Princípios de ordem projetual na obra de Vitrúvio

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    arquiteturarevista - Vol. 6, n 1:1-11 (janeiro/junho 2010)doi: 10.4013/arq.2010.61.01

    ISSN 1808-5741

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    Princpios de ordem projetual na obra deVitrvio

    Principles of projectual order in Vitruvius work

    Leandro [email protected] Feevale. Rodovia RS 239, 2755, 93352-000, Novo Hamburgo, RS, Brasil

    Resumo AbstractEste trabalho procura lanar um outro olhar sobre aobra de Vitrvio, autor romano responsvel pelomais antigo tratado a respeito de arquitetura quechegou aos nossos dias. Mais especificamente, esteartigo investiga os princpios de ordem projetual

    que regem o lanamento dos partidosarquitetnicos. Por intermdio do texto deAristteles, busca-se compreender os conceitos queposteriormente sero tratados pelo arquitetoromano. Estuda-se, tambm, a formao tericados arquitetos da poca, como forma decompreender o trnsito desses conceitos naconstruo do tratado, no sculo I a.C. Buscandoexemplificar os princpios analisados, querelacionam as partes de um projeto a partir dosconceitos de ordinatio e dispositio, apresenta-se oestudo dos partidos arquitetnicos para templos,tendo como base as definies contidas no tratadovitruviano. Procurando outra abordagem, introduz-

    se o conceito de matriz de partidos e discute-se suaaplicabilidade na concepo do partidoarquitetnico.

    This paper proposes another view to the work oVitruvius, the Roman author responsible for the mostancient treatise about architecture that came to our days.More specifically, the paper investigates the principles oprojectual order governing the architectural parties.

    Through the Aristotles text it is sought to understand theconcepts that will later be processed by this Romanarchitect. It is also studied the architects theoreticaltraining by that time in order to understand the transit othese concepts in the treatise construction on the firstcentury BC. Seeking to illustrate the principles discussed,that relate the parts of a project based on the concepts oordinatio and dispositio, it is presented the study oarchitectural parties to temples, based on the definitionscontained in the Vitruvian treatise. Looking for a differentapproach, it is introduced the concept of a matrix oparties, and it is discussed its applicability in the design oarchitectural party.

    Palavras-chave: ordem projetual, Vitrvio,partido arquitetnico.

    Key words: projectual order, Vitruvius, architecturalparty.

    Introduo

    A anlise e a avaliao da excelncia arquitetnica motivaram muitos estudos ao longo da histria da

    arquitetura. Desde o texto mais antigo da rea que hoje resta, o tratado de Vitrvio, a tentativa de

    estabelecer critrios balizadores para a produo qualificada uma constante, ou, por que no dizer, o

    prprio objetivo de toda produo terica que procura construir conceitos por meio de interpretaes que

    carregam em si um juzo de valor.

    Nesse percurso, de Vitrvio aos dias de hoje, a teoria a cerca da arquitetura produziu interpretaes

    bastante distintas em sua maneira operativa, desde o estabelecimento de cnones arquitetnicos

    fundamentados em um cientificismo exacerbado da rea, at posies relativistas ao extremo, segundo as

    quais qualquer tentativa de estabelecimento de critrios vista como uma reduo do campo do

    conhecimento. Nos dias de hoje, em que a viso relativista da rea bastante defendida, sob o argumento

    de que o avano tecnolgico e a viso transdisciplinar permitem aos arquitetos uma liberdade nunca antes

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    experimentada, o ensino de arquitetura, que construdo com base na crtica projetual, colocado em

    xeque.

    Buscando contribuir para esse tema, o trabalho prope a discusso da excelncia arquitetnica a partir do

    conceito de ordem, o qual entendido como o conjunto de princpios que mantm uma obra coesa. Esse

    conceito, construdo teoricamente a partir de Vitrvio e, posteriormente, por meio dos tratados doRenascimento, atravessou os anos como uma constante, atemporal e universal, muito provavelmente pela

    sua ligao intrnseca com a prpria arquitetura enquanto fenmeno humano. Sua presena em um projeto

    significa a compreenso de que arquitetura construda a partir de um sistema de relaes, que, como toda

    ao humana, diferentemente do meio natural, tem como base um regramento explcito e inteligvel.

    Uma definio de ordem

    Ao iniciar um estudo que trate de conceitos amplamente discutidos e bastante ampliados, como o conceito

    de ordem, se faz necessrio definir a abordagem que se procura. Nesse sentido, tm-se, de uma forma

    bastante simplificada, as definies trazidas nos dicionrios de lngua portuguesa. Tomando o Dicionrio

    Houaiss, o conceito de ordem que se busca est expresso em:

    1 relao inteligvel estabelecida entre uma pluralidade de elementos; organizao;estrutura 1.1 disposio, distribuio ou organizao metdica (de carter espacial,temporal, numrico, lgico, esttico, moral, etc.) [...] 1.2 boa arrumao, arranjoadequado, conveniente ou harmonioso [...] (Houaiss et al., 2001, p. 2076).

    A partir do sentido lato do conceito, amplia-se a busca por uma definio mais precisa e especfica pela

    abordagem de Abbagnano (2001, p. 730-732), para quem o conceito de ordem possui os seguintes

    significados na filosofia:

    [...] a O. consiste simplesmente na possibilidade de expressar com uma regra, ouseja, de maneira geral e constante, uma relao qualquer entre dois ou maisobjetos quaisquer. A noo de O., neste sentido, no se distingue da noo derelao constante.

    Como o objetivo o de analisar o conceito de ordem na obra de Vitrvio, a partir das definies acima,

    encontra-se na obra de Aristteles, a partir de uma indicao de Abbagnano (2001, p. 732) a respeito da

    sua importncia no estabelecimento do conceito de ordem pelo seu livro sobre a Metafsica, a ampliao

    desse conceito, que, como ser abordado a seguir, certamente influenciou tambm Vitrvio. Na obra, o

    autor grego busca as causas das coisas, ou seja, os seus princpios. No utiliza a palavra ordem

    propriamente, mas desenvolve diversos conceitos a respeito da relao entre as partes como causa das

    coisas, vindo, assim, ao encontro do que se busca definir como ordem.

    O livro iniciado com a clebre frase todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento

    (Aristteles, 2006, p. 43), na qual o autor exprime o sentido dos diversos textos que o compem, a busca

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    pelo conhecimento e pelos princpios de tudo que existe. A partir dessa afirmao, o autor traz uma

    discusso sobre a importncia das artes liberais e sua primazia sobre as artes manuais, estabelecendo uma

    escala de relevncia entre elas, a qual vai ser tambm abordada por Vitrvio no sentido de estabelecer a

    Arquitetura como arte liberal, ligada ao intelecto, e no meramente manual:

    A razo da presente discusso deve-se ao fato de supor-se geralmente que aquiloque chamado de sabedoria (metafsica) diz respeito s causas primeiras e aosprincpios, de maneira que, conforme j foi indicado, julga-se o homem daexperincia mais sbio do que os meros detentores de qualquer faculdade sensorial,o artista mais do que o homem da experincia, o mestre mais do que o arteso; eas cincias especulativas mais ligadas ao saber do que as produtivas. Assim, ficaclaro que a sabedoria conhecimento de certos princpios e causas (Aristteles,2006, p. 46).

    A partir dessa abordagem inicial, Aristteles (2006, p. 49) estabelece os quatro tipos de causas: a essncia,

    a matria, o princpio de movimento e a finalidade. A essncia est relacionada prpria natureza da coisa e

    poderia ser reduzida, segundo o autor, a sua frmula. A matria o substrato, enquanto o princpio demovimento a transformao desse substrato, a fora motriz da mudana. A finalidade, segundo ele, o

    final do processo, ao qual a transformao se destina.

    Visto que muitos autores gregos, segundo Aristteles, analisavam as questes de nmero como sendo a

    essncia das coisas, ele traz uma interessante discusso a respeito da relao entre nmero e essncia,

    contrapondo esse pensamento e se aproximando quilo que se procura como princpio de ordem projetual, o

    estabelecimento de uma relao definida entre as partes:

    Ademais, est claro que os nmeros no so a essncia das coisas, no sendo elestampouco causas da forma; com efeito, a relao a essncia, enquanto o numeroa matria. Por exemplo, a essncia da carne ou do osso somente numero nosentido de que trs partes de fogo e duas de terra. E o nmero, seja ele o que for, sempre um numero de alguma coisa, de partculas de fogo ou de terra, ou deunidades. Mas a essncia a proporo de uma quantidade relativamente outrada mistura, ou seja, no mais um nmero, mas uma relao da mistura denmeros, ou de partculas corpreas ou de qualquer outro tipo. A concluso que onmero no uma causa eficiente: nem o nmero em geral, nem aquilo queconsiste de unidades abstratas... nem ele matria, nem frmula ou forma dascoisas. Nem ele, tampouco, uma causa final (Aristteles, 2006, p. 360).

    A partir dessa anlise inicial do conceito de ordem como essncia ou princpio das coisas, busca-se

    estabelecer a relao entre esse pensamento e o texto de Vitrvio.

    Teoria e prtica: a formao de Vitrvio

    A ascenso da arquitetura das artes manuais para as artes liberais, certamente fundamentada nos textos de

    Alberti do sculo XV, j se fazia presente, em certa maneira, no texto de Vitrvio. No primeiro captulo, ele

    discorre largamente sobre a importncia da educao na formao de um arquiteto, e, em seguida, sobre opapel da teoria e sua relao com a prtica profissional. Assim diz Vitrvio:

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    O arquiteto deve estar equipado com o conhecimento de muitos ramos de estudo evariados tipos de aprendizagem, pois por seu juzo, que todo o trabalho realizadopor outras artes posto prova. Este conhecimento o filho de prtica e teoria.Prtica o exerccio contnuo e regular de aplicao, quando o trabalho manual feito com qual seja os material necessrio, de acordo com a concepo de umprojeto. Teoria, por outro lado, a capacidade de demonstrar e explicar asprodues de destreza baseados nos princpios da proporo. Daqui resulta,portanto, que arquitetos que visavam a obteno de habilidade manual, sem estudo,

    nunca foram capazes de chegar a uma posio de autoridade para corresponderaos seus anseios, enquanto aqueles que se basearam apenas nas teorias e estudoestiveram obviamente procurando uma sombra, no a substncia. Mas aqueles quetm um conhecimento profundo de ambas, como homens armados em todos ospontos, atingiram mais cedo o seu objeto e obtiveram autoridade com eles(Vitruvius, 1960, p. 5).

    A formao de um arquiteto no sculo I a.C., segundo Rowland (1999, p. 7), relatada na introduo da obra

    que acompanha sua traduo ilustrada de Vitrvio, estava baseada na educao Greco-Helenstica para as

    artes liberais intitulada enkyklios paidia. Tratava-se de uma formao generalista, a qual preparava para os

    estudos em Direito e Retrica destinados aos lderes da sociedade, assim como para estudos profissionais. O

    currculo desses estudos inclua as artes verbais (gramtica, retrica e dialtica) e os estudos matemticos

    (aritmtica, geometria, teoria musical e astronomia). Isso pode ser constatado no texto do tratado, ainda no

    captulo primeiro, no qual Vitrvio lista os conhecimentos necessrios para a formao de um arquiteto, os

    quais incluem desenho, geometria, tica, aritmtica, histria, filosofia, fsica, msica, medicina, direito e

    astronomia (Vitruvius, 1960, p. 6-13), e parte em defesa do estudo como condio indispensvel ao

    arquiteto:

    Assim, uma vez que este estudo to vasto e extenso, embelezado e enriquecido

    como com muitos tipos diferentes de aprendizagem, eu acredito que os homensno tm o direito de se professar propriamente arquitetos apressadamente, sem terascendido a partir da infncia os passos destes estudos e, assim, alimentados peloconhecimento de vrias artes e cincias, tendo alcanado as alturas do solosagrado da arquitetura (Vitruvius, 1960, p. 6-13).

    A partir desses trechos, percebe-se que Vitrvio de fato recebeu a formao liberal, e certamente conhecia

    os textos clssicos, os quais foram apresentados anteriormente. A partir dessa constatao que se pode

    construir a interpretao, descrita adiante, sobre os princpios da arquitetura presentes no tratado como

    sendo uma reinterpretao, ou adaptao, dos conceitos clssicos, ilustrados pelos textos de Aristteles,

    mas certamente presentes em outros autores gregos e romanos estudados por ele em sua formao liberal

    no sculo I a.C.

    Princpios de ordem no tratado vitruviano

    Em seu tratado, Vitrvio inicia a discusso a respeito da arquitetura pela formao do arquiteto, como j

    referido. Em seguida, estabelecido quem este profissional, Vitrvio elabora os princpios fundamentais

    desta arte, muito provavelmente retomando e embasando suas ideias no pensamento aristotlico aindainfluente no perodo de sua formao liberal. Segundo Vitrvio (1960, p.13), a arquitetura depende do

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    ordenamento (txis), disposio (diathesis), eurritmia, simetria, decoro e economia. Esses seis princpios

    podem ser chamados de causas da coisa arquitetnica.

    Tomando o texto de Aristteles como suporte para o entendimento da metodologia de projeto proposta por

    Vitrvio, pode-se estabelecer uma leitura da operacionalidade dos princpios elencados pelo arquiteto

    romano. Assim, a causa essencial que, segundo Aristteles (2006, p. 49), o porqu da coisa e pode serreduzida sua frmula, sendo entendida na obra vitruviana como o estabelecimento dos princpios formais

    que ordenam o partido arquitetnico, concebendo a ordem como sistema de relao entre as partes. Desta

    forma, a metodologia de projeto proposta por Vitrvio se inicia com o estabelecimento de mdulos e de sua

    quantidade em um esquema geomtrico e proporcional, o princpio de ordinatio descrito por Vitrvio (1960,

    p. 13), segundo o qual d a devida medida aos membros de um trabalho considerados separadamente, e

    concordncia simtrica s propores do todo, ou seja, a seleo de mdulos a partir dos membros de

    uma obra em si e, a partir dessas partes individuais dos membros, construir o todo da obra para que

    corresponda.

    A causa material, entendida como o substrato por Aristteles (2006, p. 49), pode ser relacionada matria

    da qual feita a arquitetura, tanto em sentido literal, ou seja, os materiais construtivos, ou, em sentido

    mais amplo, os elementos arquitetnicos (colunas, muros, salas). Estes, regidos pelas relaes formais

    ditadas pela essncia, ou ordinatio, so posicionados compondo o partido arquitetnico, o dispositio, que,

    como explica Vitrvio (1960, p. 49), consiste na colocao das coisas em seus devidos lugares e no efeito

    de elegncia o qual derivado dos ajustes apropriados ao carter da obra.

    O princpio de movimento que, segundo Aristteles (2006, p. 52), consiste nas transformaes que sofre o

    substrato, pode ser relacionado aos ajustes e adaptaes que o partido, ou os elementos isoladamente,

    sofrem para se adequarem realidade, materialidade, ao stio e aos demais condicionantes. Nesse sentido,

    pode-se relacion-lo com os princpios vitruvianos de eurritmia e simetria. O primeiro deles, o conceito de

    eurritmia, segundo Vitrvio (1960, p. 14), consiste na beleza e adequao no ajuste dos membros,

    estabelece os necessrios ajustes das partes para que sejam percebidas corretamente pelo olho humano (a

    ntase da coluna, por exemplo). J a simetria, que segundo Vitrvio (1960, p. 14), a concordncia

    apropriada entre os membros da prpria obra, e a relao entre as diferentes partes e o esquema geral do

    todo, de acordo com uma certa parte tomada como padro, estabelece as relaes proporcionais entre cada

    parte, retomando de certa forma o partido, porm corrigindo as propores de cada detalhe dos elementos e

    da ornamentao (colunas, frisos, trglifos, mtopas etc.) para que mantenham relaes matemticas entre

    si e para com o todo1.

    Por ltimo, a finalidade, que consiste na razo da coisa existir, seu objetivo final, ou seja, no caso da

    arquitetura, para que aquele objeto arquitetnico foi criado. E, nesse sentido, pode ser observada nas

    preocupaes de Vitrvio expressas nos conceitos de decoro e economia. O decoro, para Vitrvio (1960, p.

    14-16), a perfeio do estilo que advm quando uma obra est fundamentada com autoridade em

    princpios aprovados. Nasce da prescrio, do uso e da natureza. Dessa forma, o decoro responsvel por

    estabelecer a relao entre o partido e a ornamentao propostos com as finalidades da obra, que podem

    ser de ordem prescritiva, ou seja, as advindas das necessidades especficas do programa; de ordem

    1 O conceito de simetria como aqui explorado pode ser ampliado na leitura do captulo especfico sobre o tema na obra deTzonis e Lefaivre (1986).

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    consuetudinria, ou seja, relacionadas ao uso, aos costumes e aos requisitos de conforto das atividades a

    que se destina o projeto, assim como adequao de status da edificao a sua prpria destinao e ao seu

    proprietrio; ou de ordem natural, que trazem consigo as necessidades ambientais relacionadas ao stio

    inerentes a cada projeto. O conceito de economia, por sua vez, complementa estabelecendo a necessidade

    de se observar o correto emprego dos materiais e custos da obra (Vitruvius, 1960, p. 16).

    A partir dessa proposta de interpretao do mtodo de projeto vitruviano, baseada no pensamento

    aristotlico que, segundo Rowland (1999, p. 7-8), fez parte da formao terica do arquiteto romano, foca-

    se o estudo a partir deste ponto nos dois princpios primeiros, ordinatio e dispositio, isso devido ao objetivo

    do estudo de discutir os princpios de ordem no partido arquitetnico. Tal enfoque se fundamenta na

    interpretao acima exposta, a qual relaciona ambos os conceitos ao nascimento do partido arquitetnico,

    posio compartilhada por Rowland (1999, p. 149), para quem:

    Tomados juntos ordinatio e dispositio soam notavelmente como o conceito departido, o qual se tornou familiar aos projetistas do sculo XX atravs de sua

    herana da tradio de projeto da Ecole de Beaux-Arts do final do sculo XIX. [...]em Vitrvio a ideia tende a ser mais simples, e aparentemente pensado como umgrid modular (embora no necessariamente confinado rigidamente a isso).

    Na anlise individual dos conceitos, Rowland (1999) diz que ordinatio (txis) constitui-se no estabelecimento

    com um sistema geomtrico inicial que controlar o projeto, normalmente constitudo a partir de um nmero

    definido de mdulos proporcionais. Dispositio (diathesis), por sua vez, constitui-se na colocao das partes

    sobre o esquema geomtrico, na transposio do abstrato para o figurativo em termos arquitetnicos.

    Ainda sobre o tema, Tzonis e Lefaivre (1986) propem uma interpretao de ordem na arquitetura clssica

    como um sistema formal composto pela txis, do grego, o mesmo que ordinatio, entendida como a diviso

    das partes em um esquema geomtrico e modular; pela genera, que trata das caractersticas formais dessas

    partes; e pela simetria, a qual estabelece a relao proporcional entre elas. A compreenso sistmica

    apresentada bastante similar quela discutida, porm difere na abordagem rgida proposta por Tzonis e

    Lefaivre (1986), principalmente em seu entendimento a respeito da txis como um esquema composto a

    partir de partes tripartidas, e que minimiza a viso sistmica a uma regra.

    Assim, a partir dos estudos acima descritos, o presente trabalho se prope a expandir e testar a hiptese de

    que os conceitos de ordinatio e dispositio so os geradores dos partidos arquitetnicos. Nesse sentido,

    busca-se no tratado os fundamentos para o entendimento desses conceitos e prope-se que o esquema de

    ordem projetual pode ser observado na maneira como Vitrvio classifica os edifcios, tanto por aspectos de

    ordenamento como de disposio, que so apresentados no tratado como um elenco de solues

    fundamentadas na ampla experincia prtica do autor, no se constituindo, explicitamente, em uma

    tentativa de ampliao dos conceitos como os abordados neste artigo.

    Assim, o ordenamento, entendido como um comprometimento inicial com um esquema geral do projeto,

    pode ser exemplificado no captulo que trata da classificao dos templos. Nele, Vitrvio (1960, p. 75-78)

    estabelece as sete configuraes bsicas de templos, por meio da relao de nmero entre a cela e as

    colunas, sendo elas:

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    Templo in Antis, no qual a cela apresenta a face frontal vazada com a colocao de duas colunas(distilo);

    Templo Prstilo, no qual so colocadas quatro colunas em frente fachada principal da cela(tetrstilo);

    Templo Anfiprstilo, no qual so colocadas quatro colunas em frente s fachadas frontal e posteriorda cela (tetrstilo);

    Templo Perptero, no qual a cela cercada por uma fileira de colunas em todas as fachadas,mantendo uma circulao entre elas, sendo seis colunas nas fachadas frontal e posterior (hexstilo)

    e 11 nas laterais;

    Templo Pseudodptero, no qual a cela cercada por uma fileira de colunas em todas as fachadas,mantendo uma circulao de largura dupla entre elas, sendo oito colunas nas fachadas frontal e

    posterior (octstilo) e 15 nas laterais;

    Templo Dptero, no qual a cela cercada por uma fileira dupla de colunas em todas as fachadas,mantendo circulaes entre elas, sendo oito colunas nas fachadas frontal e posterior (octstilo) e 15nas laterais;

    Templo Hipaetral, no qual a cela cercada por uma fileira dupla de colunas em todas as fachadas,mantendo circulaes entre elas, sendo 10 colunas nas fachadas frontal e posterior (decstilo) e 19

    nas laterais.

    A partir das sete classificaes iniciais, Vitrvio (1960, p. 78-86) estabelece as cinco classes dos templos em

    relao ao intercolnio, isto , a posio dos elementos, que podem ser:

    Templo Picnstilo, no qual o intercolnio de uma vez e meia o dimetro das colunas; Templo Sstilo, no qual o intercolnio de duas vezes o dimetro das colunas; Tempo ustilo, no qual o intercolnio de duas vezes e um quarto o dimetro das colunas em todos

    os intervalos, com exceo do vo central das fachadas frontal e posterior, no qual o intercolnio

    de trs vezes o dimetro das colunas;

    Templo Distilo, no qual o intercolnio de trs vezes o dimetro das colunas; Templo Araestilo, no qual o intercolnio maior que trs vezes o dimetro das colunas.

    A combinao de nmero e posio dos elementos gera uma matriz de possibilidades, isto , de partidos

    arquitetnicos. A matriz compositiva de templos, por exemplo, pode ser gerada a partir da configurao

    bsica existente na relao entre cela e colunas. De um lado, tem-se o conceito de ordinatio, que estabelece

    o nmero de elementos, no caso especfico, o nmero de colunas associadas a cada cela. De outro, tem-se o

    intercolnio, que regra o afastamento dessas colunas, e, a partir disso, de todos os demais elementos,

    caracterizando o que est descrito no tratado como dispositio, ou seja, posio (Figura 1).

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    Figura 1. Matriz gerada a partir do nmero e posio dos elementos.Figure 1. Matrix generated from the number and position of elements.

    A escolha do partido a ser adotado na materializao do projeto, dentre as possibilidades da matriz, segueos critrios da trade vitruviana, que afirma que tudo deve ser construdo na observncia da durabilidade,

    da convenincia e da beleza (Vitruvius, 1960, p. 17), ou, como mais conhecida no original latino,

    firmitatis, utilitatis, venustatis (Vitruvius, 1931, p. 34). Dessa forma, a adoo de um partido em

    detrimento de outro deve estar fundamentada no correto uso dos materiais, observando seus limites de

    resistncia e durabilidade; na adequao da edificao ao seu uso e no correto dimensionamento dos

    elementos, assim como na adequao do status da edificao, retomando o conceito de decoro; e na beleza,

    que ser assegurada, segundo Vitrvio (1906, p. 17), quando a aparncia da obra agradvel e de bom

    gosto, e quando os seus membros estiverem na devida proporo de acordo com os corretos princpios da

    simetria.

    Aplicando os critrios de qualidade da trade ao conceito de matriz, pode-se fazer a leitura de direes

    prioritrias dentro do quadro que induz a tomada de deciso conforme um critrio especfico. Ao tomar-se o

    eixo vertical da matriz, por exemplo, tem-se um crescimento em conforto dos usurios, com a adoo de

    prticos e percursos cobertos externos, alm do aumento da proporo da cela, que traz consigo um

    incremento na imponncia do projeto. Esse crescimento limitado pelas questes construtivas, pois,

    segundo o autor, os templos Hipaetrais no permitem a cobertura da cela em funo do grande vo gerado

    internamente. Assim, identifica-se que a faixa de maior conforto aos usurios, relacionada ao conceito de

    convenincia, est localizada nas linhas 4 a 6 da matriz (Figura 2).

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    Figura 2. Matriz enfatizando as caractersticas de conforto dos usurios e imponncia do conjunto.Figure 2. Matrix emphasizing the characteristics of users' comfort and grandeur of the whole.

    O eixo horizontal, por sua vez, leva a um crescimento do vo do intercolnio. Nos partidos listados nas duas

    primeiras colunas da matriz (picnstilo e sstilo), com intercolnios pequenos, o autor relata a dificuldade de

    acesso e o encobrimento das portas ocasionado pela proximidade das colunas que, segundo ele, no

    permitem a passagem de mais de uma pessoa por vez quando nessa configurao. Os vos maiores, como

    os da quarta coluna (distilo), representam um risco estrutural para as arquitraves em pedra, sendo

    desaconselhados pelo autor. Contudo, os templos da quinta coluna (araestilo) somente podem ser

    edificados com vigas em madeira, comprometendo, assim, sua durabilidade. Assim, em termos de tcnica

    construtiva, relacionada ao conceito de durabilidade, os partidos da terceira coluna so os mais indicados

    (Figura 3).

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    Princpios de ordem projetual na obra de VitrvioLeandro Manenti

    arquiteturarevista - Vol. 6, n 1:1-11 (janeiro/junho 2010)

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    Figura 3. Matriz enfatizando o aumento do vo estrutural e suas consequncias.Figure 3. Matrix emphasizing the increased structural range and its consequences.

    Essa anlise matricial mltipla, pois cada linha ou coluna da matriz tem suas limitaes e vantagens

    conforme o critrio adotado. Dessa forma, permite que, a cada determinado projeto, o arquiteto escolha opartido mais adequado conforme os condicionantes e demais exigncias do stio, da finalidade, do decoro e

    da economia.

    Consideraes finais

    A arquitetura clssica dominou o mundo ocidental por pelo menos quinhentos anos e, mesmo que j tenha

    sido ultrapassada, ainda hoje merece ser estudada, pois apresenta uma srie de princpios que podem

    ajudar na qualificao da arquitetura atual. O estudo a respeito dos verdadeiros valores dessa arquitetura

    pode, inclusive, ajudar a afastar as reinterpretaes equivocadas de alguns revivals que se observam pelas

    cidades nos dias de hoje.

    Muitos dos princpios projetuais, como o de coeso ou ordenamento de projeto, abordados aqui, podem ser

    retomados, pois, na verdade, se tratam de princpios fundamentais a toda obra humana. Assim, o estudo de

    Vitrvio toma novo flego, no mais sob o aspecto historicista, mas como exerccio de compreenso

    projetual e especulao terica.

    Nesse sentido, o trabalho se props a remontar a lgica projetual vitruviana sob outro ponto de vista,

    introduzindo o conceito de matrizes como forma de compreender as diversas possibilidades de montagem de

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    partidos arquitetnicos apresentadas pelo autor romano. A metodologia de projeto construda por Vitrvio,

    fundamentada sobre os princpios de ordenamento, disposio, eurritmia, simetria, decoro e economia, gera,

    ao se tomarem os dois primeiros princpios (ordinatio e dispositio), um espectro de partidos arquitetnicos

    possveis, que podem ser agrupados na forma de uma matriz. Apresentados desta forma grfica, possvel

    identificar direes, ou sentidos, de tomada de deciso projetual, seguindo os requisitos funcionais,

    construtivos e estticos estabelecidos pelo autor em seu tratado.

    A partir dessa montagem matricial, fica claro o entendimento de que um partido arquitetnico constitudo

    por um sistema integrado de tomada de decises, no qual um critrio afeta todos os demais, e isso exprime

    a contemporaneidade desse estudo. A matriz demonstra, tambm, a elasticidade de um mesmo partido, que

    pode ser usado em diversas situaes e escalas, bem como seus limites, como, por exemplo, as restries

    impostas pelo sistema construtivo ou pela resistncia dos materiais.

    Alm da referida viso sistmica, outra compreenso fundamental a qual se pode abstrair da releitura de

    Vitrvio a de que a razo que leva adoo de uma determinada soluo deve ter como base critriosclaramente estabelecidos. Tais critrios, no caso especfico de Vitrvio, esto contidos nos desdobramentos

    da chamada trade firmitatis, utilitatis e venustatis. A existncia desses critrios, construdos terica e

    praticamente a partir da tecnologia construtiva existente, dos costumes das pessoas de sua poca e da

    tradio arquitetnica, traz consistncia teoria proposta por Vitrvio.

    No momento atual da arquitetura, no qual se verifica uma relativizao dos critrios de excelncia em troca

    de uma suposta liberdade projetual, se faz providencial a retomada da tradio terica arquitetnica. Isso

    significa, justamente, a retomada da discusso crtica com vistas construo de critrios contemporneos

    que balizem a arquitetura produzida em nosso sculo.

    Referncias

    ABBAGNANO, N. 2001. Dicionrio de filosofia. 4 ed., So Paulo, Martins Fontes, 1014 p.

    ARISTTELES. 2006. Metafsica. So Paulo, Edipro, 364 p.

    HOUAISS, A.; VILLAR, M.; FRANCO, F.M. de M. 2001. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Rio deJaneiro, Objetiva, 2922 p.

    ROWLAND, I.D. 1999. Vitruvius, Ten Books on Architecture. New York, Cambridge University Press, 334 p.TZONIS, A.; LEFAIVRE, L. 1986. Classical Architecture: The Poetics of Order. New York, MIT Press, 306 p.

    VITRUVIUS. 1960. The ten books on architecture. New York, Dover, 332 p.

    VITRUVIUS. 1931. On Architecture: Books 1-5. Cambridge, Harvard University Press, 330 p.

    Submetido em: 22/02/2010

    Aceito em: 18/04/2010