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DIRETORIA LEGISLATIVA SEÇÃO DE ASSESSORAMENTO TEMÁTICO NOTA TÉCNICA Nº 046 “Privatização” do sistema prisional: trata-se da solução para o problema? Elaborada pelo Analista/Pesquisador Legislativo, Ari Martins Alves Filho. Revisada e aprovada pelo Chefe do Ass. Temático, João Pecin. Goiânia, março de 2015.

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DIRETORIA LEGISLATIVA SEÇÃO DE ASSESSORAMENTO TEMÁTICO

NOTA TÉCNICA Nº 046

“Privatização” do sistema prisional: trata-se da solução

para o problema?

Elaborada pelo Analista/Pesquisador Legislativo, Ari Martins Alves Filho. Revisada e aprovada pelo Chefe do Ass. Temático, João Pecin.

Goiânia, março de 2015.

Assessoramento Temático Ari Martins Alves Filho

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SUMÁRIO

1) Considerações iniciais. 1.1) Notas preliminares. 1.2) Breves anotações. 2) Da

natureza jurídica da execução penal. 3) Da (im)possibilidade de delegação do poder de

polícia ao particular no direito brasileiro. 4) Da concessão pública da administração de

presídios: as parcerias público-privadas. 5) Da observância necessária dos direitos

fundamentais em qualquer que seja o modelo de gestão prisional adotado no Brasil. 6)

Considerações finais. 6.1) Anotações de fecho. 6.2) Sugestões. 7) Lista de siglas. 8)

Fontes de pesquisa.

1) Considerações iniciais

1.1) Notas Preliminares

Solicitou-nos a Deputada Estadual Delegada Adriana Accorsi, através de sua

Assessora Parlamentar Senhora Nara Gomes Borges, via Memorando n.

001/2015/DAA, a realização de estudo sobre o tema Privatização do Sistema

Penitenciário, especificamente no que tange aos modelos prisionais norte-americano e

europeu, bem como as diversas experiências existentes em território nacional.

Solicitou-nos, ainda, em síntese, estudo comparado entre o modelo comum e o

privatizado de sistema penitenciário, mapeamentos teóricos e estatísticos, além de

análise específica, a título de referência, de experiências localizadas no Estado de

Minas Gerais sobre o assunto.

Ainda que o estudo solicitado seja de abrangência demasiado larga, pelo que

escapa às possibilidades de pesquisa legislativa deste Assessoramento Temático, - vez

que sua realização exigiria pesquisa de campo e acesso a fontes secundárias a nós

circunstancialmente de difícil acesso -, apresentamos esta nota técnica à apreciação da

eminente parlamentar como resposta à solicitação. Tal se faz com o propósito de

contribuir para o melhor aperfeiçoamento da vontade legislativa da ilustre

parlamentar em eventual proposição legislativa que venha a tramitar nesta Casa

envolvendo tal temática.

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Assim, para a realização do quanto indicado acima, ainda que sem responder a

toda sua extensão, - em razão das limitações já aqui anotadas -, apresentamos, nos

itens que se seguem, alguns dos elementos que, em nosso entender, devem ser

analisados em eventual “privatização do sistema penitenciário” em Goiás (expressão

equívoca como se verá adiante).

De tal sorte, com mais este trabalho, esperamos contribuir para o

aperfeiçoamento da vontade legislativa no âmbito desta Casa, ao tempo em que

buscamos cumprir a missão institucional conferida a este Assessoramento Temático,

consistente em zelar pelo maior e melhor acerto das proposições legislativas que

tramitam ou venham a tramitar neste Poder, conforme art. 13, §4º, da Resolução

Alego nº 1.007/1999, c/c art. 46, da Resolução Alego nº 1.218/2007 (Regimento

Interno).

1.2) Breves anotações

É fato público e notório, pelo que independente de prova (art. 334, I, do CPC),

que, no geral, o sistema prisional brasileiro está falido. Em tal realidade, a pena

privativa de liberdade deixa de cumprir suas funções.

No sentido acima, o STF (HC 97.256) denomina de polifuncionalidade da pena a

tríplice finalidade que esta sanção deve cumprir, qual seja: retribuir, ressocializar e

prevenir. Assim, de um lado, a retribuição consistiria na punição propriamente dita

àquele que transgrediu a norma penal. De outro lado, a ressocialização implicaria em

preparar o preso para o retorno harmônico ao convívio social. Por fim, a prevenção

resultaria em inibir a atividade criminosa, seja por parte do próprio preso, que, sob

custódia estatal, ficaria afastado do crime; seja por parte de outros cidadãos, que, pelo

exemplo da reprimenda alheia, seria desencorajado ao ilícito penal.

Contudo, no atual contexto de falência do sistema prisional brasileiro, no geral,

a pena privativa de liberdade não ressocializa, não previne e sequer retribui. Isto

porque a falência do sistema faz dele verdadeira “escola do crime”, sem preparar o

condenado para o retorno harmônico à vida em sociedade, pelo que não ressocializa e,

ao contrário, produz efeito criminógeno. Também não estanca a atividade criminosa

dos presos, que continuam a delinquir mesmo de dentro dos presídios, espaços que

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passaram a funcionar como verdadeiros escritórios da criminalidade organizada, não

cumprindo, assim, sua função de prevenção. E, por fim, também não cumpre nem

mesmo sua função de retribuição, na medida em que, por ser a pena resposta estatal

que se faz no ambiente do estado democrático de direito, e não ato estatal de

vingança, os próprios direitos fundamentais dos presos são flagrantemente

desrespeitados pelas condições também de falência das instalações dos locais de

cumprimento de pena, transformados, não raro, em áreas tão física e organicamente

degradadas que mais se assemelham às vetustas masmorras.

No cenário acima, se a pena, pela falência do sistema, não cumpre suas

funções, a própria condenação, ou seja, a aplicação da lei, entra em colapso, na

medida em que esta não se constitui como uma majestade em si mesma, mas, sim,

mecanismo de harmonização social, de coesão comunitária e continuidade da vida

coletiva. Nesse sentido, pensar alternativas que busquem enfrentar o gravíssimo

problema do sistema prisional brasileiro é medida que se impõe.

Dentre tais medidas de enfrentamento do problema, nas pegadas da presente

solicitação, muito propalada é a denominada “privatização do sistema penitenciário”.

Tal medida desperta reações, frequentemente, polarizadas. Assim, de um lado, há

aqueles a enxergar que o interesse econômico, característico dos agentes privados,

macularia, definitiva e aprioristicamente, qualquer forma de participação da livre

iniciativa no sistema prisional, pelo que pensar sua gestão com a participação daqueles

agentes seria empreendimento natimorto. De outro lado, há ainda aqueles que,

facilmente, veem na participação da iniciativa privada a solução para todos os

problemas.

Longe das reações polarizadas acima noticiadas, buscamos apresentar nos itens

seguintes alguns dos elementos que, a nosso juízo, dentre outros tantos, devem ser

testados em qualquer proposta que, eventualmente, objetive levar a iniciativa privada

a participar da gestão do sistema prisional brasileiro e goiano. Para tanto,

estruturamos esta nota técnica conforme abaixo.

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2) Da natureza jurídica da execução penal

Não se pode pensar o sistema prisional divorciado de seu contexto maior, que é

o da execução penal. Isto porque o direito penitenciário é um ramo do direito de

execução penal (Andreucci, 2013, p. 301), e em harmonia com este deve ser tratado.

Assim, ainda que o direito penitenciário tenha por objeto cuidar de assuntos

afetos à esfera carcerária, seu manejo deve ser realizado em sintonia com a execução

penal, na medida em que o cárcere é mero espaço de concretização da pena privativa

de liberdade e, por isso mesmo, deve observar toda a principiologia e regras típicas da

execução penal.

No sentido acima, é de fundamental importância arguir a natureza jurídica da

execução penal, o que, inevitavelmente, traz consequências para a administração

carcerária, seja ela operada pela iniciativa privada e/ou pelo poder público. Em tal

contexto, razão assiste, em nosso entender, a Andreucci (2013, pp. 301-302) para

quem a execução penal tem natureza jurídica mista, porque resultante de uma

dimensão jurisdicional e outra administrativa (ainda que sempre seja assegurado o

acesso ao Judiciário como garantia de todo cidadão).

Para exemplificar o quanto anotado antes, de um lado, há disposições na seara

da execução penal que se efetivam por mero ato administrativo do diretor do

estabelecimento prisional, a exemplo da permissão de saída do preso, prevista no art.

120 da Lei 7.210/84 (LEP). De outro lado, vasta é a participação do Judiciário na

execução penal, a exemplo, dentre tantos outros, da saída temporária do preso,

prevista no art. 122 da mesma Lei.

Pelo exposto, ainda que se queira delegar parcelas da gestão prisional à livre

iniciativa, o Poder Público, - via Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública -,

continuará a ter parcela inafastável de competências e atribuições a exercer na seara

da execução penal. Isto seja por determinação legal, conforme exemplo acima visto;

seja por determinação constitucional, por tratar-se a efetivação das disposições da

sentença (execução penal) de manifestação do direito de punir do Estado, ato de

jurisdição indelegável e inafastável (art. 2º c/c art. 5º, XXXV, LIII e LIV, art. 127 da

CF/88).

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Portanto, qualquer que seja a forma de administração prisional no Brasil, não

há que se pensar, em qualquer hipótese, o afastamento da participação do Poder

Público na seara da execução penal, dado tratar-se, em larga medida, de atividade

exclusiva de estado. Entretanto, dúvidas podem pairar acerca da dimensão

administrativa que, como antes visto, também compõe a execução penal. Assim,

pergunta-se: a dimensão administrativa seria delegável à administração privada em

eventual operação do sistema prisional pela livre iniciativa? A resposta a tal questão

constrói-se no item abaixo.

3) Da (im)possibilidade de delegação do poder de polícia ao particular no direito

brasileiro

Sem adentrar à distinção doutrinária entre poder de polícia originário e poder

de polícia delegado, inoportuna para os fins deste trabalho, o poder de polícia

caracteriza-se como manifestação estatal incidente, no geral, sobre a liberdade e a

propriedade dos cidadãos. Nesse sentido, a interpretação autêntica dada pelo art. 78

do CTN define o instituto nos seguintes termos:

Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Assim, caracterizam-se como exercício do poder de polícia inúmeros atos

administrativos praticados no ambiente da execução penal, notadamente aqueles

atribuídos ao diretor do estabelecimento prisional. Desta forma, a questão antes

colocada agora pode ser formulada de outra maneira: pode o poder de polícia ser

delegado a particulares?

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Abalizada e reiterada doutrina, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Melo e

José dos Santos Carvalho Filho, não admite, em regra, a delegação do poder de polícia

a particulares. Entretanto, essa mesma doutrina admite que sejam delegados a

particulares atos materiais inerentes ao desempenho do poder de polícia, ou seja,

aqueles atos acessórios ou instrumentais ao seu exercício. É dizer que não se admite a

delegação dos atos jurídicos afetos ao poder de polícia, mas, sim, as atividades

materiais necessárias à sua concretização.

No sentido acima, a título de exemplo, aqui aproveitável como analogia,

podemos citar o caso das multas de trânsito. Naquela seara, veda-se a delegação dos

atos jurídicos constitutivos das multas, que são a manifestação do poder de polícia por

excelência na hipótese. Mas admite-se a delegação, a particulares, da operação dos

radares responsáveis por capturar as infrações de trânsito, que são os atos materiais

precedentes a tais atos jurídicos constitutivos. Nesse sentido também vem se

estabilizando a jurisprudência do STJ, a exemplo dos seguintes julgados: RESP 817.534

e 880.549.

Assim, mudando o que deve ser mudado, mas trazendo tal inteligência ao

objeto desta nota técnica, dado ser lugar comum a compreensão quanto à correção de

se aplicar o mesmo entendimento onde há a mesma razão, nosso ponto pode assim

ser sistematizado:

a) há, inequivocamente, na execução penal brasileira, uma parcela de

atividades exclusivas de estado, portanto, indelegáveis, notadamente aquelas

exercidas pelo Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública (dimensão

jurisdicional da execução penal);

b) de igual forma, também na dimensão administrativa da execução penal,

sobretudo no que toca a benefícios e a sanções, há atos indelegáveis aos particulares,

aqueles a serem praticados por autoridade administrativa (v.g., diretor do

estabelecimento prisional), a exemplo da inclusão em RDD preventivo (art. 60, da Lei

7.210/84), sanção por indisciplina carcerária (artigos 47 e 48, da mesma Lei), restrição

de alguns dos direitos do preso (art. 41, parágrafo único, da mesma Lei), concessão de

permissão de saída do preso (art. 120, parágrafo único, da mesma Lei), etc.;

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c) há também, lado outro, a nosso juízo, atos materiais, ou seja, atos

instrumentais ou acessórios ao exercício do poder de polícia com vistas à execução

penal, passíveis de delegação, quais sejam: os serviços de assistência material (artigos

12 e 13), assistência à saúde (artigo 14), assistência educacional (arts. 18-21), social

(artigos 22 e 23), religiosa (artigo 24) e de assistência ao egresso (arts. 25-27), todos

previstos na Lei 7.210/84. Também nesse rol de atos instrumentais à execução penal

insere-se, em nosso entender, construções, manutenções, limpezas, serviços de

alojamento e vigilância interna de estabelecimentos prisionais, visto se caracterizarem,

em sua realização, como meros atos viabilizadores da execução penal, e não atos que

exijam a formação ou aplicação da vontade estatal, pelo que indelegáveis, a exemplo

da concessão de recompensas (art. 56 da Lei 7.210/84) ou da imposição de sanções

por indisciplina carcerária (art. 53 da Lei 7.210/84).

Portanto, do exposto, ao menos para o caso brasileiro, apreende-se o quanto

equívoca é a expressão “privatização do sistema penitenciário”, na medida em que ela

mais oculta do que revela o conteúdo que pretende significar. Isto porque, - ainda que

seja extenso o rol de atos materiais que, a nosso juízo, são passíveis de delegação à

livre iniciativa no âmbito do sistema prisional -, há, nesta seara, uma série de

atividades indelegáveis, seja por tratarem de atividade exclusiva de estado, seja por

tratarem do exercício propriamente dito do poder de polícia.

Mais equívoca torna-se ainda a expressão “privatização do sistema

penitenciário” quando se constata que, no direito brasileiro, a possibilidade de

participação da livre iniciativa na seara do sistema prisional resume-se a algumas

possibilidades de delegação de serviços, conforme rol antes anotado. Não se trata,

assim, de outorga, ou seja, de transferência de titularidade, mas mera transferência de

execução de serviços, o que, a partir do entendimento aqui sustentado, pode ser

objeto de parcial delegação (atos materiais) a ser viabilizada pela via de distintos

instrumentos do direito administrativo, a exemplo das parcerias público-privadas,

conforme desenvolvemos no item seguinte.

Antes do próximo item, porém, uma breve anotação acerca dos chamados

“modelos norte-americano e europeu”, à luz do quanto apresentado neste item.

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De um lado, ainda que extremamente precárias as informações a que tivemos

acesso acerca do chamado “modelo prisional norte-americano”, sobretudo em razão

da pluralidade de experiências neste campo naquele país, - dado seu arranjo

federativo de larga autonomia dos estados-membros -, uma breve anotação é possível

aqui ser feita, sobretudo a partir do quanto desenvolvido neste item, conforme abaixo.

Seguramente em razão da própria tradição jurídica dos Estados Unidos,

diferente da brasileira, o modelo prisional daquele país, no que toca a participação da

livre iniciativa, se não implica em uma delegação alargada da execução penal, ou

mesmo uma quase outorga, parece implicar em delegações ao particular incompatíveis

com o direito brasileiro, nos termos aqui apresentados, na medida em que faculta à

iniciativa privada, no âmbito do sistema prisional, a prática de atos tidos no direito

brasileiro como indelegáveis.

De outro lado, o “modelo prisional europeu”, sobretudo o francês, o mais

citado pela doutrina pátria (até onde conhecemos), - seguramente pela tradição

jurídica mais afinada com a nossa -, parece buscar construir uma forma de convivência

entre a iniciativa privada e as funções estatais também por lá tidas como indelegáveis.

Seria um modelo de harmonização muito próximo, a nosso juízo, do que nesta nota

técnica entendemos como sendo escorreito no direito brasileiro, qual seja: aos

particulares seria possível delegar atos materiais afetos à execução penal, no que toca

ao sistema prisional, restando preservada a indelegabilidade de atos jurídicos do Poder

Público, sejam aqueles decorrentes das atividades exclusivas de estado, sejam aqueles

decorrentes do exercício do poder de polícia propriamente dito.

No sentido acima, no modelo francês, por exemplo, o Estado indica o diretor do

estabelecimento prisional, que, como autoridade administrativa, exercerá as funções

indelegáveis da execução penal, e o particular (pessoa jurídica) promove os serviços de

limpeza, alimentação, alojamento, faz a gestão dos trabalhos dos presos, etc.

Por todo o exposto neste item, qualquer proposta que, em Goiás, vise a alargar

a participação da livre iniciativa no sistema prisional do Estado, a ela buscando delegar

alguma gestão prisional, deve respeitar os atos indelegáveis na execução penal,

conforme aqui apontado.

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4) Da concessão pública da administração de presídios: as parcerias público-privadas

Vencida a análise acerca da natureza jurídica da execução penal, - elemento

importante para a melhor compreensão da sua efetivação -, e investigado, a partir da

sua natureza, quais são as partes nela delegáveis no que se refere ao sistema prisional,

cumpre-nos agora recuperar uma das formas de, a nosso juízo, viabilizar maior

participação da livre iniciativa no sistema prisional brasileiro, qual seja: a concessão

pública pela via das parcerias público-privadas.

Antes, porém, observa-se que anotamos a expressão viabilizar maior

participação da livre iniciativa no sistema prisional brasileiro, porque, a rigor, ela já

participa por outras figuras de direito administrativo, seja quando o Poder Público, por

exemplo, contrata a alimentação para oferecer aos presos ou quando contrata a

construção de unidades prisionais, a exemplo de diversificadas experiências de estados

brasileiros nesse campo.

Assim, com a ressalva de que não buscamos nesta nota técnica estudo

específico do instituto em tela, - o que pode ser encontrado em outro trabalho deste

Assessoramento Temático, disponível para consulta pública neste endereço eletrônico:

http://al.go.leg.br/arquivos/asstematico/Nota_Tecnica_PPP.pdf -, recuperamos o

conceito de Maria Sylvia Zanella Di Pietro que define parceria público-privada como

sendo

(...) o contrato administrativo de concessão que tem por objeto (a) a execução de serviço público, precedida ou não de obra pública, remunerada mediante tarifa paga pelo usuário e contraprestação pecuniária do parceiro público, ou (b) a prestação de serviço de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, com ou sem execução de obra e fornecimento e instalação de bens, mediante contraprestação. (Di Pietro, 2005, p. 308)

Previsto na Lei Nacional 11.079/04 e na Lei Estadual 14.910/04, o instituto em

comento, acima conceituado, foi criado com o propósito de estimular a iniciativa

privada a colaborar com o setor público na realização de investimentos de significativo

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valor pecuniário e de relevante importância para o desenvolvimento do Estado e para

o bem-estar coletivo.

Sua utilização na concessão de estabelecimentos penais (penitenciárias,

colônias penais e casas de albergado) à gestão privada ainda é tímida e tem como

experiência primeira no Brasil o complexo penal de Ribeirão das Neves, em Minas

Gerais, inaugurado no ainda muito recente ano de 2013.

A citada experiência mineira realiza-se, em síntese, da seguinte forma: de um

lado, o parceiro privado é o responsável pela construção e manutenção de todo o

complexo penal, que prevê a disponibilização de aproximadamente 3.000 (três mil)

vagas. É ainda responsável pela prestação de serviços como saúde, educação,

recreação, alojamento, assistência jurídica, alimentação, etc. De outro lado, o diretor

do complexo, responsável por atividades administrativas indelegáveis ao parceiro

privado, é um agente de Estado designado pelo Poder Público. Por fim, a remuneração

do parceiro privado ocorre pelo Poder Público, periodicamente, mediante pagamentos

por cada preso.

Mais informações sobre a experiência acima noticiada, - tais como minutas de

contrato e edital, indicadores de desempenho e valores -, podem ser encontradas no

seguinte endereço eletrônico na internet: http://www.ppp.mg.gov.br/sobre/projetos-

de-ppp-concluidos/ppp-complexo-penal.

Portanto, no Brasil, a concessão de estabelecimentos penais à iniciativa

privada, ressalvados os atos indelegáveis, passa por transferir ao parceiro privado a

gestão material dos estabelecimentos penais, sem retirar do Estado, contudo, o

exercício de suas atividades exclusivas e de seu poder de polícia, além, por óbvio, de

sua função fiscalizatória, presente em toda forma de delegação.

Assim, à exceção da delegação dos serviços de assistência jurídica previsto na

experiência mineira, - que, a nosso juízo, insere-se no rol de atividade exclusiva de

estado, a ser desempenhada pela Defensoria Pública, portanto, indelegável ao

particular -, o modelo de parceria público-privada desenvolvido naquele ente

federativo parece afinar-se, em boa medida, com o que sustentado como escorreito

no parágrafo acima.

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Antes, porém, do fecho deste item, um breve comentário acerca da

necessidade, ou não, de autorização legislativa para a realização de concessões, o que

encerra interesse parlamentar direto.

As parcerias público-privadas, ainda que com algumas características

diferenciadas, são um tipo de concessão. Por isso, sobre elas, no que couber, incidem

as regras gerais de tal instituto, notadamente aquelas previstas nas Leis Nacionais

8.987/95 e 9.074/95. Assim, este último diploma normativo, em seu art. 2º, conforme

colação abaixo, estabelece que as concessões devem ser objeto de autorização

legislativa prévia, o que é objeto de forte celeuma, opondo, de um lado,

jurisprudência, e, de outro, doutrina.

Art. 2o É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios executarem obras e serviços públicos por meio de concessão e permissão de serviço público, sem lei que lhes autorize e fixe os termos, dispensada a lei autorizativa nos casos de saneamento básico e limpeza urbana e nos já referidos na Constituição Federal, nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas do Distrito Federal e Municípios, observado, em qualquer caso, os termos da Lei no 8.987, de 1995. (grifo nosso)

De um lado, o entendimento pretoriano assevera que determinações legais

como a em tela são incompatíveis com o modelo de separação de poderes, pelo que

inconstitucionais. Nesse sentido, no âmbito do STF, ver as antigas, mas ainda atuais,

ADIs 462 e 676.

De outro lado, respeitável parcela da doutrina, - a exemplo de Celso Antônio

Bandeira de Melo e Marçal Justen Filho -, entende que a exigência de autorização

legislativa prévia, como na hipótese em comento, é manifestação fortemente

democrática e, portanto, compatível com o ordenamento jurídico nacional.

Do exposto, caso busque-se conceder à iniciativa privada, sem autorização

legislativa prévia, os serviços delegáveis na operação do sistema prisional, o Executivo

conta com precedentes que lhe são favoráveis. Entretanto, nas pegadas da doutrina,

seria um gesto de democracia intensa submeter à apreciação legislativa prévia matéria

com tal conteúdo.

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No caso mineiro, a Lei Estadual 14.868/03 previu expressamente, porém sem

nenhum detalhamento, a possibilidade de concessão, sob a forma de parceira público-

privada, do sistema penitenciário, conforme colação abaixo de seu art. 5º:

Art. 5º - Podem ser objeto de parceria público-privada: I - a prestação de serviços públicos; II - a construção, a ampliação, a manutenção, a reforma e a gestão de instalações de uso público em geral, bem como de terminais estaduais e de vias públicas, incluídas as recebidas em delegação da União; III - a instalação, a manutenção e a gestão de bens e equipamentos integrantes de infra-estrutura destinada a utilização pública; IV - a implantação e a gestão de empreendimento público, incluída a administração de recursos humanos, materiais e financeiros; V - a exploração de bem público; VI - a exploração de direitos de natureza imaterial de titularidade do Estado, incluídos os de marcas, patentes e bancos de dados, métodos e técnicas de gerenciamento e gestão. § 1º - As atividades descritas nos incisos do caput deste artigo poderão ser desenvolvidas nas seguintes áreas: (...) IV - segurança, sistema penitenciário, defesa e justiça; (...). (grifo nosso)

No caso goiano, a Lei Estadual 14.910/04, que cuida das concessões sob a

forma de parceria público-privada, não prevê sequer expressamente tal possibilidade,

trazendo apenas cláusulas gerais, que, eventualmente, fundamentariam a hipótese.

Portanto, seria uma extraordinária possibilidade de manifestação de

democracia intensa o envio a esta Casa, pelo Poder Executivo, de um projeto de lei,

detalhado, fixando seus termos específicos, acerca de eventual concessão, sob a forma

de parceria público-privada, do sistema prisional goiano, ou de parcelas dele, caso haja

o objetivo de se valer deste instrumento na administração prisional estadual.

Assim, feitos tais apontamentos breves sobre a utilização de parcerias público-

privadas no sistema prisional, passamos agora ao último item do desenvolvimento

deste trabalho.

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5) Da observância necessária dos direitos fundamentais em qualquer que seja o

modelo de gestão prisional adotado no Brasil

Qualquer que seja a forma de gestão do sistema prisional no Brasil, - com

participação mais abrangente, ou não, da iniciativa privada -, deve ser observado todo

o marco regulatório representativo do processo civilizatório historicamente acumulado

na matéria. Seja tal marco expresso sob a formar de direitos fundamentais, com

suporte na positivação constitucional; seja consagrado sob a forma de direitos

humanos, com suporte nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Nesse sentido, a própria Lei de Execução Penal, em seu art. 3º, abaixo colacionado,

assevera que o condenado tem resguardados todos os direitos que não sejam

restringidos por sentença judicial ou por lei.

Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política.

Assim, ainda que preso, o condenado preserva vários dos direitos inerentes à

sua condição de sujeito, pelo que devem ser observados, e não molestados no

ambiente prisional. Nesse sentido, restam-lhe assegurados todos os direitos

fundamentais e humanos, - assim classificados a depender do texto normativo em que

são assegurados -, desde que não atingidos pela sentença e não relativizados por

norma jurídica (v.g., art. 41, parágrafo único, da Lei 7.210/84 e art. 15, III, da CF/88).

Por isso, qualquer que seja a forma de gestão prisional, - parcial ou totalmente

pública -, todos os direitos do preso, não atingidos pela sentença ou não relativizados

por norma jurídica, devem ser fielmente respeitados. Nesse cenário, ainda que haja

participação da iniciativa privada na gestão do sistema prisional, seja por quaisquer

das eficácias dos direitos fundamentais que se queira chamar à incidência (eficácia

vertical, horizontal ou diagonal), há uma série de cuidados que o operador do sistema

deve ter com os presos.

No sentido acima, eventual projeto de lei que vise a instituir, em específico,

concessões sob a forma de parceria público-privada no âmbito do sistema prisional

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goiano, - por óbvio que com observância da repartição constitucional de competências

legislativas -, poderia nele incluir todo o rol dos direitos do preso, seguramente

exemplificativo, a ser observado também quando custodiados sob tal regime.

6) Considerações finais

6.1) Anotações de fecho

Chegamos ao termo final deste trabalho de forma inconclusiva. Nesse sentido,

torna-se temerária qualquer resposta à questão de capa desta nota técnica

(“Privatização” do sistema prisional: trata-se da solução para o problema?). Isso

porque não há, ainda, dados empíricos que permitam atestar ou condenar o acerto da

concessão do sistema prisional, à livre iniciativa, sob a forma de parceria público-

privada, naquilo que cabível, conforme vimos ao longo deste trabalho e abaixo

sintetizamos.

Noticiamos no início desta nota técnica (item 1.2) a polarização que gera a

possibilidade de participação da iniciativa privada no sistema prisional. Afastando-nos

de tal polarização, buscamos identificar quão equívoca é a expressão “privatização do

sistema penitenciário”, em razão dos limites que o ordenamento jurídico nacional

impõe no âmbito da execução penal: atividade exclusiva de estado e indelegabilidade

do poder de polícia.

Não obstante tais limites, sustentamos haver atos materiais no âmbito da

gestão prisional passíveis de delegação ao particular (itens 2 e 3). Nesse contexto, em

breves linhas (item 4), recuperamos a experiência mineira acerca da concessão do

sistema prisional sob a forma de parceria público-privada e chamamos a atenção para

o significado fortemente democrático que pode conter o envio de projeto de lei para

apreciação do Parlamento, caso seja o caso, visando ao detalhamento de eventual uso

desta forma de concessão no âmbito do sistema prisional goiano.

Por fim, nos termos do item 5 deste trabalho, chamamos a atenção para a

necessária observância, por qualquer que seja o operador material do sistema

prisional, seja ele privado e/ou público, de todos os direitos não atingidos por sentença

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condenatória dos presos ou por normas jurídicas relativizadoras de direitos dos

sujeitos em tal condição. Anotamos, por último, que eventual projeto de lei visando ao

detalhamento dos termos da concessão sob a forma de parceria público-privada da

operação do sistema prisional poderia, por oportuno, bem veicular, no que couber,

para efeitos de máxima efetividade de tais direitos, o estatuto jurídico do preso.

6.2) Sugestões

Ante a todo o exposto nesta nota técnica, apresentamos à superior apreciação

da Deputada Estadual Delegada Adriana Accorsi, solicitante deste trabalho, as

seguintes sugestões:

a) Que seja encaminhada consulta à douta Procuradoria-Geral desta Casa

objetivando colher manifestação daquele órgão acerca da seguinte

questão: é necessária autorização legislativa prévia para a concessão de

serviços públicos, notadamente concessões sob a forma de parceria

público-privada de serviços afetos ao sistema prisional goiano? Se sim, a Lei

Estadual goiana 14.910/04 já veicula, de forma suficiente, autorização

legislativa prévia para tal concessão no âmbito do sistema prisional do

Estado?

b) Que em eventual proposta de parceria público-privada em serviços afetos

ao sistema prisional goiano, veiculada sob a forma de projeto de lei ou não,

a ilustre Deputada atue no sentido de assegurar que os atos indelegáveis

em tal seara não sejam objeto de concessão.

c) Que, ainda em eventual proposta nos termos da alínea anterior, a distinta

Deputada envide esforços para assegurar o respeito aos direitos

fundamentais e humanos dos custodiados a serem eventualmente

submetidos a serviço prisional sob a forma de parceria público-privada.

É a nota técnica.

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7) Lista de siglas

Alego – Assembleia Legislativa de Goiás

CF/88 – Constituição Federal de 1988

CPC – Código de Processo Civil

CTN – Código Tributário Nacional

HC – Habeas Corpus

LEP – Lei de Execução Penal

RDD – Regime Disciplinar Diferenciado

RESP – Recurso Especial

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

8) Fontes de pesquisa

ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Legislação Penal Especial. São Paulo: Saraiva, 2013. Constituição Federal de 1988. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2006. Lei Estadual de Goiás 14.910/04, Dispõe sobre a instituição do Programa de Parcerias Público-Privadas, da constituição da Companhia de Investimentos e Parcerias do Estado de Goiás e dá outras providências. Lei Estadual de Minas Gerais 14.868/03, Dispõe sobre o Programa Estadual de Parcerias Público-Privadas. Lei Nacional 5.172/66, Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Lei Nacional 5.876/73, Institui o Código de Processo Civil. Lei Nacional 7.210/84, Lei de Execução Penal. Lei Nacional 8.987/95, Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências.

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Lei Nacional 9.074/95, Estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos e dá outras providências. Lei Nacional 11.079/04, Institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Superior Tribunal de Justiça. Supremo Tribunal Federal.