos
considerados desordem psíquica, assim como as terapêuticas em sociedades
africanas, americana e asiática. Em suas observações, os preconceitos, as
categorias morais, o paternalismo e o eurocentrismo reduziam a diferença
ao absolutamente outro e ao exótico. A religião foi considerada, muitas
vezes, como esquizofrenia organizada. A magia como doença da cultura e
o especialista da cura negro-africano descrito como epilético, histérico ou
doente dos nervos.11
Essa leitura feita pelo pensamento ocidental acerca das manifestações
culturais e religiosas de povos negro-africanos perdurou durante muitos anos
influenciando na criação de representações sociais sobre as importantes
contribuições dessas culturas em África e no próprio Brasil, como descreve
Cunha Júnior12:
O eurocentrismo ocidental reza tudo aquilo que ele desconhece que não tem
grande importância para o conhecimento racional. O ocidente não conhece,
portanto não existe. Dado ao desconhecimento ocidental, às vezes acidental,
noutras proposital, grande parte do conhecimento da humanidade não existe
como conhecimento racional. Reduz os povos não ocidentais a povos que
não pensam de forma lógica. A ignorância ocidental sobre os não ocidentais
(ou pelo menos conhecimento parcial) produziu a arrogância e desta ao
eurocentrismo, em se considerar única fonte dos únicos pensamentos lógicos
racionalizados pelas lógicas do seu conhecimento.
11 Ibidem, p. 8
12 CUNHA JÚNIOR, Henrique Antunes. NTU: introdução ao pensamento filosófico bantu. Revista Espaço Acadêmico, Fortaleza, ano 32, v. 1, p. 59, 2010.
223
Em pensamento similar ao de Cunha Júnior, Barros também adverte13:
A África tomada como objeto, destituída de história e de saber, tem sido ainda
em nossos dias terreno constante de investigações em diversas disciplinas.
No campo particular da chamada etnopsiquiatria, a discussão sobre o que é a
alteridade é ferida aberta, pois a psiquiatria se debate com a visão da loucura
como o outro da normalidade desejada, e a etnologia conforta-se com formas
mais ou menos sutis da herança colonial, nas quais o africano, o indígena
ou o não-europeu ocupam o lugar de um outro do qual se desconhecem
os limites da diferença. Essa é uma problemática crucial assinalada por Piero
Coppo (1993), pois a psiquiatria, setor da medicina convencional de origem
europeia, erigiu seu saber com base na separação entre corpo e espírito,
disjunção estranha no pensamento negro-africano. Verifica-se, assim, um
distanciamento epistemológico profundo entre a medicina psiquiátrica de
origem europeia e a medicina negro-africana. No entanto, muitos esforços
têm sido realizados no sentido de superar os obstáculos teóricos e políticos.
Pesquisas importantes têm resultado, muitas vezes, do esforço conjunto
de vários especialistas: antropólogos, psiquiatras, sociólogos, psicólogos,
inscrevendo-se no quadro de formulação de uma revisão crítica da própria
constituição do saber dominante nas sociedades ocidentais.
Porém, a despeito das críticas e formulações teóricas acerca do pensamento
negro-africano e de suas práticas no campo saúde-doença, seus modelos
de cura pautado em uma lógica de envolvimento com a ancestralidade,
torna-se inconteste. Com a diáspora africana no período expansionista
do capitalismo mercantilista, esse pensamento viajou nos tumbeiros e
foi trazido em forma de memórias coletivas dos povos escravizados e
ressignificou-se em terras brasileiras, através das Religiões de Matriz
Africana ou Terreiros de Matriz Africana como popularmente ficaram
conhecidos e vem se legitimando como conhecimentos e práticas de
13 BARROS, Denise DIAS, Medicina negro-africana: institucionalidade, saberes e sentidos do adoecer e da loucura na África do Oeste e no Mali. Revista Imaginário. São Paulo, ano 10, n. 10, p. 77-114, 2005.
224
acolhimento, cuidado, tratamento, prevenção e promoção de saúde.
O TERREIRO COMO ESPAÇO DE PROMOÇÃO
E TRATAMENTO EM SAÚDE MENTAL
A palavra Terreiro na definição de Sodré é o lugar próprio, ou seja, “Ela tem
em sua etimologia o significado herança: é um bem ou conjunto de bens que
se recebe do pai (pater, patri). Mas é também uma metáfora para o legado de
uma memória coletiva, de algo culturalmente comum a um grupo”. Ele é um
espaço mítico-religioso no qual se desenvolveu grande parte do patrimônio
cultural negro-africano. Um território geográfico e político de preservação
dessa identidade negra e refazimento de laços familiares e ancestrais, como
relata Sodré14:
O espaço do terreiro vai ser o lugar de reterritorialização de uma cultura
fragmentada, de uma cultura de exílio. É ali que o indivíduo vai reviver, vai
tentar refazer a sua família e o seu clã, que tal como na África, são formados
independentemente de laços sanguíneos. No espaço do terreiro, o indivíduo
buscará o sentido de pertencimento a uma coletividade e ritualisticamente vai
reencontrar a sua nação.
Na concepção do historiador Ronaldo Souza no vídeo documentário Casa
de Santo: “O Candomblé é a alma, a essência litúrgica do povo negro”. Os
Terreiros de Candomblé são uma expressão da Cosmovisão Africana no
Brasil e grandes guardiões da identidade e memória ancestral histórica
desses povos, segundo o pensamento de Luz15:
14 SODRÉ, M. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes, l988, p 56.
15 LUZ, Marcos Aurélio de Oliveira. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. 2. ed.Salvador: EDUFBA, 2000, pp 418-421.
225
Uma das mais importantes instituições que asseguram a continuidade do
processo civilizatório africano é o culto aos ancestres (...) Não poderíamos
deixar de mencionar a existência de inúmeros terreiros da tradicional religião
africana que se desdobram e se multiplicam ao passar dos anos, irradiando
seus valores (…) poderíamos dizer, em outras palavras, que a religião tradicional
africana mantém-se na África e nas Américas, para garantir a existência, no
sentido mais complexo e profundo que essa palavra possa ser empregada
dentro do contexto simbólico negro-africano que exprime a dinâmica do
universo caracterizada pela relação dialética entre esse mundo e o além.
Garantir a existência, para que o mundo não se acabe, significa a constante
mediação entre o mundo das forças cósmicas que regem o universo, o mundo
dos ancestrais, o Órun, com o mundo dos seres humanos, o Aiyê, através da
religião. (...) A expansão da humanidade, o equilíbrio da vida social e natural
dependem da prática litúrgica que envolve a temporalidade e a espacialidade
da vida do ser humano no âmbito do processo civilizatório africano.
O Terreiro de Candomblé foi historicamente um espaço de resistência e
refúgio dos negros e das negras durante o período escravista brasileiro, mas
também, de reconstituição dos laços de família representados na família
de santo, de pertencimento étnico, de fortalecimento do corpo e da alma.
Nesse espaço mítico-religioso, o paradigma africano é vivo e vivido como
um complexo de saberes e práticas que abrangem o campo da saúde, da
educação pela oralidade, dos valores ético-morais sobre as relações com as
pessoas, com a vida, com a natureza, com o universo e com os ancestrais.
Especificamente no campo da saúde mental no Terreiro de Candomblé,
existem maneiras de acolher, cuidar e tratar as pessoas. Em todos os casos, a
escuta qualificada e atenciosa é feita pela Ìyálórìsà ou Bàbálórìsà16 como uma
primeira abordagem para compreensão do problema. Em seguida, utiliza-
16 Ìyálórìsà ou Bàbálórìsà são denominações para o sacerdote supremo do Candomblé. Popularmente no Brasil ficaram conhecidos como mãe de santo ou pai de santo.
226
se a consulta divinatória aos òrìsà mediante os quais são passados para a
pessoa/consulente os procedimentos que ela deve realizar para fortalecer
sua cabeça (Orí) e restituir Àse. Nesse caso, pode ser desde um Borí Omi Tutu
ou Obì a cabeça (um banho com água fresca e o fruto africano Obì), ao Borí
Onje Gbígbe (comidas secas são ofertadas a cabeça como o àkàsà17) chegando
até ao Borí Èjè (um procedimento completo que envolve recursos animais,
vegetais e comidas secas).
Em alguns casos, existindo a necessidade de a pessoa ser iniciada para o
Òrìsà, os procedimentos serão vividos de forma mais profunda, complexa e de
duração mais longa, todavia nesse trabalho não nos cabe a descrição de rituais
de iniciação ao Candomblé, pois se constitui uma cerimônia interna e restrita
somente a pessoas já iniciadas nessa Religião, como nos revela Santos18:
De fato, pouquíssimas pessoas têm acesso a essas cerimônias. Já dissemos que a aquisição de conhecimento é uma experiência progressiva, iniciática, possibilitada pela absorção e pelo desenvolvimento de qualidades e de poderes. O acesso a determinados ritos está em relação direta com o grau de iniciação e, consequentemente, com a capacidade física e espiritual do indivíduo de assistir e de participar de uma experiência durante a qual são liberados e estão presentes forças e poderes dificilmente manejáveis:
1. Biri-Biri bò won lójú Trevas cobrem seus olhos
2. Ògbèri nko mo Màrìwo O não iniciado não pode conhecer o mistério do Màrìwo
No que diz respeito aos procedimentos em saúde mental dispensados pelo
17 ̀kàsà é uma pasta feita de milho branco ralado e enrolado em folha de bananeira servido em vários rituais do Candomblé.
18 SANTOS, 2012, p.20
227
Terreiro de Candomblé, podemos afirmar a existência de uma metodologia
terapêutica em saúde que revela o entendimento do adoecimento mental
como um acontecimento na vida e no destino da pessoa, que pode ou não
ter cura. Em todos os casos, no entanto, de expressões do sofrimento mental
(depressões, ansiedades, esquizofrenias, bipolaridades, dentre outros), os
procedimentos terapêuticos do Terreiro serão eficazes na perspectiva do
alívio dos sintomas com a utilização do vasto conhecimento em plantas,
raízes, sementes e folhas que o Candomblé tem domínio, bem como pelo
acesso à ancestralidade.
Entendendo melhor, poderíamos exemplificar que em um quadro
de sofrimento psíquico que se apresenta como depressão psicótica,
diagnosticada pela medicina ocidental, no Candomblé pode revelar-se como
um ato manifesto da energia ancestral que está diretamente ligada à condição
daquela pessoa especificamente, pois no Terreiro o reconhecimento do
mundo imaterial/ancestral é tão real quanto o mundo material (homens/
terra) e sua relação dialógica de intercâmbio energético é ininterrupta e
constante. A manifestação dessa energia ancestral pode ter similaridades
com um quadro de “perturbação mental”, confusão mental, desorientação,
desorganização do pensamento, tremores, sudorese excessiva, ampliação
e aguçamento dos sentidos da visão e da audição. Essa maneira de
compreender os fenômenos do mundo imaterial/ancestral no mundo
material dá-se porque, no Terreiro de candomblé, a referência está pautada
na filosofia da ancestralidade que vai tecer formas próprias para o sentido
da vida, das relações, da compreensão do próprio ser humano. Na filosofia
ancestral yorubá compreende-se que:
228
O corpo humano - ara ènia - é o concreto, coisa tangível de carne e osso, o
qual, conhecemos através dos sentidos e que pode ser descrito através da
anatomia. É a forma física do homem modelada do barro - amò, e da água - omi,
primordiais, por Òrisàálá. É neste ser inerte que o Ser Supremo Olódùmarè,
sopra o hálito, denominado Èmí. É somente Ele quem coloca o Èmí no homem,
dando-lhe, dessa forma, vida e existência, e que para Ele voltará após a morte.
O Èmí é representado pela respiração, que revela que a força vital divina está
no homem. O Èmí é associado estritamente à vida e a todo o seu mecanismo
de viver […] Além do corpo - ara - e da respiração, representada pelo èmí, o
homem recebe a alma, cujo conceito é muito complexo e cujo nome é definido
ora como o próprio èmí, outras vezes como iwin, o ânimo interior, e okàn, o
ânimo exterior representado pelo coração19.
Ao longo da história, essa compreensão da filosofia ancestral yorubá não
foi devidamente pesquisada e entendida, mas as manifestações da força
ancestral do òrìsà em forma de transe no Candomblé da Bahia tornaram-se
objeto de estudos e análise por parte de muitos acadêmicos, dentre eles o
médico e pesquisador maranhense do século XIX Raimundo Nina Rodrigues20
que desenvolveu sua classificação das mesmas como doenças mentais e os
cultos afrorreligioso como ações primitivas de um fetichismo animista.
Seu pensamento influenciou uma gama de outros estudiosos e o
desenvolvimento da ciência de base racional, biológica e empirista em
saúde acabou por desconsiderar as manifestações do sagrado ou do mundo
imaterial. Até hoje são perceptíveis as restrições no campo teórico e prático
da saúde mental quanto ao reconhecimento de muitas sintomatologias
19 BENISTE, José. Òrun – Àiyé: o encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yorubá entre o céu e a terra. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, pp 124-125.
20 Raimundo Nina Rodrigues era médico maranhense, professor universitário, escritor e pesquisador precursor dos estudos do negro no Brasil. Viveu muitos anos na Bahia e escreveu sobre o Candomblé referindo-se a essa Religião como Animismo fetichista dos negros baianos, assim como considerava os negros uma raça inferior, com atos religiosos primitivos. Seus estudos revelam o pensamento racista imperante em sua época.
229
como expressões dessa energia ancestral e, por conseguinte, os tratamentos
dispensados no Candomblé também passam a ser desqualificados como
formas primitivas, mágicas ou feitiçarias, um conhecimento rudimentar.
Entretanto, os Terreiros de Candomblé são detentores de saberes e práticas
no manuseio dos reinos animal, vegetal e mineral, pois estes reinos possuem
por excelência, elementos constitutivos de Àse, como descreve Santos21:
A força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir.
Sem Àse, a existência estaria paralisada, desprovida de toda possibilidade
de realização […] o Àse como toda força pode aumentar ou diminuir […] a
força do Àse é contida e transmitida através de certos elementos materiais,
de certas substâncias. O Àse contido e transferido por essas substâncias aos
seres e aos objetos mantém e renova neles os poderes de realização. […] O
Àse é contido numa grande variedade de elementos representativos do reino
animal, vegetal e mineral quer sejam da água (doce ou salgada) quer seja
da terra, da floresta, do “mato” ou do espaço “urbano”. O Àse é contido nas
substâncias essenciais de cada um dos seres, animados ou não, simples ou
complexos, que compõem o mundo.
Especificamente no que se refere ao reino vegetal, os religiosos do Candomblé
consideram como o sangue verde, pois sabem extrair o sumo das plantas
ou seu princípio vital para uso diversificado, como: banhos energéticos para
o re-equilíbrio do corpo e em ações de limpeza energética de ambientes
materiais como casas, apartamentos, locais de trabalho, dentre outros.
No universo do Candomblé, o reino vegetal, as plantas, principalmente as
folhas são consideradas sagradas (Ewé Oró = folha sagrada) “Kò sí ewé, Kò sí
21 SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Padê. Asesé e oculto Égun na Bahia. Rio de Janeiro: Vozes, 1986, p 41-42.
230
òrìsá”, ou seja, sem folhas, sem Òrìsà e, devido a essa importância litúrgica,
são também compreendidas em uma ordem de classificação:
Verger (1968), estudando o papel das plantas litúrgicas entre os Yorubá, vai
dividi-las em duas categorias: igègùn òrìsà e èrò òrìsà, a primeira categoria
para “excitar os òrìsà e a segunda para acalmar os òrìsà. Explicita quanto ao
termo gùn que este significa “montar” e induz a ideia de cavalgar, sendo que
os adeptos que são possuídos pelas divindades são denominados de elégùn
ou esin òrìsà – cavalo do òrìsà –, concluindo que as espécies colocadas sob
essa categoria servem para propiciar a possessão. Contrariamente, as plantas
classificadas como de calma (erò) teriam o efeito de abrandar o transe,
apaziguar o òrìsà. Estas categorias mencionadas por Verger foram extraídas
de textos dos Odù e no curso de nosso trabalho conseguimos identificá-las
nas orín ewé ou “cantigas de folhas”, integrantes do ritual Asà òsányìn ou
como chamada sasányìn, no qual as espécies são louvadas antes de serem
empregadas22.
Salientamos que não somente as folhas, mas toda a planta é usada no
Candomblé: as raízes, o caule, as sementes, as frutas, a casca e a seiva.
Em relação às folhas, como afirma Verger, há um sistema de classificação
bipolar que as divide em èrò òrìsà (folhas frias) e igègùn òrìsà (folhas
quentes, excitantes). As folhas consideradas frias são folhas que acalmam,
dando uma sensação de tranquilidade, ao contrário das folhas quentes
que causam uma sensação de excitação no corpo material e imaterial. A
mistura de ambas ocasiona o equilíbrio energético presente nos banhos,
os quais também podem induzir ao transe, quando as pessoas estão sendo
preparadas para receber a energia do Òrìsà no processo iniciático do
Candomblé. Dada a sua importância, o uso e manuseio das folhas devem
ser feitos com muita cautela e cuidado, por que as mesmas são possuidoras
22 BARROS, José Flávio Pessoa de. O segredo das folhas: sistema de classificação de vegetais no candomblé jêje-nagô do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, p. 89, 1993.
231
de muito Àse, energia que pode fazer bem (curar) ou fazer mal (matar) se
manipulada de forma errônea.
Nos Terreiros de Candomblé, elas são manuseadas pelos Babálòssaím23,
Babálòrísá e Ìyálòrísá pelo nível de conhecimento profundo sobre a bipolaridade
energética “positiva ou negativa” de cada folha e como melhor definir o uso, a
maneira e a ocasião. No Candomblé de origem Yorubá, Nàgô ou Ketu, existe
uma energia ancestral, um Òrìsà que é o responsável pelas folhas, chama-se
Òsányìn, sendo por isso dedicado a ele um ritual especial e único intitulado
Asà Òsányìn ou Sasányìn, que são um conjunto de cantigas para as folhas (orín
ewé), por meio dos quais são pronunciadas as palavras de encantamento (os
Ófòs) na intenção de despertar o princípio vital (o Àse) daquela folha. Esse
ritual é secreto e segue uma sequência, pois para cada folha corresponderá
um encantamento (Ófò). A Sasányìn é restrita aos integrantes daquela casa de
Candomblé, não podendo ser assistido por pessoas alheias à casa religiosa,
por que se constitui momento de transmissão de conhecimentos ancestrais
africanos dedicados exclusivamente aos iniciados no Òrìsà.
Durante a pesquisa de campo, no mestrado em 2013, entrevistamos o Babàlòssaìn
Alexandre Adè Ewé Ewé Molá do Candomblé Asè Ye Ye Òmín Òsún que nos relata
os dois tipos principais de banhos utilizados no Terreiro de Candomblé:
O Àgbo e o Omi Èró. O primeiro tem características de um banho com aroma
forte, porque é preparado e fica curtindo durante dias e/ou meses em potes
de barro e sua função é retirar as cargas negativas, daí a denominação
popular de banho de descarrego. O segundo, o Omi Èró, é um banho tido
23 Babàlòssaín é a pessoa preparada e responsável para o manuseio das folhas no Candomblé. Possui preparo específico para a função e tem muito respeito da comunidade como um todo. Porém essa função foi ao longo da história sendo absorvida pelos Babálòrísá e Ìyálòrísá (pais e mães de santo).
232
como refrescante, porque é preparado para ser usado logo em seguida, sem
apuração em potes de barro e sua função é de restituir energias positivas no
corpo (informação verbal).24
De fato em um procedimento terapêutico intitulado Ebó (limpeza espiritual
energética) os dois banhos podem ser usados, segundo Alexandre:
Primeiro o Àgbo para retirar energias negativas, energias prejudiciais ao
funcionamento do corpo que geram angústia, stress, tensão muscular,
cansaço físico, fadiga mental, dores de cabeça, medo, ansiedade e logo em
seguida o Omin Èró para reestabelecimento das energias positivas, dando
uma sensação de bem-estar e equilíbrio, pois o corpo e a alma foram
reequilibrados energeticamente (informação verbal).25
Por conseguinte, no Candomblé os tratamentos em saúde mental vão
incorporar uma série de procedimentos que envolvem desde escuta
terapêutica por parte dos Babálòrísá e Ìyálòrísá, aos rituais de Borí
(procedimentos específicos para a cabeça - Orí), os Ebós (limpezas espirituais)
associados a banhos, jejuns, restrições alimentares por um tempo e, até se
necessário, o processo iniciático para resolutividade de determinados casos
clínicos/mentais. Acerca dessas maneiras de tratamento terapêutico do
Terreiro de Candomblé Guimarães afirma que:
Esses universais de matriz africana compõem categorias simbólicas
que organizam formas de ser e viver, organizam o mundo, constroem e
mantêm subjetividades. São responsáveis pela construção e manutenção
de subjetividades porque se processam através de formas simbólico-
afetivas, como acolhimento, suporte (holding), vivência de continuidade de
24 Entrevista concedida em 12 jan. 2013.
25 Entrevista concedida em 12 jan. 2013.
233
ser no tempo e espaço, apresentação de limites de forma não invasora; por
serem processos relacionais e intersubjetivos intrínsecos, “incorporados”,
“assentados” à dinâmica sistêmica do terreiro, permitindo ao indivíduo lidar
com questões, por vezes conflituais, que se estabelecem entre aquilo que
se necessita/deseja e o que é possível em função dos limites da realidade
externa (entre princípio do prazer e princípio da realidade. 26
CONTRIBUIÇÕES DO TERREIRO PARA A SAÚDE MENTAL
O paradigma civilizatório africano ao longo da trajetória histórica da
humanidade não foi devidamente estudado e compreendido em sua
especificidade como um modelo que tem como premissa o reconhecimento
de um mundo imaterial (Òrun), no qual residem as forças cósmicas dos
ancestrais e sua relação constante e direta com o mundo material (Àiyé), dos
seres humanos, da terra, da natureza. Desta feita, as contribuições advindas
desse modelo são constantemente postas em cheque pelo olhar de uma
racionalidade totalizante e totalitária, de uma ciência eurocêntrica com base
em um pensamento ocidental que permeia todas as áreas do conhecimento
humano, colocando sob suspeita de não científico tudo que o foge às regras
do conhecimento ocidental.
No campo da saúde mental onde se lida com os fenômenos da psique,
os paradigmas também são referenciados no pensamento ocidental e no
não reconhecimento de manifestações do mundo imaterial como situações
reais e manuseáveis. Ao contrário dos Terreiros que reconhecem a relação
dialógica entre os mundos (material e imaterial), o que gera uma ética própria
26 GUIMARÃES, M. A. Os mistérios do nascer: significados na tradição religiosa afrobrasileira. In:Sinais de vida: reflexões sobre parto e nascimento. Rio de Janeiro: REDEH, 1995, p 8. Marcos Guimarães é psicanalista, estudioso e pesquisador da saúde mental e dos Candomblés do Rio de Janeiro.
234
de respeito ao sagrado como uma dimensão da existência. Assim quando
se pensa o binômio saúde-doença reporta-se a equilíbrio/desequilíbrio
energético do corpo que é extensão da natureza, em fortalecimento do corpo
físico (Ara) e do corpo não físico/alma (Èmí) através da restituição de Àse ou
força vital. No Terreiro, não existe tratamento em saúde que não envolva
todas as dimensões da pessoa, seu histórico, sua forma de viver e conviver
no mundo, suas relações na sociedade, seus valores éticos, seus ideais, seus
medos, seus anseios, suas dúvidas, suas crises existenciais, as possibilidade
de ressignificação de seu lugar no tempo e no mundo. Aliado a todo esse
conjunto de elementos, os conhecimentos sobre os reinos animal, mineral
e vegetal tornam o Terreiro um território em que os tratamentos vão ter
essencialmente base natural.
Nessa perspectiva, pensar a saúde mental é também incluir a dimensão não
material que permeia a vida das pessoas, que pode gerar adoecimentos e
pode gerar processos de tratamento com alívio dos sintomas, inclusive para
casos diagnosticados pela medicina psiquiátrica. As práticas manipulativas
com as plantas, folhas e ervas podem ser utilizadas como práticas integrativas
e complementares nas unidades do Sistema Único de Saúde-SUS em
consonância com o que preconiza a Política Nacional de Saúde Mental
instituída no Brasil pela Lei nº 10.216/01 que busca dentre outras coisas:
Consolidar um modelo de atenção à saúde mental aberto e de base
comunitária. Isto é, que garante a livre circulação das pessoas com transtornos
mentais pelos serviços, comunidade e cidade, e oferece cuidados com base
nos recursos que a comunidade oferece. Este modelo conta com uma rede
de serviços e equipamentos variados tais como os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de
Convivência e Cultura e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos
235
CAPS III). O Programa de Volta para Casa que oferece bolsas para egressos
de longas internações em hospitais psiquiátricos, também faz parte desta
Política.27
Nessa mesma Lei, constitui direito da pessoa em sofrimento psíquico, no
artigo VIII, “ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos
possíveis” e, no IX, “ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários
de saúde mental”, esses direitos coadunam com as práticas terapêuticas
de saúde dos Terreiros que são de base fitoterápicas e menos agressivas
se comparadas às terapêuticas medicamentosas dos psicofármacos, que
mesmo os de última geração, ainda provocam reações adversas nos usuários
que fazem uso dos mesmos, com efeitos colaterais que os obrigam a utilizar
outras medicações clínicas para amenizar as consequências do tratamento
com psicotrópicos.28
O Centro de Atenção Psicossocial - Caps Iracema na cidade de Fortaleza, no
Estado do Ceará, como serviço substitutivo em saúde mental atende pessoas
em sofrimento psíquico grave (psicoses e neuroses) em regime ambulatorial,
com terapias individuais e grupais em uma perspectiva de tratamento e
acompanhamento da crise, evitando-se a internação em hospital psiquiátrico.
Em casos especiais que requerem uma atenção mais intensiva, orienta-se a
internação em hospital geral ou no Caps 24 horas, que realiza atendimento
de internação provisória e monitorada.
27 PORTAL DA SAÚDE, 2012. Disponível em <http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/cidadao/acoes-e-programas/conte-com-a-gente>.
28 BRSIL. Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso em 22 jan. 2012.
236
O Caps também tem como objetivo a promoção da inserção social dos
usuários, fortalecendo seus vínculos familiares e restabelecendo laços
comunitários dos mesmos com seu território e sua comunidade. Uma vez
inserida no atendimento a pessoa é acolhida, cuidada, ouvida e é construído
com ela e sua família um Plano Terapêutico Singular - PTS no qual constam
atividades de seu maior interesse, visando atender a suas necessidades,
composto por prescrições médicas, grupos terapêuticos, grupos de
arteterapia e grupos laborativos com oficinas geradora de trabalho e renda
(marcenaria, cerâmica, bijuterias, brechó, artesanato em geral) e oficinas
de alfabetização, o que possibilita exercitar a escrita e a leitura, concebidas
como uma condição importante na (re)construção da cidadania, oferecendo
atividades de suporte social, grupos de leitura e debate, que estimulam
a alteridade e a autonomia. Assim como a família e a comunidade são
envolvidas no tratamento para o processo de restabelecimento e reinserção
dos usuários, os quais nesses períodos ficam muito instáveis, inseguros
e, muitas vezes, violentos, requerendo um conjunto articulado de sujeitos
sociais que possam auxiliá-los nesse processo.
O Caps traz essa perspectiva psicossocial de trabalhar na busca de autonomia,
de cidadania e de alteridade desse outro que se encontra em sofrimento
psíquico. O serviço é basicamente um instrumento mediador entre o usuário
e a família, entre o usuário e a comunidade, entre a família e a comunidade,
em uma ação que aponta para a humanização do atendimento psíquico e a
desestigmatização das pessoas em sofrimento psíquico. De fato, o grande
desafio nesses serviços está pautado em não render-se à lógica dominante
capitalista de pensar a loucura como uma doença mental e o usuário como
237
um ser social, cultural, político e economicamente incapaz, tolhido em sua
fala, censurado em seus gestos, entorpecido em seus sentidos e condenado
ao silêncio. O Caps, ao contrário, se propõe a realizar intervenções que
reinventem a forma de lidar com o sofrimento mental - não como doença -
mas como formas diferenciadas de viver, de ser e estar no mundo.
Em 2007, a Prefeitura de Fortaleza incluiu na Rede de Atenção em Saúde
Mental a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC),
criada pelas Portarias Ministeriais nº 971, em 3 de maio de 2006, e nº 1.600
de 17 de julho de 2006 (BRASIL, 2006), as quais versam sobre a valorização
da medicina tradicional e das terapias medicamentosas fitoterápicas,
espirituais e não medicamentosas. Essa Política é o resultado do acúmulo
de discussões e reflexões realizadas pelos movimentos sociais de educação
popular e saúde, movimentos de saúde comunitária e profissionais de saúde
que não adotam o paradigma biomédico como modelo primordial na saúde
e que vinham realizando vários debates no interior das Conferências de
Saúde para que fossem reconhecidas suas práticas de tratamento, baseadas
em método não medicamentosos, como os da medicina tradicional chinesa
(acupuntura), da homeopatia, medicina antroposófica, da Fitoterapia e do
termalismo-crenoterapia.
Os saberes e práticas ancestrais africanas estão contemplados nessa
Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) como
conhecimentos ancestrais e milenares no uso medicinal dos animais, dos
minerais e das plantas. Nas sociedades tradicionais africanas, esse uso vem
acompanhado de encantamentos ou palavras mágicas que são pronunciadas
para despertar-lhes o princípio ativo, conforme constatou Verger “Se
238
para a medicina ocidental o conhecimento do nome científico das plantas
usadas e suas características farmacológicas é o principal, em sociedades
tradicionais o conhecimento dos ofò, encantações transmitidas oralmente
é o que é essencial”. Neles, encontramos a definição da ação esperada
de cada uma das plantas que entram na receita29. Esses conhecimentos e
práticas ancestrais das sociedades tradicionais africanas foram trazidos
pelos escravizados para o Brasil sendo preservados e ressignificados pelos
Terreiros de Candomblé, constituindo-se em fonte essencial do tratamento
em saúde dessas comunidades e utilizados em seus rituais sagrados.
Em 2011, o Caps Iracema incorporou às suas ações a terapia de base
ancestral com o uso de plantas, folhas e ervas associadas a benzeduras e
toques terapêuticos corporais como tratamento integral e complementar ao
tratamento biomédico, psicofármaco e psicoterapêutico. Com isso, emerge
a necessidade de compreender os impactos gerados por essa abordagem
terapêutica, fazendo surgir uma pesquisa de mestrado que foi realizada em
2012, com usuários dessa Terapia no Caps Iracema e os profissionais, aliada
ao motivo de compreender como esse conhecimento distinto se desenvolvia
com outras formas teórico-metodológicas de abordagens terapêuticas do
processo saúde-doença mental posto ainda existir o pensamento hegemônico
de supervalorização do tratamento medicamentoso em detrimento de outros
tratamentos como a psicoterapia, a arte terapia, as terapias ocupacionais
e a terapia de base ancestral. Além disso, a instituição tem em sua rotina
pautar o atendimento com base em diagnósticos, em detrimento de uma
contextualização da vida da pessoa como um todo. A esse respeito um dos
29 VERGER, Pierre Fatumbi. Ewé: o uso das plantas na sociedade iorubá. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
239
médicos psiquiatras da unidade, que é ativista e militante da luta antimanicomial,
em uma reunião de equipe técnica do Caps Iracema relata que:
Na clínica tradicional, manicomial o paciente é visto como o diagnóstico. Você
coloca entre parênteses a vida da pessoa, porque você vai intervir sobre o
diagnóstico, como se o diagnóstico fosse uma identidade, uma entidade à
parte. A clínica antimanicomial, que não é necessariamente da reforma
psiquiátrica, por que nem toda reforma psiquiátrica é antimanicomial, como
acontece aqui em Fortaleza, tem outra forma. Na clínica antimanicomial é o
contrário, você subordina o diagnóstico à vida das pessoas, à compreensão da
vida das pessoas. Você tira o parêntese da vida da pessoa, que é o diagnóstico
e passa a entendê-la no contexto da sua vida, do seu sofrimento mental como
um todo. Não tem como você colocar a pessoa no centro do atendimento se
isso não se der a partir de um conjunto de conhecimentos multiprofissionais
que extrapola o saber estritamente médico, que é onde se fundamenta a
clínica tradicional (informação verbal).30
O relato do médico chama à atenção para os modelos de atendimento na
saúde mental que foram implantados na Reforma Psiquiátrica, mas também
traz à tona a essencial necessidade de vários conhecimentos em relação
dialógica em uma instituição como o Caps, para que se evite a primazia de
um único olhar, o olhar psiquiátrico, e a consequente definição de sofrimento
mental, como um conjunto de sintomas compilados em forma de diagnóstico,
que tem como base a prescrição de medicamentos psicofármacos.
E nesse sentido a terapia de base ancestral vividas no Caps Iracema traz em
seu bojo possibilidades de acolhimento, cuidado e tratamento sobre outra
ótica, que delineia atividades que possuem a seguinte proposta metodológica:
tratamento integrativo-complementar de caráter grupal e/ou individual, com
base nos conhecimentos e práticas ancestrais africanas no uso e manuseio
30 Entrevista - Psiquiatra, realizada 08 nov. 2012.
240
de ervas e plantas, tendo como princípio a valorização da autoestima e o
fortalecimento da subjetividade da pessoa em sofrimento psíquico, em uma
perspectiva de reorganização educativa de como incorporado e vivenciar esse
sofrimento, utilizando-se também da dimensão espiritual, com os recursos
das benzeduras.
A esse respeito, a terapeuta ocupacional do Caps Iracema relata em sua
entrevista:
Eu tenho muitos pacientes, mas nem todos fazem essas terapias com as plantas, mas eu tenho 3 pacientes que fazem sim, e elas falam no grupo de arte-terapia que se sentem melhores, mais aliviadas, mais calmas e que aprendem também a respirar, controlar a ansiedade delas, passam a ver que todo mundo tem ansiedade, tristeza, que não é só elas e que elas podem tomar um chá, uma massagem para se tranquilizar. Elas também falam que, nas sessões com a mãe de santo, elas conversam seus problemas e se sentem bem porque ela sempre escuta e orienta quanto ao fato de elas não desistirem do tratamento no Caps e com as ervas e plantas. Que a natureza também oferece remédios naturais, sem muitos efeitos colaterais como acontece com os medicamentos do Caps. Porque os pacientes se queixam muito dos efeitos clínicos causados pelas medicações, como o haloperidol (antipsicótico), que causa impregnação, dores musculares, os ansiolíticos e antidepressivos causam ressecamento da mucosa da boca, gosto amargo ao
se alimentar, tem vários efeitos colaterais (informação verbal).31
Para as terapeutas de base ancestral (as mães de santo) trabalhar com as ervas
e plantas no Caps foi inicialmente um trabalho desafiador por que as pessoas
não estavam acostumadas com produtos naturais, tratamentos naturais:
É mais fácil a farmácia, por que o remédio já está pronto. Aqui no Caps é só ir
naquela janelinha da farmácia. Nas sessões, a gente explica que vem do mato,
todos os remédios, inclusive esses comprimidos do Caps. Nós trabalhamos na
31 Entrevista-Teraupeta Ocupacional, realizada em 27 nov. 2012.
241
conscientização da natureza, que ela dá tudo para gente e que precisam viver
mais perto dela, ir na praia, tomar banho de mar, por que você acredita que
aqui tem usuário que nunca foi no mar aqui em Fortaleza? A gente contando
ninguém acredita, mas tem. A pessoa vem todo dia no Caps, mas num vai
numa praia. Então a gente diz que aqui, no Caps, a gente ajuda até à pessoa
a descobrir que tem muita coisa na cidade que a gente pode ir para lazer,
sair de casa, por que é como a gente diz, não é por que tem esse problema
de cabeça que precisa fica só dentro de casa, num é não? E o contato com
a natureza ajuda muito porque a pessoa fica mais fortalecida, tem Àse na
natureza (informação verbal).32
No trabalho terapêutico desenvolvido por elas, o referencial do Terreiro
vai se expressando em formas de acolhimento, cuidado, tratamento e
acompanhamento dos usuários de saúde mental que leva em consideração
a particularidade de cada caso, conforme relato abaixo:
A gente planeja as sessões terapêuticas a partir da demanda que os pacientes
trazem. Nunca uma sessão é igual a outra. Porque depende. Tem dia que é
mais banho, lava pés com ervas. Outro dia é mais uma conversa mesmo, por
que eles têm muita carência, eles querem conversar, eles querem que a gente
escute eles primeiro. Aí a gente senta e conversa com eles, depois de ouvir
tudo, a gente oferece um banho, um chá, uma massagem. Geralmente eles
topam e saem aliviados, por que a gente tirou a carga negativa né, eles saem
revigorados. Por que a gente sabe que não dá para tirar carga negativa só
com conversa, tem que ter a erva, a folha para poder acalmar a cabeça, limpar
o corpo e a alma. Às vezes eles têm muita energia e ficam agitados ou têm
baixa de energia, aí fica choroso, triste, com aqueles pensamentos negativos.
As folhas, as ervas vão ajudar tirando ou botando energias, equilibrando o
campo de energia deles. E funciona (informação verbal).33
Nessa Terapia de base ancestral utiliza-se a seguinte metodologia,
monitoramento e avaliação dos usuários atendidos nas sessões:
32 Entrevista – Terapeuta de Base Ancestral, realizada em 7 dez. 2012.
33 Entrevista – Mãe Mocinha, realizada em 7 dez. 2012.
242
Nós temos uma ficha que eles preenchem com vários dados clínicos e de seu sofrimento mental. É tipo o prontuário que eles têm aqui do Caps, sendo que na nossa ficha eles vão preencher sobre outros dados da vida deles. Eles vão falar dos sentimentos, por que a ficha é para registrar como eles estão evoluindo no tratamento. Por que a gente também muda as ervas e plantas de acordo com a situação que o paciente apresenta, né? Num vai ficar tomando banho da mesma erva o resto da vida entendeu? Nem a erva serve mais se usar para tudo de uma pessoa, é preciso ir mudando, diminuindo ou aumentando a quantidade, por que se a pessoa está muito lenta, eu não vou deixar ela mais lenta ainda. Então eu vou estimular para ela fica esperta, alegre, com energia de felicidade. Por isso que muda o tratamento, e lá na ficha a gente vai acompanhando, porque o paciente, às vezes, não lembra. Na ficha eles têm acesso, fica tudo anotado e quando eles pedem para não colocar o que eles falaram, aí a gente não coloca, po que é o direito deles, porque é a vida deles também. Nós também falamos na reunião da equipe do Caps, a gente fala como os pacientes estão (informação verbal).34
Portanto, os depoimentos das mães de santo revelam uma compreensão
acerca da saúde mental, tendo como referência o universo mítico-religioso
dos Terreiros, no qual a pessoa é um todo complexo que envolve várias
dimensões: a dimensão humana, a dimensão da família, a dimensão da vida
comunitária e a dimensão ancestral/espiritual. Dessa forma, a abordagem ao
sofrimento psíquico do usuário é um chegar junto ao outro, compreendendo
sua vida nessas diversas dimensões. Como diz Mãe Mocinha de Oya “a pessoa
é um corpo físico e espiritual, não se trata o corpo sem tratar o espírito e a
família também”.
Essa articulação feita pelas mães de santo se expressa na condução de seu
trabalho terapêutico, quando tratam o paciente e quando tratam a família,
que também é ouvida, atendida nas sessões das terapias com ervas e plantas,
visto que o adoecimento acomete não só o usuário, mas os familiares que
34 Entrevista – Usuário de Terapia de Base Ancestral, realizada em 7 dez. 2012.
243
o cuidam. Ou seja, o adoecimento mental forma elos de reprodução desse
sofrimento, interligando usuário e família, gerando no espaço da vida
privada da família, situações de stress, violência, negligência e, em alguns
casos, cárcere privado, maus tratos, acorrentamento e trancafiamento do
usuário. Apesar de o Caps Iracema disponibilizar profissionais que realizam
grupos de família, destinados a escutá-las e apoiá-las, as queixas ainda são
frequentes, e muitos familiares buscam apoio medicamentoso em ansiolíticos
e antidepressivos, gerando um aumento da medicalização da população.
Dessa maneira, a Terapia de base ancestral também vem sendo acessada
pelas famílias, após perceberem melhoras nos quadros sintomatológicos
de seus familiares, assim como houve um incentivo por parte das mães de
santo em querer tratar também a família dos usuários que frequentam suas
sessões terapêuticas, como pode ser compreendido no relato do pai de uma
usuária diagnosticada com depressão com sintomas psicóticos:
Eu cuido da minha filha porque o marido dela nem liga para ela, mas ela é
minha Filha, e eu que cuido dela, porque eu tenho mais paciência. Eu um
dia vim deixar ela aqui no Caps para essa sessão das plantas, e a Dona Vilma
me convidou para fazer parte, eu fui e eu gostei muito de participar. A gente
relaxa e esquece os problemas. Ela é muito atenciosa com a gente, trata bem
e a gente se sente leve quando sai daqui, já sai relaxado. Eu gosto muito.
Deveria era ter mais sessões assim. Ela também até ensinou como fazer uns
chás para gente ficar relaxado para cuidar da menina (informação verbal).35
Para a usuária Margarida (nome fictício para preservar sua real identidade)
a Terapia de base ancestral ajuda muito em seu autoconhecimento. Relata
em entrevista que sua vida é bem complicada. É mãe solteira, tem 31 anos
35 Entrevista – Pai de usuária diagnosticada, realizada em 5 nov. 2012.
244
de idade, mora na cidade de Fortaleza e tem um filho de 11 anos. Ela vive da
pensão do ex-marido e faz pequenos trabalhos para sobreviver. Menciona
que teve uma vida que ela considerava tranquila, uma vez que foi uma
adolescente que estudou, concluiu o ensino médio, casou e teve seu primeiro
e único filho. Segundo ela, foi nesse contexto que surgiu o problema do
sofrimento mental. Ela recorda que começou com uma tristeza e desânimo,
não querendo mais cuidar do bebê. O quadro sintomatológico foi se
aprofundando, e ela foi levada ao Hospital de Saúde Mental de Messejana
(HSMM) pelo marido.
Na consulta de emergência, foi diagnosticada com depressão pós-parto
e ficou internada por 15 dias. Depois desse episódio de crise, ficou sendo
acompanhada no ambulatório do hospital com medicações para depressão,
mas não fazia o tratamento com regularidade por que tinha muita dificuldade
de tomar os remédios, por não aceitar essa condição de doente mental, de ser
louca, por que foi internada em um hospital psiquiátrico. Durante seu relato
Margarida se emociona ao recordar a primeira crise, lembra que as pessoas
da vizinhança apontavam para ela e falavam sobre sua internação em um
hospital de “doídos”, o que fez aumentar a dificuldade de aceitação de seu
adoecimento. Também cita que as crises não eram frequentes e, às vezes,
passava meses sem ter esses sintomas de depressão, mas, em compensação,
os sintomas de euforia e mania estavam sempre presentes em seu cotidiano.
E sobre isso Margarida fala sobre um dos episódios de crise eufórica:
Um dia eu acordei e senti que estava bem disposta, mas eu estava mesmo era
eufórica, aí eu fiquei com a sensação de que precisava fiscalizar as lojas, o trabalho
das pessoas. Sai de casa e fui numa loja que vende material de jardinagem. Isso
eu cheguei lá umas 10:00 horas da manhã, e aí chamei um vendedor, e comecei
245
a perguntar sobre a planta tal, o adubo tal, como era que se plantava, como era
vendida, se tinha nota fiscal, se eu comprasse em grande quantidade qual seria o
prazo de entrega, isso tudo. Eu passei o dia lá, acabei ajudando o homem a cuidar
das plantas e só fui embora no começo da noite, quando o vendedor falou que eu
precisava ir embora porque ele precisava fechar a loja. Mas mesmo assim ainda
fiz ele me levar na casinha do cachorro para saber se eles davam comida e água
para o animal e se ele não sofria maus tratos. Bom! Não satisfeita, eu sai andando
e fui entrando num bairro que não me lembro o nome agora, mas é como se eu
tivesse apagado da mente, porque depois lembro do meu marido chegando e
pedindo para eu ir embora com ele. Eu estava em uma favela conversando com
traficantes e convencendo eles de que a vida de bandido não compensava. Hoje
eu sei que eles foram bons comigo, e devem ter tido pena de mim, e aí viram que
eu não estava bem, pegaram meu celular e ligaram para o meu marido. Quando
cheguei em casa, eu não lembrava bem tudo que eu tinha feito. Eu só lembrei
depois. Fui novamente para o hospital mental, mas me recusei a ser internada e
jurei que iria tomar meus remédios (informação verbal).36
Margarida, depois da primeira internação no Hospital Psiquiátrico e de
sucessivas Crises, foi encaminhada ao Caps Iracema em 2008, pois o
ambulatório de psiquiatria desse hospital havia fechado. Ela relata que chegou
na unidade para atendimento com medo de ser internada, mas ficou aliviada
de saber que naquela instituição o tratamento era diferente. Foi recebida por
um profissional que conversou com ela, abriu seu prontuário, explicou toda
forma de tratamento e decidiu em conjunto com ela seu plano terapêutico, o
qual se compunha de um conjunto de atividades que envolviam as consultas
médicas, psicoterapia e terapias grupais.
No Caps Iracema, Margarida foi reavaliada pelo médico psiquiatra que
diagnosticou transtorno bipolar, que é um adoecimento psíquico no qual
o usuário tem constantes variações do humor e dificuldades de controle
de suas ações de alegria/euforia e tristeza/depressão, para o qual um dos
36 Entrevista – Usuária de Terapia de Base Ancestral, realizada em 9 dez. 2012.
246
tratamentos é a medicalização com estabilizadores de humor. Margarida
também refere que por conta da política antimanicomial da instituição
nunca mais foi internada em hospital psiquiátrico e só teve uma crise de
depressão nesses anos que está no Caps. Segunda ela, nas atividades e nos
grupos terapêuticos, aprende-se a lidar com o sofrimento mental, o que ela
consegue fazer atualmente, reconhecendo quando começam os sintomas de
euforia, mania ou depressão.
Em 2011, Margarida tomou conhecimento da Terapia de base ancestral com
plantas e ervas e solicitou ao médico a sua inclusão nesse tratamento, no qual
ela participa a cada 15 dias, por que há uma demanda muito grande pelas
sessões e existem usuários que precisam realizá-las semanalmente, não
sendo este o caso dela. Margarida também compreende que essa atividade
terapêutica não vai resolver ou curar o seu problema de bipolaridade, mas
depois do tratamento das plantas e ervas, ela tem diminuído o uso de
ansiolíticos, os quais ela particularmente não gosta de tomar, por causa dos
efeitos colaterais que sente. Margarida é uma assídua frequentadora dos
grupos do Caps e da terapia de base ancestral, vindo com regularidade ao
tratamento e incorporou em seu cotidiano o uso de chás, sementes e ervas.
Para ela saber se, usando produtos naturais, há esperança de que um dia ela
possa não ter que tomar mais o estabilizador de humor (carbolitium).
Destarte, a inserção dessa Terapia de base ancestral no Caps Iracema foi
legitimada pelos usuários, pelos familiares e também pelos profissionais,
criando um contexto que contribui de forma efetiva para uma diminuição
na intensidade no uso de medicação psiquiátrica por parte da população.
E, por outro lado, o estudo de pesquisa oportunizou escutar esse sujeito
247
andarilho das estradas da saúde mental, em sua relação com o universo
das práticas terapêuticas de base ancestral, seus relatos e expressões de
seu sofrimento mental e os significados produzidos na interação com uma
terapêutica de base filosófica complexa, advinda de um universo de matriz
africana como os Terreiros de Candomblé no terreno da saúde mental que
é um campo amplo de diversidades ideológicas, políticas, epistemológicas,
técnico-metodológicas e terapêuticas.
Todavia, é importante salientar que saberes e práticas ancestrais africanos
podem estar dialogando com a saúde mental e as contribuições do
Terreiro de Candomblé estão na forma não segregativa, não apartada,
não fragmentada de compreender todos os elementos que constituem
a vida material e o reconhecimento de uma dialogicidade com o mundo
imaterial/ancestral, como forças da natureza. Por isso, o que diferencia o
referencial filosófico de matriz africana são as possibilidades inclusivas de
todos os elementos, como nos diz Oliveira: “o que há são possibilidades
diferenciadas de arranjos sociais, culturais, etc., sempre flexíveis, sempre
possíveis de novos arranjos”.
O que existe são várias facetas que compõem uma mesma rostidade
(chamaria também de identidade), um mesmo organismo. Vale o princípio da
inclusão!” ou seja, esse pensamento filosófico no campo específico da saúde
mental fará emergir uma abordagem terapêutico-metodológica que encerra
em si um olhar diferenciado sobre o sofrimento, sobre o adoecimento,
sobre o cuidado, sobre o acolhimento, sobre a saúde, sobre o tratamento,
ressignificando o conceito de humanização, pois no paradigma ancestral
africano não se adoece sozinho, também não há cuidados sozinho, em tudo
248
existe e exige-se o coletivo.37
Outra contribuição significativa para a saúde mental está na concepção de
corpo humano (Ara ènia) como o concreto, a carne, os ossos, os músculos, os
nervos; é a forma física dessa corporeidade em conjunto com a respiração
(Èmí) que é o sopro divino no corpo humano, é a expressão da vida. Dentre
os órgãos, a cabeça interior (Orí Inú) é a essência da personalidade, é o ser
espiritual. Esses elementos integram e formam o Ser Humano, que nunca
é visto ou tratado por partes. Tratam-se as partes pelo entendimento do
funcionamento do todo, trata-se o todo para atingir todas as partes. Eis como
é concebido o corpo o humano.
Isso vai ensejar outra epistemologia sobre o corpo, a doença, os tratamentos.
Diferente da concepção ocidental que vai repartir, retalhar, fragmentar esse
corpo humano, apartando-o da dimensão ancestral/espiritual. Os saberes
e práticas de cuidado e tratamento em saúde mental dos Terreiros de
Candomblé vêm, nessa perspectiva, colocar-se como possibilidades reais de
atuação no campo da política pública brasileira. Bastando-nos, pois, ampliar o
olhar, abrir o coração, permitir nossa mente compreender outros universais
paradigmáticos para a saúde mental.
37 OLIVEIRA, 2003, p. 116.
NARRATIVAS SOBRE SAÚDE NA VISÃO DE ADEPTOS
DO CANDOMBLÉ DE ANGOLA NA BAHIA.
João Reis da Cruz Santos
Neste artigo objetivamos discorrer sobre a visão de saúde dos adeptos
do Candomblé de Angola da cidade de Salvador-Bahia. Para isso, foram
realizadas entrevistas com diferentes lideranças religiosas dessa Nação, os
quais demonstraram em suas narrativas que a compreensão sobre saúde é
indissociável do entendimento sobre a Vida e as condições necessárias que
mantêm os seres em atividade desde o nascimento até a sua decomposição,
quando partem para outra existência na natureza.
Os entrevistados revelaram que o equilíbrio das pessoas que os procuram
encontra-se na natureza. De onde retiram muitas de suas tecnologias
de tratamento, cujo conhecimento foi transmitido de geração a geração
oralmente. O estado de equilíbrio é também resultado da interação da pessoa
com as energias presente na natureza que podem habitar no humano, das
múltiplas ligações entre as forças visíveis e invisíveis.
As comunidades do Candomblé Angola em Salvador constituem herança
do legado cultural do continente africano e indígena do território brasileiro.
Existiram trocas culturais entre a população autóctone que residiam
250
no Brasil antes da chegada dos portugueses e o grande contingente de
populações africanas vindas forçosamente em consequência do tráfico de
escravos.1
A CULTURA E A TÉCNICA
É inquestionável o fato dos povos africanos vindos para o Brasil ser
conhecedores de diversas técnicas. José Sant’anna Sobrinho afirmou:
“[...]os primeiros escravizados africanos, pois, além de ser uma mão de obra
mais especializada (agricultores, comerciantes, ouvires e pescadores) o lucro
com o tráfico era mais rentável para os traficantes e para a coroa portuguesa”
[...]2
As culturas perpetuam a técnica, tanto em termos de significado e ato de
fazer algo. Ela constitui a realidade do indivíduo e do grupo ao qual pertence.
A realidade é formada pela vivência cultural dos diversos grupos que
compõem a sociedade. De acordo com Vannuchi, “tudo que é produzido
pelo ser humano é cultura.” A cultura é a base para compreender e ser
compreendido, qualquer forma de conhecimento humano ocorre na cultura,
reformula e renova-se nela. A cultura se realiza no ambiente em que os
indivíduos se encontram.3
A realidade não se confirma plenamente sem se conhecer a cultura, suas
1 Existem diversos estudos sobre o tema a exemplo: RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005 (420 p), VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de todos os santos, século XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987.
2 SANT`ANNA SOBRINHO, José. Terreiros Egúngún : um culto ancestral afro-brasileiro. Salvador:EDUFBA, 2015.
3 VANNUCHI,Aldo. Cultura Brasileira, o que é, como se faz, São Paulo, Ed. Edições Loyola, 1999.
251
singularidades que tornam o ser humano reflexivo. Esta compreensão da
realidade depende dos aspectos culturais implícitos da organização do grupo
ao qual o indivíduo pertence. O indivíduo reflete e transmite a realidade cultural
ao seu grupo e este comunica a totalidade das culturas ocultas apreendidas,
compreendidas e repassadas a outrem. Só a cultura possibilita a existência
particular do grupo e traz à baila a verdade e o entendimento das nuances
culturais postas. Não há cultura sem cérebro humano (aparelho biológico dotado
de competência para agir, perceber, saber, aprender), mas não há mente (mind),
isto é, capacidade de consciência reflexiva e pensamento, sem cultura.4
Nesse sentido, a realidade cultural do outro ocorre quando qualquer um dos
sentidos se comunica. A cultura sempre encontra um meio de se reelaborar
sem perda da sua essência. Os avanços e retrocessos da humanidade se
dão na cultura. Pensar a realidade de qualquer grupo não se distancia do
perceber depurado do meio social onde se encontra o contexto da cultura
ao qual pertence, a forma pela qual compreende a natureza, inclusive suas
similaridades em relação a outrem.
Os seres humanos concedem formas e estão dentro de uma teia de
significados que estes construíram. Parafraseando Geertz (1987), o homem
está amarrado a teias de significados tecidos por ele próprio e a cultura. Na visão
do autor, a cultura é definida como um conjunto dessas teias socialmente
estabelecidas, uma ciência mais interpretativa à procura de significados do
que uma ciência experimental em busca de leis. Ademais acrescenta ser
a cultura uma evidência do meio ambiente onde as pessoas convivem. “A
4 MORIM, Edgar,Os sete saberes necessário á educação do futuro. São Paulo : Cortez; Brasília, Df : Unesco, 2000 ,p 52.
252
cultura é pública porque o significado o é”.5
As particularidades das diásporas africanas é parte integrante da realidade
e do legado cultural do Candomblé de Angola, assim como é da cultura
nacional brasileira. Esse ensaio sobre concepção de saúde e o lidar com
as enfermidades que atribulam a vida das pessoas é também um caminho
para avançar nas descobertas da cura, uma vez que, nesses espaços existem
conhecimentos ainda não conhecidos pela academia para a prevenção de
certas enfermidades humanas.
TÉCNICA - FRUTO DA OBSERVAÇÃO HUMANA X A PERFEITA
HARMONIA COM A NATUREZA
A técnica amplia a ação humana na natureza e é o fruto do convívio com o
meio natural. O humano reflete e desenvolve suas habilidades ampliando sua
capacidade de efetuar coisas. A alavanca é a extensão do corpo do homem para
agir no meio natural, diagnosticar e mudar a realidade na mesma natureza.
O saber encontra-se disponível no meio natural e aprimora suas habilidades
quando identificado.Segundo Demócrito de Abdera “o homem é um eterno
discípulo da natureza, é neste círculo que se encontra a aprendizagem. Dessa forma, o
aprendizado vem da relação com o natural e cultural”. “Nas coisas mais importantes
somos discípulos dos animais; da aranha no tecer e remendar, da andorinha no
construir, e das aves canoras, o cisne e rouxinol no cantar; e tudo por imitação”.6
Para melhor compreensão, podemos exemplificar: quando o médico utiliza
5 GEERTZ,Clifford.A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
6 BORNHEIM, Gerd. Os Filósofos Pré-Socráticos, São Paulo: Cultrix,1972.
253
o estetoscópio amplia sua audição, o microscópio amplia sua visão para
diagnosticar a enfermidade, o aparelho nada mais é do que a extensão
dos seus sentidos. Quando pegamos o ônibus, o veículo que é construído a
partir das mais variadas técnicas não é nada mais nem nada menos do que
a extensão do corpo do motorista que o conduz, um corpo transportando
vários corpos, provavelmente o motorista só transportaria sobre o seu corpo
uma única pessoa, contudo, com o ônibus leva diversas outras.
Milton Santos afirmou que “É por demais sabido que a principal forma de
relação entre o homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio, é dada
pela técnica. As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com
os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço. Essa
forma de ver a técnica não é, todavia, completamente explorada”.7
As tecnologias são alavancas para a humanidade e não a humanidade para
elas. Não podemos inverter estes papéis, as alavancas têm as funções de
ampliar as capacidades humanas de produzir, diagnosticar, identificar,
reparar e de manter as diversas possibilidades da vida.
A aprendizagem humana da técnica vem do senso comum e sua sistematização
é construída aos poucos, considerando que as formas de sistemas também
têm origem no senso comum. O “senso” é a faculdade de sentir ou apreciar
através dos sentidos, assim como o “comum” é o feito em comunidade ou
sociedade. Para compreender isto basta conhecer os significados das duas
palavras. Os Religiosos das comunidades tradicionais do Candomblé de
Angola argumentam com seus conhecimentos baseados na visão de que na
7 SANTOS, Milton, A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed.São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
254
natureza existe tudo para equalizar o humano. A natureza não está fechada
em um laboratório, mas o ser humano está dentro da natureza.
Nas terapias utilizadas por representantes das comunidades religiosas dos
Candomblés de Angola entrevistados, as técnicas utilizadas para manter a vida
inclui a manipulação do vegetal, do mineral, das cores, das folhas, dos frutos,
das terras e dos animais, todos estes colhidos da natureza. Segundo Rubens
Alves, “A aprendizagem da ciência é um processo de desenvolvimento progressivo
do senso comum. Só podemos ensinar e aprender partindo do senso comum de
que o aprendiz dispõe”. Esse conhecimento técnico utilizado nos Terreiros de
Candomblé de Angola além de servirem para a cura também orientam as
pessoas a se relacionarem com as energias presente no meio natural8
Os métodos milenares de cura trazidos do continente africano adaptados aos
conhecimentos indígenas foram preservados nas comunidades religiosas
afro-brasileiras, bem como, transmitidos não somente através de sua
tradição oral, mas também através da convivência com suas lideranças. Tal
aprendizado não somente ensina as técnicas, mas leva o aprendiz a refletir a
forma como se procede a cura. O processo de educação é cotidiano.
CONCEITO DE NKISI, ORIXÁ, CABOCLO
E ESPÍRITO NA VISÃO DOS RELIGIOSOS
Antes de explanarmos as narrativas sobre o cuidar das pessoas, é necessário
8 ALVES, Rubens, Filosofia das Ciências, introdução ao jogo e suas regras, 12° Edição. São Paulo:Loyola,2000.
255
tornar evidente o que os representantes descrevem como Nkisi, Orixá,
Caboclo e Espírito.
Conceituaram os líderes religiosos do Candomblé de Angola entrevistados que
o Nkisi é a energia que designa o vigor, a firmeza, a força, a ação e o movimento
que está sob a vontade de Deus, mas age independente da vontade humana, é
a interação da natureza com o ser humano. Vejamos os relatos:
Tata Talamonako: - Nkisi é energia, Nkisi é a natureza, é água, é fogo, é ar, é terra, o Nkisi vem da natureza. (...) - Como é isso do Nkisi que sai da natureza e ocupa o corpo de uma pessoa? - (...) a energia vem a você e você fica dominado como se ela estivesse agindo em uma lâmpada, (...) -- Isso causa algum dano? -(...) isso não causa nenhum mal à pessoa, pelo contrário, eu vejo que a manifestação é uma coisa que abre a sua aura9.
MakotaValdina: Nkisi são energias da natureza, fenômenos da natureza que estão aí interagindo com a gente, que a gente cultua no Angola, uns chamam entidade; eu prefiro dizer que são as forças, as energias da natureza e equivale ao Orixá na recriação que fizemos aqui, mas não tem tanta conotação dos Orixás como tem as lendas e mitos. Nkisi não, Nkisi é algo mais ligado à natureza mesmo, representação da gente, é ligado às matas, terra, água, ao ar, ao fogo, aos fenômenos naturais.10
MametoAnjuale: O Nkisi é o Orixá, é Angorô, Angoromeia, Oxumarê, Dandalunda, Mutalambo, Oxossi, são a mesma coisa. O Nkisi é igual ao Orixá, quem vê, sabe que está ali e sabe quem é água, quem é terra, o ver não ficou para todo mundo, nem todos têm a visão, tem de ver na consciência, nos búzios, na água, nas pedras, quem vê Ogum sabe que é Ogum. É uma energia solta, ninguém sabe para onde vai ou de onde vem, é uma energia que passa na pessoa11
9 Entrevista com Tata Talamonako (Sr. Manuel Cremilton da Cruz), Sacerdote doTerreiro Tumba Jussara. Aura: força espiritual invisível que acompanha os indivíduos.
10 Entrevista com MakotaValdina (Sra. Valdina Oliveira Pinto) Sacerdotisa dos TerreirosTanuri Jussara e OnzóOnymBoya
11 Entrevista com ManetoAnjuale (Sra. Maria de Lourdes da Cruz Santos), Sacerdotisa do Terreiro OnzóAngorô.
256
Tata Kewaanze: (...) de acordo com o conceito de sagrado para o povo Bantu, onde ‘Nzambi é o ser supremo, o divino e ‘Nvumbi é a energia que emana da vida e dá vida ao corpo, ‘Nkisi são seres semi-divinizados, a ligação entre os humanos e o divino supremo (..). O que realmente o povo Bantu venera são as indomáveis forças da natureza.12
Tata MutaEmî:(...) Nkisi para mim é tudo que se movimenta, tudo que tem
vida (..) Nkisi é a vida em movimento (..) é vida (..) são os elementos da natureza
tudo isto desdobrado. (..) Nkisi é uma relação direta com a natureza (..) com
cada força da natureza.13
Todos os entrevistados conceituaram que Nkisi é uma energia da natureza.
Perpassa na pessoa e abre a sua aura. Para eles, é a força que está na Terra,
e esta “escolhe” as pessoas para incorporar. Tudo isso ocorre pelo poder que
Nzambi (Deus) conferiu ao Nkisi de interagir com o ser humano. O Nkisi pode
ser visto nos fenômenos naturais, fatos passíveis à observação, a exemplo das
trovoadas, relâmpagos e raios; enfim em tudo que compõe a natureza. Para os
religiosos, os Bankisi (plural de nkisi) transcendem, agem e vão além, produzindo
novo fenômeno ao entrar no ente, interagindo com tudo que existe.14
Há relação direta no entendimento do adepto do Candomblé de Angola
quando este escuta o som da água na cachoeira ou vê o rio correndo. Isto
remete de imediato ao NkisiDandalunda, Kisimbi e Lemba entre outros. Para
eles, o rio, a cachoeira, a chuva se encanta e habita no humano. Mesmo que
não consigamos compreender o entrosamento do adepto da religião com a
natureza, não poderemos negar que água sacia a sede, sendo indispensável
12 Entrevista com Tata Kewaanze(Sr.Raimundo Alberto Sousa Dantas) Sacerdote doTerreiro NdembwaKenã
13 Entrevista com Tata kuaNkisiMutaImê(Sr. Jorge Barreto dos Santos). Sacerdote do Terreiro de Mutalambo e Kanhogo
14 plural de ‘Nkisi
257
à sobrevivência humana. Esta consciência não ocorre só com a água, mas
com o sol, a lua, a terra, o ar, o vento, o fogo e tantas quantas substâncias da
natureza existam. José Rodrigues Costa afirmou que “Os inkises do angola
não são mitos. Ao contrário, são ligados aos encantamentos, fundamentos
de ordem mineral, vegetal e animal”. A conjugação das forças cósmicas e
telúricas que o tornam encantados15
Para Valdina de Oliveira Pinto:
“Nkisivem da raiz verbal kinsa- tomar conta, cuidar; é o que toma conta da
vida, cuida da vida. O termo Nkisi é sinônimo da palavra bilongo que significa
“remédio”. O Nkinsi neste contexto é sempre a essência, o conteúdo do futuro,
o pacote envolvido, enlaço, ligado por Kalunga, é somente a manifestação
do real poder da vida, secreto, misterioso, oculto dentro do futuro, dentro
da Terra. Este real poder de vida não pode, pela sua complexidade, ser
completamente entendido por nós porque não somos os embaçadores, os
ocultadores, os codificadores do futuro, da Terra16”
Ambos os pesquisadores descrevem Nkisi como “ente” que se manifesta no
Candomblé Congo/Angola, que é a essência da vida de cada ser na terra. Esta
é uma realidade palpável para o grupo do Candomblé de Angola. As narrativas
desses líderes religiosos entrevistados se coadunam com a percepção dos
pesquisadores citados sobre a percepção da comunidade religiosa.
Os Caboclos, segundo os religiosos, são entes que vêm da mata, associados à
religião indígena. Em Salvador, no mapeamento dos terreiros no ano de 2009,
realizado pela UFBA e Prefeitura Municipal de Salvador, foram identificados
15 COSTA, José Rodrigues. Candomblé de Angola: nação Kassanje; história, etnia, inkisis, dialetos, liturgia. 3.ed- Rio de Janeiro: Pallas, 1996.
16 PINTO, Valdina Oliveira, II Encontro de Nações de Candomblé ( 2: 1995: Salvador) Nação Angola, Anais. Salvador: Centro de Estudos Afro- Orientais,UFBA, 1997., p 118.
258
três terreiros que se definiram como genuinamente de caboclo, mas o ente
caboclo é cultuado tanto na nação Angola como em muitas casas da nação
Ketu, nossas indagações centraram-se em alguns Terreiros de Angola da
Cidade de Salvador, vejam os relatos dos representantes:
NenguaXagui“(..) Caboclo vem da Mata (...), Caboclo é Caboclo e Nkisi é Nkisi (...) solene é de espírito e dia de segunda feira eu entendo assim (...) giro que a pessoa faz terça feira, quarta, quinta é só de Caboclo eu entendo assim(..). Caboclo é Caboclo solene é solene(..),17
Tata MutaImê (..) Caboclo não tem lei, ele fala mesmo as coisas(..), “Caboclo fala o que quer!”(..)
MakotaValdina: (..) os Caboclos a gente associa aos indígenas, os Caboclos são entidades que a gente cultua, não são entidades da África. Os Caboclos para nós são entidades brasileiras, são ligados aos ancestrais de povos brasileiros aqui encontrados pelos brancos e pelos negros.
Tata Kewaanze: (...) o conceito de divindade que temos a respeito da inclusão do Caboclo como sendo a única entidade genuinamente brasileira no panteão das entidades sagradas do Candomblé. (...)
MametoAnjuale: “(...) e para o Caboclo é feito de forma diferente, se fossem iguais tudo seria igual(..)”.
Para os entrevistados, o Caboclo é sublime, é uma entidade sem mistura
nem alteração; puro e genuinamente brasileiro, vindo da mata. Em um dos
cânticos de cerimônia de Caboclo tem-se:
Sou brasileiro, Sou brasileiro,
Sou brasileiro o que é que sou?
17 Entrevista com NenguaRya NkisiXangui (Sra. Carmelita Luciana Pinto) Sacerdotisa do Terreiro Tumbanssé.
259
Eu nasci foi no Brasil sou brasileiro, o que é que sou?
O cântico caracteriza o que proferiram os entrevistados, Caboclos não são
entidades africanas e não são espíritos. Mameto Anjuale acrescentou que “O
espírito de gente é diferente de orixá e Nkisi e de Caboclo. As celebrações
são diferentes; para um Vumbe é um tipo; para Nkisi ou Orixá é outro, e
o Caboclo é outro”. Acerca do assunto NenguaXagui, também informou que
“espíritos são de pessoas desencarnadas e se faz solene”, as homenagens
tributadas dentro desta estrutura religiosa definem também quem são seus
entes e como eles provêm o equilíbrio humano através da força da natureza18.
Já Luiz Sérgio Barbosa comenta “o deificado é o Orixá, o deificado pode ser
o Caboclo, que vem na Terra implantando o seu prodígio, cuidando das
pessoas”. Na argumentação de Barbosa tanto o Caboclo do Brasil quanto o
Orixá africano pode ser divinizado, entretanto, o autor mostrou-se confuso
quando definiu Caboclo enquanto espírito. Ao mesmo tempo em que afirma,
ele nega essa possibilidade, para Barbosa o Caboclo em dado momento é
um espírito e em outro é um Orixá. Esta forma de pensar não comunga com
a visão dos nossos entrevistados19
AS ENERGIAS QUE EQUILIBRAM E LEVAM O SER HUMANO
PARA O CAMINHO DA CURA.
Os membros da religião acreditam que a sua relação com a natureza os deixa
18 Espírito
19 BARBOSA,Luiz Sergio. II Encontro de Nações de Candomblé(2: 1995: Salvador) Candomblé de Caboclo e FEBACAB, Anais. –Salvador: Centro de Estudos Afro- Orientais da UFBA, 1997. 93p.il
260
sadios, conforme atesta em suas narrativas:
MakotaValdina: “(..) estamos sempre em processo de cura, mesmo
quando não estamos adoentados, (..) para nós, que somos de
candomblé, estamos interagindo o tempo todo (..) seja no candomblé
ou não, seja em uma festa ou não, em um ritual ou não(..) se você
tem contato com a mata (..), se você tem contato com a água (..).
Tata Talamonako “- Para ter a cura, alimenta-se o ancestral ou o ponto
negativo de quem está sofrendo naquele momento, (..) a alimentação é um
milongo20(...) para aquele ponto negativo (..) para se ter equilíbrio (...), porque
se estiver com desequilíbrio a tendência da negatividade é aumentar (...), se
estiver com uma perna só você está desequilibrado, (..) se a cabeça estiver
mais forte que os pés há um desequilíbrio, (..) estiver com o lado mais forte
que o outro está desequilibrado (...) - o que fazer ? (...) o que é o milongo? (..)
É alimentação daquela área onde está desequilibrado por um espírito ou uma
doença do mundo, tem de procurar alimentar o ponto que está negativo (..)
este ponto pode ser descendente ou ascendente(..), se for na cabeça muito
ascendente tende à loucura (...), se os pés estiver fraco a tendência e arriar,
fica sem poder andar (...) a cabeça não pode ficar forte e os pés fracos ( ...) tem
de alimentar aquilo que está desequilibrado (..) tudo que se faz é um milongo
(..) se um espírito está atrapalhando é um milongo que resolve (...), tudo que
se faz na natureza para o equilíbrio é um milongo (..), a saúde é o equilíbrio, a
doença é o desequilíbrio (...), quando se come uma comida que faz mal, tende
a tomar remédio para equilibrar (..), se for uma topada no pé tem de tomar
remédio (...) tudo que se faz na vida para sobrevivência é um milongo(...)
NenguaXagui comunica que “(...) envelhecer não é adoecer” “(..) uns morrem
novos, outros morrem velhos(..)”, (..)cada qual tem um dom, (..).
Tata Anselmo “Saúde é vista de diversos aspectos, ela não é só saúde mental,
corporal. É um complexo de fatores que a constitui”... “Saúde é o estado de
felicidade plena”....“Saúde é estar em equilíbrio com e na natureza”.....“ É
necessário estar em pleno bem-estar corpóreo para estar com a força da
natureza”.21
20 Milongo” ritual para equalizar a pessoa enferma (oferenda ). Também traduzido como remédio
21 Entrevista com Tata Anselmo (Sr. Anselmo José da Gama Santos), Sacerdote do Terreiro de Mocambo.
261
O ponto de equilíbrio na concepção dos entrevistados é algo que mantém
estável o ser humano, para tanto, o ritual de purificação denominado milongo
é utilizado para estabilizar a pessoa. Na reflexão de Tata Talamonako, a saúde
seria o equilíbrio e a doença, o estado de enfermidade. Já a religiosa Nengua
Xagui comunica que envelhecer é o processo natural, mas isso é diferente
do adoecer. A doença pode causar inúmeros transtornos, a exemplo, pode
reduzir retirar ou atrapalhar a capacidade de refletir, mas envelhecer é o
processo natural pela qual todas as espécies passam.
Na leitura dos representantes, as celebrações também funcionam como
estabilizadora, promovendo o equilíbrio das pessoas envolvidas. Tanto
quanto nos atos dos rituais de purificações (limpezas), que são caminhos
pelos quais se levam a atingir a cura, seja através da música, no manuseio
das folhas, na alimentação, na utilização das cores, frutos e em tudo que a
natureza disponibiliza para manter o equilíbrio humano, sob a orientação do
Nkisi ou Caboclo.
Para ilustrar nosso raciocínio sobre os caminhos para a cura através da
natureza, descreveremos o relato de Mameto Anjuale sobre o acidente que
ocorreu entre seus filhos ainda criança na Cidade de Valença- Bahia no ano
de 1966.
Ela comentou que seu filho DAS, com a idade de aproximadamente onze anos,
pegou uma lata de manteiga comprida e a encheu de cera de vela e tocou fogo
para a cera derreter. Seu outro filho JRCS, na época com aproximadamente
quatro anos, enfiou o pé na lata cheia de cera em chamas, ressalta que tinha
três dias de parida e quando conseguiu apagar o fogo e retirar o pé da criança
262
da lata, a queimadura estava profunda. Nesse momento, o Nkisi Dandalunda22
pegou a criança e mandou que cobrisse o local da queimadura com limo de fonte
durante sete dias para que o pé da criança JRCS fosse recuperado. Além disso,
após sete dias dever-se-ia cobrir o pé com nata de leite de gado até cicatrizar
totalmente e, desta forma, se procedeu, e o pé da criança ficou curado, apenas
restaram marcas da queimadura. Hoje seu filho está com 53 anos.
O Tata Kaiti relatou que uma noite estava quase dormindo, quando
sua mãe o chamou e disse: seu tio está aí, pois o seu primo encontra-
se ensandecido. E o mandou para lá com banhos de ervas para tentar
resolver o que estava ocorrendo com o seu primo. Para Kaiti seu primo
tinha bebido e por isto estava com qualquer mal, cabendo mais levá-lo
ao hospital do que o acordar. Entretanto, ao chegar à casa do seu primo
verificou que o mesmo estava amarrado no quarto com três homens em
sobressalto, sentiu que havia uma “energia intensa que era maior que
o próprio quarto”, algo como um campo magnético de uma subestação
de eletricidade e ali estava o seu primo submerso naquilo. Assim pode
constatar que se tratava de algo além de um simples mal-estar, mas algo
indeterminado que o acometia.
A reação de Kaiti foi sair de dentro da casa e se entregar a todas as forças da
natureza. Em seguida se dirigiu ao quarto e derramou o banho que havia levado
sobre o primo, o mesmo gritava: “isto não!”; e o primo voltou a si lentamente
na medida em que o banho caia sobre sua cabeça e corpo. Confessou que
ficou assustado e receoso em soltá-lo, mas o fato do primo ter reconhecido
22 Energia da água
263
as pessoas ali presentes estimulou desatá-lo das cordas que o prendia. O
primo encontra-se curado até hoje daquele mal que o acometeu.
A Mameto Mesoeji declara que já curou, no seu terreiro, o seu vizinho que
estava para operar do estômago. Ela o tratou com chás da folha de Kavungo23
também conhecida por Canela de Velho. Indagada sobre outros casos da cura
no candomblé ela contou que ao nascer tinha enfermidade por todo o corpo,
algo semelhante à lepra, e sua Mameto de Nkisi DereLubedi após consultar
o oráculo sobre o assunto resolveu recolhê-la24 junto com a sua mãe, que
também já estava recolhida no terreiro. Os mais velhos relataram que ela
dormira em folha de bananeira umedecida com azeite e que a criança foi
recolhida para o Nkisi. Com sete dias já estava curada, a entrevistada declara
que vive com saúde até os dias atuais.25
Nos quatro relatos, percebemos a utilização da matéria natural tirada da
natureza e utilizada diretamente na pessoa que sofria de enfermidade
imposta. Os tratamentos contêm no seu bojo tecnologias para curar a
enfermidade instalada e são atrelados aos rituais de cura. Na visão dos
adeptos do Candomblé de Angola este conjunto de métodos, técnicas e
instrumentos faz parte de um conhecimento tirado da própria força da
natureza, que se encantou e habitou no humano para ensinar a cura. O
tratamento é executado por outro sobre direcionamento prévio da força da
natureza, os Nkisi e/ou os Caboclos.
23 Energia da terra.
24 Quando uma pessoa é recolhida no Terreiro de Candomblé significa que está em processo ritualístico que pode incluir uma iniciação.
25 Entrevista com Mameto de NkisiMesoeji (Sra. Iraildes Maria da Cunha), Sacerdotisa do Terreiro Tumba Jussara.
264
Para os povos tradicionais de Candomblé os vegetais, os sons e os ruídos da
natureza podem ser manipulados para promover a cura sobre a orientação
do Nkisi. Está implícito na cultura dessas comunidades religiosas que podem
cuidar das pessoas com matérias primas de origem vegetal, seja através
de banhos, chás, infusões com uso de uma ou várias espécies de plantas.
Comenta Moacir Rigueiro que “toda planta tem no mínimo um princípio ativo,
que é a substância responsável pelo efeito curativo”.26
Ademais, conceitua os representantes religiosos que a natureza, aqui
definida com Nkisi cuida da vida humana através das suas qualidades. As
energias que circulam pela terra estão em uma constante troca, sejam
os minerais, vegetais e, cada alimento ingerido e/ou banho tomado pela
pessoa enferma, interage com a natureza independente da percepção
dessas trocas.
A apreensão das maneiras de cura experimentadas e/ou ministradas pelos
religiosos do Candomblé de Angola ainda se fazem identificar nas canções
rituais. Transcrevo abaixo alguns trechos de uma canção religiosa entoada
em celebração de Caboclo.
Abre-te campo formoso.
Cheio de tanta alegria.
Cheio de tanta alegria,
Eu vim saudar Sultão das Matas e toda sua família E toda sua família.
Observar-se que todos os participantes cantam na primeira pessoa do singular
26 RIGUEIRO, Moacir Pezat. Plantas que curam. Manual Ilustrado de Plantas Medicinais. 4a ed. São Paulo: Pulus Editora, 1992.
265
“Eu”, e é, naquele momento, protagonista da celebração, independente de
quem tenha iniciado o cântico. É como se as pessoas participantes do ato
tivessem produzido por si e para si a celebração, e é este nível de envolvimento
que o ente Caboclo se apresenta.
Antes de descrever a apresentação do Caboclo, vamos tentar esmiuçar o
cântico que escolhemos. A canção afirma que está em um campo formoso
cheio de alegria: “Abre-te campo formoso cheio de tanta alegria...”. Ao
adjetivar o “campo” como “formoso” indica-se que é um lugar de formas,
feições, aspecto agradável e completo como espaço, é cheio de alegria; nada
mais é do que um local de sinais de alegrias e louvores. E para o ente não há
um chamado porque ao afirmar: “vim saudar...” nenhum ser é chamado para
ser saudado, saudar em celebração requer presença, é diferente de chamar;
constata-se desta forma que o ente homenageado encontra-se presente
com a família, a qual também é convidada para participar daquele momento
de bem-estar humano. É o individual dentro do coletivo. Dá-se o aspecto de
festa de congratulação.
Após esta saudação voltamos à apresentação do Caboclo, ele canta:
Eu venho só, sozinho sou eu,
Eu venho só da Aruanda, meu Deus
E a comunidade responde:
Só, só eu venho só,
E ele continua:
Quando eu venho da Aruanda, eu venho só.
Analisando a estrofe da canção, há cumplicidade da comunidade ao
266
responder: “Só, só, eu venho só”. A nosso ver “estar só” também pode ser
procura ou receptividade. As evidências atestam que é em um ambiente
com sonoridade produzida pelas pessoas que cantam, assim como pelos
instrumentos de percussão e cordas.
Durante a celebração, a música parecia contagiar cada indivíduo participante,
que se colocava no centro de todo ato, era o Eu cantado que envolvia e
contagiava a todos, tornando-os receptivos à procura de algo que os gestos
denunciavam e passavam a fazer parte da celebração através das canções
incorporadas como suas. Edgar Morin comenta: Eu diria, portanto, que a
primeira definição do sujeito seria o egocentrismo, no sentido literal do termo,
posicionar-se no centro de seu mundo. De resto, o “Eu”, como já observamos
várias vezes, é o pronome que qualquer um pode dizer, mas ninguém pode dizê-
lo em meu lugar. O “Eu” é o ato de ocupação de um espaço que se torna centro
do mundo27
O pronome da primeira pessoa do singular traz em si diversas cargas do
conhecimento em cada pessoa participante e a canção aflorava e arvorava
no indivíduo o seu pertencimento. O cantar “Eu”, desdobrava em diversas
possibilidades de sensação ou sentimentos. Essa simples coparticipação no
cantar em cerimônias como esta, entre outros atos rituais, constitui diversas
formas de terapia utilizadas pelas comunidades do Candomblé e que
potencialmente podem livrar seus crentes de enfermidades. É esta forma
de tratamento que as estruturas ocidentais não certificam, não conferem
chancelas, mas que são vivenciadas por quem as procura. A discussão aqui
27 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand,2003.
267
posta vai além de um estudo sobre a divindade, seus atributos, relações com
o mundo e com os homens ou a busca da verdade religiosa.
Nossa discussão fala de experiências vivenciadas por adeptos e participantes
da religião declaradas e/ou observadas durante alguns rituais. Um exemplo
desses casos ocorreu com a mãe de uma criança de aproximadamente 3 (três)
anos que declarou que o seu filho sofria de insônia há dias, entretanto, após
alguns instantes de participação no ritual o menino adormeceu. Todo aquele
ambiente musical funcionou como acalanto e cura para aquela criança. O
Referencial Curricular Nacional para a educação infantil (1998) afirma: “Os
acalantos são entoados pelos adultos para tranqüilizar e adormecer bebês e
crianças pequenas”. Naquele ambiente cerimonial, os presentes atestavam
através do canto, o seu pertencimento àquele espaço. Neste ambiente, a
família é vivenciada pelo condutor do processo - o Caboclo - e através do
seu cântico desperta e traz a presença do conjunto de elementos que faz as
pessoas aumentarem sua interação.
As propriedades sonoras do canto do Caboclo ou para o Caboclo, tais como
discutidas nos parágrafos anteriores, como: o acalanto, a cura, o sentimento
de pertencimento a família, a alegria, entre outros, indicam que os rituais
oferecem tranquilidade à vida, à alma, aquilo que faz o corpo deixar de ser
corpo para ser humano. Os entrevistados acreditam que nos rituais acontece
a manifestação da própria vida através da energia da natureza, assim como
se dá o pertencimento do eu ao tronco da família. É nesse ambiente que
ocorrem trocas entre os seus e os outros, onde os presentes percebem-se
na localização espacial, compreendem de onde vêm, a que espaço cultural
pertence e aonde pode ir com plena consciência.
268
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando que saúde é muito mais que ausência da doença, é bem-
estar corpóreo. Saúde para os entrevistados, como vimos, é a harmonia
com a natureza, consequentemente a congratulação com o todo. As formas
de entrosamento na comunidade de Terreiro de Candomblé de Angola se
baseiam em tecnologias, cujas chancelas não são ocidentais, mas legitimadas
por métodos de convivência com a natureza.
As narrativas dos adeptos de terreiros indicam que não existe saúde sem
antes a consciência da vida. Nas suas entrevistas demonstraram que são
cuidadores da vida.
Suas reflexões estão à frente da visão individualista da vida, desgarradas das
definições que postulam meras questões legais, sociais e econômicas em
detrimento da vida. Os relatos sobre a vida não se fechavam com a perspectiva
do mercado, a exemplo da Organização Mundial da Saúde-OMS: “saúde é
um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não simplesmente a
ausência de doença ou enfermidade”. Os religiosos trouxeram da convivência
no terreiro um pensar profundo e simples sobre o entendimento da vida,
estruturado em ensinamentos dos seus ancestrais africanos e indígenas
transmitidos através da tradição oral e da convivência com os mais velhos.
A vida é ameaçada todos os dias com os modelos mercadológicos selvagens
e, em nome do mercado, criam-se paradigmas que prejudicam a saúde
pública. Essa realidade atravessa as fronteiras de qualquer nação. Sua forma
de produzir consumo não tem parâmetro ético-moral, a ganância é a base
principal, onde se produz doença e se vende cura. Enfermidades que muitas
269
das vezes são produzidas em laboratório por empresas pertencentes a
grupos de gananciosos internacionais, como denuncia Silvia Ribeiro em seu
artigo Influenza A Epidemia do Lucro.28
As descrições de cura neste ensaio não apresentam fenômenos de
forma isolada de toda a natureza, nem mesmo explicações mecânicas e
simplificadoras que não traduzem a realidade. Percebe-se nas declarações
dos entrevistados que a vida é muito mais que ausência de doença ou saúde,
Há um conjunto de fatores que contribuem para a existência da vida que
está para além do bem estar corpóreo humano durante o nascer, o crescer,
o envelhecer ou a transformação em outra forma de vida na natureza.
Acreditamos que há caminhos a serem seguidos, em primeiro lugar devemos
nos proteger das enfermidades impostas, ter postura de buscar equilíbrio
do meio natural, ou seja, viver de forma harmoniosa com a natureza e isto
significa que é necessário pesquisar, divulgar o modelo de se relacionar com o
cosmo afro-brasileiro presente no Candomblé de Angola. Em segundo lugar,
compreender que não há o fabuloso nem o que não tem existência no real, o
imaginário e o inventado. O importante é também deixar perceber que tudo
transcende como já fora comunicado, basta sair da leitura corriqueira de
qualquer fenômeno natural e se ver como uma célula do universo.
As formas de se cuidar da saúde das comunidades afro-brasileiras devem
ser estudadas e garantidas pelo poder público, tendo em vista que estes
conhecimentos pertencem à cultura nacional. Considerando que o Estado
28 RIBEIRO,Silvia. Comida Industrial. Influenza A Epidemia do Lucro. In: Revista Cidadania & Meio Ambiente, Publicação Câmara Cultura n° 20- 2009.
270
não se faz presente para uma grande maioria da população brasileira na
garantia da saúde, assim como as ações são tímidas tanto na política pública
como na pesquisa científica para o aprimoramento do saber colhido da
natureza que as comunidades tradicionais retêm. As formas culturais do
Candomblé de Angola de manter a saúde e, consequentemente, ampliar a
qualidade de vida das pessoas, podem ser ponto de partida para nova leitura
de fazer política pública para a saúde.
MEDICINA TRADICIONAL AFRICANA E SEGURANÇA ALIMENTAR E
NUTRICIONAL NOS TERREIROS DE CANDOMBLÉ DA BAHIA
Denize de Almeida Ribeiro
Para a Organização Mundial de Saúde, Medicina Tradicional refere-se a um
termo amplo utilizado para se designar os diversos sistemas de práticas
tradicionais de saúde como: a medicina tradicional chinesa, ayurveda indiana,
medicina Unani árabe, e várias formas de medicina indígena e africana. Na
Medicina Tradicional utilizam-se drogas com base em ervas, partes de animais
e/ou minerais, e geralmente nenhum medicamento alopático, como no caso
da acupuntura, terapias manuais e as terapias espirituais. Nos países onde
o sistema de saúde dominante baseia-se em medicina alopática, ou onde
a Medicina Tradicional não foi incorporada no sistema nacional de saúde,
tal prática é muitas vezes classificada como “não convencional”, medicina
“complementar”, ou “alternativa”.
Em África até 80% da população utiliza a Medicina Tradicional para ajudar a
atender as necessidades de saúde de suas populações. Na Ásia e na América
Latina, as pessoas continuam a usar a Medicina Tradicional como resultado
de circunstâncias históricas e crenças culturais. Na China, a Medicina
Tradicional responde por cerca de 40% dos atendimentos de saúde. Nos
272
países em desenvolvimento, o seu amplo uso é atribuído a sua acessibilidade
e disponibilidade. Em Uganda, por exemplo, a proporção de pessoas que
praticam Medicina Tradicional contra o restante da população é de 1: 200 e 1:
499. Isto contrasta dramaticamente com as pessoas que utilizam a medicina
alopática, para o qual a proporção é de 1: 20.000 ou menos. A Medicina
Tradicional também é muito popular em muitos países em desenvolvimento,
porque está firmemente enraizada nos sistemas de crenças.1
A Medicina Tradicional praticada na Bahia é de matriz afro-indígena e ainda
se encontra viva nos terreiros de Candomblé. Isto porque a cultura baiana
tem como muitas de suas referências elementos originários da religiosidade
de matriz africana e muitos de seus símbolos são reverenciados como
peculiares da comunidade negra afrodescendente. Pois, o Candomblé da
Bahia procurou preservar elementos simbólicos das culturas africanas nos
seus mais variados aspectos, através da sacralização dos costumes, saberes
e práticas desta matriz cultural. Nessa religião, geralmente as mulheres
negras, em grande maioria, administram o espaço mítico, sagrado, religioso e
social, tendo em conta que o terreiro é, ao mesmo tempo, templo e espaço de
socialização, e hoje um território, historicamente reconhecido, de resistência
política. Essa resistência pode ser registrada em todo o processo histórico de
luta para a manutenção de seus cultos e até tornaram-se alvo de estudos de
muitos pesquisadores.2
Nos terreiros, os idosos (os seniores) têm um papel relevante na hierarquia
1 Relatório Mundial da Saúde. Organização Mundialda Saúde, 2005.
2 BRAGA, Julio. Candomblé: tradição e mudança. Salvador: Edições, 2006; LIMA, Vivaldo da Costa. A família de Santo nos Candomblés da Bahia: um estudo de relações intragrupais. 2a ed. Salvador: Corrupio, 2003; SANTOS, Joana Elbein. Os Nagô e a Morte: Páde, Àsèsè e o Culto Égun na Bahia. 10a ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1982; SERRA, Ordep. Águas do Rei– Salvador: Koinonia: Vozes, 1995.
273
de cada casa: os mais velhos são, muitas vezes, “doutores” nos saberes
que resguardam cifrados e preservados através dos símbolos sagrados
da religiosidade. Entretanto, para alguns, o Candomblé continua a ser
discriminado e geralmente se quer é visto como religião. Apesar do relevante
trabalho de inclusão, da população negra, das mulheres e dos idosos e
também da sua reconhecida atuação em prol do fortalecimento da identidade
e da cultura de matriz africana no Brasil, ainda assim, muitos adeptos do
Candomblé são invisibilizados e excluídos enquanto sujeitos de direitos.
Através de meu trabalho, na Secretaria Municipal de Saúde de Salvador
no período de 2005 a 2009, quando estive a frente da implantação da
Política de Saúde Integral da População Negra, conheci inúmeras casas de
Candomblé deste município e pude testemunhar diversas atuações de seus
representantes em defesa de uma série de questões políticas como: no
combate a intolerância religiosa; na defesa do meio ambiente e das águas; por
suas terras e territórios; contra a violência; em defesa das mulheres negras;
dos direitos da comunidade LGBT; pela saúde da população negra, entre
outras lutas. Neste trabalho de gestão política, pude contar inúmeras vezes
com o apoio dos terreiros de Candomblé da cidade, que me procuravam, ou
muitas vezes, mandavam recados de que queriam me falar.
Posteriormente, durante minhas pesquisas de mestrado e doutorado
junto aos terreiros de Salvador, percebi que tais instituições desenvolvem
variadas práticas de saúde e funcionam como espaços de cuidados tanto
para adeptos/as quanto para pessoas de diferentes classes sociais, raça/
etnia e religiões. Mas, vi também que tais práticas foram postas à margem do
sistema oficial de saúde, deslegitimadas por serem originárias da Medicina
274
Tradicional Africana e ditas sem comprovação “científica”. Meneses faz esta
mesma observação, quando analisa a situação de Moçambique, ao se referir
à construção do conhecimento científico moderno na Europa, ela afirma que
este se deu como sinônimo da missão de organizar e disciplinar as populações
autóctones por todo o território colonizado, ela diz:
O moderno empreendimento colonial português começou numa altura em
que a ciência deu uma nova força e legitimidade à política pública e colonial.
De repente, o conhecimento científico emergiu como um instrumento de
afirmação da superioridade portuguesa, uma mudança que transformou
os saberes do “outro”, com quem tinham estado em contato durante
séculos, em formas inferiores e locais de interpretar o mundo. As fronteiras
da civilização tornaram-se as margens de um sentido de ordem social
europeia, consequentemente, os nativos tornaram-se a própria encarnação
da desordem, simbolizada pelo seu sofrimento moral, degradação física e
mundo desordenado. Esta negação da diversidade das formas de perceber
e explicar o mundo é um elemento constitutivo e constante do colonialismo.
No entanto, e muito embora a dimensão política da intervenção colonial tenha
sido amplamente criticada, o ônus da monocultura colonial epistêmica ainda
é amplamente aceito como um símbolo de desenvolvimento e modernidade.3
Mas, pude perceber através da pesquisa também, que dentre as práticas de
saúde desenvolvidas e mantidas pelas religiões de matriz africana no Brasil,
a despeito da negação destes conhecimentos, tem destaque a utilização dos
alimentos e das folhas consideradas sagradas. No Candomblé, o alimento age
junto aos deuses como um veículo de comunicação em favor das pessoas,
em diversas situações de infortúnio, ou colaborando para a manutenção do
equilíbrio geral, da saúde do indivíduo e do grupo.4
3 MENESES, Maria Paula. Corpos de violência, linguagens de resistência: as complexas teias de conhecimentos no Moçambique contemporâneo. In: revista Crítica de Ciências Sociais, no 80, março, 2008,pp 161-194.
4 SERRA, Ordep. Águas do Rei– Salvador: Koinonia: Vozes, 1995.
275
Para a nutrição, o alimento é o fornecedor de nutrientes vitais. Então
cientificamente analisa-se cada parte de que é composta uma preparação e
tenta-se estabelecer uma relação entre a comida, à saúde e/ou a doença. A
este modelo interpretativo Laplantine chama de modelo aditivo/subtrativo,
onde o alimento pode ser recomendado para ser adicionado a uma dieta ou
pode ser suprimido, sem uma explicação, muitas vezes convincente para o
paciente.5
Essa forma que a biomedicina tem de compreender a alimentação e de
orientar os enfermos difere profundamente do modo como esta é vista e
conduzida pelo Candomblé. Para os terapeutas religiosos das religiões de
matriz africana o alimento é um elemento sagrado imprescindível para o
estabelecimento da comunicação entre os humanos e os deuses, então,
ensina-se ao adepto/a, aquilo que pode e o que deve evitar comer, como
um processo de autoconhecimento dos limites da relação estabelecida entre
ele/ela e a energia que o/a integra. Sem dúvida a biomedicina traz uma visão
eminentemente positivista de saúde, ao negar qualquer outro conhecimento
que não seja aquele que considera mensurável e comprovado por seus
próprios métodos.
Na rotina dos atendimentos clínicos, o profissional logo percebe quanto os
pacientes se revelam impregnados de concepções culturais acerca da sua
alimentação. Percebe, também, que os indivíduos possuem uma forma
diferenciada de lidar com o alimento nos momentos em que adoecem, e/
ou para a prevenção de variadas doenças, ou seja, possuem uma conduta
5 LAPLATINE, Francois. Antropologia da Doença. São Paulo: Martins, 1991.
276
dietoterápica própria. Nas táticas desenvolvidas para enfrentar a desnutrição,
por exemplo, muitas das orientações dadas e estimuladas não têm a adesão
do paciente, algumas vezes, por não considerarem aspectos importantes
dos seus hábitos alimentares, da sua forma de cuidar-se e promover saúde,
da sua cultura, ou de sua fé.
Para o professor Vivaldo da Costa Lima:
A abordagem antropológica da alimentação careceria de uma disciplina que
trouxesse tais questões para a academia e que revelasse o papel mediador da
comida na religião, nos rituais e nas terapêuticas paralelas.6
Sem dúvida a nutrição e a área de saúde como um todo, tiveram muitos
avanços no que se refere à ampliação de uma abordagem antropológica
no campo da alimentação, por reconhecerem os limites de seus próprios
modelos explicativos e a contribuição das diferentes culturas com relação
ao papel do alimento. Entretanto, isso não significou o reconhecimento e
respeito a outras formas de compreensão do processo saúde/doença/
cuidado, prova disso é a não inserção da Medicina Tradicional Africana como
uma prática integrativa complementar, ao sistema oficial de saúde ou na
formação dos profissionais da área, como defendido e aprovado pela Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra.7
A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra tem inclusive
6 LIMA, Vivaldo da Costa. A família de Santo nos Candomblés da Bahia: um estudo de relações intragrupais. 2a ed. Salvador: Corrupio, 2003.
7 Relatório Mundial da Saúde. Organização Mundialda Saúde, 2005; BRASIL. Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas a assegurar o direito humano a alimentação adequada e dá outras providências. Brasília, 2006.
277
como uma de suas diretrizes “a promoção do reconhecimento dos saberes
e práticas populares de saúde, incluindo aqueles preservados pelas religiões
de matrizes africanas”. E como uma de suas estratégias “a elaboração de
materiais de informação, comunicação e educação sobre o tema Saúde da
População Negra, respeitando os diversos saberes e valores, inclusive os
preservados pelas religiões de matrizes africanas”.8
Mas, observamos que o mesmo Ministério da Saúde, ao definir a Política
Nacional de Praticas Integrativas e Complementares em 2006 afirma que
o campo desta política contempla sistemas médicos complexos e recursos
terapêuticos, os quais são também denominados pela Organização Mundial
de Saúde (OMS) de medicina tradicional e complementar/alternativa (MT/
MCA). Tais sistemas e recursos envolvem abordagens que buscam estimular
os mecanismos naturais de prevenção de agravos e recuperação da saúde
por meio de tecnologias eficazes e seguras, com ênfase na escuta acolhedora,
no desenvolvimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano
com o meio ambiente e a sociedade.9
O documento sinaliza que no final da década de 70, a OMS criou o Programa
de Medicina Tradicional, objetivando a formulação de políticas na área.
Desde então, em vários comunicados e resoluções, a OMS expressa o
seu compromisso em incentivar os Estados-membros a formularem e
implementarem políticas públicas para uso racional e integrado da Medicina
Tradicional e Medicina Complementar Alternativa, nos sistemas nacionais de
8 BRASIL. Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília/DF, 2007.
9 BRASIL. Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília/DF, 2007.
278
atenção à saúde bem como para o desenvolvimento de estudos científicos
para melhor conhecimento de sua segurança, eficácia e qualidade.
O documento “Estratégia da OMS sobre Medicina Tradicional 2002-2005”
reafirma o desenvolvimento desses princípios. Mas, o Ministério da Saúde
brasileiro não incluiu na Política de Práticas Integrativas e Complementares
a Medicina Tradicional Africana e nem a Indígena existente no Brasil.
Neste artigo, trago uma pequena contribuição para os profissionais da área,
levantando questões presentes no cotidiano de quem trabalha com populações
como a contemplada nesse texto, que são as comunidades tradicionais de
terreiros, uma vez que as Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional e
de Saúde estão voltadas para atender prioritariamente aos segmentos mais
vulneráveis, e, do ponto de vista do Direito Humano a Alimentação Adequada
os Povos e Comunidades Tradicionais integram atualmente tais populações10.
SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL E SAÚDE
Meneses afirma ainda que os conceitos supostamente tradicionais
sobrevivem, apesar da invisibilidade e negação social, porque sempre
encontram uma nova dimensão e uma nova aplicação em situações
contemporâneas e também porque os conceitos considerados moderno-
científicos não satisfazem a tudo e a todos da mesma maneira, pois são
também modelos culturais e de poder, em disputa. Do mesmo modo penso
que existem conhecimentos que precisam ser resgatados e reposicionados
10 BRASIL. Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas a assegurar o direito humano a alimentação adequada e dá outras providências. Brasília, 2006.
279
em nossa sociedade, principalmente diante da implementação de políticas
públicas voltadas para determinados segmentos, que compartilham de
uma visão diferenciada de mundo e que possuem seus saberes e práticas
subalternizados
Promover saúde é um tema presente na agenda da gestão pública, pela
necessidade do desenvolvimento de políticas específicas voltadas para a
população de famintos, para as “comunidades e povos tradicionais” e para
a saúde da população negra em geral, tendo em vista um quadro particular
de doenças prevalentes e as repercussões do racismo sobre essa população.
Isto fundamenta a promoção, a atualização e multiplicação do debate
sobre segurança alimentar, sobre saúde e a temática racial, de maneira a
tornar mais efetiva a participação popular, a socialização de informações e a
elaboração de políticas públicas mais equânimes nesta área.
No que se refere à Segurança Alimentar e Nutricional, tem sido um tema
presente nas ações e discussões políticas, para a implementação de
programas governamentais nacionais e internacionais com o objetivo de
combater a fome.
O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome, por exemplo,
vem atuando através de Programas de Atendimento Emergencial – com a
distribuição de Cestas de Alimentos a Grupos Populacionais Específicos em
Situação de Insegurança Alimentar, que tem dentre os grupos priorizados
para este atendimento as comunidades de terreiro, revelando que para os
setores governamentais estes grupos estão vulneráveis na questão alimentar,
isto nos chama a atenção para o fato de que tal situação, muitas vezes,
280
coloca a própria prática cultural também em risco. Entretanto, os sujeitos de
tais programas nem sempre são ouvidos e suas práticas alimentares nem
sempre são consideradas enquanto fonte de informação importante para
orientar tais programas.
O Ministério do Desenvolvimento Social reconhece que o programa de
distribuição de cestas “... destina-se a segmentos específicos, com hábitos
alimentares e culturas distintas. Tradições relacionadas ao simbolismo, à
valorização e à identidade cultural devem ser revitalizadas”. Pois, Segurança
Alimentar e Nutricional é também respeitar e preservar as tradições
alimentares dos diferenciados grupos e é politicamente buscar garantir estes
aspectos enquanto Direito Humano a Alimentação Adequada, como previsto
na Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional.11
Mas, como este direito poderá ser cumprido sem o reconhecimento e
respeito aos saberes e práticas destes grupos? Vale ressaltar que tais povos
sobreviveram até os dias atuais lutando para conservar tais práticas, ou
seja, suponho que os terreiros de Candomblé sempre compreenderam
e desenvolveram estratégias de Segurança Alimentar e Nutricional, muito
antes deste conceito ser ampliado e difundido. Para os terreiros o alimento
sempre teve papel central que ultrapassa a exclusividade de mantenedor
das atividades biológicas, para estes as demandas humanas são sagradas
e sempre estiveram ligadas as práticas alimentares mantenedoras de um
diálogo metafísico entre os humanos e sua essência divina.
11 Lei 11.346 de 15 de setembro de 2006. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília/DF, 2007.
281
Para a área da saúde cabe desenvolver um compromisso histórico e social,
com a justa necessidade de levantamento de informações que possam
contribuir com a qualidade de vida da população brasileira, que é de maioria
negra e que vivencia a condição de insegurança alimentar desde os tempos
do escravismo (isto não só por conta da escassez de gêneros alimentícios
na dieta fornecida aos escravizados, como também por conta da falta de
respeito e de políticas que contemplassem às práticas alimentares destes
povos) até os dias atuais, merecendo, pois, um estudo comprometido com
tais sujeitos.
ALGUNS ASPECTOS METODOLÓGICOS A PARTIR
DO PONTO DE VISTA DAS MULHERES NEGRAS
Para a construção deste texto trago alguns aspectos que levantei na
minha pesquisa de campo, muito da minha percepção e da percepção dos
interlocutores que entrevistei, lideranças dos terreiros de Candomblé de
Novos Alagados (região do estudo), dos Movimentos Negros e de outros
segmentos dos Movimentos Sociais, sobre o infortúnio da fome e da
insegurança alimentar e nutricional, numa religião em que o alimento figura
como ator principal, veículo das questões com e sem respostas e responsável
pelo equilíbrio físico, cultural, psicossocial e espiritual dos indivíduos.
Como a maioria dos entrevistados eram mulheres, procurei destacá-las e a
partir da percepção do papel das mulheres negras nos terreiros de Candomblé
deste estudo, busquei um referencial teórico que me auxiliasse na interpretação
e análise de suas concepções, então recorri à teoria do “ponto de vista das
282
mulheres negras”, utilizada por Patrícia Hill Collins, pois a maioria das pessoas
entrevistadas se autodeclararam como mulheres e negras, responsáveis pelas
casas ou mesmo pelas cozinhas dos terreiros pesquisados.12
Segundo Collins, o ponto de vista das mulheres negras é definido a partir da
opressão vivida por elas, ou seja, a partir do lugar que ocupam na estrutura
social. A experiência de ser mulher negra difere do que é ser mulher e de
quem não é negro. A perspectiva do ponto de vista, expressa que a realidade
é construída com base na sua própria experiência, na experiência da
opressão para resistir, isto possibilita então a criação de uma consciência
independente, o que pode favorecer um pensamento feminista negro.
Assim, é com base nas ações do grupo hegemônico que, as mulheres negras
desenvolvem um ponto de vista próprio, calcado na experiência da opressão
(no cotidiano) e numa atitude de resistência ao longo do tempo.
Desse modo ao buscar o entendimento sobre saúde, para as mulheres negras
do Candomblé, precisamos refletir que a busca incessante de incremento
do ser, também vista por Heidegger como pró-cura e cuidado, corresponde,
no Candomblé, ao esforço de renovação do Axé. Ai a posição do/a adepto/a
é de vigília (prevenção): mesmo sem apresentar nenhum sinal ou sintoma
de aflição, ele/a deve cumprir suas obrigações com os Orixás como forma
de “segurança”. Nos momentos de adoecimento, essas atividades se
intensificam e algumas recomendações são feitas. Nas duas situações, os
12 COLLINS, Patrícia Hill. The Social Construction of Black Feminist Thought. In: JSTOR. Common Grounds and Crossroads: Race, ethnicity, and Class in Women’s Live. 4 ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1995, pp 200-218.
283
alimentos podem ser utilizados como parte da terapia adotada.13
As entrevistadas afirmaram que é através do jogo de búzios, que o (a) zelador
(a) descobre que tipo de tratamento deve ser feito:
Se o problema que a pessoa estiver passando for sério o jogo deverá dizer se
deve ser feito um sacrifício, se é problema de médico ou não .
O alimento é, então, considerado o veículo capaz de prevenir a doença e
promover a cura, e algumas cerimônias são realizadas para reverter o quadro
de aflição apresentado. É preciso considerar também a natureza do mal.
Pode ser identificado um problema relacionado com a crise de conversão.
Entende-se que isto ocorre se o indivíduo apresenta um mal-estar súbito e
já tentou superá-lo, através da medicina oficial e de várias alternativas de
tratamento, sem obter nenhuma resposta significativa, encontrando só na
Medicina Tradicional do Candomblé, através da interpretação do (a) zelador
(a), a possibilidade de compreender o que lhe acontece.
Nesses casos, as entrevistadas consideram que se identifica o distúrbio
como relacionado a uma entidade transcendente: um espírito de morto
(Egun), uma entidade com quem se herda um vínculo e precisa ser lembrado,
ou a manifestação de um Orixá, Inquice, Vodun ou Caboclo, que exige ser
contemplado, ser cuidado.
Para as mulheres deste estudo, a cabeça (Orí) é a principal parte do indivíduo
a ser analisada, pois está diretamente associada ao Orixá do/a adepto/a. Ao
13 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo (Parte I); 9a ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
284
se desvendar os mistérios de uma cabeça, descobre-se a identidade mítica
do indivíduo. “Fazer a cabeça” significa dizer que o/a iniciando/a terá a
possibilidade de se descobrir enquanto ser no mundo, e, ao mesmo tempo,
perceber seus limites e possibilidades.
Então, do ponto de vista das mulheres negras desta pesquisa, no caminho
percorrido em busca da cura, o mapa a ser desvendado para o/a iniciado/a
passa pelo descobrimento e aceitação da natureza do Orixá/inquice que rege
a sua cabeça. Cada Ori (cabeça) é modelado no Orun (mundo sobrenatural)
e sua matéria formadora varia. Essa matéria determinará o Orixá que o
indivíduo deverá adorar: estabelecerá suas possibilidades e escolhas, e,
principalmente, indicará suas proibições, os Ewó14, particularmente em
matéria de alimentação.15
As espécies de material com o que são modelados os ori individuais indicam
que tipo de trabalho é mais conveniente para tratar de cada um, permitindo-
lhe alcançar saúde e prosperidade. Indica também as interdições – ewó – aquilo
que é proibido ao cliente do rito comer. A “matéria” utilizada para criar o ori
corresponde a um signo distintivo, não é apenas uma simples matéria.
Para a Medicina Tradicional do Candomblé, praticada por tais mulheres
negras a constituição do ser humano está relacionada com a individualidade
formadora do seu ori. Cada elemento constitutivo do ser é derivado de uma
entidade que lhe transmite suas propriedades materiais e seu significado
14 Tabu, interdição, segredo, fundamento; CASTRO, Yêda Pessoa. Falares Africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Copyright, 2001.
15 Vê-se logo, portanto, que “ori” não corresponde apenas a uma parte da anatomia humana.
285
simbólico. Essas entidades de origem, ancestrais divinos, são símbolos
coletivos míticos dos quais partes individualizadas se desprendem para
constituir os elementos de um indivíduo. Esses elementos possuem dupla
existência: enquanto uma parte reside no Orun, o espaço infinito do mundo
sobrenatural, a outra parte reside no Aiyê (mundo natural, a terra) e no
indivíduo, em regiões particulares do corpo.16
Então, algumas cerimônias são periodicamente realizadas com o objetivo
de “cuidar da cabeça”. Nesse caso, dá-se um Bori. O Bori é uma cerimônia
propiciatória, de purificação e renovação das forças espirituais, em que se
oferecem alimentos e bebidas e sacrificam-se animais para dar-de-comer-
à-cabeça (logo ao dono-da-cabeça). O Orixá que deverá ser alimentado é
considerado o centro normativo da vida em todos os seus aspectos.
Segundo Manoel Querino, o Bori “tem por objetivo (...) obter saúde”. Mãe
Stela de Oxossi afirma que:
O Bori é uma cerimônia de grande significado litúrgico. É a adoração da cabeça,
realizada pelo conjunto de oferendas, cânticos e louvações. É importante a
participação de todos no bori, já que se estabelece a comunhão com a cabeça
do “outro” e a troca de axé. Quanto mais pessoas houver para a louvação de
nossa cabeça, para comer a comida do bori, tanto melhor.17
A cabeça (Ori) é considerada motivo de preocupação, pela sua fragilidade.
Torna-se necessário que, periodicamente, rituais como o Bori, feitos para
“dar de comer à cabeça”, sejam realizados para fortalecê-la, oferecendo
resistência à ação de influências malévolas. A doença e o infortúnio podem
16 SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Padê. Asesé e oculto Égun na Bahia. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.
17 SANTOS, Maria Stella de Azevedo. Meu Tempo é Agora. 2a ed. Curitiba-PR: Projeto CENTRHU, 1985.
286
aparecer como um sinal de enfraquecimento do ori. Nesse caso afirma
Bastide, que “a oferta alimentar à cabeça, na medida em que fortifica o Ori,
pode ter virtude profilática ou curativa”.
Esse é um processo iniciático que não implica necessariamente em que o
indivíduo se torne um/a adepto/a. Em muitos casos, as pessoas fazem o Bori
e não retornam para dar seguimento a outros ritos.
Os alimentos oferecidos dizem respeito à natureza do Orixá identificado pelo
oráculo. Em todos os casos, deve-se propiciar, inicialmente, a Exu, pois ele é
sempre o primeiro a comer, e é, também, responsável pela comunicação: ele
intercederá junto aos Orixás em favor do adepto. Os outros alimentos devem
ser para o Orixá “dono da cabeça”.
O alimento, nesse processo, é a linguagem com a qual os sacramentos
serão cifrados. Pela tradução desse código, o indivíduo compreenderá que,
muitas vezes, poderá se alimentar sem, necessariamente, ter que ingerir
qualquer item comestível. Alguns alimentos serão oferecidos aos deuses,
outros serão passados no seu corpo, outros serão distribuídos com o grupo
e outros ele/a ingerirá, mas alguns lhe serão terminantemente proibidos,
estes farão parte da sua constituição secreta, diretamente ligada a sua
essência divina no Orun.
Do ponto de vista das mulheres negras desta pesquisa, os alimentos terão
a responsabilidade de fazer a comunicação entre os deuses, os mortos, os
membros do Candomblé presentes no ritual e a própria pessoa que oferece
o Bori. Assim a pessoa confirma a sua incorporação a uma nova comunidade
287
e até mesmo à civilização africana. Através da interpretação desse código de
pertença, o indivíduo refaz seus laços de identidade com ele próprio, com o
grupo e com a África representada miticamente no Orixá a quem foi dedicada
a cerimônia e para quem foi feita a sua cabeça.
Pela reconstrução da sua cabeça no mundo mítico, o/a iniciado/a renasce
em outro contexto. Percebe, assim, que não é mais um ser só, único, isolado
no mundo, mas que lhe integra outro que também lhe pertence, do qual faz
parte e habita um mundo diferente do seu. Esse outro é um Orixá, um ser
sobrenatural, com características individuais marcantes, que tem relações
com outros deuses no Orun. Pelo processo de iniciação, através do Bori, o
adepto/a reconhece o seu “outro” constitutivo, se identifica com ele/a e com
o grupo do qual, ambos fazem parte e ele/ela passa agora a fazer parte de
outra comunidade que lhe reporta diretamente a África mítica.
Roger Bastide descreve uma cerimônia de Borí da seguinte forma:
A pessoa que a faz, senta-se numa esteira recoberta de pano branco, com o
torso nu e uma simples toalha nos ombros. O sacerdote, igualmente vestido
de branco, consulta primeiramente os obis18 para conhecer a vontade dos
deuses. Em seguida, tritura entre os dentes uma noz de obi e por três vezes
cospe o conteúdo no rosto do paciente. Enquanto os assistentes entoam
cânticos apropriados, diversos alimentos são preparados parte será oferecida
ao orixá “dono da cabeça”, outra aos mortos, outra será disposta sobre a
cabeça de quem faz realizar o bori, e a última será cozida para a refeição final.
Sacrifica-se um animal de duas patas e seu sangue rega, além da pedra do
orixá, a cabeça, o peito, os pés e as mãos do fiel. A cerimônia termina por uma
nova consulta ao obi, a fim de saber se os deuses estão satisfeitos e aceitam
o ritual celebrado, sendo então consumida a parte das oferendas que foram
18 Noz-de-cola, fruto muito utilizado em ritos religiosos; CASTRO, Yêda Pessoa. Falares Africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Copyright, 2001.
288
cozidas. O paciente, com o rosto, as mãos e os pés ainda sujos do sangue do
sacrifício, deve ficar a noite toda no terreiro, conservando na cabeça pequena
parte dos alimentos para que o orixá tenha tempo de comê-los.19
A importância do alimento não se traduz exclusivamente pelo seu papel
de mantenedor do corpo, através da ação de promover o metabolismo e
oferecer a energia necessária para a manutenção da vida. O alimento é,
nessa concepção, o responsável pela saúde geral do indivíduo e do grupo,
através do seu uso é permitida a comunicação entre os seres humanos, os
deuses e com o continente africano do qual fomos brutalmente arrancados.
Resgatá-lo, refazê-lo, devolvê-lo, ainda que simbolicamente, lhes concede
saúde e energia vital para permanecer na luta. Este é o caminho por pró-cura
e cuidado praticado por esta Medicina Tradicional africana, descrita a partir
do ponto de vista das mulheres negras de Candomblé da Bahia.
Ao oferecer o Bori, o/a adepto/a busca que também o seu “outro” (o Orixá)
seja fortalecido, não adoeça, não fique desnutrido e predisposto a diversos
males, refaz desta forma um círculo a fim de devolver essas energias também
à África. Busca, ainda, compartilhar dessa força, repartir para mais fortalecer
o grupo. O Bori é, então, um rito de passagem, um processo que tem como
objetivo explícito transformar o ser que a ele se submete. Durante esse
processo, o/a iniciado/a deverá permanecer recolhido/a, por um determinado
período de tempo. No decorrer desse tempo receberá orientações até
chegar o momento público do rito. Essa metamorfose representará, para o/a
iniciado/a, o renascimento em uma nova vida. Revela a passagem do ser, de
sua primordial indistinção genérica às formas particularizadas e nominadas
19 BASTIDE, Roger. A Cozinha dos Deuses. Rio de Janeiro: SAPES, 1960, pp 33.
289
de sua nova existência.20
Em Novos Alagados, local de minhas pesquisas, não cheguei a presenciar
uma cerimônia de Bori, mas em muitos momentos as zeladoras reafirmaram
a importância dos alimentos como fundamental nesta cerimônia e em todas
as circunstâncias dentro do Candomblé:
Para mim o alimento é tudo, é sagrado, comida de orixá, é tudo. Serve pra
comer, serve de limpeza pra o corpo e é a parte que eu mais gosto, eu gosto
de comer uma bananinha frita, uma farofinha pra Ogum, um caruruzinho.
A comida pra mim é tudo, desde uma oferenda pra agradar meu orixá, a tudo
mais, pra limpeza e cuidar da saúde, né? Então é tudo! Tudo vai depender de
saber dar o alimento certo, de fazer como deve ser, né? .
Olhe pra mim, assim! O alimento é muito importante. Todo axé depende dos
alimentos. Vai de cada Casa, mas em todas se sabe que é importante dar
comida ao orixá e à cabeça, senão, não tem mais nada. O alimento pra mim é
tudo, no Candomblé é tudo.
Todas as entrevistadas disseram que “o alimento é tudo”; que dentro do
Candomblé o alimento fundamenta todas as atividades rituais básicas. A
falta ou o não oferecimento de comida implica em sérias consequências para
o/a adepto/a.
Assim, a proibição de determinados itens considerados prejudiciais à saúde
pela biomedicina é compreendida por essas pessoas, mas não pode ser
valorizado como algo mais importante que agradar ao seu Orixá, dono da
sua cabeça. De nada adiantaria ter um corpo alimentado adequadamente,
20 BARROS, José Flávio Pessoa. & NAPOLEÃO, E. Ewé Òrìsá:uso litúrgico e terapéutic dos vegetais nas casa de candomblé Jêje-Nagô. Rio de Janeiro: Copyright, 1998; GENNEP, Van. Os Ritos de passagem. Rio de Janeiro: Vozes, 1978.
290
mas uma cabeça faminta ou mal alimentada.
É difícil a gente não comer durante as festas. Antigamente eu comia mais, mesmo. Depois que o médico proibiu... Eu deixo uma sopa pra quando eu acordar do santo, eu beber...Agora só que o Erê, eu não posso fazer nada, né? Ele come mesmo, doce...Eu não sou chegada a doce, mas ele gosta, o que é que eu vou fazer? Come doce, caruru, queimado, fica todo melado, come tudo!
D – Come tudo? E depois?
M – É eeeeee, depois eu vou pro médico (risos) faço um check – up! O jeito é ir, né? (risos).
Somam-se a tudo isso as preferências alimentares de cada Orixá. Isto
irá influenciar no cardápio das festas e em todas as oferendas feitas no
terreiro. Cada Orixá tem seus alimentos característicos relacionados
com sua natureza mítica. Cumpre ao adepto/a, na medida em que quer
agradá-lo e comunicar-se com ele, satisfazer o seu gosto e respeitar
seustabusalimentares.
Então, na Bahia, ao encontrarmos as comidas sagradas nas ruas (Ebós,
oferendas ou mesmo a venda de Acarajés e mingaus), assistimos, todos os
dias a um ritual de multiplicação da energia vital dos terreiros de Candomblé
e dessa ação afirmativa, através da Segurança Alimentar e Nutricional do
povo negro da cidade.
Essa ação incorporou-se à vida cotidiana das pessoas, que não são
necessariamente adeptas do Candomblé: o hábito alimentar de comer do
azeite, o sangue vermelho, sagrado, cheio de energia e de saudades de uma
África mitificada em sua ancestralidade poderosa.
291
Dessa forma mantêm-se a memória coletiva, o equilíbrio espiritual,
a saúde e a Segurança Alimentar e Nutricional de um povo, cifrado e
resguardado através da sacralização de sua cultura repassada através do
idioma dos alimentos. Pois também, do ponto de vista das mulheres de
terreiro garantir a alimentação de suas comunidades é também garantir
o equilíbrio, a proteção, a saúde e a Segurança Alimentar da cidade como
um todo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se através do Candomblé conseguimos manter uma memória afetiva da
África, que pode promover saúde, através dos alimentos conseguimos manter
um diálogo com os Deuses africanos, reforçando essa memória naquilo que
nos constitui como povo negro da diáspora, herdeiros de uma matriz cultural
invisibilizada pelo racismo institucional.
A academia por sua vez, pratica seu racismo institucional, através do
epistemicídio de saberes considerados subalternos, invisibilizando essa
produção, esse pensamento, interferindo neste diálogo. Podemos encontrar
parte destes saberes nos terreiros, pois nesses espaços tais conhecimentos
foram mantidos cifrados através do idioma da sacralização.
Mas, a outra parte, para perfazermos o diálogo encontra-se do outro
lado do Atlântico invisibilzada e dificilmente alcançada. Precisamos
urgentemente dialogar com autores, que considerem a filosofia africana
ao tratar de estudos que enfoquem essa matriz cultural e desta forma
292
compreendermos e promovermos saúde a partir de outros modelos
terapêuticos, que possam ser interpretados a luz de uma epistemologia
descolonizante.
AS AUTORAS E OS AUTORES
José Bento Rosa da Silva
Possui graduação em História pela Fundação do Pólo Regional do Vale do
Itajaí (1985), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (1994) e doutorado em História pela Universidade Federal
de Pernambuco (2001). Atualmente é professor adjunto da Universidade
Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de História, com ênfase
em História da África, atuando principalmente nos seguintes temas: áfrica -
história - diáspora, abolição - escravidão - trabalho, cidade - memória - porto,
escravidão . Vinculado ao Centro De Estudos Africanos da Universidade
do Porto(Portugal) como investigador doutorado.Estágio pós-doutoral na
Université Jean Jures - Mirail I [Toulouse- 2014-2015]. Vice-coord. do Instituto
de Estudos da Africa na Universidade Federal de Pernambuco.
Jacimara Souza Santana
É doutora em história social da África pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Mestra em história social e especialista em educação e desigualdades
raciais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Possui graduação em
294
História pela Universidade Católica do Salvador (2002). É professora de
história da África e líder do MALUNGU-Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão
sobre África e Diáspora - Universidade do Estado da Bahia (UNEB)/CNPQ. É
vinculada ao Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP),
GT- “Poderes e Identidades na África Subsaariana”. Especificamente estuda
história de Moçambique. Possui estágio doutoral pela Universidade Eduardo
Mondlane (Moçambique) e Curso de aperfeiçoamento pelo Centro de Estudios
de Asia y África-El Colégio de México. Áreas temáticas de atuação: história da
África e afro-brasileira, relações raciais e de gênero. Possui experiência com
formação de professoras/es para a implementação da Lei 10.639/03.
Giovani Grillo de Salve
Atualmente faz doutorado na área de História Social da África no Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas - Unicamp. Já realizou pesquisa no The
Harriet Tubman Institute for Global Migrations on the African Peoples - York
University - e tem experiência de pesquisa na área de História, com ênfase em
História da África do Sul, focando problemáticas como legislação, medicina,
segregação, assimilação, identidade e política de minorias
Silene Arcanja Franco
Mestre em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional pela Uneb,
Especialista em História Social e Educação pela Ucsal, com graduação em
295
História ( Ucsal). É professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb),
atuando nos componentes Laboratório de Ensino, Estágio Supervisionado,
História da Educação, Metodologia da História, História da Africa, Relações
Raciais e de Gênero. Trabalha na formação de professores para o Ensino de
História e Cultura Africana e Afro-Brasileira.
Danieli Siqueira Soares
É doutoranda em Sociologia na Universidade Federal da Paraíba - UFPB.
Possui graduação em CIÊNCIAS SOCIAIS pela Universidade Federal de
Pernambuco - UFPE (2004) e mestrado em ANTROPOLOGIA pela UFPE(2007).
Atualmente está realizando doutorado sanduíche no Centro de Estudos
Sociais - CES / Universidade de Coimbra em Portugal. É membro do Grupo de
Pesquisa em Saúde - GPS / UFPB, coordenado pelo Prof. Dr. Eduardo Sérgio
Soares d Sousa. Coordena o GESTAR, grupo de apoio ao gestar, nascer, parir
e nutrir. Tem experiência na área de Antropologia e Sociologia, com ênfase
em Religião, Gênero, Saúde, Cultura e Tradição.
Kelma Luzia Nunes Otaviano
Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará
(1996), especialização em cultura africana e dos afrodescendentes pela UFC
(2011) e mestrado em Educação brasileira também pela Universidade Federal
do Ceará (2013). Profesora licenciada do curso de Serviço Social da Faculdade
296
Cearense - FAC. Consultora na área de projetos sociais, educacionais, de saúde.
Servidora da prefeitura de Fortaleza da área de saúde mental. Idealizadora,
fundadora, estudiosa e pesquisadora no Coletivo Em tempos de Ayoká de
estudos e pesquisas em cultura africana com ênfase nas práticas de saúde
da medicina tradicional africana.
João Reis da Cruz Santos
Graduado em Filosofia-Faculdade São Bento da Bahia. Sacerdote (Tata
Kaiti) do Candomblé de Angola, Educador Social, Ex-presidente do Conselho
Municipal das Comunidades Negras - CMCN - Salvador-Ba, Ex-Conselheiro
Tutelar, pesquisador do Candomblé de Angola e militante em defesa do
Templo Ecológico de Salvador Parque São Bartolomeu na Área de Proteção
Ambiental (APA) Bacia do Cobre.
Denize de Almeida Ribeiro
É Coordenadora do NEGRAS - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Raça
e Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, foi Coordenadora de
Políticas Afirmativas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB
(2014). É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, atuando
no Centro de Ciências da Saúde, CCS/UFRB. Graduada em Licenciatura em
Nutrição e Dietética pela Universidade do Estado da Bahia (1985), Bacharel
em Nutrição pela Universidade do Estado da Bahia (1993), Especialista em
297
Desigualdades Raciais na Educação pelo CEAO/UFBA, Especialista em Saúde
da Família pelo ISC/UFBA, Mestre em Saúde Comunitária pelo Instituto de
Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (2002) e Doutora em Saúde
Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia
(2013). Foi Coordenadora do GT de Saúde da População Negra, da Secretaria
Municipal de Saúde de Salvador (2009). Tem experiência na área de Saúde
Coletiva, com ênfase em Ciências Sociais e Saúde, atuando principalmente
nos seguintes temas: Saúde da População Negra, Saúde Coletiva, Políticas
de Combate ao Racismo, Genocídio da População Negra, Pesquisa Ativista,
Promoção da Equidade Racial e de Gênero, Feminismo Negro, Segurança
Alimentar e Nutricional, Povos e Comunidades Tradicionais e Saúde no
Candomblé.
Rua Acadêmico Hélio Ramos, 20, Várzea Recife, Pernambuco
CEP: 50.740-530 Fax: (81) 2126.8395
Fones: (81) 2126.8397 / 2126.8930 www.ufpe.br/edufpe
299
série
PESQUISASCLÁSSICOSENSAIOS
Um dos grandes problemas para o entendimento da África e sua multiplicidade de povos e culturas, no Brasil, é o conhecimento estereotipado e preconceituoso, construído ao longo dos séculos, vigente na mídia e mesmo nos meios acadêmicos. A persistência deste viés resulta de desconhecimento puro e simples decorrente quer do restrito número de centros de estudo e difusão de saber, quer da parca bibliografia produzida nos países africanos e no Brasil. O saber tem historicamente circulado unidirecionalmente de Norte para Sul gerando distorções uma vez que raramente o olhar escapa das condicionantes a partir do local de onde se olha. A criação do Instituto de Estudos da África (IEAf) da Universidade Federal de Pernambuco e a incorporação das publicações da Série Brasil &África somam forças para mudar este quadro.
Subdividida em 3 coleções – Clássicos, Pesquisas e Ensaios –, já foram publicadas importantes obras abordando temas como nacionalismo, relações de gênero em Moçambique e Cabo Verde e mortalidade feminina na Guiné-Bissau. Outras tantas virão enriquecer este quadro, dotando os brasileiros de instrumentos concretos para um profícuo e potencializado diálogo Sul-Sul direto com intelectuais africanos. O mar do desconhecimento que nos separa assim se converterá no mar que nos unirá; livre de preconceitos e libertador.
“Aprender a ir ao Sul, a partir do Sul”: a frase, do sociólogo e crítico da globalização Boaventura de Sousa Santos, poderia servir de epígrafe para esta nova série de livros. Epígrafe-mensagem, endereçada especialmente aos intelectuais universitários, que costumam encomendar seus saberes mais na Amazon.com do que no Amazonas ou no Congo. (Os pensadores da Sanzala - “povoado” em Kimbundu, com essa grafia, antes de a palavra ser escravizada pela Casa Grande – há muito tempo vêm rememorando, com dor mas também axé, as antigas trocas Sul-Sul forçadas.) Mas por que mudar de “norte”? É para pensar melhor experiências e práticas análogas, quando não ligadas historica-mente: os vendavais do escravismo, do trabalho colonial forçado, da escravidão contem-porânea; os cultos de cura populares contra males individuais e sociais; as lutas contra o racismo, a pobreza, as doenças pouco pesquisadas pela farmacopeia do Norte; as batalhas em prol dos princípios democráticos e dos direitos humanos, trabalhistas e de gênero. As três coleções da série – “Pesquisas”, “Ensaios” e “Clássicos” – trazem livros que enfocam a África, com certa ênfase nos países de língua portuguesa, ou apresentam reflexões comparativas sobre África e Brasil. Ressaltam-se, já nos volumes de estreia, frutos importantes de um intercâmbio entre professores da Universidade Federal de Pernambuco e duas universidades africanas, a Eduardo Mondlane (Moçambique) e a da Cidade do Cabo (África do Sul).
Robert W. SlenesProfessor Titular do
Departamento de História da Unicamp
ISBN 978-85-415-0842-1
978-85-415-0842-1