Preconceito lingüístico 2 colunas

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Preconceito lingüístico Preconceito: segundo o Aurélio, conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos, idéias preconcebidas, superstição, ódio irracional a outras raças, credos, e cores. Preconceito nada mais é do que um conceito pré-formulado antes de se refletir, de se parar para pensar no assunto. Se alguém que é preconceituoso já tivesse parado para pensar no porquê de ser o que é, provavelmente não pensaria mais desse jeito. Podes perguntar para alguém preconceituoso: “Por que você não gosta de negros?, e de homossexuais?, e de nordestinos?”. O que a pessoa pode alegar? Não vai responder nada, só vai insultar, xingar os negros, maldizer os homossexuais e menosprezar os nordestinos, mas não terá nenhum argumento para sustentar a pretensa tese mesquinha de superioridade. Os preconceitos não têm nenhum fundamento racional, nenhuma justificativa e são apenas o resultado da ignorância, da intolerância ou da manipulação ideológica. Ora, no rol dos preconceitos está também o preconceito lingüístico. Este está ligado, em boa medida, à confusão que foi criada no curso da história entre língua e gramática normativa. Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão: a receita de um bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo... também a gramática não é a língua. A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo, e a gramática normativa é a tentativa de descrever a parcela mais visível dele, a chamada norma culta, que desponta acima da superfície. Essa descrição, é claro, tem seu valor e seus méritos, mas é parcial e não pode ser autoritariamente aplicada a todo o resto da língua, afinal, a ponta do iceberg que emerge representa apenas um quinto do seu valor total, mas é essa aplicação autoritária, intolerante e repressiva que impera na ideologia geradora do preconceito lingüístico. Você sabe o que é um igapó? Na Amazônia, igapó é um trecho de mata inundada, uma grande poça de água estagnada às margens de um rio, sobretudo depois da cheia. Parece-me uma boa imagem da gramática tradicional. Enquanto a língua é um rio caudaloso, longo e largo, que nunca se detém em seu curso, a gramática normativa é apenas um igapó, uma grande poça de água parada, um charco, um brejo, um terreno alagadiço à margem da língua. Enquanto a água do rio/língua, por estar em movimento se renova incessantemente, a água do igapó/gramática normativa envelhece, não pode gerar vida nova, e só se renovará quando vier a próxima lua cheia. Mitos do preconceito lingüístico Como todo preconceito, o lingüístico também é rodeado de mitos. 1º mito: “Brasileiro não sabe português, só em Portugal se fala bem o português” O português de Portugal é bem diferente do português falado no Brasil - ainda que os gramáticos tentem ao máximo compatibilizá-los. Por exemplo, os pronomes oblíquos o e a, de construções como “eu o vi” e “eu a conheço”, estão praticamente extintos no português falado no Brasil, ao passo que, no de Portugal, continuam fortes e firmes. Esses pronomes nunca apareceram na fala das crianças brasileiras nem na 1

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Preconceito lingüísticoPreconceito: segundo o Aurélio, conceito ou

opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos, idéias preconcebidas, superstição, ódio irracional a outras raças, credos, e cores.

Preconceito nada mais é do que um conceito pré-formulado antes de se refletir, de se parar para pensar no assunto. Se alguém que é preconceituoso já tivesse parado para pensar no porquê de ser o que é, provavelmente não pensaria mais desse jeito. Podes perguntar para alguém preconceituoso: “Por que você não gosta de negros?, e de homossexuais?, e de nordestinos?”. O que a pessoa pode alegar? Não vai responder nada, só vai insultar, xingar os negros, maldizer os homossexuais e menosprezar os nordestinos, mas não terá nenhum argumento para sustentar a pretensa tese mesquinha de superioridade. Os preconceitos não têm nenhum fundamento racional, nenhuma justificativa e são apenas o resultado da ignorância, da intolerância ou da manipulação ideológica.

Ora, no rol dos preconceitos está também o preconceito lingüístico. Este está ligado, em boa medida, à confusão que foi criada no curso da história entre língua e gramática normativa. Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão: a receita de um bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo... também a gramática não é a língua.

A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo, e a gramática normativa é a tentativa de descrever a parcela mais visível dele, a chamada norma culta, que desponta acima da superfície. Essa descrição, é claro, tem seu valor e seus méritos, mas é parcial e não pode ser autoritariamente aplicada a todo o resto da língua, afinal, a ponta do iceberg que emerge representa apenas um quinto do seu valor total, mas é essa aplicação autoritária, intolerante e repressiva que impera na ideologia geradora do preconceito lingüístico.

Você sabe o que é um igapó? Na Amazônia, igapó é um trecho de mata inundada, uma grande poça de água estagnada às margens de um rio, sobretudo depois da cheia. Parece-me uma boa imagem da gramática tradicional. Enquanto a língua é um rio caudaloso, longo e largo, que nunca se detém em seu curso, a gramática normativa é apenas um igapó, uma grande poça de água parada, um charco, um brejo, um terreno alagadiço à margem da língua. Enquanto a água do rio/língua, por estar em movimento se renova incessantemente, a água do igapó/gramática normativa envelhece, não pode gerar vida nova, e só se renovará quando vier a próxima lua cheia.

Mitos do preconceito lingüístico

Como todo preconceito, o lingüístico também é rodeado de mitos.

1º mito: “Brasileiro não sabe português, só em Portugal se fala bem o português”

O português de Portugal é bem diferente do português falado no Brasil - ainda que os gramáticos tentem ao máximo compatibilizá-los. Por exemplo, os pronomes oblíquos o e a, de construções como “eu o vi” e “eu a conheço”, estão praticamente extintos no português falado no Brasil, ao passo que, no de Portugal, continuam fortes e firmes. Esses pronomes nunca apareceram na fala das crianças brasileiras nem na dos brasileiros não-alfabetizados e têm baixa ocorrência na fala dos indivíduos cultos, o que demonstra que são exclusivos da língua ensinada na escola, sobretudo na língua escrita, não fazendo parte, então, do repertório da língua materna dos brasileiros. Nossas crianças usam sem problema o me e o te: “Ele me bateu”, “Eu vou te pegar”, mas o o e o a jamais, que são substituídos por ele/ela: “Eu vou pegar ele”, “Eu vi ela”. As formas -lo e -la (pegá-lo e vê-la), então, nem pensar!1 Se as crianças não usam, é porque não vêem os adultos usar, e se os adultos não usam é porque não precisam desses pronomes. E mesmo na língua dos adultos escolarizados, esses pronomes só aparecem como um recurso estilístico, em situações de uso mais formais, quando o falante quer deixar claro que domina as regras impostas pela gramática escolar. A gramática escolar, no entanto, desconhece essa transformação por que a língua está passando e insiste em considerar “erradas” construções como “Eu conheço ele”, “Você viu ela?”, etc. Por causa disso, também, falar e escrever “Me dá um beijo”, “Assisti o filme” e “Aluga-se casas” é considerado errado, porque lá em Portugal se diz: “Dá-me um beijo”, “Assisti ao filme”, “Alugam-se casas”. Não se leva em conta que o português falado em Portugal é bom para Portugal, e que o português falado no Brasil é bom para o Brasil!

O único nível em que é possível uma compreensão quase total entre brasileiros e portugueses é o da língua escrita formal, porque a ortografia é praticamente a mesma, com poucas diferenças. Mas um mesmo texto lido em voz alta por um brasileiro e um português vai soar completamente diferente, ou melhor, diferent!

Você sabia que, por incrível que pareça, um dos principais obstáculos para a difusão no Brasil do cinema feito em Portugal é justamente... a língua! Como os brasileiros têm dificuldades em entender o português de Portugal, e como ficaria no mínimo ridículo colocar legendas em filmes portugueses, o resultado é que praticamente nunca se vê filme de português nos cinemas daqui! Temos a impressão de que Portugal não produz cinema, o que não é verdade: Portugal tem ótimos cineastas, um dos quais, Manuel d'Oliveira, é reconhecido internacionalmente como um grande diretor.

Outro fato curioso é a palavra gente - que muitos gramáticos, por puro arcaísmo, estão ao máximo tentando erradicar da língua portuguesa. Fazem isso não querendo ver que essa palavra já está incorporada

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ao idioma e que é só questão de tempo até começarmos a escrevê-la na escrita formal. Estudos diversos contradizem esses mesmos gramáticos que negam o uso de gente ao afirmarem que em Portugal - em todas as áreas dialetais - já se usa, indistintamente, tal substantivo sem nem mesmo levar em conta o gênero e o número a que se refere tal palavra, como podemos ver na transcrição do vernáculo português de Portugal, nos exemplos abaixo:

- A gente, embora não fosse cozinheiro, mas ia se adaptando.

- A gente sai da casa fartas de tanto trabalhar.- A gente não tivemos festa, andamos de luto.- A gente temos tanta prática que a gente sabe.

2º mito: “português é muito difícil”

Como o nosso ensino da língua sempre se baseou na norma gramatical de Portugal, as regras que aprendemos na escola, em boa parte, não correspondem à língua que realmente falamos e escrevemos no Brasil. Por isso achamos que “português é uma língua difícil”: porque temos de decorar conceitos e fixar regras que não significam nada para nós. No dia em que nosso ensino de português se concentrar no uso real, vivo e verdadeiro da língua portuguesa do Brasil, é bem provável que ninguém mais continue a repetir essa bobagem.

Todo falante nativo de uma língua sabe essa língua. Saber uma língua, no sentido científico do verbo saber, significa conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade as regras básicas de funcionamento dela. Está provado que uma criança entre os três e quatro anos de idade já domina perfeitamente as regras gramaticais de sua língua! O que ela não conhece são sutilezas, sofisticações e irregularidades no uso dessas regras, coisas que só o estudo e a leitura podem lhe dar. Toda a língua é fácil para quem nasceu e cresceu rodeado por ela. Se existisse língua difícil, ninguém no mundo falaria húngaro, chinês ou guarani e, no entanto, essas línguas são faladas por milhares de pessoas, inclusive criancinhas analfabetas! Se tanta gente continua a repetir que “português é difícil”, é porque o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português. Um caso típico é o da regência verbal. O professor pode mandar o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase: “Assisti ao filme”. Quando esse mesmo aluno puser os pés fora da escola, vai dizer ao colega: “Ainda não assiste o filme do Zorro”! Porque a gramática brasileira não sente a necessidade daquela preposição a, que era exigida na norma culta clássica literária, cem anos atrás, e que ainda está em vigor no português falado em Portugal, a dez mil quilômetros daqui! É um esforço árduo e inútil tentar impor uma regra que não encontra justificativa na gramática intuitiva do falante.

A prova mais visível disso é que aquelas mesmas pessoas que, por causa da pressão policialesca da escola e da gramática tradicional, usam a preposição a depois do verbo assistir, também dizem que “O jogo

foi assistido por vinte mil pessoas”. Ora, se o verbo assistir pede uma preposição é porque ele não é transitivo direto, e só os verbos transitivos diretos podem assumir a voz passiva. Desse modo, quem diz “assisti ao jogo” não poderia, teoricamente, dizer “o jogo foi assistido”, já que a voz passiva só é admissível com verbos transitivos diretos e o verbo assistir é transitivo indireto. Só que essas paranóias gramaticais acontecem o tempo todo; basta ler jornais como a Folha de São Paulo e o Estado de S. Paulo, cujos manuais de redação decretam que o verbo assistir tem que vir obrigatoriamente seguido da preposição a. Na voz ativa, a preposição aparece: “Vinte e mil pessoas assistiram ao jogo”, porque assim manda o manual da redação, mas na hora de usar a voz passiva, a gramática intuitiva brasileira do redator se manifesta e a gente encontra milhares de exemplos do tipo: “O jogo foi assistido por vinte mil pagantes”. Essas pessoas, então, ficam em cima do muro: “acertam” na voz ativa, por causa do patrulhamento lingüístico, mas “erram” na passiva, porque se deixam levar pelo uso normal do português. Tudo isso por causa da cobrança indevida, por parte do ensino tradicional, de uma norma gramatical que não corresponde à realidade da língua falada no Brasil.

É por essas e outra regras jurássicas, verdadeiros fósseis lingüísticos, que os alunos se acham incapacitados, após 11 anos de estudos, de fazer uma simples redação de quinze linhas no vestibular! E mais: o que ganhamos com esse método tradicional de ensino é antipatia da maioria dos alunos por uma disciplina linda e maravilhosa que a língua portuguesa.

Luft, certa vez, fez uma citação que explana o que o aluno passa (sofre):

“Vítimas de verdadeira inquisição gramatical, os alunos vão se enredando em regras mal ensinadas e sem propósito. Há professores que se comprazem em exercícios onde possam corrigir montanhas de erros, convencendo os alunos de que são ignorantes e mantendo-os submissos, reféns da gramática.”

A dificuldade de se lidar com a língua é resultado de um ensino marcado pela obsessão normativa, terminológica, classificatória, excessivamente apegado à nomenclatura. Um ensino que parece ter como objetivo a formação de professores de português e não a de usuários competentes da língua. E que ainda por cima só poderia formar maus professores, já que estaria baseado numa gramática ultrapassada, que não daria conta da realidade atual da língua portuguesa no Brasil. Se os professores se concentrassem no que é realmente importante e interessante na língua, se ajudassem os alunos a desenvolver sua capacidade de expressão e reflexão, não haveria tanta gente - depois de anos e anos de estudo - em pânico diante do desafio de escrever uma pequena redação no vestibular.

As diferenças entre a norma culta das gramáticas tradicionais e a norma culta real não são tão grandes. Elas parecem mais freqüentes e profundas por causa

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do esforço feito pelos “gramatiqueiros” para preservar seus “dinossauros lingüísticos”. Bastaria eles tirarem as teias de aranha da cabeça para verem que a língua portuguesa não se desintegraria caso eles a deixassem livre para seguir seu curso.

Outras formas há muito em desuso - como o pronome vós -, deveriam entrar na sala de aula apenas como uma curiosidade da história da língua, mencionadas como algo que os estudantes irão encontrar em textos antigos, não deveriam mais ser cobrados como parte do conhecimento ativo, prático, dinâmico da língua.

Para que a língua seja ensinada de forma dinâmica, prazerosa e eficaz, precisaria ser entendida pelos professores como algo vivo em constante processo de evolução - e não de corrupção. Os professores de português precisariam ter uma postura similar à de um professor de biologia ou física, que sabe perfeitamente que muito do que está sendo ensinando hoje pode ser reformulado ou mesmo negado amanhã.

O documento do Ministério da Educação chamado Parâmetros Curriculares Nacionais, por exemplo, é bem explícito em seu volume dedicado ao ensino da língua portuguesa:

“A imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre 'o que se deve e o que não se deve falar e escrever', não se sustenta na análise empírica dos usos da língua.”

E este mesmo documento é enfático ao afirmar que:“Há muitos preconceitos decorrentes do valor social

relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum se considerarem as variedades lingüísticas de menor prestígio como inferiores ou erradas. O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença. Para isso, e também para poder ensinar Língua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma 'certa' de falar - a que se parece com a escrita - e o de que a escrita é o espelho da fala - e, sendo assim, seria preciso 'consertar' a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas duas crenças produziram uma prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos, por mais prestígio que um deles tenha em um dado momento histórico.”

3º mito: “As pessoas sem instrução falam tudo errado”

O preconceito lingüístico se baseia na crença de que só existe uma única língua portuguesa digna deste nome e que seria a língua ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas e catalogadas nos

dicionários. Qualquer manifestação lingüística que escape desse triângulo escola-gramática-dicionário é considerada, pelo preconceito lingüístico, “errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente”, e não é raro a gente ouvir que “isso não é português”.

Um exemplo: na visão preconceituosa dos fenômenos da língua, a transformação de L em R nos encontros consonantais como em Cráudia, chicrete, praca, broco, pranta é tremendamente estigmatizada e, às vezes, é considerada até como “atraso mental” das pessoas que falam assim. Ora, estudando cientificamente a questão, é fácil descobrir que não estamos diante de um traço de “atraso mental” dos falantes “ignorantes” do português, mas simplesmente de um fenômeno fonético que contribuiu para a formação da própria língua portuguesa padrão. Observe as duas listas a seguir:

1ª lista: Origem das palavras:

Português Padrão Etimologia Origembranco blank germânico brando blandu latimcravo clavo latimdobro duplu latimescravo sclavu latimfraco flaccu latimfrouxo fluxu latimgrude glúten latimobrigar obligare latimpraga plaga latimprata plata provençal prega plica latim

2ª lista: Formas variantes da norma culta:aluguel ou alugueraritmética ou ariméticaassobio e assovio assoalho ou soalhobergamota e vergamota bravo e brabochipanzé e chimpanzé clina e crinacovarde e cobardedemonstrar e demostrardependurar e pendurarespuma e escumaflecha e frechaflauta e frautaflocos e frocos iluminar e alumiar limpar e alimparmelancólico e merencórioneblina e nebrinaplancha e prancharelampear, relampejar, relampadejar, relampadar e

relamparremoinho e redemoinhotaberna e taverna

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Como é fácil notar, todas as palavras do PP (Português Padrão), na 1ª lista, tinham, na sua origem, um L bem nítido que se transformou em R, e na 2ª lista, algumas palavras variantes da norma culta. E agora? Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Cráudia, chicrete e pranta têm algum “atraso mental” ou “defeito”, seríamos forçados a admitir que toda a população da província romana da Lusitânia também tinha esse mesmo problema na época em que a língua portuguesa estava se formando, e que muitas pessoas “cultas” de nosso tempo também. E que o grande Luís de Camões também sofria desse mesmo mal, já que ele escreveu ingrês, pubricar, pranta, frauta, frecha na obra que é considerada até hoje o maior monumento do português clássico: o poema Os Lusíadas. E isso, é “craro”, seria no mínimo absurdo.

Existem, evidentemente falantes da norma culta urbana, pessoas escolarizadas, que têm problemas para pronunciar os encontros consonantais com L. É o que, popularmente, se chama de “língua presa”. Nesses casos, sim, trata-se de realmente de uma dificuldade física que pode ser resolvida com uma terapia fonoaudiológica. Mas não é dessas pessoas que estamos tratando aqui, mas dos brasileiros falantes das variedades não-padrão, em cujo sistema fonético simplesmente não existe encontro consonantal com L. Esses falantes não têm a “língua presa” e quando, na escola, entrarem em contato com os encontros consonantais com L, é preciso que o professor tenha consciência de que se trata de um aspecto fonético “estrangeiro” para eles, do mesmo tipo dos que encontramos, por exemplo, nos cursos de inglês, quando nos esforçamos para pronunciar bem o TH de throw, ou o I de live. É preciso separar bem os dois aspectos do fenômeno.

E quanto à outra lista, se uma pessoa que diz bassoura, barrer, almário é motivo de chacota, que “não sabe português”, que é “burra”, o que dizer de quem fala covarde e cobarde, assobio e assovio, flauta e frauta? Há alguma diferença? Se quem fala Cráudia, pranta, praca, flaldas, almário, friolento é considerado “errado”, e por outro lado, dizer frouxo, escravo, branco, aluguer, froco é considerado “certo”, isso se deve simplesmente a uma questão que não é lingüística, mas social e política - as pessoas que dizem Cráudia, bassora, friolento pertencem a uma classe social desprestigiada, marginalizada, que não têm acesso à educação formal e aos bens culturais da elite e, por isso, a língua que eles falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua língua é considerada “feia, pobre, carente, ridícula, indesejada”, quando na verdade é apenas diferente da língua ensinada na escola.

Em nome da “boa língua”, pratica-se a injustiça social, muitas vezes humilhando o ser humano por meio da não-aceitação de um de seus bens culturais mais divinos: o domínio inconsciente e pleno de um sistema de comunicação próprio da comunidade ao seu redor. Esquece-se que, se banem as formas lingüísticas consideradas indesejáveis, está-se banindo também as pessoas que as produzem. Ora, do ponto

de vista exclusivamente lingüístico, o fenômeno que existe no PNP (Português Não-Padrão) é o mesmo que aconteceu na história do PP, e tem até um nome técnico: rotacismo (que a transformação do L em R). Assim analisado, chega-se à conclusão de que o problema não está naquilo que se fala, mas em quem fala o quê.

Outro fato curioso é o percebido na frase abaixo:“Os home onte estava na garage.”Alguém que fale assim é considerado, no mínimo,

burro. Pois saiba, caro aluno, que a supressão da nasalização em final de frase (a supressão do M ou do N) é também um outro recurso muito utilizado na evolução (?) do latim para português. Observe:

Latim Português padrãoabdômen abdomecerumen cerumestrumen estrumeexamen examegermen germelegumen legumeregimen regime

E agora? Por esse ponto de vista, o PP é uma forma não-padrão do latim (você sabia que o português veio do latim vulgar, ou seja, de uma forma considerada não-padrão latina?), novamente o que entra em cena não é o que “se fala”, e, sim, “quem fala o quê”. Aqueles que falam diferente são criticados sem ser levado em conta que o que é considerado erro no PNP - às vistas do PP - é facilmente explicável como fenômenos lingüísticos que até mesmo o PP já passou, ou passa, sem serem percebidos.

Outro fato comum ao PNP é a eliminação de traços indicadores de plural. No PNP não existe o que existe no PP: as marcas redundantes de plural. Na forma culta, para indicar que estamos falando de mais de uma coisa, acrescentamos marcas de plural em muitas palavras da frase:

Quero te dar a linda flor amarela que brotou no meu jardim.

Quero te dar as lindas flores amarelas que brotaram no meu jardim.

Para falar que se trata de mais de uma flor, o PP precisa de cinco marcas de plural, que modificam várias classes de palavras: artigo, substantivo, adjetivo, verbo... é o que aprendemos na escola com o nome de concordância de número. Essa quantidade de marcas de plural é, do ponto de vista lógico, uma redundância desnecessária e, do ponto de vista econômico, um gasto excessivo. O PNP é bem diferente, nesse sentido, é mais lógico, mais econômico, mais modesto e menos “vaidoso”. Sua regra de plural é a seguinte: marcar uma só palavra para indicar um número de coisas maior que um. Essa é uma tendência também do PP, evidenciada pela substituição do nós pela gente:

Ontem nós fomos todos para o bar do Chico.Ontem a gente foi para o bar do Chico.Nós estávamos ansiosos e apreensivos.A gente estava ansioso e apreensivo.

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A vantagem do PNP é que tanto se pode optar por gente, como pela eliminação das marcas redundantes:

Onte nós fomo tudo pro bar do Chico.

Nós tava ansioso e apreensivo.

Outro fato curioso, em que se observa essa tendência de corte do desnecessário, é na pluralização de palavras que a norma culta condena pluralizar. Certas pessoas, em vez de dizerem: “Que crianças mais lindas!”, dizem: “Ques criança mais linda!”

Essa propensão em eliminar o desnecessário é perceptível em vários segmentos, não só na linguagem, ou nunca ouvimos falar em “corte de supérfluos”, “enxugamento da máquina”, “eliminação de gordura”, aplicadas em situação política, econômica ou administrativa? A língua só segue o que é feito em outros segmentos: a busca pelo econômico, pelo preciso e objetivo.

Ademais, essa tendência não se vê só no português; é notada também nas outras línguas. Observe a crônica que veiculou em revista:

“Pasquale Cipro Neto, o professor de Nossa Língua Portuguesa, agrada meu filho adolescente e minha mãe setuagenária. Só não gosto daquele negócio de 'norma culta'. Quem fala 'nós foi' não é o inculto. Pode ater ter mais cultura do que quem fala 'nós fomos'. Se fôssemos atrás do culto, estaríamos até hoje falando não bispo, mas sim episcopum, vossa mercê em vez de você. Experimente traduzir a conjugação dos verbos em inglês ao pé-da-letra e terá bem idéia de onde este celerado mental quer chegar. Exemplo com o verbo to be (ser, estar - no passado):

Inglês Português I was eu era, estava, eu foi You was tu ou você era, tu ou você foiHe, she, was ele(a) era, ele(a) foiYou was vós, vocês era, foiThey was eles era, eles foi

Conclusão: neguinho que fala 'errado' está mais perto do inglês do que imagina o pessoal da 'norma culta'. Está rumando para a simplicidade, ficção que um dia nos aproximará do inglês, pela síntese, sem perder a beleza. Nós chega lá.”

Mylton Severiano, revista Caros Amigos,ano 2, nº 14, maio de 98

4º mito: “É preciso saber gramática para falar e escrever bem”

É difícil encontrar alguém que não concorde com essa afirmação. Ela vive na ponta da língua da grande maioria dos professores de português e está formulada em muitos compêndios gramaticais.

É muito comum também os pais de alunos cobrarem dos professores o ensino dos “pontos” de gramática, tais quais eles próprios aprenderam em seu tempo de escola. E não faltam casos de país que protestaram veementemente contra professores e escolas que, tentando adotar uma prática de ensino da língua menos conservadora, não seguiam

rigorosamente “o que está nas gramáticas”. Sabe-se de casos em que os pais tiraram os filhos da escola porque os livro didáticos ali adotados não ensinavam coisas “indispensáveis” como função sintática, gênero dos substantivos, coletivos, etc.

Por que aquela declaração é um mito? Porque, se assim fosse, todos os gramáticos seriam grandes escritores (o que está longe de ser verdade), e os bons escritores seriam especialistas em gramática. Outra: quando estamos redigindo uma redação, ou até mesmo uma carta para um amigo, temos a noção sintática das palavras que grafamos? Sabemos que tal palavra tem a função sintática de complemento nominal, de complemento verbal, de agente da passiva, de adjunto adnominal, etc?

Ora, os escritores são os primeiros a dizer que gramática não é com eles! Rubem Braga, indiscutivelmente, um dos grandes de nossa literatura, e Luís Fernando Veríssimo, grande cronista gaúcho de Porto Alegre, escreveram crônicas deliciosas a esse respeito (que estão anexas). Carlos Drummond de Andrade, no poema “Aula de Português”, também dá testemunho de sua perturbação diante do “mistério”, das “figuras de gramática, esquipáticas”, que compõem “o amazonas da minha ignorância”. Drummond, ignorante? E o que dizer de Machado de Assis que, ao abrir uma gramática de um sobrinho, se espantou com sua própria “ignorância” por “não ter entendido nada”? Esse e outros casos são citados por Celso Luft em Língua e Liberdade. E esse mesmo autor diz:

“Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegurança na linguagem, gera aversão ao estudo do idioma, medo à expressão livre e autêntica de si mesmo.”

Mario Perini (grande gramático e lingüista) chama a atenção para a “propaganda enganosa” contida no mito de que é preciso ensinar gramática para aprimorar o desempenho lingüístico dos alunos:

“Quando justificamos o ensino da gramática dizendo que é para que os alunos venham a escrever (ou ler, ou falar) melhor, estamos prometendo uma mercadoria que não podemos entregar. Os alunos percebem isso com bastante clareza, embora não o possam explicitar; e esse é um dos fatores do descrédito de disciplina entre eles.”

Quando alguém se matricula numa auto-escola, espera que o instrutor lhe ensine tudo o que for necessário para se tornar um bom motorista, não é? Imagine, porém, se o instrutor passar onze anos abrindo a tampa do motor e explicando o nome de cada peça, de cada parafuso, de cada correia, de cada fio; explicando de que modo uma parte se encaixa na outra, o lugar que cada uma deve ocupar dentro do compartimento do motor para permitir o funcionamento do carro e assim por diante... Esse aluno terá alguma chance de se tornar um bom motorista? É muito pouco provável, quando muito, estará se candidatando a um emprego de mecânico. Em contrapartida, quantas pessoas existem por aí dirigindo tranqüilamente seus carros, tirando o

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máximo proveito deles, sem ter a menor idéia do que acontece dentro do motor?

Dessa forma, o que os professores, trabalhando a língua portuguesa do jeito que estão, conseguirão é formar mecânicos da gramática, e não motoristas da língua. Todo o cientificismo inerente ao conhecimento profundo da língua deveria caber tão só ao técnico da língua: o professor de língua portuguesa. Nós, sim, deveríamos saber a parte mecânica do idioma, porque nós somos os instrutores, os especialistas, mas não os nossos alunos.

5º mito: “O domínio da norma culta é instrumento de ascensão social”

Ora, se o domínio da norma culta fosse realmente um instrumento de ascensão social na sociedade, os professores de língua portuguesa ocupariam o topo da pirâmide social, econômica e política do país, não é mesmo? Afinal, supostamente, ninguém melhor do que eles conhece a língua culta. Só que a verdade está muito longe disso, como bem sabemos nós, professores, a quem são pagos alguns dos salários mais obscenos de nossa sociedade. Por outro lado, um grande fazendeiro, que seja dono de milhares de cabeças de gado, de indústrias agrícolas e detentor de grande influência política em sua região, vai poder falar à vontade sua língua de “caipira”, com todas as formas sintáticas consideradas “erradas” pela gramática tradicional, porque ninguém vai se atrever a corrigir seu modo de falar, afinal, ele já detém o poder econômico e político. Para que vai precisar da norma culta?

Estamos aqui diante da velha dicotomia causa versus efeito. Não adianta atacar o efeito, isto é, tentar “endireitar” a língua “distorcida” de um falante do PNP. É preciso atacar as causas que impedem o acesso desse falante à norma culta. E são muitas as causas. Achar que basta ensinar a norma culta a uma criança pobre para que ela “suba na vida” é o mesmo que achar que é preciso aumentar o número de policiais na rua e de vagas na penitenciária para resolver o problema da violência urbana.

Mas a distância com que a maioria da população é mantida de um estudo útil da língua tem seu porquê: uma grande parcela da população é mantida na ignorância com o propósito de distanciá-la da sintaxe dominante. E é na sintaxe dominante que são redigidos os contratos e as leis, um exemplo cabal de que língua é poder. Sem ter acesso a ela, o povo é facilmente manobrado.

“Quando as pessoas não sabem falar ou escrever adequadamente, surgem pessoas decididas a falar e escrever por elas, e não para elas.”

“Livros não mudam o mundo; quem muda o mundo são as pessoas, os livros só mudam as pessoas...”

Sob o império de NapoleãoO mais respeitado e renomado propagador do

preconceito lingüístico no Brasil foi, durante muitas décadas, o professor Napoleão Mendes de Almeida, até falecer no começo de 1998, aos 87 anos. Embora ele fosse realmente uma sumidade na língua portuguesa, nunca escondeu sua intolerância e seu autoritarismo em suas colunas de jornal, e é fácil verificá-lo nas mais de 600 paginas de seu Dicionário de Questões Vernáculas. Como ele foi (e ainda é) aclamado por muitos como um “defensor intransigente da língua”, parece-me oportuno mostrar de que maneira ele exerceu essa sua defesa. O verbete vernáculo, do citado Dicionário, começa assim:

“Os delinqüentes da língua portuguesa fazem do princípio histórico 'quem faz a língua é o povo' verdadeiro moto para justificar o desprezo de seu estudo, de sua gramática, de seu vocabulário, esquecidos de que falta de escola é que ocasiona a transformação, a deterioração, o apodrecimento de uma l. cozinheiras, babás, engraxates, trombadinhas, vagabundos, criminosos é que devem figurar, segundo esses derrotistas, como verdadeiros mestres de nossa sintaxe e legítimos defensores do nosso vocabulário.”

Basta esse parágrafo para demonstrar que, além do preconceito lingüístico, está aí manifestado um profundo preconceito social: cozinheiras, babás e engraxates - que exercem uma profissão humilde, decerto, mas digna de respeito como qualquer outra - são colocados no mesmo nível de trombadinhas, vagabundos e criminosos. Em outras partes do referido do livro, ele volta a mencionar “língua de cozinheiras” e de “infelizes caipiras”.

É o estudo da linguagem sendo permeado de preconceitos, que deverão ser desvanecidos através de um estudo mais apurado acerca da língua e de suas variantes.

Estudo da norma culta para quê, então?

Face ao que nos foi exposto, fica uma pergunta no ar:

- Para que aprender a norma culta da língua?Uma série de fatores é fundamental para que

qualquer cidadão possa gozar minimamente dos direitos democráticos que são, por exemplo, o acesso aos bens materiais que a sociedade produz, o gozo de liberdade de expressão, a não discriminação social e, muito importante, a oportunidade de acesso aos bens culturais, entre eles, a norma culta. Se um indivíduo não tem conhecimento da língua culta, pode (e vai, com certeza) encontrar uma série de barreiras no decorrer da sua vida. O campo profissional, por exemplo. Para competir no mercado de trabalho, sem dúvida, as chances são bem maiores àquele cidadão que conhece o padrão culto da língua. Outra barreira que esse sujeito ira encontrar, certamente, é o acesso aos conhecimentos e à informação. Dificilmente, alguém que não conheça o mínimo possível da língua culta poderá entender e compreender as informações transmitidas pelos livros, jornais e revistas, visto que

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esses, normalmente, utilizam a linguagem padrão na sua edição.

A importância do aprendizado da língua culta é imprescindível, já que ela é fundamental para nossa melhor convivência social, todavia, não devemos nos esquecer de que suas variantes são boas e expressivas. Por isso, qualquer que seja a nossa origem social, devemos ver com muito orgulho e respeito o modo de comunicação do lugar de onde viemos, sem jamais corrigir ou “prescrever” - de forma preconceituosa - o modo de falar das pessoas que nos relacionamos, e, sim, orientá-las sobre a importância de se falar formalmente.

Outra importância fundamental no ensino da variante culta da língua portuguesa é a uniformidade lingüística. Imagine, caso não fosse o ensino do português nas salas de aula (e também de um ponto em comum entre todos os brasileiros: a tv, que utiliza a linguagem padrão nas suas edições) se conseguiríamos entender e nos comunicar com as pessoas dos outros estados, dada a dimensão do nosso país.

Na escola, deve-se ensinar a norma-padrão, já que só se pode ensinar algo que o aprendiz ainda não conhece; cabe à escola ensinar a norma-padrão. Ensinar o padrão se justificaria pelo fato dele ter valores que não podem ser negados - em sua estreita associação com a escrita, ele é o repositório dos conhecimentos acumulados ao longo da história. Esses conhecimentos, assim armazenados, constituiriam a cultura mais valorizada e prestigiada, de que todos os falantes devem se apoderar para se integrar de pleno direito na produção/condução/transformação da sociedade de que fazem parte.

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Esse excerto foi extraído, basicamente, do livro “Preconceito lingüístico - o que é e como se faz”, escrito por Marcos Bagno e com modificações feitas com base em outros livros do mesmo autor e de livros que vêem a língua de uma forma dimensionada e não opressora.

MARCOS BAGNO- Doutor em Língua Portuguesa pela Universidade

de São Paulo;- Mestre em Lingüística pela Universidade Federal

de Pernambuco;- Escritor com mais de 20 livros publicados;- Tradutor profissional de inglês, francês, espanhol

e italiano;- Membro da Associação Brasileira de Lingüística;- Autor das seguintes obras sobre língua e

educação, amplamente adotadas nas universidades brasileiras:

· A Língua de Eulália. Novela sociolingüística - Ed. Contexto, 1997 (em 10ª edição, mais de 50.000 exemplares vendidos);

· Pesquisa na escola: o que é, como se faz - Ed. Loyola, 1998 (em 8ª edição, mais de 30.000 exemplares vendidos);

· Preconceito lingüístico: o que é, como se faz - Ed. Loyola, 1999 (em 10ª edição, mais de 50.000 exemplares vendidos);

· Dramática da Língua Portuguesa: tradição gramatical, mídia & exclusão social - Ed. Loyola, 2000;

· Português ou Brasileiro? Um convite à pesquisa - Parábola Editorial, 2001;

· Norma lingüística (seleção e tradução de textos de autores estrangeiros sobre a questão da norma) - Ed. Loyola, 2001.

MARCOS BAGNORua David Canabarro, 130 - Alto da Lapa - São

Paulo SP 05059-060Telefone: (11) 3832-9199 - Fax: (11) 3837-9609 - Endereço eletrônico: www.marcosbagno.com.bre -mail: [email protected]

O gigolô das palavras

Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha estiveram lá em casa numa mesma missão, designada por seu professor de Português: saber se eu considerava o estudo da Gramática indispensável para aprender e usar a nossa ou qualquer outra língua. Cada grupo portava seu gravador cassete, certamente o instrumento vital da pedagogia moderna, e andava arrecadando opiniões. Suspeitei de saída que o tal professor lia esta coluna, se descabelava diariamente com as suas afrontas às leis da língua, e aproveitava aquela oportunidade para me desmascarar. Já estava até preparando, às pressas, minha defesa (“Culpa da revisão! Culpa da revisão!”). Mas os alunos desfizeram o equívoco antes que ele se criasse. Eles mesmos tinham escolhido os nomes a serem entrevistados. Vocês têm certeza que não pegaram o Veríssimo errado? Não. Então vamos em frente.

Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer “escrever claro” não é certo, mas é claro, certo? O importante é comunicar. E quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover... Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com Gramática. A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de interesse restrito a necrólogos professores de Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela sombria gravidade que a gente nota nas fotografias em grupos dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e

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escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua, mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em Gramática pura.

Claro que eu não disse isso para meus entrevistadores. E adverti que minha implicância com a Gramática na certa se devia a minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas - isto eu disse - vejam vocês, a intimidade com a Gramática é tão dispensável que eu ganho a minha vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria. Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E tenho com elas a exemplar conduta de cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família nem o que os outros já fizeram com elas. Se bem que não tenha também o mínimo de escrúpulo em roubá-las de outro, quando acho que vou ganhar com isso. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.

Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou com a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria a sua patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo dá impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.

- Luís Fernando Veríssimo -

Repensando a linguagem

Conhece o verbo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural de Cairo?

O leitor que responder “não sei” a todas essas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Mas, se isso pode servir de algum consolo a sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.

Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer meu instrumento de trabalho, que é a língua.

Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido, de vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda

um recorte de crônica anotado, apontando erros de Português.

[...]Alguém já me escreveu também que eu sou um

escoteiro ao contrário. “Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação - contra a língua”. Mas acho que isso é exagero. Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos 50 que dos 40; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e até estou gordo demais, pensando em meter um regime no meu organismo - e nunca soube o que fosse escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se o fiz mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.

Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa uma série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para “pegar” as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, caireta, cairota ou cairiri - e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. [...]

No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, mas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.

Mas a mim é que não escardincham assim; sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim, nem antônimo de póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente - de Cachoeiro de Itapemirim!

- Rubem Braga, in “Ai de ti, Copacabana”

Brasileiro não sabe falar português?

“João Paulo não sabe nem falar”. Esse comentário foi repetido exaustivamente pelos adversários do prefeito eleito, nesse mês de outubro, aqui em Pernambuco. Entre os lingüistas (embora alguns, mais conservadores, ainda não tenham conseguido superar o preconceito por meio do conhecimento), professores, e até estudantes de Letras do 1º período da UFPE, tal afirmação constitui um dos mais graves preconceitos lingüísticos, devido às conseqüências nefastas que podem gerar na sala de aula e na vida. Analisemos melhor esta afirmação.

Em primeiro lugar, a capacidade de falar, exceto em casos patológicos, é universal. Todo ser humano realiza essa capacidade natural, falar uma língua. Em seguida, a sociolingüística já mostrou há mais de três décadas que uma língua não é única e homogênea, mas é um conjunto de variedades, usadas diferentemente, de acordo com a época, o lugar, as características sociais do falante (grau de escolaridade, classe social, profissão, idade, sexo, etc.) e a situação de comunicação. Por conseguinte, todas as línguas mudam no tempo e no espaço, e variam (se não fosse assim, ainda estaríamos falando latim). Basta escutar crianças, adolescentes e adultos,

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homens e mulheres, de diferentes classes sociais para se constatar o óbvio: o plurilingüismo social é inerente a todos os povos, sendo mais visível talvez num país em que as desigualdades sociais são mais acentuadas.

A questão crucial aqui é: a que língua se referem aqueles que afirmam que João Paulo não sabe falar português? À língua padrão ou língua oficial, intimamente ligada ao Estado, tanto na sua gênese quanto nos seus usos sociais, segundo as palavras de Bourdieu. Foi no processo de constituição dos estados que foram criadas as línguas oficiais, norma teórica com base na qual todas as práticas lingüísticas são avaliadas. Essa língua padrão é portanto a língua do poder político, econômico e social: era e continua sendo a língua dos grandes escritores, a partir da qual foram elaboradas as gramáticas que são ensinadas nas escolas. Essa língua é um fator de distinção social e no Brasil a maioria da população não tem acesso a ela.

Nessa perspectiva, fica claro que a língua é índice de poder e que ela “vale o que valem os seus falantes”. Quando se acusa João Paulo de não saber falar português (com total desconhecimento de critérios pelos quais se poderia compreender como funcionam as línguas e a linguagem), está se querendo dizer que ele não faz uso da língua das elites, a única prestigiada pela elite.

Mas será que toda a elite econômica, política e intelectual fala a língua padrão? Será que nossas autoridades governamentais fazem todas as concordâncias verbais e nominais? (Esse é o grande diferencial entre o chamado português popular, o mais discriminado pela sociedade, e o português padrão). Com certeza essas autoridades, como João Paulo, ora fazem, colocando todas as marcas de plural exigidas pela gramática normativa, ora não fazem as concordâncias. Vejamos um exemplo. Recentemente, estive numa reunião em que o expositor era um professor, pesquisador, com doutorado e pós-doutorado. No entanto, ele fez os seguintes usos: “não é esse pelo menos a ênfase”, “os especialistas pode nos ajudar”, “todos eles estão, digamos assim, entusiasmado pelo sucesso”, etc. Se perguntarmos a algum dos presentes se eles perceberam esses usos, não conforme ao padrão, a resposta será negativa, uma vez que se tratava de um falante culto e não de um ex-metalúrgico e ex-dirigente sindical. Como se vê, um acadêmico faz usos que a maioria da população faz. Alguns dirão que é uma questão de freqüência. Eu diria que é uma questão de preconceito lingüístico.

O pior é que desse preconceito (usar uma variedade popular do português é não saber falar), passa-se facilmente para outro: “não sabe nem falar, como é que pode ser prefeito de uma cidade como o Recife?” Foi assim que vimos o discurso do “despreparo” ser repetido exaustivamente pelos adversários de João Paulo. Embora esse tema já tenha sido bastante discutido na imprensa, vale a pena perguntar: o que é, para essas pessoas, ser preparado para administrar o

Recife, governar o Estado de Pernambuco ou presidir o país? É ter um título acadêmico? Fernando Collor e Fernando Henrique têm. E para que serve o preparo desses cidadãos? Para colocar em ação um projeto político que acentua cada vez mais o fosso social entre os brasileiros. Como disse o próprio João Paulo, esse “preparo” não nos interessa. Interessa-nos a competência política para administrar para todos e não apenas para as elites econômicas que o tacham de despreparado.

- Dóris de Arruda C. da Cunha - Universidade Federal de Pernambuco -

EXISTE ERRO LINGÜÍSTICO?

- Por que tu guarda essa papelama aí na gaveta?- Tu tem mãe?- Óia douto, onti nóis fumo pescá e voltemo muito

tarde.Nas três frases acima, não há obediência à norma

culta da Língua Portuguesa: falta concordância verbal, há erros de fonologia, entre outros. Essa maneira de uma pessoa se expressar não saiu da sua própria cabeça, recebeu-a do meio social em que vive e onde compartilha a maior parte do seu tempo.

Houve erro lingüístico? As falas estão expressas erradas?

A resposta exige um papo um pouco mais longo.Nossa sociedade é cheia de preconceitos. Existe o

preconceito contra o negro, contra o pobre, a mãe solteira, a opção sexual e por aí afora. Existe também o preconceito lingüístico. É evidente que a linguagem dos livros e das pessoas cultas não é a mesma das pessoas simples da cidade ou do campo.

Aí é que surge o preconceito. Uma linguagem é valorizada, respeitada, admirada... a outra coitada, é ridicularizada e as pessoas que a empregam vistas com desprezo. Acontece que essa linguagem para a qual muita gente torce o nariz (a coloquial) é rica, expressiva, tem suas regras e, muitas vezes, com um esforço mínimo, informa mais e melhor que a linguagem formal, podendo reproduzir coisas fantásticas e surpreendentes.

Não existe "erro lingüístico" e sim uma variação lingüística. Não existe o certo e o errado, existe o diferente. As pessoas normalmente empregam com competência a linguagem do meio social em que vivem. E todas as falas são muito expressivas e devem ser respeitadas: a do operário, a do pedreiro, a do professor, a do doutor, a do caipira... O que temos de nos habituar, é a falarmos conforme o meio onde nos encontramos, sermos mais versáteis em relação à língua e suas mais diversa formas.

Frente ao que nos foi exposto, fica uma pergunta pertinente no ar:

- Pra que aprender a língua culta?Uma série de fatores é fundamental para que

qualquer cidadão possa gozar minimamente dos direitos democráticos que são, por exemplo, o acesso aos bens materiais que a sociedade produz, o gozo de liberdade de expressão, a não discriminação social e,

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muito importante, a oportunidade de acesso aos bens culturais, entre eles, a língua culta.

Se um indivíduo não tem conhecimento da língua culta, pode (e vai, com certeza) encontrar uma série de barreiras no decorrer da sua vida. O campo profissional, por exemplo. Para competir no campo de trabalho, sem dúvida, as chances são bem maiores àquele cidadão que conhece o padrão culto da língua. Outra barreira que esse sujeito irá encontrar, certamente, é o acesso aos conhecimentos e à informação. Dificilmente alguém que não conheça o mínimo possível da língua culta, poderá entender e compreender as informações transmitidas pelos livros, jornais e revistas, visto que esses, normalmente, utilizam a linguagem padrão na sua edição.

A importância do aprendizado da língua culta é imprescindível, pois ela é fundamental para nossa melhor convivência social; todavia, não devemos esquecer que suas variantes são boas, expressivas. Por isso, qualquer que seja a nossa origem social, devemos ver com muito orgulho e respeito o modo de comunicação do lugar de onde viemos, sem jamais corrigir ou "prescrever", de forma preconceituosa, o modo de falar das pessoas que nos relacionamos e, sim, orientá-las sobre a importância de se falar “formalmente”.

Outra importância fundamental no ensino da variante culta da língua portuguesa é a uniformidade lingüística. Imagine, caso não fosse a forma como o ensino da língua é passado, se conseguiríamos entender e nos comunicar com as pessoas dos outros estados, dada a dimensão do nosso país.

Nas escolas, o ensino da linguagem deveria ser de outra forma, pois no sentido tradicional e prescritivo que vigora, certas formas são excluídas e postas de lado. Não nos esqueçamos de que ao banirmos da escola as formas lingüísticas consideradas indesejáveis, estamos também excluindo as pessoas que as produzem, pois a variante lingüística de determinada pessoa está tão arraigada a ela que se torna uma identificação, um signo. A criança deveria ter uma escola onde sua linguagem seja respeitada, Uma escola em que ela aprenda a sintaxe culta sem desprezar a sua.

“Existem oito milhões de crianças que vêm da periferia do Brasil (...). Precisamos respeitar a sintaxe dessas crianças mostrando que sua linguagem é bonita e gostosa, às vezes, mais bonita que a minha. E mostrando tudo isso, dizer a ela:

- Mas para tua própria vida, tu precisas dizer 'a gente chegou' ou 'nós chegamos' em vez de 'a gente cheguemos'.

Isso é diferente, a abordagem é diferente. É assim que todos os professores deveriam trabalhar, com abertura, mas dizendo a verdade.” (Paulo Freire)

- Texto tirado de livro didático -

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