PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

As implicações da Interação entre o “eu e o outro”

no processo de constituição da criança1

Ana Maria Louzada2

Este artigo se baseia numa pesquisa, onde procuramos analisar o discurso que permeia as relações

pedagógicas e as suas implicações no processo de constituição da criança, numa instituição de Educação Infantil.

Assim, analisamos o movimento das diferentes interlocuções no decorrer das práticas pedagógicas.

Para tanto, procuramos focar nessa análise dois aspectos que permeiam a interação entre o “eu e o outro”: a

forma e o conteúdo. Quando destacamos a forma, nos ancoramos no como as crianças interagem com a professora e

com os seus pares. Em relação ao conteúdo focamos o discurso que permeia as diferentes enunciações/interlocuções

no contexto das práticas pedagógicas.

Com base em tais questões procuramos considerar:

- Temas abordados no decorrer das interações entre a criança-criança e entre crianças-professoras

em sala de aula.

- Conteúdos dos temas abordados.

- A forma como os diferentes temas eram abordados.

Nesse sentido, procuramos evidenciar o discurso que permeava os momentos em que a professora procurava

chamar a atenção das crianças, visando:

- Estabelecer limites.

- Orientar sobre uma atividade a ser realizada.

- Ensinar conhecimentos científicos.

Desenvolvemos a pesquisa ancorada nos pressupostos teóricos de cunho sócio-histórico, com base nos

estudos de Vygotsky, Luria, Leontiev, Bakthin, dentre outros.

Para Bakthin (1992b), aquilo que nós falamos é o conteúdo do discurso, o tema de nossas palavras. Mas o

discurso de outra pessoa é mais do que um tema, tendo em vista que ele pode entrar no discurso e na construção

sintática, como uma unidade integral da construção, ou seja, para penetrar completamente no seu conteúdo, é

indispensável integrá-lo na construção do discurso. Isso porque a língua não é o reflexo das hesitações subjetivas e

psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes, pois,

[...] toda essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo que pode ser

ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior. Aquele que apreende a

enunciação de outrem não é um ser mudo privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de

palavras interiores [...] a palavra vai á palavra (BAKTHIN, 19992b, p. 147).

É com base no discurso interior que se efetua a apreensão da enunciação de outra pessoa. Os diferentes tipos

e formas de discurso que permeiam a interação entre o “eu e o outro” nos revelam as implicações da organização

hierarquizadas das relações sociais sobre as formas de enunciação.

Nesse sentido, pelo fato de se constituir no lócus das interlocuções sociais, o signo ideológico é marcado

pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinado, isto é, pelo contexto das relações sociais

mais imediatas e concretas, pois o tema ideológico possui sempre um índice de valor social, que chega igualmente à

consciência individual, revelando com isso que a consciência individual o absorve como seu. Mas na realidade, o

tema ideológico não se encontra na consciência individual pelo fato de seu índice de valor ser por natureza

interindividual. E ainda, o processo de formação de conceitos, que é a maneira básica com que o adulto influi na

criança, constitui o processo central do desenvolvimento intelectual infantil (LURIA, 1978, p.11).

Isso significa que a criança, vai construindo o seu autoconceito nas interações sociais, de forma que se sinta

incluída ou não no processo educativo e conseqüentemente nos diferentes tempos e espaços em que vivem.

1 Este artigo é parte da Dissertação de Mestrado da Autora, intitulado “A INTERAÇÃO VERBAL NO COTIDIANO DA INSTITUIÇÃO DE EDUCAÇÃO

INFANTIL: suas implicações no processo de apropriação do conhecimento”, Vitória: UFES/Centro Pedagógico/ Programa de Pós-Graduação em Educação, 1997. 2 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, Consultora Pedagógica, Orientadora Educacional, Especialista em Educação

Infantil, Professora Alfabetizadora e autora de vários artigos e livros na área educacional.

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O episódio 1, a seguir, evidencia o papel que as crianças assumem num momento de conflito e a forma

como a professora conduz a interação verbal, impossibilitando que réplicas e comentários a respeito do tema do

discurso aconteçam.

Episódio 1 - “Ô Mãe!... Não quero aprender. Eu quero ser gari3“.

Henrique, Tomás, Wellingthon, Edson e Odair estão em pé encostados à parede. A professora pede a Pedro, que está

sentando no chão, que se levante e fique junto dos demais colegas e inicia a sua fala perguntando:

__ Por que vocês não estavam prestando atenção? Que coisa feia... Muito engraçadinhos vocês... Eu ensinando aqui n

frente... E vocês brincando... Conversando. Eu sou alguma palhaça? Me esforço para ensinar e vocês nem prestam

atenção. Só querem saber de brincar... Atrapalhar quem quer aprender. Não é Odair? Fica o tempo todo atrapalhando.

Não é Seu Pedro? Vocês só pensam em brincar. Vocês não vão prestar atenção no dever não? Não querem aprender não?

Se não quiser, pode ficar em casa... Ô mãe, não quero aprender. Não quero. Eu quero ser gari. Vou varrer rua (silêncio).

Agora estão ai com cara de santos, olhando pra mim.

(Edson olha para os colegas, trocam olhares, provocando ainda mais a professora).

E a professora continua:

__ Vê se eu estou gostando... Se eu estou achando graça, se estou rindo?

(Pedro olha para Odair e sorri).

A professora retruca:

__ O que foi Pedro? Pedro vou falar para a sua mãe. Sua mãe falou pra te dar um trato aqui, ouviu? Por que vocês ficam

atrapalhando os colegas estudar?

(Silêncio)

__ Uns meninos pequenos desses. Já pensou quando estiverem grandões lá na outra escola? Vão atrapalhar todo mundo.

Todos vocês vão ficar no pátio, sentados, sem brincar, porque na hora de fazer o dever estavam brincando... Então na

hora de brincar vão ficar sentados sem fazer nada. É isso que vai acontecer. Hoje a gente vai para o pátio e vocês não

vão brincar... Não vão. Vão ficar ali sentados, porque hora de estudar é hora de estudar, hora de brincar é hora de

brincar. Brincar na hora de estudar... Beleza... Na hora de brincar, vão ficar sem fazer nada. Já brincou o suficiente. Já

cansou de brincar. Então não precisa brincar mais. Entenderam né? Acho que não estou sendo injusta com ninguém, não.

Pedro, Odair, Welingthon, Edson, Tomás e Henrique... Lanchou... Vão pro pátio ficar sentados. Não vão brincar. Vocês

já cansaram de brincar aqui dentro da sala. Então se brincou... Não precisa brincar mais.

(As crianças olham uma para a outra)

__ O que foi? Retruca a professora. Não estão gostando? Vocês não prestam atenção, quando estou ensinando. Não

ficam quietos. Vocês só têm a perder comigo. Pronto!

Podemos verificar, nesse episódio, que a professora conduziu a sua fala sem dar oportunidade às crianças de

dialogarem, impossibilitando com isso uma discussão do tema em foco. Quando ressalta o nome de cada criança

complementa com enunciados a expectativa que tem de cada uma: Não querem aprender não? Se não quiser, pode

ficar em casa... Ô mãe, não quero aprender. Não quero. Eu quero ser gari. Vou varrer rua. (Silêncio). No silêncio

também ecoam palavras, é como se fosse o momento de as crianças internalizarem que o seu destino é ser gari e que

ser gari não é coisa boa. Só é gari aquele que demonstra incompetência no que se refere às produções intelectuais da

escola.

As questões ideológicas que permeiam o referido discurso nos mostram o quanto uma relação hierarquizada

e autoritária vivenciada no contexto das práticas pedagógicas pode ter implicações no processo de constituição da

criança. Essa forma de se relacionar com a criança pode conduzi-la a se ver de forma estereotipada, pois, dessas

cinco crianças, os pais de quatro exercem funções semelhantes à de gari: são serventes/zeladores (pessoas que

cuidam da limpeza de prédios, escolas, etc.), ajudantes de pedreiro e domésticas.

Esta forma de interação verbal estabelecida nos é mostrada mais uma vez no episódio 2, com a falta de

oportunidade que as crianças têm de externar suas opiniões e o modo como a professora conduz as conversas.

Episódio 2 - “Sem pé nem cabeça”

A professora senta no chão e chama todas as crianças. Não fala o que vão fazer, mas mesmo assim todos correm e

sentam. A professora pega um livro de histórias e inicia a conversa:

__ Crianças, olha só... (interrompe para chamar atenção) Crianças, prestem atenção numa coisa aqui. Dá uma olhada

neste livro.

Henrique pergunta:

__ Cadê? (e se aproxima para ver melhor).

A professora responde:

__ Espere, estou só mostrando. Por acaso dá pra gente ler esta história aqui?

3 Gari é a forma como chamamos os profissionais que fazem a limpeza pública.

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As crianças respondem em coro:

__ Não!

A professora então indaga:

__ Por quê?

Ariana responde:

__ Porque rasgaram o livro todo.

Sara fala:

__ Porque a história está assim, oh! Sem capa.

__ Quem rasgou? _ Pergunta a professora.

Henrique responde:

__ Foi a turma da manhã.

A professora pergunta em tom duvidoso:

__ Será que foi a turma da manhã que rasgou?

As crianças respondem em coro:

__ Não!

A professora continua:

__ Será que é só a turma da manhã que rasga livros?

As crianças em coro:

__ Não!

Sara completa:

__ Não, até os da tarde!

Professora:

__ E porque que rasgam os livros?

Laura:

__ Porque não têm cuidado.

Sara:

__ Por que são mal-educados.

Professora:

__ E agora. O que a gente vai fazer para saber da história do Tatu Bola? E agora?

Ariana fala:

__ Quem rasgou tem que pagar.

A professora intervém, dizendo:

__ Não. Não é assim, não. Não é pra rasgar. E agora, Tomás, como é que vamos fazer para ler a história, se o livro está

rasgado? Hem? Henrique? Como vamos fazer para ler a história se está faltando página? Como vamos fazer agora? Vai

ficar sem pé nem cabeça! (...) Livro é pra ler, pra aprender, para descobrir as letrinhas. Sabe o que eu vejo de vez em

quando? Um pega o livro e ta... Na cabeça do colega. É pra isso?

As crianças respondem em coro:

__ Não!

__ Aí vem o Odair... (Continua a professora) Me dá esse livro. Ai a Sara fala: Não. Ai ele fala: Me dá. E zupe... Puxa o

livro... É assim?

Todos começam a rir.

__ É assim? Pergunta a professora.

__ Não! Respondem as crianças dando gargalhadas.

Professora:

__ É assim, que faz Odair? É assim, Pedro? Então vamos combinar isso agora, hem! Eu não quer saber de criança

puxando o livro da mão do colega, nem batendo com o livro na cabeça...

Como podemos observar, a interação verbal foi conduzida de forma que as crianças dessem respostas de

acordo com o que a professora desejava ouvir, evidenciando respostas automatizadas, em coro. Toda vez que a

professora devolvia a resposta das crianças em forma de pergunta, as crianças em coro, respondiam de acordo com a

expectativa da professora: A professora pergunta em tom duvidoso: Será que foi a turma da manhã que rasgou? As

crianças respondem em coro: Não! A professora continua: Será que é só a turma da manhã que rasga livros? As

crianças em coro: Não!

As enunciações que permeiam o referido discurso nos evidenciam que as crianças fazem o jogo estabelecido

no curso das interações verbais, apontando para uma concepção de educação e de linguagem que se pautam em

pressupostos que defendem a formação de indivíduos subalternos, submissos, manipuláveis, pois as crianças eram

conduzidas a dar respostas padronizadas e alienadas.

Podemos também observar, no episódio 2, que as crianças que se julgam incapazes de realizar tal coisa

“rasgar o livro” se colocam fora do contexto ao emitirem as suas opiniões: Será que é só a turma da manhã que

rasga livros? As crianças em coro: Não! Sara completa: Não, até os da tarde! Professora: E porque que rasgam os

livros? Laura: Porque não têm cuidado. Sara: Por que são “mal-educados”. As crianças respondem indicando que

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foi o outro. Mas esse outro tem nome real, pois indicam que os que rasgam não têm cuidado e são mal-educados e

seus nomes são citados pela professora e por Laura e Sara. Ao ilustrar como que o livro foi rasgado, e ao citar os

nomes de cada criança a professora revela a expectativa que tem dessas crianças: “sem interesse em aprender”. As

crianças cujos nomes foram citados são evidenciadas de forma a se verem nesse processo como alguém que

costuma rasgar os livros, que utilizam o livro para brincar e ou brigar, que não usam o livro para ler, e por causa

deles, agora todos não podem ler o livro.

É importante sublinhar que coincidência ou não, as crianças que foram punidas no episódio 1 são as

mesmas destacadas no episódio 2. No episódio 1, fica bem claro que as crianças, convocadas a permanecerem na

sala de aula, foram punidas não porque estavam conversando, mas porque ainda não sabem ler e escrever, pois

aquelas que já sabem ler e escrever algumas palavras também estavam conversando. Mas não foram punidas.

Com base nessas constatações, podemos inferir que a idéia que subjaz nas interações sociais vivenciadas em

sala de aula, além de revelar a expectativa que a professora tem das crianças, também nos evidencia a idéia de que

as crianças ainda não sabem ler e escrever, porque são indisciplinadas, sem interesse, enfim, porque conversam

muito. Participando desta experiência, a criança vai se constituindo conforme essa expectativa, isto é, a criança vai

se apropriando da forma como é vista pelo outro e vai se objetivando nas interações sociais com o que esperam

delas.

No episódio 3, a seguir, podemos ver claramente que o discurso que permeia o contexto das práticas

pedagógicas, está cheio de palavras do outro, revelando a forma como cada um se vê e como cada um vê o outro.

Vejamos:

Episódio 3 - Confraternização ou exclusão?

A professora se reúne com a turma num canto da sala para ensaiar a música que vão cantar num momento de

confraternização que está para acontecer. A professora pergunta:

__ O que vocês acham da gente apresentar a música d casinha, fazendo gestos para todo mundo ver?

Tomás fala baixinho:

__ Eu não vou.

Sara discordando de Tomás, fala:

__ Eu vou.

Ariana diz:

__ Eu também não vou.

A professora, percebendo que algumas crianças se recusam a participar, pergunta:

__ Quem quer?

Algumas crianças em coro:

__ Eu quero!

Henrique fala;

__ Ariana não quer.

Laura interfere, chamando a atenção de Ariana:

__ Você não vai não, Ariana? (tom de voz solicitando a permanência de Ariana no grupo).

Ariana balança a cabeça, dizendo que sim. Tomás ameaça participar, mas permanece no lugar.

__ Quem quer ficar aqui. Vai, Tomás. Você não quer. Tomás. _ Fala a professora em tom zangado.

Tomás balança a cabeça dizendo que não, mas com o corpo inclinado para frente, como se estivesse com vontade de ir.

Mas a professora fala:

__ Então senta aqui (apontando para trás).

As interações sociais vivenciadas em sala de aula, representadas no episódio 3, mostram-nos que o discurso

que permeia as relações pedagógicas, nessa situação, foi conduzido por meio de entonações que exprimem as

apreciações daqueles que dela fazem parte, que por sua vez, são determinadas pela situação social imediata.

No momento em que Tomás disse que não queria participar da brincadeira, analisamos que o mesmo

procurava protestar contra algo com que não concordava, desencadeando vários outros protestos. Mas no decorrer

das enunciações dos demais colegas, ouve-se vozes dizendo que querem participar, mesmo sem saber muito bem do

que se trata. Provavelmente para agradar a professora e, conseqüentemente, para não serem repreendidos.

As enunciações das crianças que argumentavam não querer participar da brincadeira não significavam que

essas crianças não estavam gostando do fato de terem que fazer uma apresentação, mas que não concordavam com a

música que a professora havia escolhido para cantar.

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Uma dessas enunciações era a de Tomás, uma criança considerada indisciplinada e sem interesse. A outra

era Ariana, considerada um exemplo para a turma, pois já sabia ler e escrever algumas palavras. Embora

conversasse muito durante as aulas, até mais do que Tomás, tinha uma relação diferenciada com a professora e com

os colegas.

A forma como essas crianças, Tomás e Ariana são vistas pela professora gera expectativas diferentes,

causando espanto nos colegas, quando Ariana diz que não vai participar, de forma que tanto a professora quanto as

crianças incentivam a sua participação. Já com Tomás acontece o contrário. Pouca importância é dada, quando ele

também diz que não vai participar. De certa forma, ele foi induzido a não participar.

O fato de Tomás estar com o corpo inclinado para frente, demonstrando desejo de participar da brincadeira,

não causou nenhuma alteração na entonação do enunciado da professora e nem provocou as demais crianças a

solicitarem a sua presença. Observamos, pelo contrário, que a entonação da professora o suscita a dizer “não”...

Tanto pelo fato de que não concordava com a música escolhida, como pelo fato de que o enunciado da professora o

induzia a dar essa resposta.

De acordo com Bakthin (1992b), as tonalidades dialógicas influenciam as diferentes enunciações, tendo em

vista que nosso próprio pensamento nasce e forma-se em interação e em luta com o pensamento alheio (...). É por

essa razão que o enunciado é repleto de reações-respostas a outros enunciados numa dada esfera da comunicação

verbal (p.316-317).

É nesse sentido, que a nossa consciência desperta, envolvida na consciência alheia. A atividade mental do

sujeito se constitui a partir do território social, evidenciando com isso que a enunciação, ou mesmo a expressão de

uma necessidade qualquer, é socialmente dirigida.

Quando Laura pergunta a Ariana Você não vai não? Por quê? Ariana, você não vai não Mesmo estando na

negativa, sua fala evidenciava a convocação desta a participar da brincadeira. O mesmo aconteceu quando a

professora perguntou: Você quer ou não, Ariana? A expectativa que se tinha de Ariana era a de que participasse da

apresentação. Já a omissão das crianças em relação ao que acontecia com Tomás se reforça com a pergunta irritada

da professora: Vai Tomás. Você não quer Tomás? Então senta aqui.

Ninguém queria saber por que Tomás não queria participar. Nem a professora. Talvez isso implicasse

confrontar a escolha da professora com a que possivelmente ele, Tomás, pudesse sugerir e, além de tudo, o fato de

ele desencadear algumas enunciações de protesto logo foi abafado pela professora, quando ressaltou em tom

ríspido: Quem quer fica pé, quem não quer vem pra cá. Assim, Tomás se viu, no dever de aceitar a determinação da

professora, pois, de qualquer modo, ele ficaria fora da brincadeira. Ele seria excluído. Isso porque, ao desencadear

uma situação de conflito, Tomás foi de certa forma, punido.

A interação desse último episódio reflete uma série de outras situações do cotidiano das relações sociais e

que se concretizam no decorrer das relações pedagógicas vivenciadas em sala de aula, pelo fato de estas pessoas,

crianças e professora fazerem parte desta cotidianidade.

No cotidiano das práticas pedagógicas, Tomás quase não interage com as demais crianças e, em nenhum

momento, com a professora. Primeiro porque sua ajuda nunca é solicitada. Segundo, porque nos raros dias em que

ousa conversar e dar gargalhadas e/ou provocar alguém para chamar atenção sobre si mesmo, é repreendido tanto

pela professora quanto pelos próprios colegas.

Observando tais questões, percebemos que a linguagem, no seu uso cotidiano, no decorrer das práticas

sociais e culturais, é inseparável do seu conteúdo ideológico. Portanto, a constituição da criança, da individualidade

infantil, da consciência de si mesma é mediada pela linguagem.

Desta forma, leva-nos a considerar que a exclusão social tem acontecido no lócus das diferentes esferas de

interação entre o “eu e o outro”, inclusive no lócus da esfera escolar. Nessa esfera educativa, ou pelo menos onde

deveria acontecer uma educação cidadã, que promovesse a constituição da consciência crítica se limita a promover

uma educação de cunho alienado. A criança nesse contexto de interlocução se constitui com um conceito negativo

de si mesmo e do outro, pois a formação do conceito de si, não está no interior da criança, mas sim na interação da

mesma com o contexto na qual está inserida. A consciência individual do homem só pode existir nas condições em

que existe a consciência social. A consciência é o reflexo da realidade, refratada através do prisma das

significações e dos conceitos linguísticos, elaborados socialmente (LEONTIEV, 1978, p.88).

De acordo com o que verificamos a criança não só se apropria das regras do jogo imanente nos diferentes

discursos, como também se objetiva no jogo das interações sociais. Por isso, o espaço da sala de aula deve ser, ao

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contrário da visão monológica, autoritária e individualista, um espaço que impulsione o desenvolvimento da

autonomia, do espírito de coletividade e do senso crítico das crianças. Um espaço que prima pelo respeito mútuo e

companheirismo e, acima de tudo, que conceba as crianças como seres interativos, envolvidos nos processos

históricos e socialmente determinados, e, portanto um espaço de inclusão.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BAKTHIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992a.

___. Marxismo e filosofia da linguagem. 6 ed. São Paulo: HUCITEC, 1992b.

LEONTIEV, Alexis. Linguagem e razão humana. Lisboa: editorial Presença, s/d.

___. O desenvolvimento do psiquismo. Belo Horizonte: Horizonte Universitário, 1978.

___. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In: VYGOSTSKY, Lev. S., LURIA, Alexander R.,

LEONTIEV, Alexis N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Cone Editora, 1994.

LURIA, Alexander R. Desenvolvimento cognitivo. São Paulo: Cone Editora, 1994.

___. Pensamento e linguagem: as últimas conferências. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.

LURIA, Alexander R., YUDOVICH, F.I. Linguagem e desenvolvimento intelectual na criança. Porto Alegre: Artes

Médicas, 1987.

VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

___. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993.