PROCESSO DE CRIAC¦ºA¦âO

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PROCESSO CRIATIVO O PROCESSO Antes da parceria em Acidente, Guimarães e Lobato já haviam realizado projetos de direção separadamente, mas nutriam há tempos o desejo de trabalhar junto. O interesse comum pela imagem que uma palavra pode trazer, levou a dupla a criar vários poemas a partir do nome de mais de 835 cidades que compõem o estado de Minas Gerais. Após uma triagem, que retirou nomes indígenas, nomes de santos e nomes terminados em ‘polis’, os diretores reduziram a amostragem a 600 nomes, que reproduziram em fichas e, em um jogo lúdico de palavras, viravam hai kais, escritos, versos livres. Desta experiência, ‘aconteceu’ a poesia que une, em uma narrativa, o nome de 20 cidades mineiras. Com o ‘poema na mão’, a dupla também tinha um roteiro. O caminho a ser seguido era o traçado que as palavras formavam. Os diretores, que pretendiam contar a história e a origem do nome destas cidades, cederam ao acaso, que os levaria a resultados inesperados, mas encantadores. Um exercício constante de saber não transpassar o desenrolar da realidade diante da câmera. O filme, cujo orçamento geral é de R$ 700.000,00 (setecentos mil reais), U$ 280.000,00 (duzentos e oitenta mil dólares), teve sua versão para TV concluída através do Programa de Fomento ao documentário, DOCTV. A versão em 35mm, com duração de 72min, terá sua estréia mundial durante o 59° Festival Internacional de Cinema de Locarno, Suíça. Único filme brasileiro em competição no Festival, Acidente será exibido na sessão Cineastas do Presente. Acidente entra a partir de agora em sua segunda fase, que ainda requer captação de recursos. Aprovado pela Lei do Audiovisual, o projeto de finalização e circulação, prevê exibições em todas as 20 cidades onde o filme foi rodado, em praça pública, já que estas cidades não possuem salas de cinema. Em seguida,

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PROCESSO CRIATIVO

O PROCESSOAntes da parceria em Acidente, Guimarães e Lobato já haviam realizado projetos de direção separadamente, mas nutriam há tempos o desejo de trabalhar junto. O interesse comum pela imagem que uma palavra pode trazer, levou a dupla a criar vários poemas a partir do nome de mais de 835 cidades que compõem o estado de Minas Gerais. Após uma triagem, que retirou nomes indígenas, nomes de santos e nomes terminados em ‘polis’, os diretores reduziram a amostragem a 600 nomes, que reproduziram em fichas e, em um jogo lúdico de palavras, viravam hai kais, escritos, versos livres.

Desta experiência, ‘aconteceu’ a poesia que une, em uma narrativa, o nome de 20 cidades mineiras. Com o ‘poema na mão’, a dupla também tinha um roteiro. O caminho a ser seguido era o traçado que as palavras formavam. Os diretores, que pretendiam contar a história e a origem do nome destas cidades, cederam ao acaso, que os levaria a resultados inesperados, mas encantadores. Um exercício constante de saber não transpassar o desenrolar da realidade diante da câmera.O filme, cujo orçamento geral é de R$ 700.000,00 (setecentos mil reais), U$ 280.000,00 (duzentos e oitenta mil dólares), teve sua versão para TV concluída através do Programa de Fomento ao documentário, DOCTV.

A versão em 35mm, com duração de 72min, terá sua estréia mundial durante o 59° Festival Internacional de Cinema de Locarno, Suíça. Único filme brasileiro em competição no Festival, Acidente será exibido na sessão Cineastas do Presente.

Acidente entra a partir de agora em sua segunda fase, que ainda requer captação de recursos. Aprovado pela Lei do Audiovisual, o projeto de finalização e circulação, prevê exibições em todas as 20 cidades onde o filme foi rodado, em praça pública, já que estas cidades não possuem salas de cinema. Em seguida, estréia em circuito em sete capitais brasileiras.

ENTREVISTA Como o projeto nasceu?

Pablo - Uma certa afinidade nos levou a querer fazer um trabalho em parceria. Neste momento nutríamos interesses comuns pelo uso da palavra escrita junto à linguagem audiovisual. Tanto Cao quanto eu já vínhamos experimentando coisas nesse sentido.

Nasci em Bom Despacho, interior de Minas, terra onde Cao passou a infância por causa do avô, que morava lá. Talvez venha daí um olhar para a trivialidade do

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cotidiano interiorano. O gosto por estas vivências, que só o ritmo de uma pequena cidade permite, foi logo direcionando nossas conversas.

Como vocês chegaram a um método de trabalho e escolha do tema?

Decidimos listar todos os nomes de cidades de Minas Gerais. Diante de tantos nomes, 853 municípios, começamos uma edição. Retiramos os nomes de santo, nomes que terminavam em polis e os nomes indígenas. Já com cerca de 600 nomes, iniciamos um outro  processo seletivo, sem um denominador comum. Escolhemos sentidos, sonoridades, graça e ritmo.

Então, sentamos em uma mesa como quem começa um jogo. Nomes das cidades impressos em pequenas fichas de papel, uma ‘bebidinha’ e noite adentro encontrando poemas, escritos e roteiros. Elegemos um dos poemas, que funciona como roteiro do filme Acidente.

No início, tínhamos o propósito de realizar um filme a partir do poema, mas sobre as histórias que deram origem ao nome de cada cidade. Mas, logo no início, deixamos essa idéia e assumimos o traço acidental que nos rondava. As coisas aconteceram com uma sincronia única.

E roteiro a ser seguido?

Encontrando inspiração na palavra nome, chegávamos nas pequenas cidades sem saber o que íamos encontrar. O sentimento de confiança nos guiou durante todo o processo. Algumas vezes, tudo levava a crer que não teríamos material, que daquela vez não daria certo. Mas, algo surpreendente, mesmo que em pequenos fatos, afinal era isso que buscávamos e não grandes acontecimentos, ocorria diante de nós, mesmo que sem planejar e esperar. Era encantador constatar que havia recompensa em seguir à deriva, nosso deslocamento sem objetivo linear, com uma atenção aguda e ao mesmo tempo relaxada.

Houve situações de contratempo que exigiram improvisação além da que vocês estavam esperando? Alguma surpresa muito inesperada?

Não foi necessariamente improviso e surpresa, mas sim as pequenas descobertas ao longo do caminho. Em Heliodora, por exemplo, logo que chegamos, um temporal tomou conta da cidade. As luzes todas se apagaram. E, em uma cidade com nome de mulher, acabamos encontrando uma figura tão especial, a Buba, um homossexual alcoólatra que é adorado em Heliodora. Ele literalmente bebeu toda a herança deixada pelo pai em grandes festas que promovia para toda a cidade. Ele fala de amor de uma forma muito aberta e contundente.

Em Passos, uma das maiores cidades, esperávamos que o secretário de cultura local nos acompanhasse para, então, registrarmos a cidade de seu ponto de vista. Mas isso não aconteceu. Então, fomos literalmente para o banco da praça pensar

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em uma alternativa. Neste momento, um engraxate se aproximou e começou a engraxar os sapatos do Cao. Passos, sapatos, engraxate. Ligamos a câmera, mas não nos movemos. Simplesmente começamos a registrar o engraxate trabalhando. E ele nem se importou com isso e continuou seu trabalho. Em seguida, chegou uma transeunte da cidade, que ele chamou de louca e nos fez um sinal para não dar atenção a ela. Mas ela queria um cigarro dele e começou a importuná-lo. Ele, em vez de dar o cigarro ou brigar com ela, fechou os olhos e começou uma oração. “O meu deus, eu sei que o senhor tem um santo mais forte que o meu, faça uma obra na vida desta mulher.” Era mais um presente diante da câmera. Havia uma linha muito tênue separando a ação espontânea destes personagens e a nossa, por trás da câmera. E qualquer movimento que se adiantasse ao evento, poderia romper esta linha.

Como foi o dia-a-dia das filmagens?

No princípio foram contatadas as 20 prefeituras das cidades do poema. Todas apoiaram o projeto por meio de apoio logístico, como hospedagem, alimentação, comunicação e internet.

Com uma equipe reduzida, de cinco pessoas, visitamos as 20 cidades do poema. Percorremos cerca de sete mil quilômetros nos meses de março, abril e maio de 2005 pelo Estado de Minas Gerais. Foram gravadas cerca de 82 horas em DV; e filmados 48 rolos de Super 8. A equipe de áudio registrou cerca de dez horas de material sonoro. Contamos também com o apoio da Polícia Militar de Minas Gerais, que nos cedeu helicóptero para a filmagem das imagens aéreas.

Acidente não possui uma trilha sonora propriamente dita, artificial. Os sons são basicamente naturais. Expliquem esta escolha.

Não diríamos que o filme não tem trilha, mas que a trilha sonora de Acidente não é tão comum. Não há um tema musical pré-definido que já entra em cena nos créditos iniciais e acompanha o espectador durante todo o filme. Mas há trilha sonora sim. Só que uma trilha que surge junto ao filme e não para enxertar emoções ao filme. O Grivo sabe fazer isso muito bem. Eles não criaram um fundo musical em cima de um filme já pronto, fomos juntos ao encontro do filme. Fizemos juntos esse Acidente. Contando com sons das cidades, conversas corriqueiras, sons muitas vezes deslocados da câmera, acidentes sonoros. É destes sons e palavras que se constrói a trilha do filme. Uma trilha econômica, com graça e profundidade.