PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o...

12
PRÊMIO ALFONSO REYES antoniocandido O Prêmio Internacional Alfonso Reyes, instituído nos anos 70, é um dos mais importantes prêmios literários da América Latina. Foram com ele agraciados, entre outros, Borges, Mar- cel Bataillon, Carpentier, Malraux, Carlos Fuentes, Octavio Paz, Bioy Casares, Harold Bloom. O prêmio relativo a 2005 foi outorgado a Antonio Candido, que o recebeu em 8 de outubro de 2005, em Monterrey, a cidade natal de Reyes. Antonio Candido foi o primeiro brasileiro consagrado com essa homenagem na condição de um dos maiores nomes da crítica literária na América Latina. A Revista USP se associa a essa homenagem a um dos mais eminentes professores da USP publicando, nesta seção, o discurso de saudação a Antonio Candido do prof. Rangel Guerra. O prof. Rangel Guerra – um dos grandes estudiosos de Reyes – realçou a pertinência da escolha em função de afinidades provenientes da relação do grande intelectual mexicano com o Brasil e a teoria literária. Destacou o sig- nificado da obra de Antonio Candido, sublinhando o alcance da crítica de vertentes por ele praticada no deslinde do valor da obra literária. Publica igualmente o discurso de agradecimento de Antonio Candido que, ao tratar da relação de Alfonso Reyes com o Brasil, realçou a sua condição de arguto analista não só da nossa cultura mas da nossa realidade. Baseou-se, nessa vertente, na publicação, em 2001, da correspondência diplo- mática de Alfonso Reyes mostrando como, na condição de embaixador do México no Brasil nos anos 30, foi “observador finíssimo da vida social e política do nosso país”, avaliando com clarividência eventos e pessoas. APRESENTAÇÃO DE CELSO LAFER Fotos: Maria Luisa Escorel Ao lado, momentos da entrega do prêmio

Transcript of PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o...

Page 1: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

P R Ê M I O A L F O N S O R E Y E S

antoniocandidoO Prêmio Internacional Alfonso Reyes, instituído nos anos

70, é um dos mais importantes prêmios literários da América

Latina. Foram com ele agraciados, entre outros, Borges, Mar-

cel Bataillon, Carpentier, Malraux, Carlos Fuentes, Octavio

Paz, Bioy Casares, Harold Bloom. O prêmio relativo a 2005

foi outorgado a Antonio Candido, que o recebeu em 8 de

outubro de 2005, em Monterrey, a cidade natal de Reyes.

Antonio Candido foi o primeiro brasileiro consagrado com

essa homenagem na condição de um dos maiores nomes da

crítica literária na América Latina.

A Revista USP se associa a essa homenagem a um dos mais

eminentes professores da USP publicando, nesta seção, o

discurso de saudação a Antonio Candido do prof. Rangel

Guerra. O prof. Rangel Guerra – um dos grandes estudiosos

de Reyes – realçou a pertinência da escolha em função de

afi nidades provenientes da relação do grande intelectual

mexicano com o Brasil e a teoria literária. Destacou o sig-

nifi cado da obra de Antonio Candido, sublinhando o alcance

da crítica de vertentes por ele praticada no deslinde do valor

da obra literária.

Publica igualmente o discurso de agradecimento de Antonio

Candido que, ao tratar da relação de Alfonso Reyes com

o Brasil, realçou a sua condição de arguto analista não só

da nossa cultura mas da nossa realidade. Baseou-se, nessa

vertente, na publicação, em 2001, da correspondência diplo-

mática de Alfonso Reyes mostrando como, na condição de

embaixador do México no Brasil nos anos 30, foi “observador

fi níssimo da vida social e política do nosso país”, avaliando

com clarividência eventos e pessoas.

APRE

SEN

TAÇ

ÃO D

E C

ELSO

LAFE

R

Fotos: Maria Luisa Escorel

Ao lado,

momentos da

entrega do

prêmio

Page 2: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

Uma aproximação ao valor da obra crítica de Antonio CandidoALFONSO RANGEL GUERRA

Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro

Alfonso Reyes chegou ao Brasil como embaixador ex-

traordinário e plenipotenciário do México em 1930.

Três anos depois, em 1933, escreveu um pequeno

texto dedicado ao primeiro encarregado de Negó-

cios no México designado pelo Império do Brasil

cem anos antes, o doutor Duarte de Ponte Ribeiro,

médico eminente. Este texto foi motivado pelo co-

nhecimento que Alfonso Reyes teve, em arquivos

do Rio de Janeiro, de um escrito que o ministro de

Negócios Estrangeiros do Brasil dirigiu ao doutor

Ponte Ribeiro, em 21 de maio de 1834, pedindo-lhe

que obtivesse informação sobre uma fl or existente no

México, cuja virtude curativa contra o cólera-morbo

a tornava valiosa e que desejava obter para o Brasil.

Essa fl or era conhecida como “papoula silvestre”.

E afi rma Reyes no escrito de referência: “A nossa

ALFONSO RANGEL GUERRA é crítico literário e autor de, entre outros, Las Ideas Literarias de Alfonso Reyes (El Colegio de México).

Page 3: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

REVISTA USP, São Paulo, n.71, p. 140-151, setembro/novembro 2006142

São inúmeros os textos que Alfonso Reyes dedicou ao Brasil, país no qual viveu seis anos de sua vida, textos dos quais o mais conhecido é “O Brasil em uma Castanha”, visão íntegra de sua natureza, sua história, sua economia e seu povo, tudo exposto em poucas páginas. Sua “Saudação ao Brasil” é outra visão de conjunto, em que a prosa de Alfonso Reyes transborda generosa no olhar posto nesse país que o conquistou e ao qual admirou: a cortesia de sua gente, a fertilidade de sua natureza, o espírito de ordem e de beleza que seu povo outorga à vida todos os dias. Sua História Natural das Laranjeiras, crônica dispersa e plural dos vários elementos componentes dessa zona do Rio de Janeiro onde se localizava a residência do embaixador mexicano. Deixou também uma visão certeira da poesia indígena brasileira e outros textos diversos que mostram o amor que tanta beleza e tanta natureza geraram no coração do mexicano, que se entregou sem limites a viver e expressar sua experiência pessoal desse belo país. Restam também sua corres-pondência e suas referências a escritores e poetas brasileiros: Manuel Bandeira, Renato de Almeida, Ronald de Carvalho e outros.

Todo o saber de Alfonso Reyes sobre a vida e a literatura, mais a beleza de sua prosa e a visão do mundo transformada em palavras que é sua poesia, entregam-se como expressão suprema das letras mexicanas no prêmio que leva seu nome. Quem o recebe agora, dom Antonio Candido, distinguiu-se por uma tarefa sustentada e permanente ao longo dos anos, em um trabalho de crítica literária dedicado a analisar a obra de autores brasileiros e da literatura universal.

Mediante a crítica, analisa-se a obra lite-rária. Mas é necessário que o crítico esteja consciente de que a obra literária não está estruturada sempre da mesma maneira, isto é, manifesta-se em formas diferentes, e nelas também adquirem expressão distintas visões do mundo ou circunstâncias relacionadas com a vida humana individual e social. Essa diversidade da natureza literária se move, segundo Antonio Candido, no que ele chama “textos translúcidos” e “textos opacos”. Entre esses extremos se move uma

papoula silvestre é, assim, nossa flor de amizade trocada entre o México e o Brasil”1.

Recolhemos essa citação de Alfonso Reyes para identificar a antiguidade das relações de nossos países, confirmada e ratificada hoje ao entregar a um destacado escritor e crítico literário, dom Antonio Candido de Mello e Souza, o Prêmio In-ternacional Alfonso Reyes. Como aquela primeira “flor de amizade”, expressão das nascentes relações entre México e Brasil há 172 anos, hoje se unem os nomes do regiomontano universal Alfonso Reyes e o de uma das principais figuras do pensamento crítico e literário do Brasil, dom Antonio Candido.

1 Alfonso Reyes, “La Amapola Silvestre, Símbolo de la Amistad entre México y el Brasil”, in Norte y Sur, Obras Completas, vol. IX, México, Fondo de Cultura Económica, 1959, pp. 93-4.

CCS/

DVI

DSO

N/A

RGU

S D

ocum

enta

ção,

Fran

cisc

o Em

olo,

1997

Page 4: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

REVISTA USP, São Paulo, n.71, p. 140 -151, setembro/novembro 2006 143

série de possibilidades às quais o crítico deve atender. Se um texto se aproxima dos “translúcidos” é porque nele se oferecem os dados da realidade como se nos apresentam; mas também pode ser que o texto em questão se mostre mais como algo “opaco”, isto é, nesses textos se requer oferecer a revelação de seu conteúdo. Mas tudo isso se desloca em variantes que exigem avaliar se estamos diante de um documento ou de uma fantasia, ou seja, se estamos diante da realidade ou da ficção. Essa circunstância obriga a crí-tica a levar em conta as condições em que a obra está concebida e adaptar-se às suas condições para poder penetrar seu conteúdo. Daí Antonio Candido afirmar que é neces-sário identificar a crítica de “vertentes”, ou seja, a que é adequada à natureza de cada texto, o que implica o exercício da crítica com tolerância intelectual. Essa concepção permite avaliar em sua dimensão cabal o trabalho da crítica literária.

Em consideração à diversidade das obras

literárias, o crítico – afirma Antonio Candido

− deve ser capaz de enfocar sua aproximação

desses diferentes pontos de vista e posições

a fim de permitir, nesse respeito que deve

merecer toda obra literária, a visão integrada

como resultado final. É por isso que propõe

para a crítica uma condição “integrativa”, o

que, ademais, implica que se deixe de lado

todo dogmatismo e exclusivismo. Conse-

qüentemente – conclui Antonio Candido

− o crítico “tanto pode investigar de que

maneira as condições da sociedade se in-

corporam a ele [o texto analisado], quanto

procurar esse vínculo com a personalidade

do autor, ou pretender o levantamento de

sua organização formal, tendo sempre em

vista a combinação consistente da dimensão

histórica como dimensão estética”2. Essa

reflexão de Antonio Candido nos permite

entender como o trabalho do crítico literário

se localiza por necessidade em uma visão

íntegra do processo criador e da obra que

oferece a compreensão de conjunto dessa

complexa tarefa que, por sua vez, torna

possível a diversidade de caminhos e formas

que assume a literatura.

As duas tendências em direção às quais o

espírito humano pode deslocar-se no campo

da criatividade literária são, para Antonio

Candido, o localismo e o cosmopolitismo.

O localismo acentua os valores, as formas

e as expressões próprias; o cosmopolitismo,

ao contrário, abre-se à direção universal da

experiência e das manifestações literárias.

Muito tem a ver, nesse problema, o nacio-

nalismo como valor cuja força é a visão

do desenvolvimento da própria história,

que muitas vezes propicia tendências em

direção ao exclusivismo e a sobrestimação

das manifestações locais no campo da cul-

tura. Por sua vez, o cosmopolitismo tende,

por essa inevitável convivência de povos,

sociedade, cultura e história, a integrar o

próprio em um marco mais extenso, onde

cabem, junto às experiências locais, as de

outros âmbitos e latitudes. Como resolver

essas tendências, que em alguns espíritos são

irreconciliáveis e definitivamente opostas?

Antonio Candido tem a respeito uma visão

de equilíbrio, isto é, frente ao excesso de

um ou de outro extremo, propõe a soma e a

convivência feliz de ambas as posições, pois

estima que essa divisão se dá “no âmbito

dos programas, porque no da psicologia

profunda, que rege com maior eficácia a

produção das obras, vemos quase sempre

um âmbito menor de excitação, encurtando o

distanciamento entre ambos os extremos”3.

E dá como exemplo dessa posição algumas

figuras importantes da literatura brasileira,

como Gonçalves Dias, Machado de Assis,

Joaquim Nabuco e Mário de Andrade, cuja

obra e vida “representam o equilíbrio ideal

entre ambos os extremos”. Poderíamos

acrescentar que todos os grandes escrito-

res oferecem a mesma atitude intrigante.

Alfonso Reyes é, no México, não o único

mas, sim, talvez um dos primeiros a assumir

essa atitude referendando-a, ademais, com

as idéias que deixou escritas em seu texto

intitulado A Vuelta de Correo, resposta a

umas acusações recebidas, no sentido de

haver abandonado a atenção à própria lite-

ratura para entregar-se ao conhecimento e

avaliação de outras literaturas. Esse texto foi

um marco na visão da literatura mexicana

e marcou sua posição frente à literatura

universal. “O que será que nós, mexicanos,

temos” – escreveu Alfonso Reyes, “que não

2 Antonio Candido, Estruendo y Liberación, organización, presentación y notas de Jorge Ruedas de la Serna (vários tradutores), México, Siglo XXI, 2000, p. 13.

3 Idem, ibidem, p. 45.

Page 5: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

REVISTA USP, São Paulo, n.71, p. 140-151, setembro/novembro 2006144

possamos ir aonde todos os povos vão?

Quem nos impede de vasculhar o patrimô-

nio do espírito com o mesmo senhorio que

os demais? Quem, em Cuba, no Brasil, na

Argentina, joga na cara de seus escritores

o ter autoridade, digamos, sobre o tema de

Maquiavel, a Grécia antiga, as moedas ro-

manas ou o culto errante de Astarté durante o

século passado? Não e mil vezes não: a única

maneira de ser proveitosamente nacional

consiste em ser generosamente universal,

pois nunca a parte se entendeu sem o todo”4.

Não em vão se reconhece Alfonso Reyes

como o mexicano universal.

Há mais um elemento no pensamento de

Antonio Candido ao referir-se ao problema

entre localismo e cosmopolitismo: qualifi-

ca-o como um problema dialético porque

se trata de uma “integração progressiva

da experiência literária e a espiritual…”5.

Fazemos referência a isso porque não se

costuma falar dos dois tipos de experiência,

a literária e a espiritual. Identificar sepa-

radamente esses dois tipos de experiência

implica reconhecer os processos interiores

da criação que tornam possível a obra lite-

rária, pois costuma-se identificar esta como

a expressão própria da literatura, desconhe-

cendo, muitas vezes, tudo aquilo que torna

possível chegar à criação propriamente

dita da obra. Trata-se, finalmente, de um

problema de teoria literária.

A extensa obra crítica de Antonio Candi-do deixa ver uma visão integral da literatura, da história, da sociedade, da economia e de outros fatores integrantes da vida do país aos quais pertencem o escritor e sua obra. Sem esse quadro de conjunto seria difícil ter a possibilidade de interpretar o complexo fenômeno da expressão literária, donde confluem, por necessidade, todos os fatores antes mencionados. A literatura é uma expressão em que se mostra uma parte da vida individual ou coletiva. Não importa que o escritor recorra à ficção para narrar contos e romances, ou para encenar uma obra de teatro. Essa ficção, no entanto, não contradiz o valor do real, pois, paradoxal-mente, apesar de ser narrações criadas pela imaginação e apesar de essas histórias serem só a aproximação a uma parcela da vida em

seu conjunto, a ficção literária consegue oferecer ao leitor uma verdadeira forma de ser, em suas múltiplas possibilidades, da vida humana, isto é, a obra literária é um testemunho às vezes mais próximo da verdade do que a própria história como exposição de fatos reais, devido a isso que Alfonso Reyes denominou na literatura o valor vicário da vida. Essa capacidade de representação da vida humana através da ficção literária é a que o crítico deve ser capaz de interpretar e avaliar. Daí que essa outra visão de conjunto do contexto plural e diverso do coletivo de uma nação não pode ser desconhecida pelo crítico literário. Tal é o acervo cultural que permitiu a Antonio Candido revelar e mostrar os valores funda-mentais da obra literária que esteve sujeita a seu exame crítico.

Mas não basta essa visão do contexto

histórico, social e cultural do país ao qual

a obra pertence. Necessita-se, ademais,

possuir uma capacidade analítica para julgar

o conteúdo das obras literárias. Podemos

indicar, como exemplo disso, seu estudo

da poesia de Manuel Antonio Álvares de

Azevedo, poeta romântico do Brasil da

primeira metade do século XIX, cujo poema

“Meu Sonho” é submetido a um rigoroso

estudo de seus elementos e formas, passando

à revisão de versos e estrofes, em níveis

profundos de interpretação que descrevem

o significado último do poema.

Em seu livro Estouro e Libertação

pode-se ler um dos ensaios mais lúcidos e

certeiros de Antonio Candido. Escreveu-o

quando tinha 26 anos de idade e apenas

havia passado um ano da morte de Mário de

Andrade, a cuja obra e vida está dedicado.

É um testemunho de sua capacidade para

entender e compreender a vida, isto é, a

vida revelada e mostrada na vida de outro,

nesse caso, de um escritor com a força e

vitalidade de Mário de Andrade. Sua visão

dos matizes, as dobras, as secretas manifes-

tações do rumo e conduta de uma pessoa

mostra como é fundamental no trabalho do

crítico a capacidade para ver a complexa

integração de todos os elementos de uma

vida conduzida por uma alta inteligência.

Entender as relações da vida, poder deci-

4 Alfonso Reyes, A Vuelta de Correo, Obras Completas, vol. VIII, México, Fondo de Cultura Económica, 1958, p. 430.

5 Antonio Candido, op. cit.

Page 6: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

REVISTA USP, São Paulo, n.71, p. 140 -151, setembro/novembro 2006 145

frar os profundos impulsos da existência,

é primordial para interpretar e avaliar a

obra que será motivo da crítica. Algo se-

melhante ocorre com o estudo dedicado

por Antonio Candido a Gilberto Freyre,

o autor de Casa-grande & Senzala, pois,

como no caso de Mário de Andrade, é um

rico exemplo que mostra a capacidade de

visão de Antonio Candido para encontrar

as chaves secretas nas quais se integram

visão, estrutura da obra e compreensão

do fenômeno complexo da realidade na

qual se manifesta e expressa a vida co-

letiva. Surpreende a agudeza e a certeza

do juízo do crítico, que torna possível a

interpretação e avaliação de uma obra e o

pensamento que a anima, para mostrar seu

valor e significado no contexto da cultura

nacional. A parte final desse ensaio me-

rece ser recolhida para captar a dimensão

do texto de Antonio Candido. Depois de

afirmar que Gilberto Freyre rompeu tabus

e propôs outro modo de ver as coisas,

escreve Antonio Candido: “Por isso, foi

temido e tratado como radical, inspirou

revisões, acabou de uma vez com a visão

baseada na suposta hierarquia das raças,

consagrou o respeito à arte do povo, à

sua cozinha, à sua vida diária. E tudo isso

por meio de uma escritura surpreendente,

nova, de uma beleza como não se havia

visto antes nem se viu depois nos estudos

sociais, tornando pálidos os estilos à sua

volta. Escritura marcada pelos ritmos

proustianos, abundante e necessária que

sugere a complexidade do real no capri-

choso arabesco de sua marcha”6.

Essa organização de elementos: a capaci-

dade analítica, o compreender a diversidade

das obras − o que permite exigir respeito a

essas diferenças e pontos de vista −, o es-

tabelecer, ademais, a necessidade de tomar

consciência da tolerância do crítico frente

à obra; a visão integradora do contexto

socioeconômico e cultural no qual surge a

criação literária e, finalmente, essa capaci-

dade para compreender e avaliar a vida e a

existência do escritor, na complexidade de

todos os elementos que a tornam possível e

ao mesmo tempo a conduzem e orientam à

criatividade de grande fôlego; pela presença

de todos esses fatores que se combinam na

obra crítica de Antonio Candido, pode-se

afirmar com certeza que a referida obra

merece encontrar-se no estrato superior da

crítica literária, segundo a concebeu Alfon-

so Reyes. Em sua visão integral da crítica

literária, Alfonso Reyes a dividiu em três

níveis: o primeiro é o da impressão, resul-

tante do primeiro efeito que a obra produz

no leitor. É, para dizê-lo de outra maneira,

a reação produzida pela leitura inicial do

texto literário. Essa impressão pode derivar

ou não para a crítica. Se conduzir a ela,

aparece a crítica impressionista. A crítica,

continua dizendo Alfonso Reyes, pode

utilizar o método histórico, o psicológico

ou o estilístico. Finalmente, chegamos ao

nível mais alto da crítica: o juízo. O juízo

se move livremente para alcançar a ava-

liação da obra, sustentado no equilíbrio da

sensibilidade, da emoção, da experiência

e do conhecimento literário. São poucos

os que chegam a esse nível da crítica, pois

para isso se requer o transcurso de uma

vida em contato com a literatura. O juízo

põe em jogo o livre exercício do espírito,

e essa direção do espírito torna evidentes

os valores humanos da obra e, finalmente,

essa avaliação se cumpre no marco cultural

da cultura. Essa direção do espírito a que

faz referência Alfonso Reyes, como ele

o precisa em seu texto, tem sua origem

no pensamento de um escritor português,

chamado Fidelino de Figueiredo, que viveu

praticamente os mesmos anos que Alfonso

Reyes, pois nasceu em 1888 e morreu em

1967. A conclusão de Alfonso Reyes é pre-

cisa: “Se o fim supremo da Literatura é uma

investigação do homem pela via da beleza

verbal, o crítico e o criador se confundem

ao chegar ao término da viagem”7.

Por tudo isso, que se expressa em uma longa e importante obra crítica, cujo valor lhe outorga sem dúvida um lugar proeminen-te no âmbito da literatura latino-americana, o eminente escritor Antonio Candido recebe hoje o Prêmio Internacional Alfonso Reyes. Nós nos felicitamos pela feliz conjunção dessas duas figuras, cujos nomes desde ago-ra permanecem unidos no extenso campo das letras ibero-americanas.

6 Antonio Candido, “Aquel Gil-berto”, in op. cit., p. 222.

7 Alfonso Reyes, Apuntes para la Ciencia de la Literatura, Obras Completas, vol. XIV, México, 1962, p. 384.

Page 7: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

REVISTA USP, São Paulo, n.71, p. 140-151, setembro/novembro 2006146

P

ANTONIO CANDIDO

eço licença para começar agradecendo à Comissão

que me considerou digno desse alto prêmio, movi-

da, certamente, pela generosidade, pois só esta pode

explicar a eleição do meu nome quando comparado

aos nomes daqueles que o receberam antes. Ao mes-

mo tempo, quero ressaltar o caráter especialmente

honroso que ele tem para um brasileiro, não só por

ser concedido no México, mas por ter o nome de um

grande mexicano amigo do Brasil.

Para a minha geração, o vosso país foi um grande

modelo de aspiração à justiça na sociedade, com o

exemplo da Revolução de 1911 e da Constituição de

1917, cujos ideais nos pareciam revigorados pelo

vosso governo no decênio de 1930, quando nos abría-

mos para as preocupações políticas e começávamos a

sentir a mais profunda insatisfação ante a clamorosa

injustiça social que caracterizava e ainda caracteriza

o Brasil.

Discurso de agradecimento ao receber o Prêmio

Internacional Alfonso Reyes

Page 8: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

REVISTA USP, São Paulo, n.71, p. 140 -151, setembro/novembro 2006 147

Completando, eu diria que o signifi cado desse

prêmio é particularmente grato a um brasileiro pelo

fato de ter o nome do insigne Alfonso Reyes, sábio

que viveu no Brasil como diplomata e foi um dos

hispano-americanos que melhor nos sentiram e en-

tenderam, desde o encantamento pela natureza até a

compreensão dos homens, dos eventos e das institui-

ções, que ele soube analisar com singular lucidez. No

Rio de Janeiro daquele tempo Alfonso Reyes se impôs

nos meios intelectuais como companheiro e amigo,

bastando recordar a sua marca num poema famoso de

Manuel Bandeira, escrito quando ele foi chamado de

volta ao seu país. O poeta alude à sua partida como

à perda de um bem, contrastando com muitas coisas

negativas que permaneciam:

“Alfonso Reyes partindo

E tanta gente fi cando…”

(“Alfonso Reyes que se vá

y tantos que se quedan…”).

É como se dissesse: o melhor parte, os piores

permanecem…

A presença física do Brasil é viva em muitos textos

de Alfonso Reyes, que foi sensível tanto à que ele

denominou “laberintosa ciudad” do Rio de Janeiro,

apertada entre o mar e a montanha, quanto ao remanso

das terras altas, a exemplo de Teresópolis. Um dos

seus escritos mais signifi cativos para nós tem o título

em português de História Natural das Laranjeiras,

alusivo ao bairro onde vivia e era naquele tempo um

vale encantador cheio de residências tranqüilas. O

pequeno livro é composto não apenas por textos de

cunho geral, mas também por outros que tratam da

cidade, do bairro, das suas plantas, dos seus animais,

dos pequenos problemas de cada dia revelando a in-

Alfonso Reyes

a caminho

do Brasil, no

convés do navio

Giulio Cesare,

1930

Reprodução

Page 9: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

REVISTA USP, São Paulo, n.71, p. 140-151, setembro/novembro 2006148

timidade do grande escritor com o lugar onde passou alguns anos da sua vida. Em História Natural das Laranjeiras é possível perceber uma característica que ocorre de maneira contínua na sua obra: a capacidade de ser expressivo tanto nos textos curtos, aparentemente ocasionais, quanto nos textos longos, carregados de erudição e pensa-mento. Ele tem o dom de modular os seus instrumentos expressionais e usá-los sempre com maestria, sendo profundo ao parecer apenas casual, sendo agradável mesmo nos textos mais densos. Essa combinação pouco freqüente de qualidades foi logo percebida pelos intelectuais brasileiros, muitos dos quais lhe dedicaram grande admiração e se tornaram seus amigos. Entre os mais próximos, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Ribeiro Couto, Ronald de Carvalho, Renato Almeida, Alceu Amoroso Lima. Por ocasião de sua morte, este últi-mo escreveu em um artigo: “A América Latina acaba de perder o maior dos seus humanistas vivos: Alfonso Reyes”. No Rio de Janeiro ele escreveu textos importantes de poesia, narrativa, crítica, participou da vida cultural e se tornou membro corres-pondente da Academia Brasileira de Letras.

Ao salientar o vínculo entre ele e o Brasil, é preciso mencionar a sabedoria com que analisou a vida política do país, no momento em que, como entendeu bem, se acelerava a transição da economia tradicional, baseada na agricultura e na pecuária, para a economia moderna, centralizada pelo crescimento rápi-do da indústria. Era a passagem do predomí-nio da oligarquia rural, com os seus “chefes políticos” locais, para a burguesia urbana, que vinha crescendo em força e liderança desde a Primeira Guerra Mundial.

A partir do momento em que assumiu o posto de embaixador, Alfonso Reyes percebeu esse processo histórico e, durante os anos em que viveu no Rio de Janeiro, foi observador finíssimo da vida social e política do nosso país, como fica evidente para quem lê o segundo volume da obra póstuma Misión Diplomática, organizada por Victor Díaz Arciniega, que contém re-latórios, informações e comentários por ele remetidos à Chancelaria mexicana.

Para os brasileiros, a leitura desse li-vro é uma fascinante aventura intelectual, sobretudo se o leitor tem, como eu, idade bastante para ter vivido de maneira cons-ciente naquela época e, assim, poder avaliar a certeza e a clarividência com as quais Alfonso Reyes compreendeu os eventos e as pessoas.

Seis meses depois da sua chegada ao Brasil irrompeu o movimento armado de outubro de 1930, seguido pela fase difícil do Governo Provisório, em meio às graves conseqüências da crise econômica mundial de 1929. Em 1932 houve a Revolução Cons-titucionalista promovida pelo estado mais poderoso da federação, São Paulo, à qual seguiu o período da reconstitucionalização, coroado pela Carta de 1934. No ano seguin-te, deu-se o levante da Aliança Nacional Libertadora, de cunho esquerdista, cuja repressão foi um dos pretextos para reforçar o cunho autoritário do governo, culminando com o golpe de Estado de novembro de 1937. Salvo este último fato, que o embaixador mexicano não presenciou porque havia deixado o posto em 1936, todos os outros foram por ele registrados, compreendidos e agudamente comentados.

De fato, essa fase agitada, ligada à crise do sistema federativo e à gestação do Brasil de hoje, teve nele um analista excepcional-mente bem informado, de rara penetração, o que faz com que o material diplomático por ele produzido continue vivo como fonte histórica de cunho testemunhal.

Nesses textos percebemos a tensão bem equilibrada entre a objetividade neutra do funcionário e a liberdade de vistas de um grande espírito, capaz de se familiarizar de maneira compreensiva com os proble-mas do país onde residia. Isso dá ao que poderia ser mero conjunto de informes convencionais uma profundidade de estudo interpretativo.

Como exemplo, menciono os seus pon-tos de vista sobre a nossa população, que talvez seja etnicamente a mais complexa da América Latina, com a sua mistura origi-nária de elementos indígenas, portugueses e africanos, multiplicada pela contribuição posterior de várias populações da Europa

Page 10: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

REVISTA USP, São Paulo, n.71, p. 140 -151, setembro/novembro 2006 149

e da Ásia. Alfonso Reyes representa essa realidade de maneira poeticamente figurada no ensaio “Brasil en una Castaña”, no qual imagina a criação mitológica do país por um demiurgo:

“Y todavía nuestro caprichoso demiurgo, al batir la sustancia de lo que había de ser la gente brasileña, echó dentro de aquel inmenso crisol, dotado como ninguno para las sorpresas de la química biológica y la alquimia psicológica, ingredientes variados de las más distintas razas y colores, desde el rubio transparente hasta el azabache brillante, pasando por las tonalidades inter-medias del cacao y del café, por manera que en aquel horno genitor se está fraguando el metal humano por excelencia, hecho de todos los metales fundidos, como el que escurría del incendio de Corinto”.

Mas nas avaliações realistas da sua correspondência diplomática, ele chega a pensar que a diversidade étnica e econômica era um perigo de ruptura da unidade nacio-nal, como parecia demonstrar a revolução de São Paulo. Esta consideração deve ter contribuído para ele compreender a ten-dência centralizadora de Getúlio Vargas, como reação ao excesso de particularismo dos estados federados.

Alfonso Reyes encarou a sociedade brasileira com simpatia e compreensão, mas sem renunciar à crítica dos defeitos nossos, tanto os amáveis quanto os menos amáveis, aludindo a eles com tolerância e não raro bom humor, como quando aponta a nossa loquacidade que contamina, por exemplo, a linguagem oficial, caracterizada, diz ele, por “exceso de palabras y argumentaciones excesivas para demonstrar lo evidente…”. E não lhe escapou uma característica peri-gosa da nossa mentalidade, que ele qualifica como “cierta idiosincrasia conservadora del espiritu brasileño”.

Menciono em seguida a sua visão cor-reta do momento político, o qual, segundo ele, contrapunha o Norte pobre ao Sul abastado. Parecia-lhe que o Norte projetava os seus problemas na ideologia reformis-ta dos jovens oficiais revolucionários,

cujo movimento recebeu a designação de “tenentismo”. Essa corrente preferia um governo forte, provisoriamente sem par-lamento, a fim de ter o tempo necessário para implantar modificações profundas. Já o Sul, cujas oligarquias tinham dominado a República de 1889 a 1930, reclamava a constitucionalização imediata, com um liberalismo que era na verdade, como ele bem viu, desejo de restaurar a hegemonia perdida. Entre ambas as forças, jogando habilmente com elas, em constante mo-vimento pendular, o chefe do governo provisório, Getúlio Vargas. Alfonso Reyes o denominou “la esfinge risueña” e soube avaliá-lo imediatamente como estrategista discreto, sinuoso, capaz de conciliar a am-bição do poder e a tradição da sua classe com os interesses coletivos e a percepção da modernidade. Daí ter encaminhado a transformação do Brasil conforme soluções de compromisso.

Nessa ordem de considerações, Alfon-so Reyes percebeu uma característica da vida social brasileira naquele momento: a entrada do povo como sujeito ativo da vida política, em escala cada vez maior. Daí a clarividência com que analisou a então recente legislação social. Ele a considerou realização progressista exi-gida pela transformação da sociedade, mas enquadrada e limitada pela tutela do governo, que freava a sua eventual radi-calidade. Além disso, percebeu que era aplicada quase apenas nos grandes centros urbanos, enquanto nas áreas atrasadas podia persistir intacta a semi-escravidão do trabalhador rural.

A visão certeira de Alfonso Reyes so-bre o Brasil mostra que ele a amadureceu em pouco tempo, como se logo depois da chegada já estivesse apto para o tipo de conhecimento que definiu em maio de 1931 na introdução de um informe:

“Cuando a la luz de los hechos se ha es-tudiado a un pueblo durante largo tiempo, por extraño que sea, su alma acaba por desprenderse del fondo de su historia co-tidiana y por tomar, a los ojos del espiritu, un aspecto especial exclusivo, que revela,

Page 11: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

REVISTA USP, São Paulo, n.71, p. 140-151, setembro/novembro 2006150

más o menos, los móviles de sus actos, sus tendencias y los fines que persigue”.

Para ele, não foi preciso o “largo tiempo”, e em 1936, ano da sua saída do posto, pôde escrever a “Introducción al Estudio Económico del Brasil”, notável pela capacidade de síntese, a segurança da informação e a justeza dos conceitos. De certo modo, é um retrato de nosso país a partir da vida econômica, guiado por uma idéia central, a saber: “[…] la tendencia dominante en la historia del Brasil es la paulatina extensión del territorio eco-nómico”, idéia que aparece em diversos textos dele. A partir daí expõe a sucessão dos ciclos e, começando com o do açúcar no século XVI, mostra como se configurou uma economia de exportação que produziu centros restritos de prosperidade, suscitan-do concentrações desequilibradas de rique-za em algumas regiões. Daí a conclusão: “El país se desenvuelve en un dualismo económico: mientras unos cuantos estados crean el Brasil, los demás sólo participan de la economía por reflejo”, de tal maneira, prossegue, que “los estados del extremo norte y del interior pasan a la categoría de ‘colonias de la nación’, que se abastecen con los productos nacionales de los estados poderosos del litoral y del sur”.

Esta era realmente a situação naquele momento, e a história mais recente do Brasil tem sido em parte o esforço para superar essa situação de colonialismo interno, que Alfon-so Reyes percebeu, atribuindo-a à tendência histórica de apostar mais no extensivo dos ciclos que se sucederam do que no intensivo das economias sólidas. Com razão observa que, na perspectiva histórica, o Brasil, “apto para proporcionar la abundante materia prima de articulos nuevos (periodo de todos los apogeos brasileños), resulta incapaz de producir en condiciones de baratura, cuan-do ya el precio comienza a primar sobre la cantidad del producto, y cuando el cultivo intensivo comienza, en la segunda etapa, a competir con el cultivo extensivo”.

Esse trecho é um resumo do ritmo da evolução econômica do Brasil até aquele momento. Ele mostra como Alfonso Reyes

Alfonso Reyes

em caricatura de

Caras y Caretas

Repr

oduç

ão

Page 12: PRÊMIO ALFONSO REYES - usp.br · reflexão de Antonio Candido nos permite entender como o trabalho do crítico literário se localiza por necessidade em uma visão íntegra do processo

REVISTA USP, São Paulo, n.71, p. 140 -151, setembro/novembro 2006 151

era capaz de informar bem o seu governo, com uma eficiência profissional que nem sempre existe nos intelectuais que abraçam a carreira diplomática. E isso é confirma-do pela sua atuação nas relações entre os dois países. Quando assumiu o cargo elas não eram boas, inclusive devido à reação dos influentes meios católicos à política anti-religiosa do governo mexicano. Além disso, a parte comercial estava praticamente paralisada. No entanto, ele não apenas con-tornou com habilidade a questão de fundo religioso, mas conseguiu obter acordos para a compra de petróleo mexicano pelo Brasil. A sua atuação no Rio de Janeiro foi um êxito diplomático.

O que ficou dito mostra como combinou de maneira coerente o seu apreço pelos lados positivos do nosso país com a objetividade sem lisonja sobre a nossa realidade política e social, tudo temperado por uma simpatia calorosa, que nos desvanece, como a que se manifesta nas palavras finais do citado ensaio “Brasil en una Castaña”, escrito no fim de 1942:

“Y de todo ello resulta una hermosa y gran-de nación que nunca perdió la sonrisa ni la generosidad en medio del sufrimiento, ejemplar en un tiempo en el coraje y en la prudencia, orgullo de la raza humana, promesa de felicidad en los días aciagos que vivimos, fantástico espectáculo de hu-manidad y naturaleza, cuya contemplación obliga a repetir con Aquiles Tacio: ‘ojos míos, estamos vencidos”’.

Não se trata, é claro, de avaliação objeti-va, nem de análise histórica, mas vale como demonstração do generoso apreço desse grande mexicano pelo nosso país.

Chegado a este ponto, devo desculpar-me pela minha parcialidade, pois considerei apenas as relações com o Brasil de um sábio que foi, de maneira sempre excelente, poeta, narrador, filólogo, pensador, crítico, teórico da literatura. Na sua vasta obra, sempre tive maior contacto com a teoria e a crítica

literária, desde os dias da juventude em que li El Deslinde, uma das obras mais impor-tantes no assunto em escala internacional. No entanto, sendo o primeiro brasileiro a receber este prêmio, e tendo sido Alfonso Reyes um grande conhecedor e amigo do Brasil, pensei que seria justificada esta maneira de abordá-lo.

Senhoras e senhores: termino agrade-cendo mais uma vez à Comissão e mais uma vez manifestando a minha alegria por estar em vosso país, sob a égide de um dos vossos mais ilustres conterrâneos. E não saberia expressar melhor tudo isso do que citando as palavras de um amigo brasileiro de Alfonso Reyes, o grande crítico e líder católico Alceu Amoroso Lima, palavras que terminam o artigo por ele publicado em 24 de janeiro de 1960, sob a emoção da morte de seu amigo, evocando certa visita que lhe fizera em 1952 em sua casa na Cidade do México. Eu as lerei em tradução espanhola, para gravá-las mais facilmente na vossa recordação:

“Su gran salón estaba rodeado, a lo alto, por una galería a lo largo de los libros, que se expandía por un lado, permitiendo que el gran hombre trabajasse desde lo alto, dominando el salón inferior, donde se concentraban los vestigios de su periplo por el mundo. Alli era donde Brasil ocu-paba un lugar de relevancia. Guardaba de su pasaje y estadía por aquí un recuerdo conmovido y luminoso. Fueron años, dijo Alfonso Reyes, de profunda paz espiritu-al e intenso trabajo intelectual. Y para nosostros, de restablecimiento de lazos de amistad y comprensión con ese gran pueblo mexicano, cuya civilización es de una singularidad y de una importancia absoluta en el mundo moderno. Era una figura de proa la de ese gran desaparecido en el final tragico de 1959, y quedará para nosostros como el símbolo de la belleza, de la fuerza y del carácter inconfundible de esa proa de América Latina, como lo es México”.