PRODÓCIMO - Um Olhar Sobre o Bullying (Reflexões a Partir Da Cultura)

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UM OLHAR SOBRE O BULLYING: REFLEXÕES A PARTIR DA CULTURA PRODÓCIMO, Elaine- GEPA – FEF- UNICAMP [email protected] Eixo Temático: Violências na Escola Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O objetivo do presente estudo é analisar a influência da cultura no bullying escolar e, para tanto realizamos uma revisão bibliográfica sobre o tema. Reconhecemos a escola como ambiente de diversidades e vemos o bullying como fato que se manifesta em função da intolerância a estas diferenças. Percebemos que as diferentes formas de manifestação do bullying entre meninos e meninas representam intimamente como nossa sociedade vê e educa de forma diferenciada os sujeitos masculinos e femininos. Acreditamos que a escola poderia servir como espaço para trabalho com valores sociais que visem a uma sociedade mais tolerante e que valorize as diferenças entre os alunos. Palavras-Chave: Agressividade. Bullying. Escola cultura. Introdução Cada vez mais somos levados a pensar no sentido da violência em nossa sociedade, que pode ser justificada por vários motivos, no entanto, nem sempre são bons motivos e menos ainda motivos justos. Mesmo assim os usamos para justificar nossos atos violentos gerados pela raiva contra o outro. O problema da violência apresenta-se cada vez mais crescente nas sociedades e temos atualmente altos índices ocorrendo também nas escolas entre crianças e adolescentes. Isto tem gerado a preocupação de pais, professores e estudiosos que sentiram a necessidade de buscar uma compreensão e também de encontrar denominação para tal fenômeno. Basta digitarmos a palavra bullying num site de busca na internet para percebemos o quanto ele já virou “moda”. Não só o senso-comum, mas também as pesquisas acadêmicas têm se preocupado com o alto índice de agressividade repetitiva na infância e na adolescência, existente principalmente nas escolas. No entanto, estas inúmeras pesquisas

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  • UM OLHAR SOBRE O BULLYING: REFLEXES A PARTIR DA CULTURA

    PRODCIMO, Elaine- GEPA FEF- UNICAMP [email protected]

    Eixo Temtico: Violncias na Escola Agncia Financiadora: no contou com financiamento

    Resumo

    O objetivo do presente estudo analisar a influncia da cultura no bullying escolar e, para tanto realizamos uma reviso bibliogrfica sobre o tema. Reconhecemos a escola como ambiente de diversidades e vemos o bullying como fato que se manifesta em funo da intolerncia a estas diferenas. Percebemos que as diferentes formas de manifestao do bullying entre meninos e meninas representam intimamente como nossa sociedade v e educa de forma diferenciada os sujeitos masculinos e femininos. Acreditamos que a escola poderia servir como espao para trabalho com valores sociais que visem a uma sociedade mais tolerante e que valorize as diferenas entre os alunos.

    Palavras-Chave: Agressividade. Bullying. Escola cultura.

    Introduo

    Cada vez mais somos levados a pensar no sentido da violncia em nossa sociedade, que pode ser justificada por vrios motivos, no entanto, nem sempre so bons motivos e menos ainda motivos justos. Mesmo assim os usamos para justificar nossos atos violentos gerados pela raiva contra o outro. O problema da violncia apresenta-se cada vez mais crescente nas sociedades e temos atualmente altos ndices ocorrendo tambm nas escolas entre crianas e adolescentes. Isto tem gerado a preocupao de pais, professores e estudiosos que sentiram a necessidade de buscar uma compreenso e tambm de encontrar denominao para tal fenmeno.

    Basta digitarmos a palavra bullying num site de busca na internet para percebemos o quanto ele j virou moda. No s o senso-comum, mas tambm as pesquisas acadmicas tm se preocupado com o alto ndice de agressividade repetitiva na infncia e na adolescncia, existente principalmente nas escolas. No entanto, estas inmeras pesquisas

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    sobre o fenmeno bullying so realizadas em grande quantidade no mbito internacional. So poucas ainda as pesquisas sobre o fenmeno no Brasil. Alm de poucas, ainda mais restritas so aquelas que tratem do assunto no que se refere s questes de gnero, ou seja, como meninos e meninas praticam a violncia de maneira diferenciada dentro das relaes sociais.

    Isto acontece no somente pelo fato de existirem diferenas em cada gnero, diferenas estas que j foram relacionadas em diversos estudos que lidam com o tema, mas principalmente pela diferena observada entre ambos na prtica do bullying. O que nos chamou a ateno foi a maneira como cada qual (menino e menina) reage diante do outro, do diferente. Quando falamos nesta reao diante do diferente no estamos falando especificamente das diferenas de gnero e sim de todas as diferenas passveis de preconceito. As relaes de gnero sero aqui utilizadas somente para explicar o comportamento diferenciado de meninos e meninas no momento de encararem estas diferenas, sejam elas quais forem (gnero, raa, etnia, esttica etc.), principalmente comportamentos que levem a algum tipo de violncia que possa ser caracterizada como bullying. Numa sociedade que pretende-se globalizada e que, dentro desta tica mobiliza em si uma busca pela homogenizao, ser diferente pode ser considerado uma afronta, como nos aponta Gonalves (2003).

    Pensando a escola como um lugar privilegiado da diversidade cultural e, portanto um local onde convivemos com o coletivo e principalmente com o diferente, neste texto buscamos refletir sobre a problemtica da intolerncia quanto s diferenas existentes entre as crianas e adolescentes e como isto se manifesta de forma diferente entre meninos e meninas no ambiente escolar. Para tanto realizamos um estudo de reviso bibliogrfica em que buscamos, num primeiro momento compreender a violncia e a agressividade como fenmenos complementares, e o bullying como uma forma distinta destes comportamentos pelas suas caractersticas; em seguida buscamos enfocar o papel da cultura nos determinantes do comportamento diferenciado entre meninas e meninos quanto a esta questo e o papel da escola, em sua diversidade como ambiente propcio manifestao do fenmeno.

    Compreendendo termos

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    Antes de iniciarmos nosso percurso na busca da compreenso da influncia da cultura no bullying importante fazer-nos entender em relao a nossa compreenso sobre agressividade e violncia. Vemos que a violncia algo que envolve comportamentos agressivos, mas que estes, no necessariamente se convertem em violncia. Pautamo-nos

    em Costa (2003, p.39) quando este afirma que porque o sujeito violentado (ou o observador externo situao) percebe no sujeito violentador o desejo de destruio (desejo de morte, desejo de fazer sofrer) que a ao agressiva ganha o significado de ao violenta (grifo do autor). Disto podemos concluir que existem atos agressivos que no so considerados violentos, por no serem interpretados como tal pelos participantes ou mesmo pelos observadores. Podemos exemplificar tal situao tomando um fato comum que ocorre dentro do prprio ambiente escolar, que so algumas brincadeiras manifestadas entre os grupos em que no so manifestados desejos de destruio, ou seja, tanto os sujeitos agressores quanto os agredidos no vem como tal; diferentes de outras em que h este desejo, tanto real (fsico) quanto simblico, como o caso do bullying que veremos a seguir.

    O bullying foi um tema apropriado pelos profissionais da rea mdica e da psicologia, tambm sendo visto como importante para os profissionais da educao. Apesar de sua relevncia, ainda vemos professores que ao presenciarem um ato de agresso acham que isto normal, ou apenas briga de criana, que no merece tanta ateno por parte deles. Existem aqueles que se preocupam com o fato, mas tm dificuldades em reconhec-lo como bullying, visto que no basta uma criana ou adolescente brigar uma ou duas vezes com outra criana para que o fenmeno se caracterize como tal. Lopes Neto (2005) define por bullying todas as atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivao evidente, adotadas por um ou mais estudantes contra outro(s), causando dor e angstia, sendo executadas dentro de uma relao desigual de poder. justamente neste ponto que queremos nos deter, ou seja, nas relaes desiguais de poder que geram preconceitos, excluso e a no aceitao do outro e que por sua vez so desenroladas no contexto da cultura.

    Apesar do bullying no ser um fato novo nas escolas e mesmo em outros espaos sociais, o estudo do mesmo e sua caracterizao como um fenmeno tpico deu-se em 1978, com a publicao do livro Agression in the Schools: Bullies and Whipping Boys, de Dan

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    Olweus, relatando uma pesquisa realizada na Noruega. Este primeiro trabalho gerou uma srie de outros em pases europeus como Finlndia, Reino Unido, Irlanda e tambm no Japo (Smith e Brain, 2000).

    Para entendermos melhor o fenmeno bullying utilizamos a definio de Lopes Neto (2005), que demonstra como o bullying classificado. Segundo o autor temos o bullying direto, quando as vtimas so atacadas diretamente, e o bullying indireto, quando as vtimas esto ausentes. So considerados bullying direto os apelidos, agresses fsicas, ameaas, roubos, ofensas verbais ou expresses e gestos que geram mal estar aos alvos. So considerados bullying indiretos as atitudes de indiferena, isolamento, difamao e negao aos desejos. A partir desta classificao j podemos perceber a possvel diferena entre os sexos nas diversas formas de praticar o bullying. O autor diz que o modo direto utilizado com mais freqncia (cerca de quatro vezes mais) pelos meninos, j o indireto mais adotado pelas meninas. Isto fcil de entender quando pensamos nas construes culturais de gnero. Afinal, mostrar ou exercer sua fora, dar golpes e assumir riscos corporais no so atributos femininos, so comportamentos que pertencem ao universo masculino. As meninas so pressionadas a apresentarem uma imagem feminina que evite confrontos sociais. Ambos os sexos devem exercer bem seus papis para que no sejam alvos de desconfiana com relao a sua sexualidade diante dos colegas. No podemos nos deter na idia de que todos tm uma natureza agressiva. Mais do que uma compreenso naturalizada da agressividade humana, como muitas vezes ocorre, preciso um entendimento cultural de tais atos, visto que justamente a cultura o que distingue os seres humanos dos outros animais. Os seres humanos variam em conseqncia das condies sociais, econmicas, polticas e histrica em que vivem, ou seja, so seres culturais e histricos. Mauss (2003) quem nos diz que o homem s tem resqucios de instintos, e a sua convivncia em sociedade que leva a uma interveno da conscincia.

    Numa sociedade em que a violncia parece algo banal, comum e naturalizada, seus indivduos a tomaro desta maneira. Uma criana aprende desde muito pequena que a agressividade algo presente em sua realidade. Ela aprende isto com os desenhos que assiste, com os filmes e novelas que os adultos vem e principalmente com o dia a dia de uma sociedade que cada vez mais tende a naturalizar certos atos. No entanto, desde 1926 Mauss j dizia que a vida social como um mundo de relaes simblicas. A partir destas relaes simblicas percebemos que os meninos no so agressivos e as meninas no so

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    sutis por natureza e sim por uma educao social dotada de smbolos e significados distintos. O autor fala de uma relao entre o natural e o social para uma justa interpretao do indivduo e de seu grupo. Ou seja, um chute (que no natural) vem sempre junto com um sentimento, com um significado. Um ato sempre simblico e possvel de diversas interpretaes.

    Para entendermos um ato violento pelo vis interpretativo temos que perceber e nos perguntar sobre o que vem junto com ele. Sabemos que o que vem junto so significados. Ento precisamos nos questionar sobre o que significam estes significados. Por que uma criana precisa agir de certa forma? Por que um chute possivelmente seria utilizado por um menino mas no por uma menina? O que faz com que uma criana se torne agressiva?

    Quais os significados que ela d para tais atos e como estes significados so construdos de formas diferentes dentro de uma cultura de gnero? Enfim, se homens e mulheres so educados de formas diferentes, no de se estranhar que nos momentos de raiva eles tambm reajam de maneiras distintas. Isto legitima a afirmao de que as aes, mesmo as violentas, no so naturais e sim construdas culturalmente e dotadas de significados.

    Portanto, para entendermos os significados da violncia e do bullying como uma de suas manifestaes, no podemos analisar somente o ato da agresso em si, se foi mais intenso ou no, se machucou mais ou menos sua vtima. preciso se perguntar sobre o que vem junto com estes atos violentos. Um soco no somente um soco, um chute no simplesmente um chute, eles no so somente movimentos mecnicos e sim gestos

    corporais dotados de significados e, neste caso, dotados de um desejo de destruio. Significados e desejos que so reflexos de uma sociedade e de seus costumes, e que podem representar (...) um recurso de expresso dos setores sociais excludos em busca de melhores condies de existncia e pode servir como forma de apelo s conscincias coletivas (GONALVES, 2003, P.45).

    A escola e sua diversidade

    Acreditamos que os significados das aes violentas no ambiente escolar tm relao com a no aceitao das diferenas. E como no falar das diferenas se justamente a escola um dos melhores lugares para olharmos para a diversidade. A escola o local onde predomina a pluralidade do corpo social. Apesar de se configurar na maioria das vezes como um lugar que tende a homogeneizao dos indivduos, ela um local mltiplo, com

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    uma diversidade cultural admirvel. Diversidade esta que apenas se inicia com a diferena entre os sexos, depois ela se multiplica em diversos setores da sociedade.

    justamente esta diversidade cultural que muitas vezes leva a violncia, mas que segundo Guimares (1996), tambm nos permite pensar a vida social, levando-se em conta a pluralidade de situaes existentes.

    Como nos diz Fante (2005) a matria mais difcil na escola no mais a matemtica ou a biologia, e sim a convivncia. A partir do momento em que tratamos a diversidade estamos nos referindo ao coletivo. S h diversidade cultural com a presena de grupos sociais distintos e de experincias compartilhadas. num lugar de encontros e reencontros que localizamos o coletivo. Por outro lado, a diversidade quando difcil de ser aceita gera uma racionalizao da vida social e de seus indivduos que segundo Guimares (1996) desapropria a conexo com este coletivo. Mauss (2003) percebe uma confuso feita em torno do que o coletivo. As pessoas acreditam que para haver a coletividade necessria uma homogeneizao dos indivduos, quando o que ocorre justamente o oposto, ou seja, o coletivo a reunio de seres humanos diferentes entre si.

    Esta dificuldade de se conviver com o coletivo no passa despercebida nas escolas, e quando o bullying acontece fica ainda mais evidente a diferena existente na forma como meninos e meninas constroem suas relaes sociais com os outros colegas. Eles mesmos

    compreendem que tm papis sociais distintos, principalmente em se tratando do gnero, sobretudo durante as brincadeiras em grupos, quando deixam aflorar as representaes dos componentes sgnicos que expressam masculinidade e feminilidade (RIBEIRO, 2006). Homens e mulheres agem de formas distintas diante do outro. A dificuldade que temos em lidar com as diferenas fruto de uma tradio cultural passada de gerao para gerao e perpetuada no tempo. Viemos de uma longa histria de dominaes e preconceitos. Nossa histria denuncia o preconceito racial justificado pela escravido, o preconceito com o obeso que teve a colaborao da medicina (com o advento da sade) e principalmente da mdia (exultando a importncia de termos corpos magros), o preconceito com o pobre, que desencadeou as diversas lutas de classe e o preconceito com a mulher que no decorrer do tempo se rebela atravs de lutas feministas pela igualdade dos sexos. Afinal, somos filhos do patriarcado, no qual o elevando o papel do homem gerou a inferioridade da mulher. Isto certamente estabeleceu e delimitou muito bem o papel de ambos os sexos em nossa sociedade.

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    O bullying e suas relaes com o feminino e o masculino

    Interessa-nos neste texto analisar as diferenas entre o homem e a mulher no que diz respeito as manifestaes agressivas e especificamente no bullying, como estas diferenas so percebidas nas aes do cotidiano e a cultura como principal causadora destas diferenas. At mesmo no momento de agressividade, homens so diferentes de mulheres. Isto acontece porque a cultura nos ensinou a sermos homens e nos ensinou a sermos

    mulheres. Somos frutos de uma construo histrica de relaes de poder que trazem definies muito claras sobre masculinidade e feminilidade. Desde o primeiro momento em que chegamos ao mundo recebemos cargas culturais que nos dizem como devemos agir. A cultura reguladora do comportamento pblico (GEERTZ, 1989). comum ouvirmos, por exemplo, que: homem no chora, a mulher deve ser delicada etc. Enfim, viemos nus ao mundo, mas logo somos adornados com as roupas da cultura, da educao e da tradio a que pertencemos. Aprendemos desde cedo que para ser homem de verdade tem que ser macho, valente, ao contrrio da menina que em hiptese alguma pode demonstrar tais caractersticas. Ela deve ser educada, delicada e sutil. Quando nascemos, modos de ser e de agir nos so colocados. A cor azul para os meninos e a rosa para as meninas no uma distino to ingnua quanto parece. Tal distino nos diz se teremos que ser homens ou se teremos que ser mulheres, e assim inicia-se o processo de educao no somente dos indivduos como tambm dos sexos. Se eu sou mulher ento eu tenho que ser sutil.

    Alm disso, vemos estas caractersticas reforadas na escola quando percebemos o distanciamento corporal entre meninos e meninas e que so conduzidos pelas prprias vontades1. As crianas aprendem desde muito cedo que devem ficar separadas por sexo. Segundo Ribeiro (2006), as famlias exercem grande presso para que estas distines se mantenham e ainda se acentuem. Ainda segundo a autora, vemos pais, professores e toda a comunidade realizarem constantes intervenes sobre o comportamento sexual infantil, e estas maneiras so reproduzidas entre as prprias crianas, afinal, elas reproduzem muito bem as informaes transmitidas pelos adultos. Assim, percebemos exigncias quanto aos padres de comportamento das crianas que so perpetuadas principalmente na famlia. Dessa forma, as crianas ingenuamente tomam como legtimo ou no legtimo aquilo que

    1 Estas vontades, apesar de serem prprias, no quer dizer que no sejam influenciadas por um

    modelo social. A cultura de uma sociedade capaz de criar desejos e vontades que aparentemente parecem pessoais e subjetivas, mas que no entanto so reflexos de uma tradio.

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    homens e mulheres adultas vem como tais. Teoricamente as crianas aprendem que o modo de ser do outro sexo incompatvel com o seu. Ou seja, os corpos dos meninos e das meninas so moldados e ganham identidades de gnero a partir de noes dominantes de feminilidade e masculinidade.

    Ribeiro (2006) se pergunta sobre o porqu, na socializao, as mes precisam dizer como a menina deve se comportar, andar, sentar. Por que preciso dizer que homem no chora? A autora acredita que estes discursos que consolidam um tipo de masculinidade e um tipo de feminilidade esto mais no nvel das representaes do que das prticas.

    Atravs deste olhar podemos compreender o comportamento inverso de meninas e meninos no momento de realizar o bullying, pois as diferenas nas relaes de gnero nos ajudam a compreender os fatos da existncia humana. Agredir diretamente algum no para meninas. Ser valente e partir para a briga coisa de meninos.

    Quando falamos sobre as diferenas no estamos colocando-a como algo ruim. A diferena pela diferena no exatamente o problema. Como nos diz Geertz (1989) se h algo que faz com que os seres humanos sejam iguais justamente a sua capacidade de se diferenciarem uns dos outros. O problema quando estas diferenas so transformadas em desigualdades, gerando preconceitos tnicos, sociais, raciais e de gnero. Certos preconceitos e desnivelamentos de poder (relaes hierarquizadas) podem ser a causas do fenmeno bullying por parte de quem se pensa como melhor ou superior quele que diferente. No caso do bullying pode ocorrer o inverso, ou seja, aquele que se acha inferior agride o outro como uma espcie de vingana pelo outro ser melhor do que ele. A violncia ao diferente pode tambm significar uma intolerncia ao fato dele no ser igual, no aderindo a homogeneidade to buscada, ou uma reao ao fato dele mesmo, o agressor, sentir-se diferente e querer ser igual, a violncia funcionaria como um ato de auto afirmao pela fora, por meio da destruio do diferente.

    A partir deste resultado podemos fazer uma relao com o modo como meninos e meninas so educados e modelados pela cultura.. Percebemos que comportamentos ensinados pela sociedade, ou seja, atitudes aprendidas com uma determinada cultura so muitas vezes consideradas naturais, inerentes aos seres humanos.

    Quando falamos sobre o homem e a sociedade estamos sempre estabelecendo uma discusso entre o natural e o cultural. Neste texto, quando falamos das diferenas entre meninos e meninas estamos nos referindo suas diferenas culturais, mas que ainda esto

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    assentadas sobre uma base biolgica de feminino e masculino. A distino entre sexo e gnero ou entre biologia e cultura no so claras. Na verdade no podemos definir com preciso onde acaba o domnio da biologia e onde comea o domnio da cultura. Se por um lado a biologia providencia claras diferenas entre os sexos, a sua interao com a cultura parece no ser reconhecida. Estamos sempre estabelecendo fronteiras entre o que natural e o que cultural. No entanto, deveramos entender a natureza e a cultura como coisas complementares, sem limites definidos. Deveramos pensar no corpo tanto no seu limite natural como em seu extremo poder de se modificar pela cultura. isto o que gera a pluralidade de corpos com suas mltiplas configuraes, etnias, raas, gneros etc. Corpos que se beneficiam ou sofrem com a educao que lhes foi dada e a cultura em que esto inseridos.

    A escola

    A escola facilita a prtica do bullying, pois reproduz em seu interior os modelos de corpos padronizados pela sociedade, e aqui, ao nos referirmos aos corpos, inclumos as posturas, atitudes, falas, vestimentas que o envolvem. Existem dados que demonstram que h uma grande possibilidade de meninas que sentem vergonha de seus corpos e medo de virarem chacota por parte da turma desenvolverem doenas como a bulemia e a anorexia. Este apenas um exemplo do que a no aceitao das diferenas pode causar. At mesmo as crianas e principalmente os adolescentes buscam estar sempre dentro do padro estabelecido pela sociedade como o melhor. Consequentemente tornam aquele que no est dentro destas caractersticas alvo de excluso e de preconceito. Visto que um dos principais motivos desencadeadores do bullying so as diferenas, todos os que no se encaixam no padro estabelecido culturalmente so vtimas potenciais da violncia, e isto inclui mesmo a forma corporal, com sujeitos mais obesos ou mais fracos os alvos mais freqentes.

    Acreditamos que a escola traz em seu cotidiano, momentos propcios para a excluso, para o preconceito e conseqentemente para a prtica do bullying. A pesquisa de Fante (2005) nos mostra que as atitudes de bullying acontecem principalmente nos horrios de recreio e nos momentos de entrada e sada da escola. Esses momentos so aqueles, dentro da rotina escolar em que os corpos e as diferenas so principalmente evidenciadas e quando o controle exercido sobre os sujeitos diminui.

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    Analisando o contexto escolar sugerimos incluir nestes dados da autora o momento da Educao Fsica, visto que sua dinmica se aproxima da dinmica do recreio por seus aspectos fsicos (locais abertos, sem paredes e portas, geralmente numa quadra esportiva ou num campo com gramado) e tambm por ser um momento escolar em que o corpo amplamente exposto.

    A Educao Fsica tambm se torna um momento vivel para a prtica do bullying por seus aspectos didticos e pedaggicos que fazem dela um lugar no qual as crianas ficam mais tempo em contato umas com as outras. A aula de Educao Fsica permite os contatos corporais e facilita as trocas sociais de modo semelhante ao que ocorre na hora do recreio. justamente este contato corporal e estas trocas sociais na escola que facilitam as condies para a ocorrncia do bullying, pois so nos momentos de proximidade que a diferena se manifesta, e essa diferena envolve tanto questes econmicas demonstradas nas vestimentas, nos acessrios, no prprio material escolar, quanto pessoais, na exposio

    do prprio corpo, de suas habilidades motoras e sociais. Entre os meninos2, os prprios contatos corporais no momento de jogo e possveis

    problemas quanto ao respeito s regras, o resultado de vitria ou de derrota durante a hora de recreio ou de Educao Fsica podem desencadear o bullying. Fante (2005) em seu estudo reconheceu que a deficincia na coordenao motora uma das caractersticas da vtima tpica do bullying, e justamente neste espao da educao fsica que esta inabilidade se manifesta de maneira mais acentuada.

    Entre as meninas, como j vimos, o bullying ocorre de maneira mais sutil (o que tambm no exclui os meninos desta prtica). Podem se tornar vtimas do bullying as meninas que sentem vergonha em expor seu corpo ou em coloc-lo para se relacionar com o

    corpo do outro. Ou ento, a criana pode sentir medo de no conseguir realizar a atividade proposta na aula e ser excluda pelo grupo, ou at mesmo, ser sempre o alvo de correo pelo professor. Oliveira (2006) em sua dissertao de mestrado destaca duas vtimas tpicas do bullying nas aulas de Educao Fsica de 8a. srie por ele observadas, um menino, com traos afeminados, que era rejeitado pelos seus colegas e uma menina, muito habilidosa, que por isto, era rejeitada pelas suas colegas, estes fatos observados pelo autor refletem a questo da cultura que espera dos homens atitudes viris e das mulheres atitudes delicadas.

    2 Isto tambm acontece entre as meninas, mas com menos freqncia.

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    Enfim, so vrios os fatores que podem levar algumas crianas a serem vtimas de bullying e outras a serem praticantes do fenmeno, que so facilitados pelo ambiente escolar. No descartamos a possibilidade de ocorrer o bullying em outras aulas e em outros momentos da escola, apenas citamos estes momentos por entender que so facilitadores da violncia. O recreio, a Educao Fsica e os horrios de entrada e sada da aula, so os momentos em que temos os corpos das crianas em contato maior uns com os outros. Estes tambm so momentos em que os prprios alunos esto constantemente observando, ou como nos diria Altmann (1999) vigiando as habilidades, as atitudes, o gnero e a sexualidade dos colegas. So nestes momentos que podemos ver, com mais facilidade, a diferena de comportamento entre meninos e meninas e ver e compreender estas diferenas como fruto de uma construo social, nos permite agir de forma mais adequada aos sujeitos e a situao em questo.

    Consideraes finais

    Para entendermos o porqu de meninos e meninas agirem de maneiras diferentes quando ficam zangados, sentem raiva ou no aceitam o outro precisamos perceber que eles tambm foram educados de maneiras diferentes. Segundo Ribeiro (2006), desde a infncia, as crianas se deparam com conflitos gerados pela delimitao do que seria adequado aos homens e do que seria adequado s mulheres. Existe certo poder simblico que legitima as aes do mundo masculino e do mundo feminino. H um jeito de ser feminino e um jeito de ser masculino que legitima as aes e os comportamentos sociais.

    Portanto, o que estamos querendo dizer que meninos e meninas se comportam de maneiras diferentes em todas as aes do dia a dia (ou pelo menos em quase todas). Isto no seria diferente no ambiente escolar e muito menos no momento e na maneira de expressar a raiva. Suas brigas, agresses e confuses so desencadeadas por meios distintos. Meninas conduzem suas aes violentas utilizando atributos que lhes so prprios. O mesmo acontece com os meninos. Se isto no acontece desta maneira, ou seja, se vemos meninos agindo da maneira que foi apontada como modo de agir das meninas, ou vice-versa, isto o suficiente para que haja certa desconfiana por parte dos colegas com relao a prpria sexualidade da criana. Isto tambm comum nas relaes entre os adultos, Ribeiro (2006) diz que entre todas as geraes h um idioma de gnero que organiza as relaes sociais,

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    estruturando as diferenas que qualificam os comportamentos pertinentes aos grupos de meninos e aos grupos de meninas.

    Enfim, se os meninos so mais agressivos e demonstram isto fisicamente, enquanto as meninas so mais sutis (e nem por isso menos vingativas), isto no acontece porque natural. A ordem da natureza influenciada e modelada pela ordem da cultura. Ou seja, meninos no so mais violentos por natureza. Assim como meninas no so mais

    delicadas e gentis por natureza. Todos passam por um processo de educao especfico de uma sociedade determinada. Esta educao por sua vez, transmitida de gerao para gerao perpetuando modos de ser especficos de homem e de mulher.

    Portanto, para entendermos o que est por trs dos comportamentos das crianas, dentre eles os comportamentos agressivos e a prtica do bullying, devemos buscar a compreenso de que todos os seres humanos passam por uma construo cultural de modo que resta muito pouco de natural em suas aes e comportamentos.

    Admitindo o fato de que a agressividade seja inerente a natureza humana, a responsabilidade de pais e educadores se minimiza, pois esto diante de situaes que acreditam ser naturais, portanto praticamente imutveis, apenas sujeitas ao controle e a dominao. Do contrrio, se entendermos a agressividade humana como algo construdo e colocado a ns por uma ordem social e cultural, a responsabilidade de modificar essas situaes recai novamente sobre pais, educadores e pessoas responsveis pela criao de qualquer indivduo.

    Assim, a partir do momento que olharmos para tais fenmenos com as lentes da cultura, ou seja, atentarmos para a memria cultural de cada indivduo, refletindo sobre a diversidade existente numa sociedade, estaremos possibilitando uma reflexo sobre as dinmicas sociais, de gnero, de raa etc. Trazendo para o ambiente escolar questes sobre o processo de socializao infantil e suas relaes com a construo do indivduo adulto, no mais naturalizando comportamentos e sim compreendendo a diversidade cultural e suas implicaes no cotidiano.

    Esta compreenso tambm nos leva a ver que, embora ocorram diferenas quanto a forma de manifestao da agressividade e, no caso em questo, do bullying, entre meninos e meninas, esses atos representam a busca de demonstrar ao outro seu desejo de ser.

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    REFERNCIAS

    ALTMANN, H. Meninos e meninas: Expectativas corporais e implicaes na educao fsica escolar. Cadernos Cedes, vol. 19, n. 48. Campinas, 1999.

    FANTE, C. Fenmeno bullying: como prevenir a violncia nas escolas e educar para a paz. Campinas: Verus editora, 2005.

    COSTA, J.F. Violncia e Psicanlise. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

    GEERTZ, C. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC- Livros Tcnicos e Cientficos Editora S. A., 1989.

    GONALVES, H.S. Infncia e Violncia no Brasil. Rio de Janeiro: NAU Editora GUIMARES, A. Indisciplina e violncia: a ambigidade dos conflitos na escola. In: LOPES NETO, A. A. Bullying- comportamento agressivo entre estudantes. Jornal de pediatria, v. 81, n. 5. Porto Alegre, nov. 2005.

    MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. So Paulo: Cosacnaify, 2003.

    OLIVEIRA, R.C. Educao fsica, escola e cultura: o enredo das diferenas. Dissertao de Mestrado, Faculdade de Educao Fsica, Universidade Estadual de Campinas, 2006.

    RIBEIRO, J. S. B. Brincadeiras de meninas e de meninos: socializao, sexualidade e gnero entre crianas e a construo social das diferenas. Cadernos Pagu, n. 26. Campinas, jan./jun. 2006.