PRÁTICA DE ENSINO DE HISTÓRIA: O USO DA IMAGEM NA … · visuais e escritas está fundamentado...

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1 PRÁTICA DE ENSINO DE HISTÓRIA: O USO DA IMAGEM NA IDADE MÉDIA * MAZZURANA, Marilda (SEED/UEM - PDE) OLIVEIRA, Terezinha (UEM) Por meio de imagens da cidade medieval, produzidas pelo pintor italiano Ambrogio Lorenzetti (1290-1348), é que propomos o desafio de olhar para o final do século XIII e início do século XIV para entender o que incentivou o homem medieval a repensar sua forma de viver, buscar novos caminhos e assumir novas convicções. Será então, pelo âmbito das obras de arte que retratam o novo ambiente urbano que iremos perceber o que essas mudanças representaram na maneira do ser humano se expressar, se relacionar e agir em relação a si próprio, aos demais indivíduos e ao meio em que vive. A nosso ver, as imagens do espaço citadino medieval possibilitam vislumbrar as transformações históricas que fizeram surgir nova mentalidade, novas formas econômicas, culturais, artísticas e sociais para o homem medieval do Ocidente deste período, mudando assim, o rumo da evolução da história da humanidade. Na interpretação de Le Goff (1989), a cidade modifica a vida do homem medieval aumentando a rede de comunidades nas quais ele atua. A convivência próxima, as relações de vizinhança, as ruas, tornam-se um espaço social, lugar de encontro e de convívio e implicam em novo comportamento. Com isso, o homem medieval buscava resposta aos fenômenos que o rodeava empenhando-se em mudanças não só na arte, leis e regras, mas principalmente na sua forma de pensar e estar no mundo. Os séculos XIII e XIV constituem-se num legado cultural importante para a humanidade. Não há como negar as heranças medievais, a topografia das cidades, a arquitetura, as referências culturais, religiosas, éticas, a universidade, o livro, o relógio, o moinho, o comércio, a nova concepção de trabalho, de tempo e outros acontecimentos gerados no espaço citadino, que justificam a origem das novas estruturas sociais e mentais presentes na sociedade moderna. * Este trabalho compreende uma parte da pesquisa que desenvolvemos no Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, executado pela Secretaria de Estado da Educação (SEED) do Estado do Paraná.

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PRÁTICA DE ENSINO DE HISTÓRIA: O USO DA IMAGEM NA IDADE

MÉDIA*

MAZZURANA, Marilda (SEED/UEM - PDE)

OLIVEIRA, Terezinha (UEM)

Por meio de imagens da cidade medieval, produzidas pelo pintor italiano Ambrogio

Lorenzetti (1290-1348), é que propomos o desafio de olhar para o final do século XIII e início

do século XIV para entender o que incentivou o homem medieval a repensar sua forma de

viver, buscar novos caminhos e assumir novas convicções. Será então, pelo âmbito das obras

de arte que retratam o novo ambiente urbano que iremos perceber o que essas mudanças

representaram na maneira do ser humano se expressar, se relacionar e agir em relação a si

próprio, aos demais indivíduos e ao meio em que vive. A nosso ver, as imagens do espaço

citadino medieval possibilitam vislumbrar as transformações históricas que fizeram surgir

nova mentalidade, novas formas econômicas, culturais, artísticas e sociais para o homem

medieval do Ocidente deste período, mudando assim, o rumo da evolução da história da

humanidade.

Na interpretação de Le Goff (1989), a cidade modifica a vida do homem medieval

aumentando a rede de comunidades nas quais ele atua. A convivência próxima, as relações de

vizinhança, as ruas, tornam-se um espaço social, lugar de encontro e de convívio e implicam

em novo comportamento. Com isso, o homem medieval buscava resposta aos fenômenos que o

rodeava empenhando-se em mudanças não só na arte, leis e regras, mas principalmente na sua

forma de pensar e estar no mundo.

Os séculos XIII e XIV constituem-se num legado cultural importante para a

humanidade. Não há como negar as heranças medievais, a topografia das cidades, a

arquitetura, as referências culturais, religiosas, éticas, a universidade, o livro, o relógio, o

moinho, o comércio, a nova concepção de trabalho, de tempo e outros acontecimentos gerados

no espaço citadino, que justificam a origem das novas estruturas sociais e mentais presentes na

sociedade moderna.

* Este trabalho compreende uma parte da pesquisa que desenvolvemos no Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, executado pela Secretaria de Estado da Educação (SEED) do Estado do Paraná.

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As imagens que estudamos são resultado de um processo de uma atividade intelectual e

manual, possuindo elementos do percebido, do real e do imaginário, funcionam como um

testemunho histórico e social de um período e de uma cultura. Como produto social e histórico

os afrescos de Ambrogio Lorenzetti (1290-1348) representam a efervescência da cidade

medieval, espaço em que o comércio é o grande dinamizador, responsável por grandes

mudanças, entre elas podemos citar a nova concepção de tempo e de trabalho.

Em função das transformações econômicas, históricas e sociais do período em questão,

a nova percepção do tempo que surge no ambiente citadino, provoca rupturas quanto a

mentalidades até então estabelecida. Le Goff (1979, p. 43) analisa essa mudança, no artigo

Tempo da Igreja e tempo do mercador, em que o autor classifica o tempo da Igreja pelos

rituais cristãos e o tempo do mercador pelas necessidades do comércio. A Igreja considerava

usura a cobrança do tempo transcorrido entre o pedido e o pagamento de um empréstimo, por

isso condenou esta prática (pecado de avareza), pois “pressupõe uma hipoteca sobre um tempo

que só a Deus pertence, [...] vendendo o que não lhe pertence”. Essa proibição, como afirma

Pirenne (1963, p. 30), impedia os mercadores de enriquecer em plena liberdade de consciência

e de conciliar a prática dos negócios com os preceitos da religião. A nova sociedade urbana

precisava dessa mudança de mentalidade em relação ao tempo, para se adaptar às condições

impostas pelas práticas mercantis, principalmente porque o mercador deveria considerar o

tempo para definir o preço dos produtos, a duração do trabalho artesanal, na viagem, no

comércio em geral para assim, garantir bons negócios. Aos poucos a necessidade de regular o

tempo foi se impondo e a partir da invenção do relógio mecânico no século XIV, o tempo

(relógio) passa a gerir a vida das pessoas da cidade. O tempo que surgia era um tempo novo,

mensurável, racionalizado, com valor.

Para entender melhor essa transformação e outras que ocorreram na Idade Média, bem

como as diversas questões da atualidade, é fundamental repensar a formação do homem,

buscando, sobretudo, a formação de cidadãos conscientes, que compreendam, participem e

interfiram nas relações sociais de seu tempo histórico. Nesse aspecto, a História enquanto

disciplina que estuda o homem, tem o compromisso de situar a condição humana no mundo,

buscando um significado e um sentido à vida em diferentes tempos, contribuindo para que o

aluno reconstrua sua identidade pessoal e coletiva.

O trabalho com imagens em sala de aula representa um importante elemento da

atividade sócio-cultural humana, que possibilita a reflexão, ação e expressão do homem em

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relação a si próprio, aos demais indivíduos e ao meio em que vive. Nesse sentido, faz-se muito

oportuno as palavras de Morin quando em sua obra Os sete saberes necessários à educação do

futuro insiste na integração entre o homem, natureza e sociedade. Disso decorre que, para a educação do futuro, é necessário promover grande remembramento dos conhecimentos oriundos das ciências naturais, a fim de situar a condição humana no mundo, dos conhecimentos derivados das ciências humanas para colocar em evidência a multidimensionalidade e a complexidade humana [...] (MORIN, 2002, p. 48).

Essa discussão do autor é extremamente importante ao profissional do ensino de

História, pois possibilita a vinculação entre o conteúdo a ser ensinado e a concepção do

homem em sua totalidade. O conhecimento deve trazer contribuições que situem o ser humano

no mundo, possibilitando o reconhecimento da unidade e da complexidade humana. Como o

ser humano é a um só tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social, histórico será muito

importante integrar a História à Arte e a outros campos do conhecimento. A nosso ver, essa

integração disciplinar das diferentes áreas do conhecimento, é uma forma de resgatar a

totalidade do homem nas várias dimensões: afetiva, cognitiva e social, numa relação

integradora de emoção e razão, afetividade e cognição, subjetividade e objetividade,

conhecimento e sentimento.

Convivemos diariamente com uma produção infinita de imagens que nos transmitem

inúmeras informações e mensagens, daí a necessidade de serem lidas despertando os sentidos

da sutileza, da sensibilidade estética, do belo, do conhecimento e da visão crítica de mundo.

Tais habilidades são importantes, pois sabemos que o mundo contemporâneo, exige do jovem

o sentimento de conhecimento, de sensibilidade que o posicione e o ajude a pensar e agir

diante de situações novas ou inesperadas.

A educação deve conduzir à ‘antropo-ética’, levando em conta o caráter ternário da condição humana, que é ser ao mesmo tempo indivíduo/sociedade/espécie. Nesse sentido, a ética indivíduo/espécie necessita do controle mútuo da sociedade pelo indivíduo e do indivíduo pela sociedade, ou seja, a democracia; a ética indivíduo/espécie convoca, ao século XXI, a cidadania terrestre (MORIN, 2002, p. 17).

A ética para o autor, não está relacionada a lições de moral, fundamenta-se sim, na

consciência de que o ser humano é ao mesmo tempo, indivíduo, parte da sociedade e parte

integrante da natureza. Para que ocorra o desenvolvimento verdadeiramente humano e a

prática da cidadania é necessário incentivar as participações comunitárias, desenvolver a

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autonomia individual e a consciência de pertencer à espécie humana. Com isso, é fundamental

educar a partir de valores éticos, estéticos e políticos, permitindo que o educando seja capaz de

construir sua identidade social e coletiva.

Os primeiros estudos sobre ética, moral e política partiram dos filósofos da cultura

ocidental, especificamente na antiga Grécia. O filósofo Aristóteles, por exemplo, na obra Ética

a Nicômaco entende o homem como um ser social e político. E para o convívio social o

homem precisa buscar o conhecimento (virtude intelectual) e praticar a justiça (virtude moral)

para assim, pelo exercício da razão, característica própria do homem, poder deliberar e

escolher o que é mais adequado para si e para o outro. Para Aristóteles, a ética serve como

condução do ser humano à felicidade e o hábito e a sabedoria na busca do equilíbrio são

princípios reguladores das ações tanto na vida coletiva, como na conduta individual. Assim,

dependendo dos atos que praticamos nas relações com os outros estaremos sendo justos ou

injustos, pois, o hábito de praticar atos bons leva a virtude e ao contrário gera o vício. Fazer

opção pela consciência ética significa mudar a conduta quanto as escolhas e atitudes visando o

bem comum.

A multiplicação das cidades medievais do século XIII e XIV, a crescente população

vinda do campo, o estabelecimento de um novo sistema de relações sociais exigem do homem

citadino medieval, novas formas de agir e de se comportar, sobretudo para viver nesse espaço

público. Com isso, se faz necessário seguir algumas regras de convívio e é nesse sentido que a

filosofia de Aristóteles constituiu-se numa fonte inesgotável de elementos de reflexão para os

problemas políticos, éticos e sociais, contribuindo na organização da cidade medieval. Embora

Aristóteles (384-322 a.C) tenha apresentado um referencial para os homens de sua época, no

sentido de buscar respostas para ter uma vida feliz naquele momento histórico, suas idéias

permitiram reflexões válidas para o homem medieval, bem como, para o contexto atual por

tratar sobre o agir humano e as relações sociais.

Em função da complexa dinâmica social dos últimos tempos e por visar o homem na

sua totalidade (matéria e espírito) esse estudo se reportará teórico-metodologicamente à

História Social, pois é nela que encontramos a abertura necessária ao olhar do pesquisador. É

oportuno destacar que a nova relação da História com a imagem ocorre, principalmente, a

partir da década de 70, do século XX, quando Jacques Le Goff e Pierre Nora organizaram e

publicaram na França a coleção História: Novos Problemas; Novas Abordagens; Novos

Objetos.

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Na análise das imagens as linguagens verbal e a escrita são importantes para

complementar a comunicação e mediar a interpretação da imagem. O diálogo entre as fontes

visuais e escritas está fundamentado pela metodologia proposta por Panofsky em Significado

nas Artes Visuais e por Francastel em A Realidade Figurativa. Os dois autores propõem que as

imagens sejam contextualizadas dentro do período e local em que foram produzidas,

observando-se também a origem e o histórico do artista.

Panofsky (1979) propõe os seguintes passos para a análise de imagem: a descrição pré-

iconográfica, a análise iconográfica e a interpretação iconológica. No primeiro passo devemos

observar a imagem e identificar o tema natural ou primário, ou seja, é a identificação das

formas puras, portadoras de significados. Relata-se tudo na imagem, visando a identificação e

descrição dos significados factual e expressional da obra. O segundo passo corresponde à

análise iconográfica, cujo objetivo é identificar os significados convencionais expressos pelos

elementos da imagem, relacionando os motivos artísticos (factual/expressional), com os fatos e

acontecimentos construídos por meio da cultura da sociedade da qual faz parte. Estabelece-se a

relação entre o que foi identificado na imagem e o tema que ela representa. A utilização de

fontes literárias, enciclopédias e dicionários tornam-se indispensável para a identificação e

familiarização dos temas e conceitos retratados na imagem. O terceiro passo é a interpretação

iconológica em que se chega ao significado intrínseco ou conteúdo propriamente dito da

imagem, nessa fase teremos a possibilidade de descobrir os valores simbólicos, finalidades e a

importância da imagem na sociedade em que foi concebida.

Nesse processo, é necessário conhecer a especificidade da linguagem visual, seus

limites e possibilidades. A imagem deve ser olhada, questionada, para que história e memória

sejam entendidas. Olhar não é simplesmente ver, nem observar com mais ou menos

competência. A leitura de imagens implica compreensão, entendimento, significação e

consciência. A apreciação e análise das imagens artísticas tornam o nosso olhar mais atento às

representações e aos seus significados, contribuindo para a compreensão que temos de nós

mesmos e, conseqüentemente, da realidade. Para isso é preciso ir além do que se vê, rompendo

com a superficialidade do visível e imediato e aprofundar o diálogo possível e implícito na

obra.

Como afirma Francastel (1973, p. 69), o mundo visual não só possui sua lógica própria,

como ainda funda um modelo particular de atividade produtiva. Em outras palavras, “existe

um pensamento plástico - ou figurativo - como existe um pensamento verbal ou um

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pensamento matemático”. Dessa forma, existem valores e sentidos que somente as imagens

possuem possibilitado transmitir informações para o intelecto, de acordo com regras

específicas, experiências, percepções e esquemas representativos do pensamento e que, por

isso, não são substituídos por outras formas de linguagem. Na análise de imagens devemos

perceber seus silêncios e decifrar seus códigos, visto que a mesma não reproduz a realidade,

mas a reconstrói a partir de sua linguagem própria.

Imagem 1

Esta imagem retrata as atividades cotidianas do espaço citadino, faz parte de um

grande grupo de figuras alegóricas (afrescos) do Palácio Público de Siena (Itália) (1337-1340)

em que Ambrogio Lorenzetti representa os efeitos do bom e do mau governo na cidade e no

campo. Entre as várias cenas da imagem observa-se, o comércio, lojas e oficinas abertas, o

transporte de cereais e feno, algumas pessoas chegando do campo sendo atraídas pela vida da

cidade. No geral, as pessoas estão conversando e circulando com bens realizando seu trabalho

ligado ou não as corporações de ofício. Artesãos e mercadores expõem as suas mercadorias ou

transportam os produtos em cavalos e mulas. Observe também, que na parte superior da

imagem 1, estão alguns trabalhadores sobre andaimes, em cima de telhados, mostrando que o

trabalho não pára, simbolizando assim, que a cidade está crescendo, sendo construída para o

alto.

Prina e Padovan (1995, p. 19) afirmam que “para o ‘burguês’, torna-se muito

importante a imagem de si, o apresentar-se bem e atingir uma posição de prestígio no seio da

sociedade comunal”. Na análise da imagem 1, a cena do professor (mestre) e seus alunos

(discípulos) que aparece por baixo de um pórtico é significativa, pois a instrução, a educação

e a cortesia passam a ser elementos fundamentais na formação do indivíduo, revelando assim,

o novo estilo de vida urbana.

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A vida na cidade era diferente da vida no feudo, por isso, novas técnicas e tecnologias

de produção e de habitação precisavam ser criadas. Nas cidades o conhecimento assumiu

caráter racional, propósitos lucrativos e a educação passou a ser mais valorizada. A burguesia

sentia necessidade do conhecimento para melhor controlar o mercado natural, principal fonte

de produção e lucro. As cidades como pontos de passagem e de comércio, interligava a

atividade intelectual à função comercial e artesanal. Por meio do comércio com os árabes e

bizantinos, foi possível o acesso as obras clássicas preservadas por esses povos, que por

muitos séculos se tornaram desconhecidas ou não eram acessíveis aos pensadores do

Ocidente.

Nesse contexto, vale ressaltar a estreita relação entre a Universidade e o

desenvolvimento urbano a qual possibilitou um novo olhar sobre a vida e suas relações. A

Universidade começa a surgir em fins do século XII, destacando-se principalmente no século

XIII a qual marcou o renascimento urbano, promovendo uma verdadeira revolução

intelectual, que fez a sociedade se desenvolver através do conhecimento, do raciocínio e de

influências greco-romanas. O estudo das obras de diversos filósofos, como Aristóteles e

Platão, através da tradução e da incorporação da filosofia grega na filosofia e teologia cristã,

gera um grande enriquecimento da cultura, das artes e da ciência, agregando a isso os valores

humanos e de certa forma se desprendendo aos poucos dos misticismos.

E juntamente com o estudo da Gramática, da Matemática, da Astronomia e da música,

a dança, outra cena representada na imagem 1, torna-se requisito indispensável para a boa

formação. A atividade da dança gera uma atmosfera descontraída e recreativa favorece as

relações interpessoais sem desmerecer os valores individuais. A cena da dança em círculo de

mãos dadas, acompanhada por canto e tamborim é a ‘carola’, que de acordo com Prina e

Padovan (1995, p. 9) “A dança é uma representação de grupo e, como tal, desenvolve neste

um sentimento de união e solidariedade, redimensiona as manifestações egocêntricas (...)”. Na

Idade Média, a dança foi considerada uma manifestação contrária à moral cristã, no entanto,

na cidade ela encontra um lugar social junto da nobreza e da ascendente burguesia mercantil.

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Imagem 2

A imagem 2, também faz parte do afresco do Palácio Público de Siena de Ambrogio

Lorenzetti (1337-1339). Nesta imagem, a muralha aparece em destaque separando o espaço

da cidade do espaço do campo. Para Le Goff (1998) o campo é visto de forma negativa como

lugar de rusticidade, ao contrário da cidade que representaria educação, cultura, bons

costumes e elegância. O autor contextualiza as mudanças nas estruturas econômicas e sociais

presentes na cidade do século XIII e XIV ao afirmar que

A cidade da Idade Média é um espaço fechado. A muralha a define. Penetra-se nela por portas e nela se caminha por ruas infernais que, felizmente, desembocam em praças paradisíacas. Ela é guarnecida de torres, torres das igrejas, das casas dos ricos e das muralhas que cercam. Lugar de cobiça, a cidade aspira à segurança. Seus habitantes fecham suas casas à chave, cuidadosamente, e o roubo é severamente reprimido. A cidade, bela e rica, é também fonte de idealização: a de uma convivência harmoniosa entre as classes. A misericórdia e a caridade se impõem como deveres que se exercem nos asilos, essas casas de pobres. O citadino deve ser melhor cristão que o camponês. Mas os doentes, como os leprosos que não podem mais trabalhar, causam medo, e essas estruturas de abrigo não demoram a se tornar estruturas de aprisionamento, de exclusão. As ordens mendicantes denunciam as desigualdades provenientes dessa organização social urbana e desenvolvem um novo ideal: o bem comum. Mas elas não podem impedir a multiplicação dos marginais no fim da Idade Média (LE GOFF, 1998, p. 71).

As muralhas com suas torres e portas possuíam caráter defensivo protegendo os

habitantes da cidade dos invasores e bandidos. Indicavam a dinâmica da cidade, seu

crescimento e alargamento ocorriam em função da expansão da muralha. Como a cidade era

um ambiente fechado, as portas das muralhas era o elo de ligação por onde passavam pessoas

e mercadorias. Sendo assim, além de interligar a cidade e o campo, significava também, o

intercâmbio com o exterior, a passagem para o mundo.

As obras de Lorenzetti foram a primeira tentativa do pintor em apresentar um cenário

real com habitantes reais. Essa expressão artística revela à nova tendência na pintura que

busca inspiração na vida cotidiana dos cidadãos, principalmente na Itália entre o século XIII e

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XIV, em que tem início a valorização do homem e da natureza. O Gótico de Siena, Itália, é

uma concessão constante ao humanismo. Cresce o realismo da paisagem e do corpo humano,

declinando a predominância emocional religiosa. Nesse contexto, as pinturas de Lorenzetti

classificadas como medieval ou pré-renascentista indicam, no entanto, uma mudança para

temas mais laicos ao invés de motivos religiosos como eram a grande maioria naquela época.

Suas obras mostram a influência dos pintores Simone Martini e Duccio e de maneira indireta

traz a marca de Giotto (1267-1337), o principal artista do estilo gótico italiano que inicia um

novo estilo com novos temas relacionados a natureza exterior e ao homem. Seu estilo vem ao

encontro de uma visão humanista do mundo, que vai se firmando até ganhar plenitude no

Renascimento.

Nas imagens 1 e 2, Lorenzetti retrata as aspirações dos citadinos em viver numa

cidade que impere o bom governo e a justiça, mostra a cidade em plena harmonia com

múltiplas atividades, as imagens dão idéia de prosperidade, riqueza, ordem e segurança de

vida, não se concebe o conflito nem o confronto, a política que prevalece é o bem comum.

Le Goff (1998, p. 105) identifica a imagem da cidade como “trabalho e jogos, riqueza

e beleza, harmonia e bem-estar da comunidade: é o ideal do bom governo urbano, pelo

príncipe”. O orgulho urbano encontra seu sustento inovador e criativo na sua função cultural:

escola, universidade, arte, religião e urbanismo. Entretanto, as cidades do século XIII

desenvolviam-se espontaneamente, com suas construções amontoadas ao longo das ruas

curvas e estreitas e estas favoreciam às revoltas, crimes e estupros, constituíam-se em espaços

de desigualdades sociais, marcado por relações de dominação, resistência e conflitos.

No século XIII os avanços técnicos, por exemplo, o arado de ferro, o moinho

hidráulico e outros, promoveram o desenvolvimento das forças produtivas, provocando

significativos impactos sobre as relações econômicas e sociais existentes no período feudal.

No entanto é na cidade que ocorre a valorização da vida ativa, surgindo assim, um novo

conceito para o trabalho. Segundo Le Goff (1998) a valorização do trabalho é uma função

histórica da cidade medieval, nesse ambiente a ociosidade passa a ser combatida e são

apreciados os resultados criadores, produtivos do trabalho.

As mudanças que vão ocorrendo principalmente relacionadas ao crescimento

demográfico, a economia, ao novo conceito de tempo e trabalho e os novos valores, geram na

cidade medieval uma nova estratificação social que não se resume mais no mundo dos

senhores e camponeses. Forma-se uma nova classe econômica a dos prósperos mercadores e

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artesãos (burguesia) que ganham importância à medida que o comércio se desenvolve e

tornam-se independentes por meio da luta pela liberdade em relação ao poder da nobreza. Na

cidade passam a conviver juntamente com a privilegiada nobreza senhorial (reis, clero,

senhores feudais, ministros) os elementos urbanos emergentes, como os artesãos e suas

corporações de ofício, os comerciantes, os prestadores de serviço, os intelectuais, além dos

diversos grupos que coexistiam em geral pertencentes às camadas inferiores. A maioria dos

trabalhadores não estava ligada a uma corporação e muitos não tinham emprego fixo. Toda

essa desigualdade social existente gerava de alguma forma luta pelos direitos e contra aqueles

que os dominavam. Com isso, havia uma estreita relação entre a delinqüência e a pobreza,

gerando consequentemente a mendicância e o roubo, que mesmo punidos com severidade

eram problemas comuns nas cidades medievais.

Foi neste espaço que os mais diferentes segmentos sociais se encontraram, travaram

relações e criaram várias instituições como os conselhos (comunas), com funções políticas e

administrativas; as confrarias, associações de caráter religioso que tinham objetivos

assistenciais e as corporações de ofício, de caráter profissional que agrupavam os elementos de

uma mesma profissão.

De acordo com Pirenne (1963) as corporações de ofícios foram criadas pela

necessidade de proteger tanto o artesão que fabrica e vende como o cliente que compra a

produção urbana. Elas visavam, sobretudo, regular a quantidade e a qualidade dos produtos; as

relações de trabalho; defender o preço justo; eliminar a concorrência desleal e assegurar o

monopólio local impedindo que trabalhos similares de outras regiões entrassem nos mercados

da cidade. Com o desenvolvimento das corporações, o trabalho perdeu seu caráter de redenção

e se tornou motivo de realização pessoal. As corporações valorizaram o trabalho.

Juntamente com o mercado a catedral era o local de convergência do povo da cidade.

No seu interior, além das orações, também aconteciam diversas reuniões e assembléias civis.

Símbolo de fé e do amor é a casa de todos, com sua luz, sua beleza, sua arte, transmitia

segurança, serenidade e purificação. A religião na Idade Média assumiu um papel fundamental

ao assegurar a vivência do coletivo, ao construir uma unidade em torno das coisas sagradas,

compondo uma mentalidade que permitia o controle social do indivíduo. Até mesmo a

desestruturação do Feudalismo não implicou na destruição da cultura cristã. O próprio Estado

Moderno se utilizou da teoria do direito divino para justificar seu poder.

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Figura 3 - La cité, 1346.

A imagem 3 é uma reprodução de um quadro miniatura produzido por Ambrogio

Lorenzetti em 1346 e faz parte do acervo da Pinacoteca Nacional de Siena. Lorenzetti concebe

a estrutura da cidade repleta de linhas retas e planos geométricos. Não só esta imagem, mas as

diversas construções do século XIII e XIV (palácios, torres, muralhas, igrejas) são exemplo da

arquitetura medieval com influências do estilo gótico desenvolvido principalmente na França,

o qual ficou conhecido como a arte das catedrais, refletindo também, o desenvolvimento das

cidades. A Igreja aparece no alto, em destaque tornando visível a representação do seu

domínio sobre a cidade. Acreditava-se chegar a Deus não apenas pela fé, isso explica a

grandiosidade das construções, em que tudo se volta para o alto, projetando-se na direção do

céu. Entretanto, a presença expressiva da Igreja não era visível só na paisagem urbana em

termos de estrutura física, mas também na organização da vida cotidiana, na religião, na

economia e na cultura em geral.

A cultura na Idade Média foi muito influenciada pela religião católica, as artes no geral

e os livros eram marcados pela temática religiosa. Os vitrais das igrejas traziam cenas bíblicas,

servindo como forma didática e visual de transmitir o evangelho para uma população quase

toda formada por ágrafos. Nesse sentido, a linguagem visual procurava colocar em evidência

símbolos e signos dotados de mensagens explícitas ou implícitas, traduzindo muitas vezes o

sistema ideológico vigente. Como afirma Huizinga (1978), a cultura medieval era, sobretudo,

uma cultura de imagens em que as ações da vida diária, individual e social estavam

constantemente relacionadas com Cristo ou a salvação.

No entanto, a partir do século XIII o homem medieval modifica-se, em função de que

na cidade as relações sociais se tornam mais complexas e exigem novas formas de pensar e

agir. Le Goff (1989, p.24) afirma que a própria religiosidade “aceita cada vez mais as coisas

do mundo, vão descendo do céu à terra, sem que o homem medieval deixe de ser

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profundamente religioso e de se preocupar com a sua salvação que, agora, se baseia menos no

desprezo pelo mundo do que na sua transformação”.

Todas as transformações dos novos espaços sociais, o desenvolvimento do comércio e

das cidades, o aparecimento da burguesia, o surgimento das Universidades, o enfraquecimento

do poder dos senhores feudais, a aliança entre os reis e a burguesia e conseqüentemente o

fortalecimento do poder dos reis, as crises do século XIV, levaram aos poucos o feudalismo à

dissolução.

Considerações Finais

Considerando que as obras de arte são um valioso instrumento para a construção do

conhecimento, acreditamos que a leitura das imagens enriquecida com o conhecimento

histórico gera a compreensão do lugar, das relações sociais e culturais da época em que a obra

foi criada. É importante destacar que conhecer a linguagem própria das imagens representa um

meio de interferir e entender o desenvolvimento cultural, social e até determinadas formas de

poder de uma determinada sociedade, pois ao mesmo tempo em que se aprende com a imagem,

se educa pela imagem. Assim, a nosso ver, compreender as imagens significa desvendar o

papel que sua produção ou apreciação exerceu e continua a exercer em diferentes contextos

históricos.

As cidades medievais contribuíram para a formação do mundo moderno, inseriram

novos valores decorrentes da dinâmica comercial, das novas relações sociais, da vida

universitária, da movimentação das ordens religiosas, da Igreja e da cultura em geral. Podemos

então afirmar que o final do século XIII e início do século XIV marcam o período de grandes

mudanças na maneira do homem ver o mundo.

As relações humanas determinam os limites e as possibilidades das ações dos sujeitos

de modo a demarcar como estes podem transformar constantemente as estruturas sócio-

históricas. Assim, a nossa época não é a forma natural e correta de ser, mas pode e deve ser

modificada de acordo com nossas ações como foi o mundo medieval que por sua vez, também

não foi a forma correta de os homens serem, mas foi uma época histórica na qual os homens

viveram e produziram mudanças no seio de suas relações sociais, neste aspecto se torna um

exemplo para nós.

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A Educação por meio das imagens, além de diversificar a prática pedagógica,

possibilita desenvolver a sensibilidade, o gosto estético-cultural, contribui na formação de

cidadãos que interagem e participem da construção de uma sociedade mais justa. Durante as

aulas de História, muitas outras reflexões e/ou atividades poderão ser desenvolvidas, no

sentido de proporcionar ao educando uma nova percepção ética e estética da realidade na

busca por soluções para os problemas urbanos que de alguma forma comprometem e

interferem no bem comum, como também, pela preservação do espaço público como lócus da

existência da comunidade.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

FRANCASTEL, P. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1973.

HUIZINGA, J. O declínio da Idade Média. São Paulo: Verbo: EDUSP, 1978. LE GOFF, J. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: UNESP, 1998.

______. O homem medieval. Lisboa: Presença, 1989. ______. Na Idade Média: tempo da Igreja e o tempo do mercador. In: LE GOFF, J.

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PANOFSKY, E. Significado nas Artes Visuais. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1979. PIRENNE, H. História econômica e social da Idade Média. São Paulo: Mestre Jou, 1963.

PRINA, F. C. & PADOVAN M. A dança no ensino obrigatório. Lisboa: Fundação Calouste

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Referências das imagens

Imagem 1: AMBROGIO LORENZETTI. Os efeitos do bom governo na cidade,1337-1340, Afresco, Palácio Público, Siena. In: COSTA, R. da. Um Espelho de Príncipes artístico e profano: a representação das virtudes do Bom Governo e os vícios do Mau Governo nos afrescos de Ambrogio Lorenzetti (c. 1290-1348?). Disponível em: <http://www.ricardocosta.com/pub/lorenzetti.htm> Acesso em 02 set. 2008. Imagem 2: AMBROGIO LORENZETTI. Os efeitos do bom governo na Cidade, 1337-1339, Afresco. Palácio Público, Siena, AKG, Paris. In: LE GOFF, J. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: UNESP, 1998, p. 14.

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Imagem 3: AMBROGIO LORENZETTI. La cité, 1346. Quadro. Siena, Pinacoteca Nacional, AKG, Paris. In: LE GOFF, J. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: UNESP, 1998, p. 122.