Preâmbulo - arquivors.com · [ 10 ] VI O corpo da sombra avança em direção à sua própria...

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Renato Suttana

Preâmbulo

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2016

Copyright © Renato Suttana, 2016

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sem autorização.

SumárioI...................................................................4II..................................................................5III.................................................................7IV.................................................................8V................................................................10VI...............................................................11VII..............................................................13VIII.............................................................15IX...............................................................17X................................................................19XI...............................................................19XII..............................................................20XIII.............................................................21XIV.............................................................23XV..............................................................24Sobre o Autor............................................25

PREÂMBULO

I

Um homem sozinho pesquisando oexistir do mundo. Escrevo esta frase numafolha branca e espero. Espero, num silênciodevoto, embora nada mais aconteça ounada ameace acontecer. A noite é fria aomeu redor, e o silêncio é vasto e profundo.Sou um homem sozinho suportando o pesode uma pergunta no silêncio gelado domundo. À minha frente está a folha brancaonde escrevi aquela frase. E a frase não setorna um começo — porque nada aconteceem seguida, nenhum pensamento se con-centra. Nada acontece, a não ser o própriosilêncio no frio, e esta consciência opaca deestar dentro dele, de ser o centro dele: aolhar absortamente para as coisas, de ondenão me vem uma palavra e onde todas aspossibilidades de resposta estão mudas.

As coisas formam uma barreira ao meuredor no silêncio. E, no entanto, por detrásdelas não existe nada a não ser o pensa-mento em que as concebo: as coisas são

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claras demais e verdadeiras demais paraque eu... Para que eu...? — Há silêncio naspalavras. A frase que escrevi não tem ne-nhum sentido verdadeiro senão aquele queela mesma mascara, e não comporta ne-nhuma pergunta que seja passível de res-posta (a não ser aquela que se está dizendonela como silêncio). A folha é branca, e nãohá nada escrito nela senão a própria frase.A frase que penso como verdadeira e absur-da e nula no vazio gelado da noite.

As palavras que escrevo, endereçadasao silêncio.

II

Prossigo, dentro da noite.Há pouco, a mulher brincava com o

cãozinho. Era uma mulher brincando comum cãozinho — uma mulher solitária aquem eu dizia ocasionalmente uma palavra.Naquele ínterim — naquele entretempo —conversávamos. O que ela me dizia era apossibilidade de eu estar a ouvi-la; e o queeu lhe respondia morria no embate contraaquilo que ela jamais me perguntava.

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Lembro-me dessa mulher com o cãozi-nho. Era loura e tinha uns olhos bonitos e,sobretudo, me fazia uma pergunta a que eusó respondia inadequadamente. Penso nelacomo num país distante que ainda não co-nheço, com uma certa melancolia que nãome vem de pensar nela nem do fato de nãoconhecê-la agora, mas de me lembrar dissoe da consciência que tenho de me lembrardisso — como se estivesse eu mesmo es-calando um muro em direção a qualquercoisa, mas sem ter motivo nenhum para es-tar a escalá-lo (e sem desejar essa coisa).

A noite é vazia, com a lembrança damulher a bater em meu pensamento, comouma onda. “Se nos tivéssemos amado...” Anoite é fria como um infinito; e a lembrançada mulher e do cãozinho está batendo emmeu pensamento como uma onda. Bate porsobre rochas que permanecem em silêncio.O rumor que produz não vem das rochas,mas do bater. A consciência que tenho dissosão essas rochas onde batem — o silênciodelas dentro da sombra e do cansaço.

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III

Saltando por cima da fadiga — que má-goa. Pintei a noite quando tentava pintar odia, quando devia tê-lo pintado, e a sombrame envolveu por todos os lados. Não cha-mo a isto melancolia, porque a ideia da me-lancolia diz respeito apenas a uma ausênciade luz a que já me acostumei. Chamo de si-lêncio ou de consciência de tudo ser assim,de ser assim tão limitado e trevoso, comonum espaço limitado e trevoso, e de sermosobrigados a percorrê-lo, sozinhos, até o fi-nal. Se fosse um labirinto, haveria a espe-rança de um limite. Mas não: trata-se ape-nas da sombra, com a qual nos envolvemossem querer e com a qual nos compromete-mos sem pedir, a cada momento. Trata-sede haver a sombra — e de sermos forçadosdentro dela, e de transportarmos o peso denós mesmos por ela adentro, sem nenhumaesperança de chegar a um fim ou a um limi-te nessa tarefa.

A noite é um grande mar a se estenderà nossa volta. A pretensão de ultrapassá-la(isto é, de ir além desse mar) ou de sub-jugá-la (pela esperança, pelo sonho, pelo

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símbolo) esbarra no próprio cansaço que aproduz. O pensamento de conhecê-la pro-fundamente se embaraça e se perde emseu próprio labirinto de incerteza. Não pos-so ser na noite mais do que a minha curtacerteza de estar nela, a perambular. Nãoposso abrir uma porta para fora dela, por-que sei que, se a abrisse, iria novamente deencontro à treva imóvel e inacessível, quenão alcanço ultrapassar. Não poderia co-nhecer mais do que o frio que me envolve:não teria palavras melhores para me expri-mir, não poderia elaborar frases mais perfei-tas para me dizer.

O pensamento de agora está amarradoà imperfeição. O desejo de alcançar um ex-tremo está aprisionado no oco sombrio daignorância. Há apenas a noite, e o desejonão basta para lhe escapar — o pensamen-to desse desejo está aprisionado em seupróprio círculo incolor.

IV

Um vasto mar agitado a sua lembrançaem meu coração. Um mar onde naufraga-

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ram e se esconderam mil segredos, um martodo perigos e feito de sonho e de promes-sa, e que ao amanhecer já não estava maislá — o mar —, quando saímos para pro-curá-lo. (Como se fosse possível perder ummar.) É um mar a sua lembrança em meupensamento, mas sinto que ele (o mar) nun-ca esteve lá, que eu sonhei a sombra dele eque ele, não ao amanhecer mas muito an-tes, já havia desaparecido quando saí a pro-curá-lo.

Sonhei que havia o mar? E, no entanto,você me visitou certa vez. E, no entanto,você esteve próxima de mim certa vez —antecipando, quem sabe, ou até anteviven-do a melancolia de estar assim próxima, eantecipando, inadvertidamente, o pensa-mento infeliz da sua partida iminente. Paraonde teria ido — você? E eu a amei, comode fato pensei que a amava no tempo emque tive você ao meu lado? Como posso re-cordar todas essas coisas? De que desvãoinexplorado do ser noturno elas ressurgeme me procuram? Como carvões arrefecidos,como... E talvez já não possamos fazer ar-der de novo a memória delas em nossospensamentos; quero dizer: talvez eu já não

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possa fazê-la arder — a lembrança — ou osentimento delas, ou a verdade que houvenelas e que, quando foi e existiu como tal,parecia tão mais sólida e tão mais real doque um sonho.

Porém estou sozinho no interior da noi-te deserta, e uma recordação me perturba esuscita em mim uma inquietude. O esqueci-mento é simples, no entanto. As preocupa-ções do dia são leves: são como cordas aque nos agarrássemos, na iminência denaufragarmos. As preocupações do dia nosconduzem para fora — é o que sei —, ondehá sol e verdade e onde todas as lembran-ças do vivido pertencem já aos reinosinferiores. Ali — no dia —, o esquecimento épossível. Ali — não existem a insônia e opeso da sombra, e todas as coisas têm umlugar.

V

No dia, o mar é apenas esquecimento.

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VI

O corpo da sombra avança em direçãoà sua própria verdade. O mundo lá foraavança em direção à sua própria verdade.E, no entanto, aqui dentro há o silêncio e opeso de estar a ouvir o silêncio — somado àconsciência fatal de o estar a ouvir em ple-na escuridão. Gostaria de abolir esse silên-cio, dizendo nele uma só palavra que dealgum modo o redimisse. Gostaria de dizeruma palavra que soasse mais alto que opróprio silêncio e que contivesse nela a ver-dade em direção à qual a sombra avançasem parar. Mas são desejos apenas estesmeus, que meu pensamento comunica ameu pensamento, sem nada dizer de subs-tantivo. Fora deles — dos desejos — não hánada, a não ser a treva verdadeira e unâni-me. Neles nada se pode agarrar senão umacerteza vazia de que existem de fato em al-guma parte — mas fora deles não há umponto de ancoragem, não há uma aba deapoio, e tudo são formas a girar indefinida-mente no vazio.

Permaneço em silêncio, a calcular aspossibilidades desta palavra silêncio. Gosta-

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ria de pronunciá-la mais claramente, isto é,de escalar a muralha do silêncio (real) e di-zer plenamente a verdade da noite real (oque penso ser a verdade da noite real), massó o que sei é que estou mudo e que asombra avança para fora, progredindo emdireção a si mesma (sempre em direção a simesma), e para longe de mim, onde percotodos os seus rastros. Que farei quando elase tornar total e totalmente exterior? Masela já não é exterior, não existe nela umaverdade que escarnece das minhas preten-sões e propósitos?

Não sei dizer exatamente o que sinto.E não saber dizer o que sinto é apenasagravar a insegurança — como se navegas-se cada vez mais para longe de uma costaaonde cheguei sem saber como. Sei ape-nas que atingirei um ponto onde haver o si-lêncio, pensar e nada saber serão uma coi-sa só, unificada. Chegarei a esse pontoonde toda a exterioridade se reunirá numacerteza única e onde já não poderei maispensar no que quer que seja — e onde per-derei a própria consciência de que penso—, porque tudo será tragado pelo exterior.Nesse ponto não haverá silêncio nem tenta-

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tiva, e a própria sombra retornará a si mes-ma insolucionada, sendo afinal aquilo quesempre foi — uma treva uniforme, fria esem qualquer esperança de amanhecer.

Aí não haverá o pensamento. Aí estareiem silêncio finalmente e serei semelhanteao silêncio finalmente. E a noite me devol-verá a mim mesmo em meu horror.

VII

Recordo-me do dia e de suas formasluminosas. Recordo-me como se despertas-se de um velho sono em que todas as coi-sas se converteram em silêncio e foram res-gatadas pela luz. As lembranças do dia sãolembranças da luz e da tentativa. O homemque caminhou no dia não sabia nada do diae não tem dele a não ser a sua própria me-mória, que lhe fala do dia com a segurançaclara do que fez parte do dia e agora, che-gada a noite, trouxe consigo aquilo de quefez parte ignorando-o. Recordo-me do dia ede suas formas luminosas — quero dizer.Um profundo cansaço me prostra, porémprocuro resistir à sua sedução. Esforço-me

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por resistir, e sei que fazendo isso estou meesforçando para conservar desperta a partelúcida, que o sono finalmente lançará no si-lêncio. O sono corrobora o esquecimento —é o que sei. Meu esforço (de lembrar e deme lembrar de mim mesmo lembrando) éum esforço contra o silêncio. Lembrando odia, quero ser ainda por alguns minutos, an-tes que a noite desça efetivamente e, tra-zendo o sono, nos introduza inermes noslabirintos do sonhar.

Não quero sonhar, porque prefiro ascores lúcidas de que me lembro. Essa partede mim — a mais resistente — se digladiacom o sono, resiste a ele porque pretendeconservar-se igual a si mesma: recordar odia, os trabalhos do dia e as formas nítidasdas coisas é apenas um modo de resistên-cia. Aqui, no limiar do sono — em que ocansaço é uma névoa e a fantasia é umpropósito —, sinto-me afundar lentamentenuma água turva de sono, contra a qual medebato sem sucesso: sinto-me resistir e,ainda aquém do desespero, agarrar-me àsformas verdadeiras como se temesse che-gar muito depressa a algum fundo. (O fundoé o sono, mas eu ainda não estou nele. Ain-

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da permaneço na orla, agarrado às rama-gens; e o próprio fato de ter consciência dis-so me assegura de que ainda não afundeitotalmente.)

Recordo-me do dia e de sua luminosanitidez.

VIII

A noite é um grande lago sem possibili-dades de naufrágio. A treva unifica o mun-do, e todas as coisas adormecem nela, in-conscientes. Meu pensamento gira numaespécie de círculo. A agudeza que há nele éilusória, é uma nitidez de fantasmas pordentro da qual há apenas o vazio e a expec-tativa de chegar. A noite recobre tudo, emeu pensamento, nela, é um náufrago boi-ando a quilômetros da praia. Não pode al-cançar a segurança — esse náufrago —,porque está a quilômetros da praia, brace-jando em meio às suas próprias criações,aos seus fantasmas e miragens. Se pensoem nitidez, penso-a na própria confusão doesquecimento — meu pensamento, que as-pira à nitidez, não é capaz de pensar nela

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como alvo ou como coisa. Assim, traça umpequeno círculo de quimera ao redor de simesmo, onde a nitidez se mistura àquiloque a nega e onde o desejo de nitidez seconfunde com a distração que a postergou.

Como chegarei ao final da sombra, seainda não atravessei o labirinto? Um grandecansaço me invade quando penso nisso. Éum cansaço de conhecer todas as distân-cias e de conhecer os abismos do longe,que tragam para o fundo as expectativas dopensamento. No vazio da sombra, saber ovazio é a única forma do pensamento. E aforma exclui a conclusão, assim como excluia possibilidade de chegar. Estar na noite ébracejar no vazio, é naufragar na metade,sem jamais atingir a margem segura. É es-tar aquém da segurança, supondo a segu-rança como possível, porém supondo-anesse vazio onde não existe nada que ajustifique nem fundo onde ela possa anco-rar. O que fazer, então, se posso atingir so-mente a metade? Atravessarei a treva fixa?Alcançarei o dia do outro lado, onde o pen-samento se fartará de si mesmo e a espe-rança se fortalecerá de seus próprios fra-cassos?

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Talvez a noite não tenha uma resposta.A noite é um círculo de treva que aprisionaum inseto sem fantasias. É um peso de fra-cassos que existe lá para esmagar.

IX

Caminhando às cegas pelo deserto,estou caminhando por um labirinto de som-bras. E o labirinto se desdobra sobre si pró-prio. Nele o medo é uma enorme esfingecolocada no extremo de alguma coisa quenão se vê. A nitidez do seu perfil, no entan-to, desolada, magoa, e o peso de caminharsozinho na escuridão transforma o medoem desespero. A noite é simples e apenasigual a si mesma, porém o caminhar naescuridão torna impossíveis todos ospropósitos.

Penso que me endereço ao fantasma— e o penso nitidamente —, porém a escu-ridão me barra a passagem. Não me per-gunto: para onde vou?, porque não vou(pelo menos penso assim) para lugar ne-nhum, senão para o próprio coração dasombra onde estar lá não faz diferença nem

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sentido. Daqui para ali — no coração dasombra — é só uma diferença de palavras.A noite é enorme e excessiva, e o labirinto élongo demais para que possamos distinguir.No labirinto o tempo se converte em derrotae todas as distâncias se multiplicam, porqueo que se lança em direção ao fantasma éum fantasma, e suas lembranças não o aju-dam.

Ser sozinho no medo produz a esfingeno horizonte. O medo se torna essa esfingecontra a qual nada posso, e o centro dasombra é um abismo. Onde estarei a estaaltura, se tomo apenas o medo como minhareferência? Posso vencer o medo vencendoo mundo em tal combate, e chegarei entãoao final? Ao vir o dia, estaria desperto, seriao mesmo (esta sombra sempre igual a simesma) que se complicou em labirinto, omesmo cujos pensamentos contiveram asombra (não a sombra verdadeira, mas ou-tra, uma outra sombra qualquer que sempreesteve lá para ocultar) numa consciênciadela que produziu o gume desse horror edesse pasmo? Poderia o dia redimir final-mente, ou a noite se estenderia para alémda luz, abraçando a miséria de saber, esta

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ausência de portas que se converte em labi-rinto, e a necessidade de buscar que, deantemão, percebo não me trará nenhum fru-to a não ser o próprio olho vazio da esfinge?

X

Porém a noite é dupla em meu deses-pero.

XI

Nada saber — nada saber do exteriornem da sombra — multiplica em profusãoas paredes ao meu redor. As paredes nãoestão lá como tais, mas basta concebê-lasem pensamento para que estejam realmen-te, e a própria treva — sem ranhuras ou fen-das — é uma parede única contra a qual medebato, caminhando para a frente num de-serto que não tem limites.

A noite é dupla em meu pensamento enesse labirinto que se forma; e não sabermultiplica paredes de medo e derrota aomeu redor. Não posso, pois, atravessá-las

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senão tornando-as mais espessas e intrans-poníveis. E, quanto mais espessas se tor-nam, mais consciente eu me torno de queavancei e de que não haverá nenhum retor-no após certo ponto, que nunca poderei de-terminar onde fica.

XII

A noite — odeio a noite nesta espera,porque sei que é uma espera de sombras,habitada por sombras, como uma velhacasa em ruínas habitada por fantasmas. Ha-bitar as ruínas afia o gume do meu ódio. Terconsciência disso me paralisa como um la-birinto de sombras paralisa meu pensamen-to e o grande movimento das ondas paralisao esforço de nadar. Porém não odeio a noitecomo quem olhasse do exterior para umavelha casa em ruínas. Odeio-a como quema vive por dentro e a conhece tal como ela é— embora não possa conhecer senão umaparte daquilo que ela é, ou seja, a noite-mesma conforme a pensamos, vivendo nelae sendo exteriores a ela como fantasmasexteriores a si próprios.

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A treva não se converte em nada pro-priamente, senão no imenso labirinto de suainextricável simplicidade. Que digo? Quemé a noite, neste exterior em que a odeio? Anoite é simples; porém o labirinto, nela, ex-clui qualquer ideia de simplicidade. Por issoé que a penso do exterior e converto emódio esse pensamento que tenho dela.Nada sei a não ser uma parte — uma partetão verdadeira que a estou chamando denoite verdadeira. Sei o quanto isso é insufi-ciente, mas não tenho escolha senão pen-sar assim e me conformar. A noite converte-se — eis tudo — naquilo que digo dela e emtoda a insuficiência que uma palavra ditapode conter.

É isso, e basta, sendo noite nisso e la-birinto na simplicidade.

Na simplicidade e no meu ódio que nãoé mais que uma palavra que pronuncio àscegas na escuridão.

XIII

Um pensamento da treva parece for-mar-se fora de mim. Estar perdido nisto que

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não é sequer um lugar levanta em mim umtumulto de lâminas, deixa minha verdade asangrar sobre uma laje de esquecimento,torna o meu ouro mais irreal. Isto que cha-mo de noite converte um pensamento delaem certeza: estou certo de ser assim, nestetumulto, e de todas as coisas serem exterio-res. Caminhar para a frente é, portanto, ca-minhar sobre um pensamento. E a planíciesobre a qual estou caminhando tem a mes-ma consistência de um pensamento. É neu-tra e difusa tal consistência. E o medo quehá nela não vem do pensamento, mas dovácuo que espreita no fundo: o medo em-barga o pensamento, como uma trava, e odeixa a girar em torno de si mesmo na es-curidão.

Se estou lembrando, estou lembrandono esquecimento, é tudo o que sei. A pla-nície que se forma na palavra não podeconter senão uma parte do esquecimento.No exterior não existem senão a treva eessa premência de nomear e a possibilida-de de escolher infinitamente entre opçõesque nada significam e que nada podem pro-ver à minha decisão. A noite, no esqueci-mento, é a possibilidade de nada afirmar, e

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dentro dela o esquecimento já estabeleceuo seu domínio. Uma palavra é um gesto quefaço no escuro, uma procura a que dou iní-cio no esquecimento. Não lhe atribuo pesonem espessura, mas sei que na palavra(sombra perdida na sombra) existe uma es-pécie de marco, que assinala o vácuo ondenada pode ser assinalado.

Sou e caminho no deserto, sobre a pla-nície-palavra, e isso é tudo o que posso sa-ber. Se o negror se abrirá em manhã, se osol do dia revelará outra planície sobreaquela onde estou e me imagino a vagar —tais possibilidades ainda estão dormindo nosegredo. A noite nada pode revelar. A trevanão contém a não ser um germe de expec-tativa.

E o segredo é estável como uma rochaem pleno coração do que não se sabe.

XIV

Sou um homem sozinho, pesquisandoo existir do mundo na escuridão. Essa frase,escrita numa folha branca, devia servir-mede começo, mas nada se segue ao que ela

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diz. Olho para ela, escrita numa folha que ébranca. Com efeito, há um momento emque tudo se dissipa e se esvai. A possibili-dade de dizer, que a frase conteria por direi-to, está desfeita na escuridão. O que leio nafrase é a minha própria incompreensão de-bruçando-se sobre a folha para não enten-der. Leio na frase as ruínas do significadoou de uma espessura de desejos que a fra-se, bobamente escrita no vácuo, jamais po-derá realizar.

A noite ultrapassa a palavra em meuspensamentos. Devo concentrar-me nisto,nesta evidência, porém a própria palavraestá cindida ou desmantelada nesse jogo.Ou eu mesmo é que estou cindido ou morto,ou o que solicitei à palavra é que se des-mantelou ou se dispersou, como se disper-saria um amontoado de folhas no vento.

XV

A noite nada sabe a meu respeito.

Escrito em janeiro-março de 1998Revisto para publicação em 2016

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Sobre o Autor

Renato Suttana (n. 1966) é escritor e professor.Mantém na internet o site O Arquivo de Renato

Suttana, onde publica textos de sua autoria e deoutros autores. Publicou, além de ensaios, narrativas e

traduções, os seguintes livros de poesia: Visita doFantasma na Noite (2002), Bichos (2005), Lâmina (eoutros poemas) ― ebook (2006), O anjo de amanhã

― ebook (2007), Num Círculo do Sol ― ebook (2009),Fim do Verão (2009), Qualquer Um (2010), Bicicletas

― ebook (2010), Coroa de Ruídos ― ebook (2010),Outros Bichos (2011), Conversa de Espantalhos

(2012), Opinionautas I e II (2012), Bichos Imaginários(2013), Diário de Buenos Aires ― ebook (2013) e

Rapinário (2015).