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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
DIRCEU RIBEIRO NOGUEIRA DA GAMA
"O CONCEITO DE JOGO EM WALTER BENJAMIN E SUAS IMPLICAÇÕES
PEDAGÓGICAS PARA O SUJEITO”
Tese de Doutorado
Área de Concentração: Ética
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2
TESE EM FILOSOFIA
"O CONCEITO DE JOGO EM WALTER BENJAMIN E SUAS IMPLICAÇÕES
PEDAGÓGICAS PARA O SUJEITO”
por
DIRCEU RIBEIRO NOGUEIRA DA GAMA
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Gama Filho, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Filipe Ceppas de Carvalho e Faria
Rio de Janeiro/09
3
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Av. Presidente Vargas, 62/12º andar - Centro CEP: 20071-000. Tel./Fax (021) 2518.2028 ramal 359
e-mail: [email protected] O(A) autor(a), abaixo assinado(a), autoriza as Bibliotecas da Universidade Gama Filho a reproduzir este trabalho para fins acadêmicos, de acordo com as determinações da legislação sobre direito autoral, n(s) seguintes(s) formato(s) ( ) Fotocópia ( ) Meio digital Assinatura do autor: _________________________________________________
4 OS CEGOS
Contemplai-os minha alma, eis que são pavorosos!
São como os manequins, ridículos noctâmbulos,
E de sinistro horror como os sonâmbulos;
E quem sabe aonde vão seus globos tenebrosos?
Seus olhos, donde a chama paternal é partida,
Como se olhassem longe, estão no firmamento;
E não se os vê jamais, por sobre o pavimento,
Inclinar vagamente a fronte sucumbida.
Atravessam assim a infinda escuridade,
Esta irmã do silêncio imutável, cidade!
Enquanto em torno a nós é um lamento o teu canto
Que é tão atroz que chega a perder-se no orgasmo,
Vê que eu erro também e mais do que eles pasmo,
Digo: “O que pelos céus eles procuram tanto?”
(Charles Baudelaire, As Flores do Mal)
5 SUMÁRIO
EPÍGRAFE.............................................................................................................................7
DEDICATÓRIA.....................................................................................................................8
AGRADECIMENTOS...........................................................................................................9
RESUMO.............................................................................................................................11
ABSTRACT.........................................................................................................................12
APRESENTAÇÃO DA TESE..............................................................................................13
INTRODUÇÃO....................................................................................................................15
Jogo e Filosofia.....................................................................................................................15
Arte e Livre Jogo em Kant....................................................................................................23
As Contribuições dos Românticos.........................................................................................26
A Releitura de Walter Benjamin............................................................................................33
CAPÍTULO I. O Jogo em Walter Benjamin..........................................................................40
Passado, Presente e Massas Urbanas: Baudelaire
e as Cenas Parisienses...........................................................................................................41
Jogo, Sociedade e Linguagem...............................................................................................50
Infância, Ludicidade e Arte...................................................................................................67
CAPÍTULO II. Cultura, Estética e Política............................................................................89
Estética do Impacto e Emancipação....................................................................................100
CAPÍTULO III. Educação e Ética.......................................................................................130
Considerações Finais...........................................................................................................150
Referências Bibliográficas...................................................................................................154
Listas de Anexos.................................................................................................................162
6
7 EPÍGRAFE
“Por mais ridículo que fosse o fato de eu esperar tanto da roleta, tenho a impressão de ser
ainda mais ridícula a opinião rotineira, por todos aceita, de que é estúpido e absurdo
esperar algo do jogo.”
(Fiódor Dostoievski)
“Os seres não cessam de mudar de lugar em relação a nós. Na marcha insensível mas eterna
do mundo, nós consideramo-los como imóveis num instante da visão, demasiado breve para
que seja percebido o movimento que os arrasta. Mas basta escolher na nossa memória duas
imagens suas, tomadas em instantes diferentes, bastante próximos no entanto para que eles
não tenham mudado em si mesmo, pelo menos sensivelmente, e a diferença das duas
imagens mede o deslocamento que eles operavam em relação a nós.
(Marcel Proust)
8 DEDICATÓRIA
A todos aqueles que conseguem encontrar nos seus inacabamentos os sinais de que
a diferença é a fonte dos acordes que renovam as grandes sinfonias
da existência.
9 AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Filipe Ceppas de Carvalho e Faria, pela orientação, paciência e
compreensão, os quais foram fundamentais para a confecção dessa pesquisa;
Ao Professor Doutor Jorge Luiz Rocha de Vasconcellos, por ensinar que o pensamento
filosófico não pode prescindir do diálogo com os grandes temas do presente;
Ao Professor Doutor Edson Peixoto de Rezende Filho, pelo empenho na resolução de toda
sorte de problemas dos docentes e discentes do PPGFIL/UGF;
Ao Professor Doutor Norman Madarasz, pelas suas inegáveis contribuições e sugestões
fornecidas para a finalização da tese;
Ao Professor Doutor Flávio Beno Siebeneichler, por mostrar que a produção filosófica
assenta muito mais na disciplina do pensamento e do agir do que propriamente em
iluminações inspiradoras;
Ao Professor Doutor Altigran Soares, Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da
Universidade Federal do Amazonas, por ter viabilizado meu retorno ao Rio de Janeiro para a
conclusão do Doutoramento;
Ao Professor Doutor Jeferson José Moebus Retondar, por ter me introduzido ainda no
segundo semestre de graduação, mesmo de maneira despretensiosa, à leitura de Walter
Benjamin;
À Fabiana, secretária do PPGFIL/UGF, pelas demonstrações de competência e conhecimento
profissionais;
Aos colegas de curso Reginaldo Menezes, Sérgio Mendes, Edson Sendin e Eduardo Sut, pelas
valiosas trocas de informações e conversas efetuadas durante as aulas;
À minha mãe, Marilda, minha avó Zulmira, e Luzia, por nunca terem se furtado a dar os
10 devidos suportes materiais e morais, dentro de suas possibilidades, para meu crescimento
pessoal e acadêmico;
À minha esposa, Ana Paula, por sempre estar do meu lado em todas as horas;
Aos meus sogros, Paulo César e Neide, pela acolhida;
O meu franco obrigado.
11 DA GAMA, Dirceu Ribeiro Nogueira. O conceito de jogo em Walter Benjamin e suas
implicações pedagógicas para o sujeito. (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro: PPGFIL/UGF,
2009.
RESUMO
Em diversos momentos da história da filosofia, pensadores tributários das mais
diferentes correntes teóricas recorreram ao conceito de jogo com o propósito de elucidarem
questões chaves em suas reflexões. Como exemplo, podemos citar Heráclito, Tomás de
Aquino, Leibniz, Bernouilli, Erasmo de Roterdam, Rousseau, Kant, a primeira geração de
filósofos românticos e, mais recentemente no século XX, Walter Benjamin. Assim, o objetivo
desse trabalho consiste de uma investigação do conceito de jogo na obra deste último.
Inicialmente, faremos a exposição das bases teóricas sobre as quais ele é construído. Em
seguida, analisaremos que sorte de inter-relações existem entre o mesmo e as análises do
autor acerca dos vínculos entre arte e linguagens. Por fim, discutiremos até que ponto o
binômio jogo/arte pode ser empregado para a estruturar reflexões sobre os processos de
formação moral do sujeito no contexto da modernidade.
Palavras-Chaves: Walter Benjamin; Jogo; Arte; Educação; Ética.
12 DA GAMA, Dirceu Ribeiro Nogueira. The concept of play in Walter Benjamin and its
pedagogical implications for the subject. (Doctoral Thesis). Rio de Janeiro: PPGFIL/UGF,
2009.
ABSTRACT
In several moments of the history of philosophy, thinkers belonging to the most
different theoretical streams examined the concept of play in order to solve relevant questions
on their works. As example, we cite Heraclitus, Thomas Aquinas, Leibniz, Bernouilli,
Erasmus of Rotterdam, Rousseau, Kant, the first generation of romantic philosophers and,
more recently on the 20th century, Walter Benjamin. Thus, the purpose of this research is to
inquiry play concept on the writings of this last. At the beggining, we will expose the
theorethical grounds over whom it is built. Then, an analysis concerning the relationships
between the same and the author`s studies about arts and languages will be made. Finally, we
will discuss until where the joint play/arts can be adopted to drive reflections about the
processes of subjects moral education on the context of modernity.
Key-Words: Walter Benjamin; Play; Arts; Education; Ethics.
13 APRESENTAÇÃO DA TESE
Todos os grupos humanos, no decorrer da história, detiveram certa autonomia para
eleger, instituir e legitimar determinados hábitos culturais em detrimento de outros. Não
obstante essa constatação aparentemente óbvia, determinadas classes de atividades
comunitárias são até hoje verificadas universalmente, independente do grau de restrições
técnicas, geográficas, étnicas ou econômicas condicionando o cotidiano. O ato de jogar
pertence ao rol dessas últimas, considerando-se que nenhuma civilização jamais abdicou de
praticá-lo, pelos mais vastos motivos: celebração, relaxamento, preparação social,
aprendizagem de valores, entretenimento, profecias e outros mais.
A globalidade desse fenômeno não permaneceu incólume à percepção dos filósofos.
Mesmo que muitos deles não tenham elegido o jogo como objeto central de suas
investigações, não raro recorreram à essa noção na tentativa de explicitar, com o seu auxílio,
temas de reconhecida importância filosófica. Nesse sentido, vale a pena rememorar a sentença
de Heráclito de que o curso do tempo do mundo assemelha-se aos procedimentos de uma
criança que joga, ou mesmo a anedótica repreensão de Platão a dois indivíduos que jogavam
dados com displicência, pois jogar dados simbolizava algo deveras importante, a invocação
do acaso.1
Em contrapartida, demonstra Duflo (1999), há pensadores que realmente procuraram
produzir reflexões sistemáticas sobre jogo, também pelo fato delas mais ajudarem a elucidar
questões chaves de suas obras do que propriamente nutrirem algum tipo de interesse
específico pelo assunto. Segundo o autor, enquadram-se nessa linha situacional Tomás de
Aquino; Bernouilli, Leibniz e Pascal; os filósofos Iluministas Erasmo de Roterdam e
1 A descrição dos dois acontecimentos narrados, nessa ordem, encontra-se nos textos Les écoles
présocratiques, edição de Jean-Paul Dumont, Paris, Gallimard, 1991, página 78 e Vie, doctrines et sentences des philosophes illuestres, de Diógene Laerce, Paris, Garnier-Flammarion, 1965, página 165.
14 Rousseau; e, por fim, Kant. Até o fim do século XVIII, coube à esses nomes organizar as
reflexões teóricas de maior relevo sobre jogo.
Após o cenário descortinado por Kant, outros autores de renome revisitaram o
conceito de jogo como forma de fundamentar, em maior ou menor grau, temáticas
diretamente ligadas ao foco central de suas investigações. Dentre eles, convém destacar os
Românticos Novalis, F. Schlegel e A.W. Schlegel, Nietzsche e, mais tarde, no século XX, o
filósofo Walter Benjamin.
Em função dessa constatação, o objetivo do presente estudo consiste em uma
investigação do conceito de jogo em Walter Benjamin. Num primeiro momento, buscaremos
expor as pressuposições teóricas a partir das quais ele é construído, para em seguida analisar
que sorte de inter-relações existem entre o mesmo e as análises de Benjamin sobre arte. Por
fim, discutiremos até que ponto o binômio jogo/arte pode ser empregado para estruturar
reflexões sobre os processos de formação moral do sujeito no contexto da modernidade.
15 INTRODUÇÃO
JOGO E FILOSOFIA
Caso coloquemos Tomás de Aquino como o filósofo que primeiro dedicou-se a
escrever um estudo sistemático sobre o ato de jogar, pode-se afirmar que o eixo central de
suas análises irmana-se ao problema das virtudes, enquanto atributos para o alcance humano
da felicidade. Na questão 168 da Suma Teológica, concernente ao estudo da ´eutrapelia`,
Aquino procurará responder nos artigos 2, 3 e 4 a seguinte pergunta: existe alguma virtude no
jogo? Resumidamente, o ponto chave a ser resolvido é se qualquer distração lúdica é negativa
por si própria, ou há como obter efeitos positivos da entrega a elas.
Os argumentos de Aquino, referenciados em Santo Agostinho e Aristóteles,
enveredam para a verificação de uma dupla positividade. Primeiro, o jogo proporciona ao
espírito finito recobrar-se da fadiga gerada pela dedicação às atividades intelectuais. “A (...)
alma, em suas operações, está unida ao corpo, usando os órgãos sensíveis para realizar seus
atos; e quando, em seu modo de agir, sai do mundo sensível, se produz certo cansaço (...)
tanto se se dedica à vida contemplativa ou a ativa.” (Tomás de Aquino, 1955, p. 421). Jogar é,
assim, uma forma de descansar o espírito.
A segunda positividade é o desenvolvimento da ´eutrapelia`, ou urbanidade e bom
humor, característica essa requerida para a vida em sociedade. Aquino chega mesmo a
defender que a abstinência irrestrita a qualquer modalidade de jogo é ato pecaminoso.
Todavia, para que esses bons resultados acabem acontecendo, o jogador deve ser comedido,
ou seja, ter a virtude da medida, que faz parte de uma outra, a da temperança ou modéstia, que
preserva o homem dos excessos. Na sua ausência, o jogo periga tornar-se um fim em si
mesmo, e dessa forma corromper a alma.
Outras formas de tratar o jogo vieram à baila nos séculos XVII e XVIII, desprendidas
16 do viés teológico-moral legado pelo Tomismo. O surgimento da teoria das probabilidades
fez com que a atenção dos matemáticos se desviasse para o escrutínio dos fenômenos lúdicos,
principalmente para os jogos de apostas e loterias, devido principalmente à incerteza dos
resultados. As pesquisas de Leibniz e Bernouilli, primeiro, seguidas das de Pascal, conferem
um tratamento diferenciado aos jogos, porquanto enxergam-no como fenômeno da
engenhosidade humana. Leibniz, em De arte combinatória, e Bernouilli, em Ars Conjectandi,
partilham da mesma opinião de que jogos são a arte de criar novas combinações a partir de
outras preexistentes. Particularmente Leibniz, em correspondência endereçada a Rémond de
Montmort, chegará a expor o desejo de criar um curso sobre tratamento matemático de toda
sorte de jogos.
Entretanto, a grande estima de Leibniz pelo ato de jogar será anunciada sem
subterfúgios em Novos ensaios sobre o entendimento humano. Neste trabalho, os fenômenos
lúdicos serão exibidos como testemunhas das capacidades do espírito livre de
constrangimentos. Eles oferecem as melhores oportunidades para se estudar o entendimento
humano, exatamente como as leis físicas do movimento são hipoteticamente estudadas nos
espaços livres de atritos:
Seria bom que aquele que quisesse tratar dessa matéria continuasse o exame dos jogos de azar; e geralmente eu gostaria que um hábil matemático quisesse fazer uma ampla obra bem circunstanciada e bem raciocinada sobre todos os tipos de jogos, o que seria de grande uso para aperfeiçoar a arte de inventar, parecendo o espírito humano melhor nos jogos do que nas matérias sérias. (Leibniz, citado por Duflo, 1990).
Jogar é, então, exercitar o intelecto, com o diferencial do incentivo do prazer, o que
não se tem nas ditas ocasiões sérias, como, por exemplo, reuniões de negócios. Nas análises
de estratégias, antecipações de jogadas e cálculos de risco, o jogador comporta-se como o
17 sábio ilustrado que deve prever a natureza. É nesse sentido que jogar compatibiliza-se com
o espírito racionalista do tempo: ao exigir um trabalho de pensamento, desenvolve a
habilidade do pensar.
A dificuldade de se chancelar com precisão exata as conseqüências das situações de
jogo, por sua vez, chama a atenção para o fato de que as escolhas do jogador nem sempre são
recompensadas tal qual ele gostaria. Insurge aqui a questão de um tipo particular de juízo,
que, formulado e emitido a partir de uma análise circunstancial, nem sempre é acompanhado
por resultados à altura. É justamente esse item que desperta o interesse de Pascal, que,
inicialmente nas cartas trocadas com Fermat, e depois em Pensamentos, anunciará a
possibilidade de haver uma justiça retributiva no jogo. Em outras palavras, há leis no jogo, e é
com base nelas que a relação decisão/resultado espelha uma maior ou menor justeza de
proporções. Isso quer dizer que mesmo na ignorância do que o acaso trará, ainda assim vige
uma legislação ordenadora.
A ascensão do Iluminismo acarretará consigo um novo levante de considerações sobre
o lugar social do jogo, em larga escala guiadas pela necessidade de reformulação universal
das bases educacionais herdadas da tradição na direção de uma sociedade mais livre e
esclarecida.
Certos tratados sobre a educação das crianças tinham, desse ponto de vista, aberto o caminho. A obra ´De pueris instituendis` de Erasmo é, nesse sentido, exemplar. Nele encontramos a idéia de que o jogo pode ter uma função educativa e que podemos utilizá-lo, mesmo que seja como o açúcar que envolve o medicamento para dissimular seu amargor. (Duflo, 1999, p. 53).
Erasmo defende, sem reticências, a colocação das emulações provocadas pelas
atividades lúdicas a favor das finalidades de ensino-aprendizado. “O papel do preceptor será
(...) o de levar ao estudo a máscara do jogo.” (Erasmo, citado por Duflo, 1999, p. 54).
18 Também Rousseau comungará da mesma idéia de que o jogo é um veículo deveras
profícuo para catalisar a assimilação de conteúdos pedagógicos. O fato de ser agradável aos
infantes justifica o seu emprego utilitário. “Não consigo imaginar nada tão divertido e tão útil
quanto (...) jogos, por pouca habilidade que se use para ordená-los.” (Rousseau, 2004, p. 166).
Contudo, isso não significa falta de comprometimento, sublinha Rousseau, pois a dedicação
da criança ao jogo constitui algo deveras sério:
As ocupações e as diversões são as mesmas coisas para ele: suas brincadeiras são suas ocupações, não sente nenhuma diferença entre elas. Em tudo o que faz, mostra um interesse que faz rir e uma liberdade que agrada, revelando ao mesmo tempo o jeito de seu espírito e a esfera de seus conhecimentos. Não é o espetáculo dessa idade (...) doce e encantador (...) ver uma linda criança, de olhos vivos e alegres, jeito contente e tranqüilo, fisionomia aberta e risonha, fazer enquanto brinca as coisas mais sérias, ou então profundamente ocupada com as mais frívolas diversões? (Rousseau, 2004, p. 208).
Rousseau, seguindo a trajetória de Erasmo, confere ao jogo um tratamento moral até
então pouco explorado, o de coadjuvante na formação educacional do sujeito. Se em Aquino
jogar trazia descarrego das tensões da alma, e em Leibniz e Bernouilli era uma sofisticada
forma de exercício da inventividade e da cognição, o pensador francês vai adiante dos três ao
ousar indexar tal prática ao status de meio condutor do aperfeiçoamento humano em direção a
sua plenitude.
As inovações encaminhadas por Rousseau, dado o seu alcance, abriram problemáticas
para a filosofia da educação. Elas suscitaram o interesse de Kant, que conseguiu renovar
muitas das orientações sobre o conceito de jogo. As principais obras em que Kant teoriza
sobre o assunto são as Reflexões sobre Educação, Antropologia de um ponto de vista
pragmático e Crítica da Faculdade do Juízo. Como estratégia para se compreender as
mudanças de rumo dada ao assunto pelo filósofo alemão, iniciaremos nossas considerações
19 partindo dos dois primeiros textos. Convém lembrar que ambos foram editados ao fim da
vida de Kant, depois do terceiro estudo crítico. Contudo, sabe-se também que tratam-se de
trabalhos baseados em notas de aulas antigas, o que em parte justifica nosso procedimento.
Nas Reflexões sobre Educação, Kant opõe-se em muitos itens ao Emílio,
principalmente contrariando a idéia de que, para a criança, não há dissociabilidade entre
brincadeira e ocupação.2 Ao assumir essa posição, Rousseau está, para Kant, sugerindo que
ações laboriosas e ações lúdicas possuem os mesmos fins ontológicos, o que é inverossímil.
Certamente o puro e simples treinamento instrucional, repousando na autoridade do mestre e
na heteronomia é ruim. Mas é um contra-senso que a destinação do homem funde sua
formação no puro prazer lúdico. Jogar deve ser estimulado e mesmo praticado, porém a
dedicação ao trabalho precisa ser aprendida, ainda mais naquilo que possui de penoso e
constrangedor.
O argumento kantiano pauta-se numa máxima antropológica cujos efeitos pedagógicos
são decisivos, porque é por ser livre que o homem age como animal laborioso que transforma
a natureza, e para aprender a sê-lo carece de vivenciar a coerção. Por esse motivo, é
necessário que a educação passe por uma aprendizagem do trabalho pelo trabalho; uma
educação que preconiza demasiadamente o jogo e o prazer, tal qual a dos discípulos de
Rousseau, está a priori fadada a impedir a assimilação da estrutura coercitiva do real.
A escola é uma cultura por coerção. É extremamente ruim habituar a criança a ver tudo como um jogo. Ela deve ter tempo para suas recreações, mas também deve haver para ela um espaço em que trabalhe. E se a criança não vê de início para que serve essa coerção, perceberá mais tarde sua grande utilidade. (Kant, citado por Duflo,
2 Vale a pena lembrar, a título de informação, que as críticas de Kant incidiram não apenas sobre Rousseau,
seu foco principal, incluindo adicionalmente a maior parte dos teóricos da educação na Alemanha que tentaram vulgarizar as noções do iluminista francês propondo-lhe aplicações práticas, como, por exemplo, os acadêmicos do ´Philanthropinon`, o instituto de pesquisas educacionais fundado por Basedow em 1774. Para maiores detalhes sobre esse acontecimento, conferir a introdução Kant et le problème de l`èducation, de Alexis Philonenko, tradutor francês das Réflexions sur l`education, Paris, Vrin, 1993, p. 17-23.
20 1999, p. 56-57).
A tese de que uma mesma atividade guarda características de ocupação e
entretenimento, dependendo do ângulo sob o qual seja vista, em nada autoriza subjugar o
ensino ao crivo do agradável. “Acreditar que o jogo possa ensinar a trabalhar é se equivocar
sobre os fins recíprocos do trabalho e jogo.” (Duflo, 1999, p. 57). Isso não significa, no
entanto, que o ato de jogar seja desprovido de valor educativo, porque também oferece, à sua
maneira, um aprendizado sobre diversos assuntos e mesmo favorece o desenvolvimento do
ser humano. Os jogos das crianças são, sob essa ótica, um lugar insubstituível de auto-
aprendizagem espontânea, por se tratarem de expoentes de uma cultura ´livre`, não escolar,
que obviamente também é essencial. Afinal de contas, nessas atividades elas confrontam-se
com regras, executam papéis, são obrigadas a negociar interesses e prestam-se à auto-correção
de atitudes.
Feita essa observação, Kant chega mesmo a listar um receituário de jogos, tendo por
critério a sua completude. “Em geral, os melhores jogos são aqueles nos quais aos exercícios
de habilidade acrescentam-se exercícios dos sentidos.” (Kant, citado por Duflo, 1999, p. 57).
Um bom jogo educacional, para Kant, deve desenvolver harmonicamente as forças das
crianças (jogos de bola com corridas), levá-las a tecer julgamentos sobre o sensível (visar e
avaliar as distâncias) e cultivar habilidades gerais, imaginação e memória (pipas e jogos de
esconder).
Vê-se que o mérito dos jogos está, acima de tudo, na riqueza com que ativam as
valências físicas, espirituais e afetivas. Ao dinamizá-las, combate a inércia que volta e meia
lhes assola e compromete o seu melhor funcionamento. A bem da verdade, Kant está assim
tomando partido de uma posição muito peculiar sobre os efeitos dos jogos sobre o sujeito,
doravante explorada na Antropologia de um ponto de vista pragmático, a de que mexem com
21 as sensações e, assim atuando, promovem a vida. O tédio, a ausência de movimento, são ao
mesmo tempo fonte e sintomas de dor existencial:
Sentir (...) vida (...) não é, pois, nada mais que se sentir continuamente compelido a sair do estado presente (que, portanto, tem de ser uma dor que retorna com tanta freqüência quanto este). Daí, se explica o peso opressivo, angustiante, do tédio para todos os que dedicam atenção à própria vida e ao tempo (...). O vazio de sensações que se percebe em si provoca horror (horror vacui) e é como que o pressentimento de uma morte lenta, (...) em que o destino corta repentinamente o fio da vida. (...) Daí se explica também porque os passatempos são identificados com o contentamento: porque, quanto mais rápido passamos pelo tempo, tanto mais reanimados nos sentimos (...). (Kant, 2006, p. 130).
Eis o espaço antropológico conquistado pelo jogo e que serve para justificar, num
primeiro momento, sua prática: ele é um artifício de combate à consciência do tempo,
proporcionando esquecê-lo. Isso não só diverte como acarreta prazer. Mas como isso ocorre?
Como uma atividade até certo ponto vazia pode conduzir ao esquecimento do vazio de uma
existência?
Kant assim explica esse aparente paradoxo do jogo: “Porque ele é o estado em que
temor e esperança incessantemente se alternam (...) Porque em todos eles há certas
dificuldades – inquietação e hesitação em meio a esperança e alegria – e (...) o jogo de
afecções contrárias é (...) estímulo à vida (...), pois comoveu interiormente.” (Ibid. p. 129).
Em outros termos, nota-se, com efeito, que no jogo ocorre a imitação de situações da vida;
porém, essa mímese é dotada de uma cinética particular que chega mesmo a ludibriar a
matéria que compõe a vida. Alguém que vai ao jogo para se entreter, combater o tédio e
esquecer os infortúnios do tempo acaba penetrando num rol de situações que porão em
circulação afecções suas aparentemente sem nenhuma afinidade direta, numa escala tal que
ultrapassa qualquer expectativa de auto-controle.
22 Porém, na medida em que ao decidir jogar, o homem acaba, sem saber, despertando
a promoção lúdica da vida, é porque o jogo não existe desprovido de finalidade. Ou seja, visto
que na natureza as coisas não são em vão e possuem finalidades, o prazer achado no jogo
pelos homens é signo de que aquela, em sua vitalidade, induz os mesmos a isso de modo a
dinamizar neles o que lhe pertence. O que se passa aqui, em pequena escala, corresponde ao
verificado na história: o indivíduo que acredita agir por si mesmo, e segundo os impulsos de
sua livre aspiração, está, na verdade, sendo alavancado pela mediação da natureza servindo a
fins que o transcendem.3 O jogador provoca algo muito maior do que a diversão que procura
voluntariamente e crê manter sob controle, pois, no fundo, será a natureza que comandará
partes de si sobre as quais não consente e mesmo não delibera:
Os jogos de bola dos meninos, as lutas, as corridas, as brincadeiras de soldado, além disso, os dos homens no jogo de xadrez e de cartas (...) os jogos do cidadão que tenta sua sorte nas sociedades públicas com (...) dados – todos eles são inconscientemente estimulados pela sábia natureza à empreitada de testar suas forças em disputa com outros, a fim (...) de que a força vital em geral se preserve da extenuação e se mantenha ativa. Dois desses antagonistas crêem jogar um contra o outro, porém de fato a natureza joga com ambos (...). (Kant, 2003, p. 172).
Caso olhemos a riqueza das considerações de Kant sobre jogo não tanto sob o prisma
de seus conteúdos, mas a respeito do que dizem sobre a estrutura dele, notaremos que
referem-se a um tipo de prática cujos predicados que melhor lhe servem são movimento,
intercâmbio, circulação, circuitos e alternância de estados, dinamismo, etc. Essa mesma idéia
será reapresentada posteriormente, com a conotação de ´livre jogo das faculdades`, para
explicar o acometimento do sujeito pela sensação de beleza diante da obra de arte.
3 A defesa dessa tese, na perspectiva de uma evolução macroscópica da humanidade, é apresentada na quarta
proposição do ensaio Idée d´une histoire universelle d´un point de vue cosmopolite, presente no compêndio Ouvres philosophiques, Paris, Gallimard, 1985, p. 192-193.
23 ARTE E LIVRE JOGO EM KANT
A idéia de livre jogo, enquanto referência adotada por Kant para pensar a questão
estética desenvolvida na Crítica da Faculdade do Juízo, insere-se num contexto mais amplo
de discussão conceitual em grande medida delineado pelo cruzamento de informações
trabalhadas na Crítica da Razão Pura com outras da Crítica da Razão Prática. Ao passo que
no campo da razão pura teórica vige uma impossibilidade de representar objetos como coisas
em si, pelo fato da acessibilidade aos mesmos restringir-se ao campo fenomênico, o escrutínio
do domínio da razão prática indica que a formulação de uma lei moral universal não
contingente é viável caso a vontade livre-se do peso das inclinações sensíveis. Abre-se aí um
precedente por meio do qual pode-se esperar que, via razão prática, o plano das realidades
numenais torne-se acessível. A solução definitiva para esse problema, mediando a unidade do
mundo dos fenômenos e dos númenos, percorrerá quase todo o trabalho investigativo do
terceiro estudo crítico (Terra, 2003).
No capítulo introdutório à Crítica da Faculdade do Juízo, Kant revê a já vista questão
dos diferentes domínios do conhecimento humano representados pelos territórios da natureza
e da liberdade moral, e com base neles reitera que razão e entendimento não exercem
influência mútua direta um sobre o outro. Todavia, ao final da segunda seção do capítulo
introdutório, o filósofo arvora ser viável pensar numa interferência do reino da liberdade
sobre o da natureza. Com isso, admite que o conceito de liberdade não só pode como deve
tornar efetivo no mundo dos sentidos o fim posto por suas leis, o que significa considerar a
natureza a partir de uma possibilidade de concordância da conformidade legal que rege suas
formas com outros fins nela presentes.
O alcance de tal unidade entre a liberdade, cujo conceito sustenta a razão na qualidade
de agente das prescrições práticas, e a natureza, que tem no entendimento a chave para seu
conhecimento teórico, ocorre em um terceiro termo, denominado de faculdade do juízo, que
24 nada mais é do que a faculdade de pensar algo particular como contido num universal.
Quanto à isso, Kant nos fornece duas situações possíveis: o aparecimento do universal sob
forma de princípio, lei ou regra dada a priori subsumindo em si o particular, produzindo
juízos do tipo determinantes; e a caracterização de substratos universais a partir de elementos
particulares, obtida através do acionamento da faculdade do juízo reflexiva.
O reconhecimento de que a atividade de reflexão sobre um particular conduz à
produção de ajuizamentos universais presume que, por detrás das contingências empíricas, jaz
uma unidade comum a todas elas passível de encontro. A condição transcendental que permite
ao sujeito reflexionante chegar a esse resultado arraiga-se no pressuposto de que tal unidade
foi plasmada, segundo Kant, por um entendimento além do nosso que assim a fez em
concordância com nossas competências para conhecer. Esse princípio, chamado por Kant de
conformidade a fins da natureza, é a lei que a faculdade do juízo reflexiva dá a si própria para
unificar o múltiplo disperso empiricamente.
Na medida em que essa máxima subjetiva da conformidade a fins representa o eixo
norteador a partir do qual a reflexão move-se na direção de uma experiência de interconexão
de objetos, ela também representa uma ocasião de libertação de necessidades que, em última
instância, retrocede sobre o sujeito com efeitos regozijantes. Essa auto-satisfação, nas
palavras de Kant, decorre da interpretação subjetiva de que o curso dos acontecimentos deu-se
como se o acaso favorecesse as intenções de encontro de uma unidade sistemática por debaixo
das ocorrências empíricas. Nos momentos em que isto acontece, aflora um legítimo
sentimento de prazer, conforme podemos aduzir da seguinte transcrição:
De fato (...) a descoberta da possibilidade de união de duas ou várias leis da natureza empíricas, sob um princípio que integre ambas, é razão para um prazer digno de nota (...) ainda que o objeto deste nos seja bastante familiar. (...) Pelo contrário, ser-nos-ia completamente desprazível uma representação da natureza na qual antecipadamente
25 nos dissessem que na mínima das investigações da natureza, para lá da experiência mais comum, nós deveríamos deparar com uma heterogeneidade das suas leis que tornaria impossível para o nosso entendimento a união das suas leis específicas sob leis (...) universais. (Kant, 2005, p. 31-32).
O prazer ou desprazer de que fala Kant não são propriedades inerentes ao objeto; eles
advêm da adequação das representações que o sujeito faz de sua forma por intermédio de um
livre jogo, imputado pela reflexão, das faculdades de imaginar e entender. Logo, sem o lastro
de arcabouços conceituais, tal representação é estética. Desta colocação, Kant retira as
seguintes conseqüências:
a) O acordo lúdico da imaginação com o entendimento mediante a reflexão sobre uma dada
representação da forma do objeto, ao produzir prazer, indica que o objeto é belo;
b) Os julgamentos que incidem sobre um objeto belo, por envolverem prazer ou desprazer,
são julgamentos de gosto;
c) Sendo o fundamento do prazer o casamento da representação de um objeto conforme a fins
com as faculdades da imaginação e entendimento em livre jogo, situação essa que é universal
para todos os sujeitos, e estando a ascensão ou não desse prazer na base da emissão dos juízos
estéticos de gosto, deduz-se que estes também são de validade universal;
d) Os juízos de gosto expressam um estado de ânimo que pode ser comunicado
indistintamente com dimensões de universalidade.
Na acepção de Lebrun (2002), convém lembrar que Kant foi um filósofo aprumado
pelo intelectualismo estético da Aufklärung, cuja idéia de beleza acenava para campos de
aplicação em que o bem dizer, subordinado aos manuais de retórica e poética, superava em
importância as belas artes liberais. Não apenas o belo permanecia submetido aos imperativos
da perfeição lógica como era inconcebível sem esses parâmetros. Eis uma noção com que
Kant se depara e que não renegará, haja vista a precedência que ele outorga à superioridade da
26 poesia perante todas as outras artes. Contudo, as circunstâncias que sustentam os juízos
reflexivos estéticos, conforme desenvolvidas na 3.a Crítica, abrem margem para a
constituição de outros horizontes de problemas até então não contemplados pela atmosfera
conceitual da Aufklärung.
AS CONTRIBUIÇÕES DOS ROMÂNTICOS
Em síntese, pela fórmula do juízo reflexivo, a afirmação de que algo é belo alude a um
evento cuja ordem não é teleológica nem arbitrária. Isso significa que os juízos de gosto, com
tudo aquilo que englobam, acenam para estados de coisas não enquadráveis na forma com que
a pura consciência intelectiva, descrita na 1.a Crítica, remata os objetos. Contudo, isso não
significa ausência de lógica e perfil organizativo. As análises de Kant na Crítica da
Faculdade do Juízo conferem às criações artísticas um finalismo apenas delas, e é nessa
singela propriedade que radica a sua verdade.
O reconhecimento dessa possibilidade, consoante a perspectiva dos historiadores da
filosofia, contribuiu para a estruturação de boa parte da teoria estética romântica,
principalmente no que concerne aos pensadores da primeira geração, com destaque para os
irmãos Schlegel, Novalis e Schleiermacher (Reale, 1990). Para Novalis e Friedrich Schlegel,
as criações artísticas espelham a capacidade do gênio dos artistas de reinventar formações
lingüísticas por meio de novas condensações e arranjos (Gagnebin, 2007). Esse
acontecimento inicia-se com o recolhimento de aspectos do real nas dobras e desdobras das
linguagens (iconográfica, ideográfica, corporal, etc.) e segue com a posterior dilatação das
composições maturadas nesse encontro até os outros universos nele anunciados. Nesse
sentido, os artistas, principalmente os poetas, dada a espontaneidade e a irreverência com que
transitam por entre esses espaços, chegando mesmo a destruir frações suas para depois
reinventá-las, insurgem como legítimos transformadores do mundo conhecido.
27
A rigor, o poeta (...) expressa a liberdade máxima (...) como (...) um jogo constante que mescla a zombaria com a seriedade; (...) um jogo que (...) se situa naquele ponto em que todas as formas, incluindo as estéticas, se dissolvem, não para desaparecer, mas para transformar-se em outras que se dissolvem por sua vez e assim ao infinito. (Mora, 2001, p. 2612).
F. Schlegel e Novalis (citados por Gagnebin, 1999) reiteram que esses movimentos
lúdicos de condensação, expansão e metamorfose das linguagens, mais do que abalizarem
somente a geração de expressões artísticas, também apresentam afinidade formal com os
pensamentos conceituais, pois estes, a partir da apreciação das particularidades dos
fenômenos, também buscam providenciar formulações de validade universal. No entanto, a
produção de sentidos ora estéticos, ora cognoscitivos, depende do modo como os signos
lingüísticos são combinados entre si. Considerando-se que tais associações são infinitas, elas
configuram-se como veículos produtores de efeitos múltiplos, o que faz com que a própria
linguagem constitua, para os filósofos, um território dinâmico, e, por isso, livre de
cerceamentos. Atentando especificamente para o exemplo da poesia, Novalis e F. Schlegel
(Ibid.) reconhecem nela uma manifestação artística onde constantemente neoformações
semânticas são realizadas por meio de um desdobramento voluptuoso de palavras que em
quase nada lembra o discurso argumentativo linear apregoado pelo sujeito clássico da
Aufklärung. Por mais que os escritos provenientes de atividades poéticas versem sobre temas
universais, como, por exemplo, o amor ou a origem, as possibilidades de conflagração de
sentidos aí latentes através do manuseio de palavras, na sua incomensurabilidade, não
exprimem um sujeito interagindo mecanicamente com a realidade. Sobre isso, Novalis (citado
por Benjamin, 2002, p. 54) adianta: “Vários nomes são vantajosos para uma idéia (...)
Quantas vezes se sente a pobreza de palavras para atingir várias idéias com um golpe”.
Em que pese essa busca pelas melhores articulações de palavras, em cujas brechas
28 emergem as infinitas facetas do sentimento poético, Novalis (ibid. p. 71) complementa que
ela indica a vigência de uma interface entre a poesia e o pensar:
A arte da poesia é certamente apenas uma utilização arbitrária, ativa e produtiva dos nossos órgãos – e talvez o pensar seria ele mesmo algo não muito diferente – e, portanto, pensar e poetar constituiriam uma mesma coisa.
F.Schlegel (ibid. p. 70) não apenas adota ponto de vista semelhante ao de Novalis
como acrescenta um novo elemento em uma passagem de texto publicada nas Lições
Windischmann, a saber, a convergência do pensar poético com a faculdade criativa absoluta
do Eu-do-mundo:
Existe (...) um tipo de pensar que produz algo e que, portanto, possui uma grande semelhança formal com a faculdade criativa que nós atribuímos ao Eu da natureza e ao Eu-do-mundo. A saber, o poetizar, que de certo modo cria sua própria matéria.
Pelo exposto, Novalis e F. Schlegel ratificam na poesia um pensar que coloca o sujeito
numa situação de homologia com o Eu-do-mundo. Habitando a linguagem poética, esse
pensar eqüipara-se à natureza gerando-se a si mesma sem limites, condizente com uma arte de
inventar absoluta. Nessa condição, o pensar recebeu deles a denominação de reflexão: na arte
poética vivificada na linguagem, vigora um pensamento originário cuja estrutura formal
assemelha-se a da essência criadora absoluta do Eu-do-mundo, o que significa que, noutros
termos, a arte da poesia representa o meio de reflexão onde o pensar dilui-se no absoluto. Na
perspectiva de Novalis, (ibid. p. 73) o refletir pode ser também visto da seguinte forma:
O ato de saltar por cima de si mesmo (...) o mais elevado, (...) a gênese da vida. Assim, toda filosofia inicia-se onde o filosofante filosofa a si mesmo, isto é, consome-se [...] e se renova ao mesmo tempo. Assim
29 (...) inicia-se a vida da virtude, através da qual, talvez, a capacidade aumente ao infinito.
Em seu fragmento, Novalis considera a atividade pensante conduzida no meio de
reflexão da arte um processo que, malgrado transcender a superficialidade das relações
determinísticas de causa e efeito, faz coincidentes o auto-conhecimento do que se conhece, do
que conhece e o ser-conhecido do que conhece. “Portanto, tudo aquilo que se apresenta ao
homem como conhecer de uma essência é o reflexo nele do auto-conhecimento do pensar
nesta mesma essência.” (Benjamin, 1999, p. 62). Essa visão, presente não apenas em Novalis
e F. Schlegel, mas partilhada pelos demais filósofos românticos da primeira geração, presume
que as essências do sujeito e dos objetos abertos à investigação não compõem um agregado
de mônadas fechadas em si, avessos à interpenetração. Rompendo com correntes da
Aufklärung que postulavam a confiabilidade do conhecimento em razão do grau de
neutralidade investigativa do sujeito perante o objeto, os românticos, mais do que sugerirem
outro caminho metodológico, enveredam para um novo paradigma de saber pautado na
premissa de que a intensificação do pensar no meio de reflexão da arte, na condição de auto-
atividade criadora enredada ao absoluto, delimita potencialmente, em seu movimento, o
acesso às verdades contidas na religião, história, cultura, misticismo etc.
Ainda em relação a essas verdades, Novalis afirma em Pólen que muitas vezes suas
naturezas obedecem a lógicas bastante singelas, sem maiores compromissos com a ausência
de contradição e a coerência formal entre termos exigidas pelos filósofos da Aufklärung. Do
outro lado está Goethe, diz o poeta, pois este foi alguém que sempre buscou compreender,
segundo suas próprias palavras, a partir de exercícios imaginativos semelhantes a um jogo, as
correspondências conceituais aparentemente sem nexo vinculando o mundo dos homens e a
natureza, com ressalvas para aquelas feitas pelo senso comum:
30 Uma notável peculiaridade de Goethe observa-se em seus enlaces de ocorrências pequenas, insignificantes, com acontecimentos mais importantes. Ele parece não nutrir nenhum outro propósito nisso, a não ser ocupar a imaginação, de um modo poético, com um misterioso jogo. Também aqui esse homem singular achou a pista das intenções da natureza e apanhou-lhes em flagrante um engenhoso artifício. A vida costumeira está cheia de acasos semelhantes. Constituem um jogo que, como todo jogo, desemboca em surpresa e ilusão (...) Vários dizeres da vida comum repousam sobre uma observação dessa conexão reversa – (...) sonhos ruins significam fortuna – boato de morte, vida longa – um coelho que atravessa o caminho, infortúnio. Quase a superstição toda do povo comum repousa sobre alusões a esse jogo. (Novalis, 2001, p. 53).
Essa dimensão de abertura para outras regiões proporcionada pela reflexão conduzida
no meio da arte, comparável a um jogo imaginativo, do qual Goethe é um dos expoentes mais
notáveis, faz com que Novalis (citado por Benjamin, 1999, p. 52) chegue a dizer que aquela
eqüipara-se a “... uma idéia mística [...] penetrante, que nos introduz irresistivelmente em
todas as direções”. O misticismo de que fala Novalis refere-se à potência mesma da
linguagem que, no fundo, resulta da impossibilidade de seu fechamento. Resulta daí que a
comunicação de conhecimentos é relativa, pelo fato de depender do teor dos recortes
operados nos signos, palavras e conceitos da linguagem. Isso coloca em xeque a própria
legitimidade dos sistemas filosóficos nas suas pretensões teóricas de alcançar em definitivo,
por meio do rigorismo lógico, a verdade dos objetos de estudo sobre os quais versa. Isso fica
patente na seguinte afirmação de F. Schlegel (Ibid. p. 52):
O místico conseqüente não deve simplesmente deixar indefinida a comunicabilidade de todo conhecimento, mas negá-la totalmente; isto deve ser demonstrado de maneira mais profunda do que a lógica habitual alcança.
Ao fragmento anterior, escrito em 1776, pode-se acrescentar outro da mesma data: “A
comunicabilidade do verdadeiro sistema pode ser apenas limitada; isto se deixa provar a
31 priori.” (Ibid.). Ademais, numa carta escrita a Schleiermarcher datada de 1798, A.W.
Schlegel (citado por Benjamin, 1999, p. 52-53), irmão de F. Schlegel, fornece o seguinte
parecer:
As glosas marginais de meu irmão eu também conto como positivas; pois resultam nele melhor do que cartas inteiras, assim como fragmentos melhor do que teses, e palavras auto-cunhadas melhor do que fragmentos. No fim, todo seu gênio limita-se à terminologia mística.
Chamando particularmente a atenção para a questão do misticismo decantado por A.
W. Schlegel, reiterando que ele não remonta a um território nebuloso situado além da
linguagem, mas sim ao núcleo misterioso em cima do qual erige-se a potencialidade mesma
das palavras para franquear, com maior ou menor fidedignidade, o conhecimento da verdade
em qualquer direção, Seligmann-Silva (1999 a) afirma que o adjetivo ´místico` irmana-se a
um termo mais abrangente aparecido com recorrência entre os românticos, denominado
´Witz`. O ´Witz` engloba uma dimensão de aparição, de iluminação na fantasia despertada por
palavras formando conceitos que movimentam-se com uma dinâmica própria no meio de
reflexão da arte. F. Schlegel fala do ´Witz` como faculdade profética, enquanto Novalis
designa-o como um jogo mágico de cores nas esferas superiores, porquanto atua como um
agente que perturba para em seguida restabelecer, com novos aspectos, as coisas existentes
(Seligmann-Silva, 1999 b). Resumindo, o ´Witz` alude, para ambos os filósofos, a um estado
privilegiado do pensar, arraigado em ligações filosóficas ardentes e densas constituídas por
debaixo das palavras, diferente do que habitualmente se convencionou chamar de razão. Ele
invoca um pensamento radiante que, como um relâmpago, clarifica instantaneamente o real
para logo depois desaparecer, podendo advir da lucidez de uma escrita fragmentária, de um
aforisma, de um verso, ou, no limite extremo, de um único nome portentoso o bastante para
32 abarcar o universo inteiro. (Seligmann-Silva, 1999 a).
A teoria mística da linguagem desenvolvida pelos primeiros românticos subentende,
pelo ´Witz`, não haver acabamentos definitivos ou transparências perenes na linguagem. Ao
passo que, no bojo do kantismo, ser crítico referia-se a uma proposta de elucidação impelida
pela objetividade clareadora da consciência cognoscente, para os românticos a evolução do
pensamento crítico segue o movimento da reflexão. Isso torna a crítica romântica um
empreendimento assaz criativo, pois as propriedades místicas da linguagem, ao iluminá-la,
igualmente maturam processos de conhecimento originais, sem itinerários lineares. Com isso,
ela desconcerta as estruturas do pensar contínuo que funciona pela procura de identidades
tautológicas e não contraditórias. Esse mesmo motivo fá-la sempre inacabada e propícia à
reconstrução pela capacidade do sujeito de designar. Em Kant, a reflexão alavancava a
emissão de juízos estéticos subjetivos; nos românticos da primeira geração ela constitui a base
da atividade crítica.
Diante da impossibilidade de encerramento, a crítica torna-se um empreendimento
destinado a ser infinitamente revisto pelos que dela se ocupam, o que reverbera sobre o
próprio estatuto da obra de arte. Frente ao insuperável inacabamento da obra de arte, a
atividade crítica assume, para os românticos, muito mais uma função de complementação do
que propriamente julgamento de valor.
A RELEITURA DE WALTER BENJAMIN
O conceito romântico de crítica influenciou, em larga escala, as teorizações de Walter
Benjamin sobre as metamorfoses acontecidas no universo da arte no contexto da
Modernidade. Em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, Benjamin (1999)
demonstra que não apenas aceita a crítica como perpétuo acabamento da obra de arte, tal qual
advogado pelos filósofos do Romantismo, como vai além, asseverando que ela capitaneia o
33 conhecimento progressivo daquele que conhece no que se dá a conhecer. Com isso, ela
mostra-se como veículo de auto-reflexão e auto-julgamento da obra por ela mesma. Dito de
outro modo, o ato de criticar catalisa o desdobramento do espírito na direção de níveis de
reflexão cada vez mais abstratos e sofisticados:
Todo conhecimento crítico [...] enquanto reflexão [...] não é outra coisa senão um grau de consciência mais elevado da mesma, gerado espontaneamente. Esta intensificação da consciência na crítica é, a princípio, infinita; a crítica é, então, o medium no qual a limitação da obra singular liga-se metodicamente à infinitude da arte e, finalmente, é transportada para ela, pois a arte é, como já está claro, infinita enquanto medium de reflexão [...] Ou seja, a obra de arte singular deve ser dissolvida no medium da arte, mas este processo só pode ser representado de maneira coerente através de uma pluralidade (...) de graus de reflexão personificados. É evidente que a potenciação da reflexão na obra (...) nada mais deve fazer do que descobrir os planos ocultos da obra mesma, executar suas intenções veladas. No sentido da obra mesma, isto é, em sua reflexão, deve ir além dela mesma, torná-la absoluta. (Benjamin, 1999, p. 74-75).
A crítica, evidenciando que a obra de arte caracteriza-se enquanto criação incompleta
aberta ao absoluto que demanda re-elaboração constante, demonstra o paradoxo de sua sina, a
saber, nascer já explicitando na imbricação particular de conteúdo e forma um chamado para
posteriores reformulações que, consoante Benjamin (1999), denotam dialeticamente sua
predisposição para ser auto-superada na reflexão. Essa relação tensa, presente na obra, entre
construção e destruição dita o ritmo da elaboração estética, frisa o filósofo. Ou seja, ao
compor sua produção, o artista aponta a necessidade de modificar e destruir a forma e o
conteúdo que estão nascendo, como se jamais pudesse finalizar a frase literária, o arranjo
musical, o desenho, o traço que está desenvolvendo e inventando, pois frase, arranjo, traço,
etc. irão se interromper num momento comprovando sua insuficiência. A única conclusão
possível é o lance afortunado que ratifica o inacabamento. Cabe ao raciocínio crítico destruir a
individualidade inacabada da obra, inscrevendo-a de modo mais profundo na unidade
34 universal da arte, fazendo-a correlata desta:
A [...] obra singular [...] vítima da destruição [...] rasga um céu da forma eterna, a Idéia das formas, a que se poderia denominar de forma absoluta, e esta atesta a sobrevida da obra que extrai desta esfera sua existência indestrutível, depois que a forma empírica, a expressão de sua reflexão isolada, tenha sido consumida por ela. (Benjamin, 1999, p. 90 – 91).
A destruição do individual/particular da obra na forma absoluta converte esta em signo
da gestação de uma vida mais abrangente, comparável, nas palavras de Seligmann-Silva
(1999 a), ao esquartejamento dionisíaco de Nietzsche ou à ressurreição especulativa de Hegel.
Em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, Benjamin (1999) menciona um
verso de F. Schlegel que consegue sintetizar com bastante lucidez essa dialética da destruição
e do nascimento:
Sim, também a obra, comprada cara, permaneça valiosa para ti; Mas tu a amas tanto, dá-lhe tu mesmo a morte, Fixando no olho a obra que mortal algum finalizará: Pois é da morte do individual que brota a imagem do todo. (Ibid. p.89).
Por outro lado, a dissolução da obra particular no absoluto pela reflexão, na avaliação
de Benjamin, por residir na organização interna da mesma, destoa dos padrões da estética
kantiana, porque independe do prazer do gênio-artista ou da subjetividade do crítico
mobilizados em situação de livre jogo das faculdades. “Logo, neste tipo de [...] ligação com o
incondicionado, trata-se não de subjetivismo e jogo, mas, antes, da assimilação da obra [...] ao
absoluto, de sua completa objetivação que paga com sua eliminação.” (Benjamin, 1999, p.
90). Finalmente, retomando Schlegel, Benjamin (1999) declara que os aprimoramentos
realizados na obra pela crítica de arte de modo a abrir o caminho que vai do um ao todo são
35 delineados justamente nas intercorrências místicas da linguagem. “Esta arte da [...] crítica
[...] também é denominada por Friedrich Schlegel de ´divinatória`.” (Ibid. p. 94).
A propriedade divina da crítica de arte exerceu grande influência sobre Benjamin, o
qual manteve-a para o campo das linguagens em geral. Torna-se redundante dizer que isso
apenas atesta o peso exercido pela tradição romântica na estruturação de seu pensamento. No
entanto, essa vinculação específica entre linguagem, arte e crítica, temperada por ingredientes
místicos, insere-se numa discussão benjaminiana bem mais ampla, que trata da questão das
semelhanças existentes entre as coisas no cosmos.
Em trabalhos pioneiros e emblemáticos sobre esse tema, como Teoria das
Semelhanças, Sobre a Faculdade Mimética, Problemas de Sociologia da Linguagem e Sobre
a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana, Benjamin explicita que conhecer as
esferas do ´semelhante` constitui tarefa primordial para a compreensão da substância dos
saberes, pois estes são ora imediatos, ora não imediatos. Sendo o homem o espécime que goza
da maior capacidade de produzir semelhanças na natureza, das quais a arte é o grande
exemplo, conclui-se que suas faculdades superiores são permeadas por uma que entrelaça-se
com todas as outras: a faculdade mimética.
A faculdade mimética opera apreendendo por intermédio do consciente e inconsciente
as semelhanças físicas e não físicas existentes no mundo ao longo das eras. Sobre a percepção
dessas semelhanças, Benjamin (1992 a) afirma em Teoria das Semelhanças que ela é furtiva,
como o ´Witz` romântico. Logo, os homens não conseguem fixá-la definitivamente. “Ela
oferece-se aos nossos olhos de modo tão fugaz e passageiro como uma constelação” (Ibid. p.
61). As chaves para o estabelecimento dos elos de semelhança entre objetos físicos e não
físicos habitam, para o filósofo, os interstícios das linguagens.
Uma das grandes evidências de que desde os primórdios da humanidade a faculdade
mimética presentifica-se nas linguagens é a reprodução onomatopaica dos sons da natureza.
36 Através dela, geram-se vocábulos e, por conseguinte, conceitos, diz Benjamin. Até hoje,
observa-se que entre os poucos grupos humanos primitivos remanescentes no mundo, é
comum palavras de dialetos diferentes serem ordenadas ao redor de um mesmo significado,
como se ele fosse o epicentro em torno do qual gravitassem. Mesmo que todas não possuam
semelhanças de pronúncia entre si, sempre acha-se remissões em comum com aquilo que está
disposto ao centro. No seio de tal contexto, que abrange duplamente os planos da escrita e da
fala, formam-se multiplicidades de espaços cujos limites são o movimento dinâmico que vai
da sonoridade da frase e palavra ao correspondente grafológico impresso no texto, e vice
versa. Cabe ao pensamento que aceita aventurar-se nas reentrâncias e saliências desses
enigmáticos espaços, similares a quebra cabeças, buscar os nexos de semelhança na
infinitesimal brevidade do instante.
Desta maneira, a linguagem revela-se como o ´medium` de residência da faculdade
mimética. É nela que as semelhanças materiais e imateriais penetraram a fundo e
permaneceram. Como corolário, ler, reproduzir graficamente, reinventar e manusear signos
são assim atividades que permitem ao espírito re-adentrar essa dimensão constitutiva da
condição humana onde as semelhanças que perpassam os fluxos entre as coisas irrompem e
desaparecem transitoriamente.
Considerando-se o exposto, tanto no caso das leituras profanas como no das recitações
sagradas, estamos face a face com procedimentos dinâmicos que guardam em comum o fato
de exigirem do leitor tanto discernimento como interpretação das informações que guardam.
Portanto, há a necessidade de adoção de atitudes críticas, diz Benjamin (1992 a) em Teoria
das Semelhanças. Ora, tanto o aprimoramento da competência crítica como a mobilização da
faculdade humana de produzir mímesis por meio da cientificação de semelhanças físicas e não
físicas são habilidades que a educação pode e deve desenvolver, segue o autor. Sobre esse
ensino-aprendizado do acionamento da faculdade mimética, Benjamin afirma que o tronco a
37 partir do qual ele desencadeia-se é o jogo.
Em carta de 8 de abril de 1926 endereçada a Jula Cohn-Radt, o filósofo expõe que
saber detectar o que é importante ou não em textos (páginas, fragmentos, citações, capítulos,
notas, etc.) demanda toda uma preparação, por se tratar da exploração de um universo
enigmático em que é preciso encontrar-se desperto, vigilante. A postura requerida para ser
bem sucedido neste empreendimento, defende Benjamin, aparenta-se com a de um cavalo de
xadrez, que, montado pelo cavaleiro imaginário, devasta pastos e sustenta as laçadas. O
próprio Benjamin, de acordo com relatos de Missac (1998), enquadra-se nesta lógica:
Armado de sua preciosa caneta-tinteiro como de uma lança, numa progressão saltitante, Benjamin vincula [...] idéias e intenções, as transpõe e remodela. Outra vez, vem à mente o movimento de cavalo de xadrez (em alemão ´Springer`, saltador) que força o xeque-mate no meio do jogo, não no fim da partida, pula de uma casa para outra, volta àquela do início da partida para saltar de novo. (Ibid. p. 27)
Missac (1998) também refere-se a uma entrevista concedida por Benjamin onde os
procedimentos do enxadrista diante das trocas de posição de peças no tabuleiro sugerem uma
aproximação entre o ato de jogar e a literatura. A atenção despendida a leitura dos catálogos
de exposição em uma Galeria de Arte ou dos fichários da Biblioteca Nacional de Paris requer
tanto o envolvimento quanto a contemplação dos detalhes de uma pintura ou a imersão em um
livro. Porém, dessa concentração deve aparecer alguma novidade surpreendente, porque
inesperada e obediente ao sabor do acaso. Para o entendimento dessa posição benjaminiana, é
preciso aceitar que o manejo criativo da palavra origina-se de um mergulho lúdico na
linguagem. Por causa disso, Missac (1998) insiste que a relação de Benjamin com o jogo
insurge como um quesito central de sua filosofia.
O [...] leitor que tomou nota de uma citação saborosa ou útil, o
38 escritor que relê com satisfação a formulação que acabou de escrever como se estivesse fazendo um ditado, todos eles experimentam a euforia do jogador que [...] percebe subitamente que pode ganhar, ou que ganhou. (Missac, 1998, p. 104).
A vivência mais elevada dessa sorte de enlevo está, para Benjamin, no jogo de pôquer,
considerado por ele o ´rei dos jogos` (Ibid). Nele, o jogador envereda por situações em que se
vê obrigado, a cada rodada, a premeditar pela leitura fisionômica dos olhos dos adversários,
manuseio de cartas, acréscimo ou retirada de apostas, palavras pronunciadas, expressões
faciais, etc. o resultado com maior possibilidade de ocorrer para aí decidir entre o blefe, a
retirada do jogo, a troca de cartas em mão, o pagamento ou o confronto.
Olhando para todas essas ponderações, deparamo-nos com um cenário peculiar. A
crítica de arte, na avaliação de Benjamin (1999) em O conceito de crítica de arte no
romantismo alemão, não fundamenta-se no subjetivismo kantiano de gosto derivado do livre
jogo entre imaginação e entendimento. Enquanto leitura, discernimento e reconstrução aberta
da obra de arte, ela edifica-se na linguagem, que, por sua vez, goza de atributos místicos,
lúdicos e divinatórios. Essa mesma linguagem é o sítio da faculdade mimética, reunindo em si
infindáveis possibilidades de associações entre semelhantes físicos e não físicos tanto na
leitura como na escrita. Finalmente, o dom mimético, mais do que uma ferramenta
pedagógica, tem no jogo o princípio diretor de seu aprendizado.
Conclui-se então que, em Benjamin, vigora uma relação conceitual entre jogo e arte
até certo ponto enredada ao seu envolvimento inicial com os românticos. Essa mesma relação
segue ainda a persecução de uma outra trajetória em comparação com aquela desenvolvida
primeiramente por Kant na Crítica da Faculdade do Juízo. Logo, isso mostra que a questão
do jogo no pensamento de Benjamin obedece a orientações próprias.
39
40 CAPÍTULO I
O JOGO EM WALTER BENJAMIN
Pode-se dizer que os estudos de Walter Benjamin sobre o ato de jogar inserem-se no
contexto maior de suas reflexões sobre a modernidade. Para Rouanet & Witte (1992), a
originalidade dos trabalhos benjaminianos sobre o jogo arraiga-se no casamento de
referenciais literários com a observação in loco de experiências vividas por pessoas concretas
nas ruas, galerias, cafés e subúrbios da Paris do século XIX.
Sobre o singelo fato de Benjamin ter sido adepto de jogos, sabe-se que em suas idas a
Moscou costumava jogar dominó, sem olvidar que durante quase toda sua vida praticou o
xadrez. Nos últimos anos de vida, teve como parceiro fiel Bertold Brecht, que inclusive
chegou uma vez a sugeri-lo que ousasse reinventar o xadrez junto com Karl Korsch. No ano
1926, em 22 de março, Benjamin, numa correspondência a Jula Cohn-Radt, fala de sua
afeição ao pôquer, que adorava jogar contra adversários desconhecidos durante viagens de
trem.
Por mais que tenha sido diletante de jogos com características, regras e condições de
prática deveras diferentes entre si, a maior parte dos escritos de Benjamin acerca do assunto
incide sobre modalidades enquadradas, segundo Missac (1998), na categoria dos ´jogos de
azar`. Ao empregar essa expressão, o autor está querendo evidenciar a predileção do filósofo
por toda uma gama de jogos em que a provocação propositada de acontecimentos aleatórios,
não obstante ser requisitada, prevista e aceita pelos jogadores como condição fundamental
para seu acontecimento, serve igualmente de pano de fundo para a compreensão de outras
questões existenciais pertinentes a constituição do sujeito moderno.
Se, de um lado, a investigação benjaminiana sobre os jogos de azar reflete a
popularidade assumida por eles no panorama cultural do século XIX, por outro ela busca
41 compreender esse fenômeno relacionando-o a dois outros acontecimentos típicos da
modernidade: a divisão do trabalho fabril e o crescimento demográfico das populações
urbanas.
PASSADO, PRESENTE E MASSAS URBANAS: BAUDELAIRE E AS CENAS
PARISIENSES
A consolidação do capitalismo europeu no século XIX veio acompanhada de uma
grande elevação das populações residentes nas cidades e do alargamento das fronteiras
urbanas. Esta metamorfose não permaneceu incólume aos olhares da produção literária da
época, a qual tratou de incluí-la no rol de seus temas de trabalho. É com muita propriedade
que Victor Hugo, com Os Miseráveis e Os Trabalhadores do Mar, pode ser considerado um
dos pioneiros na exploração do assunto. Além disso, boa parte dos trabalhos acadêmicos de
inspiração socialista do período, dado o afã de identificar no crescimento desordenado das
multidões urbanas uma importante ferramenta para a revolução do proletariado, acabou por
assumir o tema da explosão populacional como objeto de investigação. Vejamos o que diz
Engels (1998) na passagem abaixo, retirada do documento A condição da classe trabalhadora
na Inglaterra:
Uma cidade, como Londres (...) é algo estranho. Essa colossal centralização (...) de dois milhões e meio de pessoas em um ponto, centuplicou o poder desses dois milhões e meio (...) Mas o custo desse sacrifício só mais tarde aparecerá. Depois de se vagar pelas ruas da capital (...) nota-se (...) que esses londrinos foram forçados a sacrificar as melhores qualidades da natureza humana, para realizar todas as maravilhas da civilização que pululam na sua cidade (...) O próprio tumulto das ruas tem algo de repulsivo (...) contra o qual a natureza humana rebela-se. As centenas de milhares de todas as classes e grupos, que se empurram uns aos outros, não são eles seres humanos com as mesmas qualidades e poderes, e com o mesmo interesse em ser feliz? (...) E, no entanto, colidem uns com os outros como se não tivessem nada em comum, nada a ver com o outro, e a única tácita
42 concordância é a de que cada um siga no seu lado da calçada, para não constranger a multidão que corre no lado oposto, enquanto não ocorre a nenhum homem honrar o outro com um mero olhar. A indiferença brutal, o isolamento insensível de cada um no seu interesse privado torna-se o mais repelente e ofensivo, quanto mais essas pessoas são aglomeradas junto em limitados espaços. (Engels, 1998, p. 79-80)
Um traço característico desse registro é o rigoroso detalhamento de Engels dos
espaços por onde circulam as multidões que cruzam Londres. Sua composição textual prima
pela objetividade. O distanciamento necessário para a produção de tal tipo de descrição,
contudo, não livra Engels de mostrar uma certa reação moral e estética diante do movimento
das massas, estimulada pela velocidade com que os transeuntes se precipitam sobre seu corpo
causando-lhe ´desagrado`. Encontramos semelhante juízo em Hegel, quando este, visitando
pela primeira vez Paris, pouco antes de sua morte, escreve à sua esposa: “Quando ando pelas
ruas, as pessoas aparentam-se com as de Berlim; elas vestem as mesmas roupas e os
semblantes parecem os mesmos – o mesmo aspecto, só que numa multidão maior.” (Hegel,
citado por Leach, 1997, p. 26).
O parâmetro que norteia as anotações de Hegel e Engels é a fidedignidade dos
conteúdos registrados em relação aos objetos externos observados. Para Löwy (2005) a
escolha por esse modelo de descrição pressupõe que a base do ato de conhecer alicerça-se no
distanciamento investigativo do sujeito sobre o objeto. Implicitamente, o real é suposto como
um composto de unidades elementares articuladas entre si regidas por algum finalismo: por
debaixo da aparente desorganização com que ele mostra-se aos sentidos, vigoram relações
passíveis de explicação inteligível.
Visitando o mesmo fenômeno de um ângulo alternativo, e que denuncia sua parcial
afiliação a fulgurância romântica da palavra, do aforisma ou do verso libertos da estrutura do
útil e dos fins como chave para a articulação das verdades, Benjamin recorre ao olhar
43 diferenciado da poesia moderna de Baudelaire para avaliar o quadro urbano das multidões
que turbilhoam Paris. Acerca dessa escolha, no trabalho Charles Baudelaire: um lírico no
auge do capitalismo, Benjamin (1989 a) assim se pronuncia:
No que diz respeito a Baudelaire, a massa lhe é algo tão pouco exterior que nos permite seguir de perto, em sua obra (...) seu envolvimento e (...) sua atração. (...) Em Baudelaire, a massa é de tal forma intrínseca que em vão buscamos nele a sua descrição. Assim, seus mais importantes temas nunca são encontrados sob a forma descritiva. (...) Baudelaire não descreve nem a população nem a cidade. Ao abrir mão de tais descrições colocou-se em condições de evocar uma imagem na outra. Sua multidão é sempre a da cidade grande; a sua Paris é invariavelmente superpovoada. (Benjamin, 1989 a, p. 115-116 ).
A palavra poética de Baudelaire exprime uma relação visceral com as multidões
urbanas de Paris, onde um imiscui-se organicamente com o outro. As coordenadas
ontológicas que parametrizam esse amálgama do escritor com as massas, denunciando a
unificação de ambos sem distinção de sujeito ou objeto, apontam para a configuração de uma
determinada articulação da linguagem em que os sentidos das coisas assumem uma faceta de
abertura e mobilidade. Sem restrições métricas e censura da sintaxe, os versos de Baudelaire
invocam justamente a imaginação dispersa na palavra poética como o espaço de residência da
verdade.
Conforme Benjamin (1989 a), Baudelaire exprime em estrofes as microtessituras de
uma Paris caótica, sem pontos fixos ou indícios de estabilidade, desprovida de solidez e
ordenações lineares.4 A metrópole baudelaireana reveste-se de significações taciturnas e
veladas; coberta por sombras labirínticas e penumbras, reúne fatos e acontecimentos que não
4 Encontramos no expressionismo inglês contemporâneo obras que recuperam o mesmo sentido de
desorientação e perda característicos da Paris poetizada por Baudelaire. Por exemplo, no quadro do pintor inglês Francis Bacon O retrato de George Dyer num espelho, de 1968, o artista esquematiza via jogo de cores e desenhos um espelho cuja reflexão do real mostra imagens inacabadas, não duplicadas, desconexas e desordenadas anatomicamente. As identidades que duplica não são estáveis, mas carregadas de ebriedade e ilusões. Conferir ANEXO I.
44 obedecem a qualquer lógica positiva. Baudelaire é soberbo na forma como revela um
aspecto ímpar da vida urbana moderna: o trânsito de indivíduos nas lotadas vias públicas
urbanas de Paris repercute diretamente nas faculdades sensório-motoras de seus corpos
físicos, por submetê-lo a estímulos similares a choques. Nos levantes urbanos, os corpos são
traspassados por sons, odores, estímulos visuais, toques, etc. das mais variadas naturezas, que,
entrando e saindo abruptamente do raio da percepção, despertam circuitos de sensações
independentes da aquiescência do sujeito. “Baudelaire fala do homem que mergulha na
multidão como em um tanque de energia elétrica.” (Ibid. p. 124-125). O poema A uma
passante ilustra essa situação:
A rua em derredor era um ruído incomum, Longa, magra, de luto e na dor majestosa, Uma mulher passou e com a mão faustosa Erguendo, balançando o festão e o debrum; Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata. Eu bebia perdido em minha crispação No seu olhar, céu que germina o furacão, A doçura que embala e o frenesi que mata. Um relâmpago e após a noite! - Aérea beldade, E cujo olhar me fez renascer de repente, Só te verei, um dia e já na eternidade? Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente! Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais, Tu que eu teria amado – e o sabias demais! (Baudelaire, 2005, p. 107).
A mulher desconhecida e o poeta que, caminhando numa avenida, trocam olhares,
examinam-se e afastam-se para nunca mais se acharem, protagonizam o caso de um original
amor que é, concomitantemente, à primeira e última vista: tão rápido quanto aparece, com
todo o sabor de novidade e surpresa que causa, ele some. Sobra a sensação nostálgica de que
algo poderia ter sido explorado até suas derradeiras conseqüências e não foi, permanecendo
45 doravante em suspenso.
Essa misteriosa transeunte personifica toda eventual pessoa que move-se
abstratamente nas massas, aparecendo e desaparecendo ao olhar do outro com imensa
velocidade e sem rastros, atestando que a durabilidade das interações entre indivíduos nessas
condições deriva do dinamismo de forças coletivas que ultrapassam o raio das vontades
particulares isoladas. Poeticamente, ela demonstra o quanto os relacionamentos na
modernidade tendem para a efemeridade e superficialidade, durando não mais do que breves
instantes.
Privados de perdurar por extensos períodos de tempo, a lógica dos relacionamentos
modernos de certa maneira acompanha, segundo Benjamin (1989 a), a lógica que norteia o
plano da produção material de mercadorias. Na modernidade, os objetos são planejados,
produzidos e comercializados por períodos de tempo relativamente curtos, pois, desde o
momento de sua criação outros artigos similares supostamente mais sofisticados já estão
sendo arquitetados para substituí-los, ainda que nem todas as suas propriedades ou
potencialidades tenham sido exploradas ou efetivamente exploradas. Eles surgem destinados a
tornarem-se, cedo ou tarde, obsoletos não pelo esgotamento das capacidades funcionais de
utilização, e sim pelas sucessões de congêneres mais novos e com supostas apreciações
superiores.
Estamos diante de um quadro que institucionaliza a caducidade e o perecimento das
coisas segundo caminhos anti-naturais. A não durabilidade propositada dos artefatos
industriais postos em circulação deriva, paradoxalmente, de relações de produção estruturadas
para perpetuarem-se sob a cobertura dessa dimensão de precariedade. Nada muda com a
aparição de novidades, haja vista que, de um ponto de vista formal, o estado da arte das
relações de produção segue estruturalmente intocado.
O que esperar então dos bens criados e comercializados para imediatamente
46 soçobrarem e caírem em esquecimento? Que sorte de trajetória eles cumprem? O ritmo do
progresso tecnológico que decreta o término de sua vida útil e funcional disponibiliza-os, por
outro lado, para sofrerem re-apropriações subjetivas em outros universos contextuais, onde
recebem novas e inesperadas significações. Logo, à decadência inescapável das coisas
concebidas, de antemão, para desaparecer, segue a possibilidade de renascimento enquanto
alegorias denunciadoras de um mundo em decrepitude, habitado por homens e bens
mortificados que apenas desse modo acharão a salvação (Gagnebin, 2006).
Um mundo com essas características, que recebe o eternamente igual travestido de
novo, e o sempre novo como reiteração do sempre igual, cerceia a experiência da história
como fluxo de transformações. Nele, a história perpetua-se como prisão do imediatamente
recente em relações ditadas por padrões inabaláveis. Ora, a inércia de um real que auto-
regenera seus conteúdos tanto materiais como culturais sem assinalar qualquer indício de
mutação em sua base estrutural é típica da temporalidade dogmática da magia e do mito,
lembra Benjamin (2006) em Passagens. “Em conseqüência, a modernidade não somente não
significa o fim da magia como significa a radicalização do universo mágico.” (Rouanet &
Witte, 1992, p. 114). Ao invés de selar um definitivo rompimento ontológico com a tradição,
a racionalidade técnica da modernidade acarreta a ascensão de um outro tipo de ambiência
mítica, fundada na eterna repetição dos mesmos acontecimentos.
Logo, o mesmo moderno que promete a emancipação humana pela racionalidade
técnica nasce arcaico, porque, em seus interstícios, a onipresença ancestral do mito não foi
abolida, mas sim intensificada de forma anti-natural por meio da lógica tecnificadora do
capitalismo. Dentre as muitas obras de Baudelaire, Benjamin (1989 a) afirma que o poema O
Cisne retrata com bastante sutileza essa questão, uma vez que, nele, a moderna Paris e a
mitológica Tróia de Homero são símiles:
47 Andrômaca, só penso em ti! O fio de água, Espelho pobre e triste onde outrora resplendeu, De teu rosto de viúva a majestosa mágoa, O Simeonte mendaz que ao teu pranto cresceu, Rápido fecundou minha fértil saudade, Como eu atravessasse o novo Carrossel Morto é o velho Paris (a forma da cidade Muda bem mais que o coração de uma infiel); Em espírito vejo os campos de barracas, Os fustes aos montões, as cornijas rachadas, Os muros de um verniz verde, as ervas opacas, O vago ferro-velho a brilhar nas calçadas. Ali outrora havia um aviário; Lá vi uma manhã, quando sob a amplidão Clara, o trabalho acorda e o lixo funerário Manda ao ar silencioso obscuro furacão, Um cisne que, ao deixar sua gaiola, as palmas Dos seus pés atritando o pavimento iníquo, Arrastava no chão as grandes plumas calmas. Junto a um riacho sem água, a ave abrindo o seu bico, Suas asas no pó banhava, num desmaio, E dizia a sonhar com seu lago natal: “Água, não choverás? Não trovejarás, raio?” Eu vejo este infeliz, mito estranho e fatal, Às vezes fitando o céu, como o homem ovidiano, Para o céu de um azul cruel e tão irônico, Contorcendo o seu colo, o mais convulso e insano, Enquanto envia a Deus o seu riso sardônico!
Na lembrança da imagem do choro de Andrômaca, esposa de Heitor, cujo pai e sete
irmãos acabaram liquidados no oitavo ano da guerra de Tróia, o poeta lembra-se de uma
Paris, cujas construções perduram apenas na sua memória. O sentimento melancólico de
objetos e situações que jamais voltarão concentra-se na figura do cisne, cujo grasnar parece
perguntar aos céus que fim levaram a chuva e os raios que compunham o cenário pretérito de
uma paisagem vivaz e opulenta, mas que no momento atual não passa de espaço devastado.
Na segunda parte do poema, Baudelaire confirma tal transfiguração:
48
Paris mudou! Porém minha nostalgia É sempre igual: torreões, andaimes, lajedos, Arrebaldes, em tudo eu vejo alegoria, Minhas lembranças são mais pesadas que rochedos. Também diante do Louvre uma imagem me oprime: Penso em meu grande cisne, o do gesto feroz, Exilado que ele é, ridículo e sublime, Roído de um desejo infindo! Como em vós, Andrômaca, a tombar dos braços de um esposo, Gado vil, para as mãos de Pirro tão sereno, Junto a tumba vazia, em langor doloroso; Viúva de Heitor além de ser mulher de Heleno! Penso na negra, a tísica e a doente; Busca de pés na lama e de olhar tão bravio De sua África nobre o coqueiral ausente Atrás do muro imenso, do nevoeiro e do frio; Em quantos a Fortuna, e para sempre, rouba Seu bem melhor! Nos que se alimentam de dor, Onde soem mamar, como de boa loba, Nos órfãos a mirrar mais seco do que a flor! E na floresta, que meu pobre corpo trilha, Soa como buzina uma velha lembrança. Penso no marinheiro esquecido numa ilha... Nos vencidos de sempre e nos sem esperança! (Baudelaire, 2005, p. 99-101).
A Paris dos versos finais de O Cisne agrega elementos de fragilidade e desolação,
como a adoentada negra mendicante e o marinheiro perdido na ilha, com outros de
reconhecida significância na história da arte poética (Andrômaca, viúva de Heitor e esposa de
Heleno).5 Particularmente, Benjamin (1989 a) analisa dessa forma em Charles Baudelaire:
um lírico no auge do capitalismo, a articulação poética que condensa o longínquo passado
troiano com cenas da Paris moderna:
5 No plano das artes plásticas, Benjamin considera que os quadros do pintor Charles Meryon exibem as
mesmas nuanças da Paris de Baudelaire em O Cisne, visto que neles a cidade é exposta como um reduto de mortos. Conferir a pintura A pequena torre, em ANEXO II.
49
Não é à toa que se trata de um poema alegórico. Essa cidade tomada por constante movimentação se paralisa. Torna-se quebradiça como o vidro, mas, também como o vidro, transparente – ou seja, transparente em seu significado. A estatura de Paris é (...) a desolação pelo que foi e a desesperança pelo que virá. (Benjamin, 1989 a, p. 81).
Desolação e desesperança são sentimentos corriqueiros do sujeito moderno que
vivencia a história amarrado a uma temporalidade onde o novo confunde-se com o sempre
idêntico. Resignação, passividade e capitulação passam a ser atributos corriqueiros de sua
vida. A submissão à tais circunstâncias fundamenta o seguinte comentário de Benjamin
(2006) extraído de Passagens: “O capitalismo foi um fenômeno natural com o qual um novo
sono, repleto de sonhos, recaiu sobre a Europa e, com ele, uma reativação das forças míticas.”
(Benjamin, 2006, p. 436). O rumo do progresso tecnológico moderno, ao invés de sublimar as
potencialidades da humanidade na direção da libertação, re-insere no presente os arcaísmos
míticos do começo dos tempos.
Somente um observador superficial pode negar que existem correspondências entre o mundo da tecnologia moderna e o mundo arcaico dos símbolos da mitologia. Num primeiro momento, de fato, a novidade tecnológica produz efeito somente enquanto novidade. Mas logo nas (...) lembranças da infância transforma seus traços (...) Cada infância, com seu interesse pelos fenômenos tecnológicos, sua curiosidade por toda sorte de invenções e máquinas, liga as conquistas tecnológicas aos mundos simbólicos antigos. Não existe nada no domínio da natureza que seja subtraído de tal ligação. (Ibid. p. 503).
Todavia, qual o conteúdo desse grande mito coletivo que é a modernidade? Tal qual
sugerem as análises de Benjamin (2006) em Passagens, a inércia típica da falta de consolação
ante o que já desapareceu e o anunciado descrédito diante do que se prefigura, ambas frutos
do aprisionamento em um presente que eterniza-se, comparam-se, às condenações que o
inferno judaico-cristão reserva aos pecadores. De acordo com o autor, as grandes
50 manifestações culturais parisienses do século XIX, como a moda, os museus, a criação
literária e o jogo, são lugares por excelência onde a face moderna do mito do inferno aparece
nas suas minúcias. Como proceder então para investigá-los?
Avançar com o machado afiado da razão, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda, para não sucumbir ao horror que acena das profundezas (...). Todo solo deve alguma vez ter sido revolvido pela razão, carpido do matagal do desvario e do mito. (Benjamin, 2006, p. 499).
JOGO, SOCIEDADE E LINGUAGEM
Os vários estímulos sensoriais que incidem sobre os órgãos dos sentidos de pessoas
imersas em multidões e que escapam ao seu desejo de querer ou não recebê-los no raio de sua
percepção reaparece no corpo dos operários que operam as máquinas fabris das linhas de
montagem. Ao passo que nas corporações de ofício artesanais as conexões entre etapas do
processo de trabalho obedeciam a uma certa continuidade, na organização laboral das
modernas fábricas elas independem entre si. As peças entram e saem do raio de intervenção
corporal dos operários de maneira arbitrária, sem suas anuências.
Na linha de montagem, cabe ao operário uniformizar o movimento corporal
adequando-o ao ritmo do funcionamento das máquinas, que podem ser vistas como
instrumentos adestradores, pois, na medida em delimitam o que deve ou não ser realizado na
linha de produção, contribuem para automatizar os gestos motores conforme suas demandas.6
Embora esse adestramento acarrete a produção de bens materiais, ele não funda uma prática,
porque esta pressupõe grupos de indivíduos exercendo integralmente uma mesma atividade
segundo o domínio de uma determinada técnica em comum. Na prática, cada participante
partilha a memória das experiências pessoais e coletivas do conhecimento técnico com os 6 Isso é o mesmo que dizer que os acréscimos progressivos na produtividade do trabalho exigidos pelo capital
esbarram também na instauração eficiente de uma pedagogia diretiva que tipifica o que ou não o corpo do trabalhador pode fazer no espaço de montagem.
51 pares, podendo aperfeiçoá-la nos momentos seguintes. Por esse viés, a gestão fabril
taylorista e fordista invalida-se como exercício prático, pelo fato de bloquear a constituição e
comunicação de experiências duradouras entre os trabalhadores das linhas de montagem. A
ritmicidade cadenciada e mecânica dos movimentos automáticos executados pelos operários
fabris transcende o tempo e espaço da jornada de trabalho, reaparecendo no repertório gestual
dos indivíduos dedicados aos jogos de azar, anota Benjamin (1989 a) em Charles Baudelaire:
um lírico no auge do capitalismo. Sua justificativa apóia-se na constatação de que os atos
corporais dos diletantes de jogos de azar embaralhando cartas, alocando fichas de aposta, ou
mesmo aguardando a confirmação de resultados são também executados de maneira
automatizada, com grande velocidade e pouca interferência da cognição. Vista por esse viés,
ela quase em nada difere, qualitativamente, do movimento corporal do operariado nas
fábricas.
O século XIX assistiu a uma grande proliferação das casas de jogo e cassinos, em
acompanhamento à expansão dos perímetros urbano e industrial europeus. “O jogo (...)
passou a fazer parte da vida (...) dos milhares de existências (...) de uma cidade grande.” (Ibid.
p. 128). No entanto, quais as principais características desse tipo de atividade? Como situá-la
no espectro maior das análises de Benjamin? O que ela apresenta de único, para o filósofo?
A atuação dos indivíduos em jogos de azar consiste de eventos únicos, porque o início,
desenvolvimento e final de cada partida independe do que ocorreu nas antecedentes ou
futuras. Cada partida encerra um campo de virtualidades, pois toda decisão ou intervenção
feita pelos jogadores, salvaguardando a permissão das regras, geram efeitos imediatos que
retrocedem sobre o modo de atuação dos outros participantes. Geralmente, a cientificação
prévia de como cada jogador procederá não é possível de antecipar. Isso quer dizer que, no
espaço de jogo, as realidades situacionais configuram-se à medida que os lances acontecem,
nem antes e nem depois. Daí, não haver como, durante um jogo de azar, vigorarem
52 ocorrências perenes e definitivamente consolidadas, pois reações pessoais e conjuntura
global de resultados interagem em estado de metamorfose permanente. Todo evento
acontecido numa partida abre nós de problemáticas imprevisíveis, as quais muitas vezes são
sequer resolvidas em função da rapidez com que surgem e somem. “A bolinha de marfim
rolando para a próxima casa numerada, a próxima carta em cima de todas as outras, é (...) o
(...) tempo (...) em que transcorre a existência daqueles a quem nunca é permitido concluir o
que foi começado.” (Benjamin, 1989 a, p. 129). O que existe de contínuo no jogo é seu
aspecto de ruptura, que quebra qualquer linearidade e conclusão definitiva dos
acontecimentos.
Durante uma partida, os estados de ânimo do jogador variam intensamente.
Representações dos mais variados aspectos aparecem e desaparecem de sua imaginação
enquanto jogam, sobrevivendo ao seu término como lembranças de um estágio interrompido.
Vejamos o seguinte depoimento que Benjamin (1989 b), no ensaio Jogo e Prostituição,
seleciona do livro ´O jardim de Epicuro`, do escritor Anatole France, alusivo ao comentário
de um jogador sobre os motivos que o conduzem a jogar:
Tentar a sorte não é uma volúpia medíocre. Experimentar num segundo meses, anos, toda uma vida de medos e esperança não é um prazer sem embriaguez (...) Ora, o que é o jogo senão a forma de provocar, num segundo, as modificações que o destino, de ordinário, só produz em muitas horas e mesmo muitos anos, a forma de reunir apenas num só instante as emoções esparsas na lenta existência de outros homens., o segredo de viver toda uma vida em alguns minutos, enfim, o novelo de linha do gênio? O jogo é um corpo a corpo com o destino... Joga-se a dinheiro (...) o que significa a possibilidade imediata, infinita. Talvez a carta que se vai revirar, a esfera que rola, dê ao jogador parques e jardins, campos e florestas imensas, castelos com pequenas torres pontiagudas erguidas para o céu. Sim, esta pequena esfera que rola contém em si hectares de boa terra e telhados de ardósia, cujas chaminés esculpidas se refletem no Loire; ela encerra tesouros da arte, as maravilhas do bom gosto, jóias prodigiosas, os corpos mais belos do mundo, e mesmo almas que não se acreditava venais, todas as condecorações, todas as honrarias, todos os obséquios
53 e todo o poder da Terra ... E vocês gostariam que não jogássemos? Ainda se o jogo desse apenas infinitas esperanças, se não mostrasse mais que o sorriso de seus olhos verdes, talvez não o amássemos tão ardorosamente. Mas ele tem unhas de diamante, é terrível; concede, quando lhe apraz, a miséria e a vergonha; é por isso que o adoramos. A atração do perigo é subjacente a todas as grandes paixões. Não há volúpia sem vertigem. O prazer mesclado ao medo embriaga. E que há de mais terrível que o jogo? Ele dá e tira, suas razões não são absolutamente as nossas razões (...) Pode tudo. É um deus. (France, citado por Benjamin, 1989 b, p. 248-249).
Nota-se, diante desse excerto, que o ato de jogar suscita produções imaginárias
deveras fantasiosas. Encontramos conteúdo semelhante em fragmento de uma outra obra
citada por Benjamin (1989 a) em Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, a
saber, ´Os ceifeiros noturnos`, do romancista Edouard Gourdon:
Afirmo que a paixão pelo jogo é a mais nobre das paixões, pois reúne em si todas as outras. Uma seqüência de cartadas de sorte me proporciona mais prazer do que um homem que não joga pode ter em vários anos...Vocês acreditam que eu veja no ouro a que tenho direito apenas o lucro? Enganam-se. Vejo nele os prazeres que me proporciona e me delicio com eles. Chegam-me por demais velozes para que possam me enfastiar e em variedade grande demais para me enfadar. Vivo cem vidas em uma única vida. Quando viajo, é da forma como viaja a centelha elétrica... Se sou avarento e guardo meu dinheiro para jogar, isso é porque conheço bem demais o valor do tempo, para gastá-lo como as outras pessoas. Um prazer determinado que eu me concedesse me custaria outros prazeres... Tenho os prazeres no espírito, e não pretendo outros. (Gourdon, citado por Benjamin, 1989 a, p. 130-131).
O conteúdo de ambas as citações permite que algumas questões bastante peculiares
sobre o comportamento dos jogadores sejam discutidas.
O jogador, quando em situação de jogo, experimenta o tempo de uma maneira
qualitativamente diferente do usual. Enquanto os resultados das partidas não estão
homologados em definitivo, ele avalia a situação de tensão pela qual passa como muito
prazerosa. Todavia, tal avaliação, vista pelo lado das palavras que o jogador adota para
54 explicar o que sente ao jogar, revela a não racionalidade de suas decisões. Sua conduta
obedece aos imperativos da paixão, e, como tal, em nenhum momento o próprio decide por
uma jogada ou combinação de números ponderando sobre as reais chances matemáticas deles
acontecerem. Sobre essa condição altamente emotiva, Benjamin (1989 b), inspirado em Paul
Lafargue, reitera em Jogo e Prostituição que ela engendra posturas supersticiosas nos devotos
do hábito de jogar, porque estes crêem que, por meio delas, conseguirão conjurar fortuitos
acontecimentos capazes de levá-los ao insucesso ou derrota.
Sucessos e fracassos oriundos de causas inesperadas, geralmente desconhecidas, e aparentemente dependentes do acaso, predispõem o (...) estado de ânimo do jogador (...) O jogador (...) é um ser altamente supersticioso. Os ´habitués`dos antros de jogo têm sempre fórmulas mágicas para exorcizar o destino; um murmura uma prece (...); um segundo só aposta quando uma cor determinada vence; um terceiro segura um pé de coelho com a mão esquerda etc. (ibid. p. 247).
Terminada a partida e conhecido o afortunado que venceu-a, sobram para os jogadores
a memória das cenas que vivenciaram no estado lúdico. Estas perduram até que outra partida
tenha reinício e estimule novamente o desencadeamento de novas fantasias. A
imprevisibilidade dos jogos de azar, insiste Benjamin (1989 b) em Jogo e Prostituição, mais
do que abalizar sensações mistas de deleite e ansiedade pelos resultados que realmente só
serão conhecidos ao final das partidas, concede pistas para que os jogadores sejam
compreendidos em função de outro singelo aspecto dos seus comportamentos: a invocação do
que denomina ´presença de espírito`.
Um jogo é tanto mais divertido quanto mais bruscamente nele se apresentar o acaso (...) Em outras palavras: quanto maior é o componente acaso em um jogo, tanto mais rapidamente ele transcorre. Essa circunstância se torna então decisiva (...) do (...) verdadeiro êxtase do jogador. Este repousa na peculiaridade do jogo de azar desafiar a presença de espírito, ao apresentar (...) constelações (...)
55 inteiramente novas e originais (...). (Ibid. p. 268).
O que será que Benjamin (1989 b) concebe por presença de espírito? Qual sua relação
com o mergulho do jogador no estado lúdico? No comentário acima, este conceito remonta a
um atributo humano que é conclamado a manifestar-se com toda sua significância naqueles
que jogam, porquanto os mesmos acabam de tal maneira envoltos pelos sinais do fortuito e do
inesperado desfilados nas partidas que procurar decifrá-los torna-se um imperativo. O
exercício desse tipo de leitura, longe de ser um fardo, revela-se determinante para a sensação
de prazer no jogo, cuja experimentação acontece efetivamente no plano carnal do corpo. Um
detalhamento de tal processo nos é melhor oferecido por Benjamin (1995) no texto Imagens
do pensamento, onde, sob o verbete ´O jogo`, o filósofo sugere que a invocação da presença
de espírito pelo ato de jogar é um fenômeno de linguagem:
O jogo, como qualquer outra paixão, dá a conhecer seu rosto como a faísca que salta, no âmbito do corpo, de um centro a outro, mobilizando ora este, ora aquele órgão, e reunindo e confinando nele a existência inteira (...) Este é o prazer concedido à mão direita até que a bolinha caia em seu compartimento. Como um aeroplano, sobrevoa as divisões da roleta, espalhando em seus sulcos as sementes das fichas. Este prazo é anunciado pelo instante, unicamente reservado ao ouvido, em que a bola penetra o redemoinho e o jogador fica à escuta de como a fortuna afina seus contrabaixos. No jogo, que se dirige a todos os sentidos, sem excluir o sentido atávico da clarividência, chega também a vez dos olhos. Todos os números lhes dão piscadelas. Como, porém, os olhos desaprenderam a linguagem dos gestos, no que ela tem de mais decisivo, na maioria das vezes conduzem ao erro os que neles confiam. Naturalmente são aqueles que dedicam ao jogo a mais profunda devoção. Ainda um instante a aposta perdida permanece diante deles. O regulamento os detém. Não é de outro modo que retém ao amante a inclemência daquela por ele venerada. Sua mão, ele a vê ao alcance das dele; nada faz, entretanto, para pegá-la. O jogo tem devotos apaixonados, que o amam por ele mesmo e de modo algum pelo que ele dá. E mesmo que o jogo lhes tire tudo (...) Dizem então: - Joguei mal - E esse amor traz em si a recompensa pelo seu zelo de tal modo que as perdas são suaves só porque, com elas, provam sua coragem para o sacrifício. (Benjamin, 1995, p. 264-265).
56 As peças, números, cores, ruídos etc. que o jogo movimenta definem um estado de
coisas dinâmico e complexo, no qual o jogador estabelece elos dialógicos com eles. Cabe ao
mesmo procurar decodificar as informações que presume jazerem nos interstícios de cada
combinação de cartas, dados ou bolas em giro. Para Benjamin (1989 b), o jogador assim atua
porque representa ilusoriamente os lances e resultados do jogo como indicadores subjetivos
de algo que ora flerta com ele, ora se esconde, porém é possível de ser antevisto: o destino.
Por meio da leitura atenta destes sinais, o jogador acredita que conseguirá identificar o
momento oportuno no qual os segredos do destino se acham mais susceptíveis de ser
capturados, e, com isso, lhe exibirem, sem maiores embargos, a verdade que ocultam.
Procedidas essas observações, Benjamin (1989 b), à luz delas, revisita o conceito de presença
de espírito com novos elementos:
A proscrição do jogo teria sua razão mais profunda em que um dom natural do homem, que o eleva acima de si mesmo, se voltado para objetivos superiores, o arrasta para baixo, quando voltado para um dos objetivos inferiores – o dinheiro. O dom em questão é a presença de espírito. Sua manifestação suprema é a leitura, que, em todo caso, é divinatória. (Benjamin, 1989 b, p. 269).
O mesmo jogo a dinheiro que leva o jogador ao cume do prazer também acalenta sua
degradação moral e material. Mediando esse desencontro está o emprego equivocado do dom
místico de leitura, que, enquanto atividade do espírito exercida nesse plano, quase sempre
catalisa a segunda situação. Mas quais as propriedades dessa leitura que tanto podem
engrandecer como destruir? Por que, quando exercida no jogo, sob a égide das impressões
subjetivas do jogador, ela destrona? Novamente em Jogo e Prostituição, Benjamin (1989 b)
nos encaminha para algumas possíveis respostas por meio de uma interrogação acerca da
origem dos jogos de cartas: “As cartas divinatórias seriam anteriores àquelas de jogar?
Representaria o jogo de cartas uma deterioração da técnica de adivinhação? Afinal, saber de
57 antemão o futuro é decisivo também no jogo de cartas.” (Ibid. p. 270).
Na citação destacada, implicitamente percebemos que Benjamin (1989) especula sobre
até que ponto o aprendizado da técnica de leitura, que é divinatória, viria justamente da esfera
lúdica do jogo, mas não dos modernos jogos de azar. Estes seriam resquícios deturpados de
uma outra gama de jogos do passado, em cujo seio os mecanismos desencadeadores da leitura
teriam sobrevivido destituídos da conotação original. Os caminhos de tal leitura não limitam-
se ao reconhecimento textual de sinais gráficos escritos ou pronunciados. Eles envolvem uma
adivinhação, via sinais, do que virá a ser.
Apoiada em adivinhações, Benjamin (1992 a) denomina os princípios dessa técnica de
ler de mágicos ou clarividentes. No texto Teoria das Semelhanças, ela parece ser a forma de
leitura que predominava nos primórdios da humanidade, porque gerenciar o cotidiano, nos
tempos antigos, dependia da tradução do que dizia o posicionamento relativo de estrelas,
vísceras, conchas ou ossos. Esse tipo de decifração clarividente é um indício de exercitação da
faculdade mimética, ou habilidade dos homens de procurar, produzir e achar semelhanças
entre objetos. “Na verdade, não há nenhuma das suas funções superiores que não seja
determinada (...) pela (...) faculdade mimética. Esta faculdade tem (...) uma história (...) no
sentido ontogenético. (...) O jogo é, em muitos aspectos, a sua escola.” (Benjamin, 1992 a, p.
59).
Malgrado o uso do dom mimético ter sido algo determinante para a vida humana em
tempos remotos, e mesmo se mostrar notório nos primeiros anos de vida dos infantes,
Benjamin (1992 a) alerta que a intensidade das forças miméticas e o perfil dos objetos
miméticos varia de época para época histórica. No passado as forças miméticas respondiam
pela instituição de correspondências entre coisas que já não mais vigoram na modernidade,
como, por exemplo, a inter-relação entre as constelações do firmamento e as etapas da vida de
uma pessoa. As estruturas perceptivas do homem de outrora eram de tal modo articuladas que
58 conseguiam captar semelhanças entre corpos físicos e não físicos por mais instantâneas e
esparsas que fossem. Pouco a pouco, com as modificações técnicas, demográficas, culturais e
sociais da humanidade, a competência mimética pautada na leitura direta dos objetos do
mundo atrofiou-se, mas não sumiu por completo. Ela migrou praticamente na íntegra para o
campo das linguagens falada e escrita.
Desta maneira a linguagem seria a utilização superior da faculdade mimética: um 'medium' no qual as faculdades primitivas de percepção das semelhanças penetraram (...) ela agora representa o 'medium' em que as coisas se encontram e se relacionam entre si, já não diretamente como outrora, no espírito do vidente ou do sacerdote (...) Por outras palavras: foi à escrita e à fala que a clarividência, ao longo da história, cedeu suas antigas forças. (Benjamin, 1992 a, p. 64).
Com a maturação dos tempos modernos, enquanto desdobramentos de prolongadas e
revolucionárias metamorfoses históricas, reduziu-se o alcance da então capacidade perceptiva
humana de identificar misticamente semelhanças físicas e não físicas entre as coisas do
mundo.
Adicionalmente, Benjamin (1992 a) sublinha que o acionamento da faculdade
mimética, seja por meio da linguagem escrita e falada dos tempos recentes da humanidade,
seja na sua antiga forma oracular, depende da instauração de um certo ritmo e velocidade de
leitura, em cuja ausência nem o espírito e nem as semelhanças virtualmente armazenadas nos
interstícios das palavras e coisas ascendem temporalmente. “Assim, a leitura profana – se
quiser ser simplesmente compreensível – partilha com a leitura mágica a dependência de um
´ritmo` necessário (...) que o leitor não pode, de modo algum, esquecer se não quiser ficar de
mãos vazias.” (Benjamin, 1992 a, p. 65).
Portanto, o despertar mimético, seja no jogo ou na leitura, arraiga-se no teor das
situações oferecidas à percepção do indivíduo, na velocidade com que estas lhes são
59 oferecidas e ao tempo no qual fica concentrado nelas. Se, com o passar das eras, o domínio
da técnica de leitura clarividente dos sinais do acaso na natureza, enquanto forma de desvelar
o destino, regrediu com a migração da faculdade mimética para o campo das linguagens
falada e escrita, por outro lado, o ritmo e o dinamismo dos modernos jogos de azar, embora
compreendidos como sobrevivências do sentido místico originário que o estado lúdico gozava
no mundo antigo, podem outrossim instigar os jogadores a procurarem, via recorrência a
residuais dons divinatórios, semelhanças entre elementos físicos e não físicos, tal qual feito
nos primevos da humanidade.
Retornando ao tema da esperança do ganho de dinheiro no jogo, o fato do jogador não
ser movido pela necessidade de enriquecer monetariamente, mas pelo desejo de postergar sua
permanência no prazeroso estado lúdico, implica ainda um outro leque de questões. A injeção
de dinheiro no jogo realmente amplifica ao nível de eternidade a sensação de prazer verificada
em cada jogada, asserta Benjamin (1989 b). “O dinheiro é o que anima o número (...)”
(Benjamin, 1989 b, p. 270). Todavia, a mobilização da residual habilidade mimética de leitura
nessa perspectiva carreia virtuais conseqüências metaforicamente comparáveis àqueles
reservados pelo inferno judaico-cristão aos incautos: o jogo a dinheiro, por multiplicar a
profusão de imagens, também fragiliza a capacidade do jogador de dominá-las. Não
domesticadas, o jogador corre o risco de ser aprisionado por elas. “O jogo é o equivalente
infernal para a música dos exércitos celestiais.” (Ibid. p. 264).
Muito embora não tenha afirmado isso em nenhum de seus textos, acreditamos que,
para Benjamin, a aposta em dinheiro de qualquer jogador informa o grau de confiança que
ele deposita na confirmação das suas expectativas de ganho previamente formadas, pois as
mesmas, em última análise, fincam-se na precisa habilidade que ele julga dominar para
decifrar as insígnias que o destino lhe mostra. Dessa forma, montantes crescentes de recursos
apostados indicam que cada vez mais jogadores, guiados pela livre escolha, se dispuseram a
60 adentrar ou investir mais dinheiro no jogo dotados da esperança de serem retribuídos com
volumes superiores de bens e riquezas. Contudo, o que eles não percebem é que a extensão
dos recursos apostados partida após partida, quer pelo aumento do número de jogadores, quer
pela elevação da quantidade de dinheiro disponibilizada, acarreta, nos dois casos, a elevação
do número de partidas perdidas sobre o de ganhas. Isso porque, no primeiro caso, com
levantes maiores de jogadores participando, alargam-se os universos amostrais de resultados
possíveis em relação aos poucos que, de fato, serão efetivados (para cada vitória, multiplica-
se à taxas exponenciais o número de derrotas). No segundo caso, fixado o número de
jogadores, mas elevando-se continuamente o total de dinheiro apostado, mais este acaba
trocando de circunstanciais donos segundo o sucessivo curso das partidas. Comparando-se, no
tempo, o somatório total de ganhos sobre as perdas, conclui-se que predomina uma tendência
desproporcional do aumento destas últimas sobre as primeiras.7
O artista litográfico Alois Senefelder consegue exemplificar com bastante proficuidade
os impactos que o excesso de derrotas significa para o jogador. Num antro de jogo, onde o
vencedor está acompanhado de quatro perdedores, Senefelder mostra que nenhum deles
esboça a mesma reação face ao resultado final. “Cada um está possuído pela (...) paixão: um
por uma alegria irreprimida; outro pela desconfiança em relação ao parceiro; um terceiro por
(...) desespero; um quarto, por sua mania de discutir; outro (...) se prepara para deixar este
mundo.” (Benjamin, 1989 a, p. 127).
Em que pese o poderio de sedução que o jogo exerce, vinculado sobretudo ao
sentimento de êxtase e prazer que desencadeia, Benjamin (1989 b) ainda lembra em Jogo e
Prostituição que, destarte a verificação do contexto anterior, pautado na sobressalência das
7 Essa discrepância entre a quantidade de perdas acumuladas em relação aos ganhos apenas reitera o que
Pascal conceituou como ´justiça dos jogos de azar`, no sentido de que os resultados aferidos a cada rodada são funções matematicamente dependentes do montante apostado, do número de envolvidos e da repetição de partidas. Por causa dessa justeza de proporções, diz o pensador francês, os jogos de azar apresentam mensurabilidade comparável, em termos de exatidão, aos teoremas da geometria euclidiana.
61 derrotas sobre os ganhos, o jogador jamais considera-o. Compelido por inexplicável fé,
este, mesmo sofrendo perdas, age balizado pela convicção da chegada de um momento em
que, finalmente, ganhará. “Se é a fé no mistério que faz o crente, então há provavelmente
mais jogadores crentes no mundo do que homens de fé.” (Zschokke, citado por Benjamin,
1989 b, p. 264). Por causa dessa fé, ele sempre retorna para outra partida, acreditando que
nela superará todas as perdas. “O recomeçar sempre é a idéia regulativa do jogo (...)”
(Benjamin, 1989 a, p. 129).
Movido por esta pulsão de constante retorno, que não leva em conta ponderações
probabilísticas entre perda e ganho, o aprisionamento do jogador pelas imagens miméticas
que o jogo nele desperta desvia-o, em diversas ocasiões, para estados patológicos além de seu
controle, porquanto a dedicação exclusiva ao mesmo converte-se na inclinação diretora de sua
existência. Benjamin (1989 b) ventila essa idéia iluminando-a com uma colocação de Balzac:
Mas você compreende tudo que haverá de delírio e vigor na alma do homem que espera com impaciência a abertura de um antro de jogo? Entre o jogador da manhã e o jogador da noite existe a diferença que distingue o marido negligente do amante arrebatado sob as janelas de sua bela. Só pela manhã é que chegam a paixão palpitante e a necessidade em seu puro horror. Nesse momento você pode admirar um verdadeiro jogador (...) que não comeu, não dormiu, nem viveu ou pensou, tão duramente flagelado estava pelo açoite de sua combinação vencedora. Nesta hora maldita vocês encontrarão olhos cuja calma assusta, rostos que fascinam, olhares que erguem as cartas e as devoram. (Balzac, citado por Benjamin, 1989 b, p. 271).
A aparição de indivíduos compulsivos por jogo veio, em grande medida, capitaneada
pela proliferação dos cassinos e casas destinadas a esses fins na Paris da primeira metade do
século XIX. Até então, o hábito de jogar não era mais do que um costume nitidamente restrito
aos nobres e aristocratas descendentes do Antigo Regime.8 Benjamin (1989 b) relembra em
8 Sobre um ambiente típico de jogo aristocrático, ver ANEXO III.
62 Jogo e Prostituição que, paralelamente a esse avanço, emergiram muitas iniciativas dos
poderes públicos franceses almejando regulamentar essa prática. Na prevalência dos casos em
que isso era difícil de fazê-lo, dado algum tipo de dificuldade, a insistência na proibição legal
deu-se indistintamente. Por volta de 1830, a legalização das casas de jogo da avenida Palais-
Royal rendia ao Tesouro francês cinco milhões e meio de francos.9 Estima-se que a
distribuição de concessões compreendiam 55 casas de jogo até mais ou menos 1835. No
entanto, a quantidade de estabelecimentos disponíveis não atendia ao grande número de
jogadores locais e estrangeiros que dirigiam-se para Paris, causando a abertura de espaços
clandestinos, de difícil controle. Esse estado de coisas prolonga-se até 31 de dezembro de
1836, data em que todas as casas de jogo foram declaradas ilegais na França. Com essa
proibição, inúmeros banqueiros de jogo deixaram o país indo explorá-lo, principalmente,
segundo o filósofo, na Bélgica, Monte Carlo e territórios de língua germânica.
Sobre os extremos da compulsividade no jogo, e o que ela pode gerar no jogador,
Benjamin (1989 b) cita um certo Marechal Blücher que, durante o período em que residiu em
Paris, após acumular infindáveis perdas, usou de sua influência para obrigar um adiantamento
de $100.000 francos, contraídos junto ao Banco da França para jogar. Depois que este
escândalo veio ao conhecimento público, Blücher abandonou a cidade desprovido de qualquer
bem, computando inclusive um gasto aproximado de seis milhões depois de caucionar todas
as suas terras. Outro personagem emblemático mencionado pelo filósofo é o príncipe de
Ligne, visto nos clubes de jogo de Paris com grande visibilidade após a capitulação de
Napoleão, e famoso tanto pelas inúmeras derrotas que colecionou como pela elegância com
que aceitava as mesmas. Ou então um certo Chodruc Duclos, assíduo jogador que diariamente
era visto nas imediações da avenida Palais-Royal. Até mesmo Kant, na nota 144 do § 86 de
Antropologia de um ponto de vista pragmático, relata a estória de um rico homem de
9 Sobre a disposição espacial típica de uma casa de jogos da avenida Palais-Royal , ver ANEXO IV.
63 Hamburgo que, depois de perder fortunas consideráveis em cassinos, continuou a
freqüentá-los somente para ver os outros jogarem. Certa vez, perguntado como se sentia ao
lembrar da riqueza de outrora, respondeu: “Se a possuísse uma vez mais, não saberia um
modo mais agradável de empregá-la.” (Kant, 2006, p. 172).
Sumarizando, deparamo-nos com um complexo panorama cujos limites são a potencial
compulsividade que o jogo pode alavancar; as tentativas de controle, normatização e, nos
casos extremos, supressão das casas de jogo como fato histórico; a observação da
sobressalência matemática das perdas sobre os ganhos, ao longo de uma escala temporal,
tanto sob a forma de dinheiro apostado como resultados contabilizados partida após partida;
as produções subjetivas do jogador envolvendo jogo, destino e riqueza e as intensas sensações
de prazer que a imprevisibilidade do ambiente lúdico engendra. No epicentro do turbilhão,
dialogando com todas essas instâncias, está o jogador e a iminência do desgaste financeiro,
social e moral que o hábito de jogar lhe impõe.
O envolvimento do jogador por esse contexto também recebeu alento na poesia de
Baudelaire. Escrevendo sobre ele no poema O jogo, o poeta retrata a elevada tensão que
cerca os indivíduos em uma sala de jogo enquanto permanecem na expectativa de saber os
resultados.
Nos fanados divãs das cortesãs mais velhas, Pintada a sobrancelha, o olhar langue e fatal, Num esgar, a fazer das pálidas orelhas Tombar um retinir de pedra e de metal; Sobre um verde tapiz, muitos rostos sem boca, Como bocas sem cor, maxilares sem dente, Dedos em convulsão pela febre mais louca, Sondando o bolso roto ou o seio fremente; Sob os estuques vis, fila de frouxos lustres, De candeeiros de mal projetados fulgores Sobre as frontes letais dos poetas ilustres
64 Que vêm desperdiçar os seus sangrentos suores; Eis o negro painel que num sonho noturno Vi desdobrar-se ao meu olhar claro e curioso. Eu mesmo, num desvão do covil taciturno, Encostei-me a tremer, o mais mudo e invejoso; Desta gente invejava a paixão tão tenace, Destas putas senis o prazer de tristeza Todos a traficar, à minha pobre face, Um o antigo pudor, outro a sua beleza! Eu pasmei de invejar tanta pobre criatura, Correndo ao hiante abismo, e de alma alucinada, Que tem no próprio sangue a embriaguez que procura E que prefere a dor à morte e o inferno ao nada. (Baudelaire, 2005, p. 110).
Baudelaire, bem como Benjamin, além de corroborar a mesma analogia entre jogo e
inferno, focaliza a procura voluntária do jogador pelo abrigo satânico. Em outros escritos,
Baudelaire fornece mais informações sobre sua visão do inferno. No poema ´Oração`,
Baudelaire (2005) reitera o aspecto onírico da figura de Satã:
Glória e louvor a ti, Satã, pelas alturas Do céu em que reinaste, e nas furnas obscuras Do inferno em que vencido és sonho e sonolência! (Baudelaire, 2005, p. 146).
Mesmo que as imagens produzidas no mundo de sonhos de Satã encarcerem
destrutivamente o jogador, Baudelaire (2005) compara-o também a uma entidade salvadora,
no sentido de que a degradação que o jogo traz instiga, por outro lado, o despontar de outras
realidades. Em ´As litanias de Satã`, o poeta demonstra o duplo aspecto do inferno:
Ó tu, o Anjo mais belo e o mais sábio Senhor, Deus que a sorte traiu e privou do louvor, (...) Tu, que és o condenado, ó Príncipe do Exílio, E que, vencido, sempre emerges com mais brilho, (...) Tu, sábio e grande rei do abismo mais profundo,
65 Médico familiar dos males deste mundo (...) Ó tu, o que da Morte, a tua velha amante, Engendraste à Esperança – a louca fascinante! (...) Tu, que bem sabes onde, nas terras mais zelosas, Cioso Deus guardou as pedras mais preciosas, Tem piedade, Satã, desta longa miséria! (Baudelaire, 2005, p. 144-145).
Como Baudelaire, Benjamin detecta essa duplicidade de Satã. No trabalho sobre as
afinidades eletivas de Goethe, o filósofo assevera que o enclausuramento no inferno de Satã é,
acima de tudo, dialético (Missac, 1998). Reservatórios de ilusão, as demoníacas imagens dos
jogos de azar, continua Benjamin (1989 a), obrigam o jogador a comportar-se igual a um
herói. Entretanto, tal heroísmo em nada obedece aos padrões épicos que tipificam os clássicos
protagonistas das narrativas greco-romanas. “O heróico (...) é a forma (...) em que aparece o
demoníaco.” (Ibid. p. 164) Ele está no fato de que o jogador, sempre insistindo em vencer,
coleciona derrotas, porque a lógica do jogo é a perda. Assim, a procura insidiosa pelas vitórias
não culmina no coroamento dos esforços com os louros dos ganhos, pois, quanto mais joga,
maior a tendência para a ruína. O jogador é alguém deparado com um oponente eternamente
superior, o próprio jogo, o qual não consegue ser superado nem desvencilhado. Isso força-o a
retornar voluntariamente ao seu encontro derrota após derrota, sempre nutrido pela crença de
que, na próxima partida, melhorará sua performance a ponto de suplantá-lo.
A natureza desse heroísmo deriva do paradoxo do jogador suportar com brios o peso
das derrotas de partida em partida sem, contudo, conseguir afastar-se em definitivo de quem
sempre lhe derrotará. Aprisionado nessa espacialidade e temporalidade imobilizadora, da qual
não pode escapar e que obriga a obediência aos seus desígnios, seu esforço é heróico porque
as exortações que deve enfrentar superam em muito suas forças de revertê-las, restando-lhe
tão somente resistir.
A título de complementação, Benjamin (1989 a) lembra em Charles Baudelaire: um
66 lírico no auge do capitalismo que, destarte não haver indícios de que Baudelaire fosse um
jogador inveterado, sua visível admiração por estes levou-o muitas vezes a render-lhes
palavras de homenagem. Para Baudelaire, a situação dos jogadores de azar eqüivale ao labor
dos gladiadores nas arenas romanas, porquanto, a grosso modo, por mais avassaladores que
sejam os infortúnios sofridos e a ciência de que o anúncio da derrota é o que restará no final,
nem um nem outro capitula.
Dialeticamente, o satânico heroísmo dos jogadores, compreendido entre o
aprisionamento pelo jogo, a não desistência e o constante reingresso em novas partidas,
mostra que a totalidade das perdas que sofrem não permanecem esquecidas, porque sempre
voltam impulsionados pela iniciativa de tentar recuperá-las na próxima aposta. Em outras
palavras, a progressiva ruína vem permeada pela insistência de salvar o imediatamente
perdido, empregando como recurso para tal o dinheiro. “Não haverá uma determinada
estrutura do dinheiro, que somente no destino se faça reconhecer, e uma determinada estrutura
do destino, que se faça reconhecer apenas no dinheiro?” (Benjamin, 1989 b, p. 246). Por esse
lado, o agir do jogador condiz com o de um alegorista comprometido em assegurar, a todo
custo, pela deposição aleatória do dinheiro no movimento das cartas, bolas ou dados de
partidas vindouras, uma sobrevida às imagens daquilo que o estado lúdico lhe mostrou
enquanto estava jogando.
INFÂNCIA, LUDICIDADE E ARTE
O mesmo ímpeto para voltar ao jogo identificado no comportamento do jogador de
azar, Walter Benjamin detecta em outra situação aparentemente sem nenhuma afinidade com
ele, mas que foi foco de suas acuradas observações: as brincadeiras de crianças. Por mais
diferentes que sejam os propósitos norteando as ações de cada um em separado, ambos
comungam desse mesmo aspecto.
67
Provavelmente (...) nós já teremos vivenciado desde muito cedo (...) em jogos (...) com objetos inanimados (...) a grande lei que, acima de todas as regras e ritmos particulares, rege a totalidade do mundo dos jogos: a lei da repetição. Sabemos que para a criança ela é a alma do jogo; que nada a torna mais feliz do que o ´mais uma vez` (...) E, de fato, toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento da situação primordial da qual ela tomou o impulso inicial. (Benjamin, 2007, p. 101).
Pertencendo ao rol das experiências humanas originárias, a maior parte dos humanos
adultos já desejou recomeçar um jogo depois de arbitrado seu fim pelo fato de, um dia, ter
sido criança e verificado o paroxismo dos estados lúdicos. Antes de prosseguirmos, cabe aqui
um breve adendo. Pelas análises de Di Giorgi (2007), muitos dos trabalhos de Benjamin sobre
o jogar e brincar de infantes tratam essas atividades como símiles, pois o filósofo usa
irrestritamente o substantivo spiele para referir-se a jogos em geral, brincadeiras e mesmo
representações teatrais. Para este autor, a opção por tal vocábulo é propositada, pois a
característica crucial do mesmo está na polissemia de sentidos aos quais remete.
Brincando ou jogando, diz Benjamin, as crianças estão mimetizando, na perspectiva
que lhes cabe, as coisas do mundo. Em Teoria das Semelhanças, o autor afirma: “Na verdade
(...) os jogos infantis estão, por toda a parte, impregnados de formas de comportamento
miméticas e o seu âmbito não se limita (...) à imitação dos adultos. A criança brinca não só
(...) de comerciante ou professor (...) mas moinho de vento ou de comboio.” (Benjamin, 1992
a, p. 59). Recriar o ambiente lúdico no qual se passou pela experiência de mimetizar um outro
diferente de si significa, para a criança, adentrar o seio de uma situação primordial em cujo
contexto ela vê-se coagida a conviver com a alternância de conquistas e renúncias, pois no
mundo fantasioso do jogo a consecução integral de suas aspirações e desejos não é algo
plenamente exeqüível.
68 A observação de que infantes imitam desde ocupações humanas até elementos
inanimados durante jogos e brincadeiras abre espaço para que, à luz desses atos, outras
questões sejam visitadas. A imitação de comerciante, professor ou moinho supõe o acesso da
criança a essas figuras, que, por outro lado, são situadas histórica e geograficamente, visto que
cada uma corresponde a afazeres e objetos técnicos próprios de uma determinada
configuração social. Ou seja, as matérias primas da ludicidade infantil estão espalhadas pelo
mundo material, cultural e espiritual.
Logo, o nascimento biológico e a subseqüente maturação do indivíduo na infância,
com exceção de raríssimos casos, acontecem no interior de tradições pré-existentes, mantidas
pela atuação das gerações anteriores. Por esse prisma, a infância condiz com um estágio de
transição onde, com o passar dos anos, a determinação biológica dos comportamentos reduz-
se na razão do progressivo envolvimento pela esfera da cultura. No rastro dessa inserção,
ocorre a proporcional capacitação na linguagem, valores, instrumentos, representações e
signos que conferem identidade ao meio social.
Portanto, diversos objetos empregados nas brincadeiras e jogos chegam aos infantes
pelas mãos das gerações antecedentes. Urge ressalvar que tal oferecimento transcende o
espectro meramente parental, dado que também sofre a interferência do nível de sofisticação
técnica existente no corpo social e do grau de dependência que dela possui a administração da
vida coletiva.
Pois (...) assim como o mundo da percepção infantil está impregnado pelos (...) vestígios da geração mais velha, com os quais (...) se defrontam, assim também ocorre com seus jogos. É impossível construí-los em um âmbito da fantasia, no país feérico de uma infância ou arte puras. (Ibid. p. 96).
A título de ilustração, inúmeros artefatos dados pelos adultos para crianças brincarem
69 tiveram origem na ancestral esfera do culto ao sagrado, como as bolas, pipas, arcos, rodas
de penas, piões e chocalhos. Embora desviados dos propósitos para os quais foram criados,
suas conversões em brinquedos e jogos decorreram da livre atividade da imaginação infantil.
Esse ingrediente é crucial para que, posteriormente, a tradição chancele essa nova função
adquirida. Nos espaços da brincadeira e jogo, o infante reinventa os sentidos das coisas
atribuindo-lhes, por intermédio da imaginação, novas conotações que antes não detinham.
No ensaio Rua de Mão Única, Benjamin (1995) extrapola para o mundo em geral essa
forma de agir, reiterando que a desconsideração desse fato é visível em muitos dos pareceres
que educadores e estudiosos da infância emitem sobre o agir humano nos primeiros anos de
vida.
Elucubrar (...) sobre a fabricação de objetos (...) apropriados para crianças é tolice. Desde o Iluminismo essa é uma das mais bolorentas especulações dos pedagogos. Seu enrabichamento pela psicologia impede-os de reconhecer que a Terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e exercício infantis. E dos mais apropriados. Ou seja, as crianças são inclinadas (...) a procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde (...) transcorre a atividade sobre as coisas. Sentem-se (...) atraídas pelo resíduo (...) na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta (...) para elas (...). Neles, elas menos imitam as obras dos adultos do que põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. Com isso (...) formam para si seu mundo de coisas, um pequeno no grande, elas mesmas. Seria preciso ter em mira as normas desse pequeno mundo de coisas, se se quer criar deliberadamente para as crianças e não se prefere deixar a atividade própria, com tudo aquilo que nela é requisito e instrumento, encontrar por si só o caminho que conduz a elas. (Benjamin, 1995, p. 18-19).
Sobre essa forma de agir, Benjamin classifica-a como antinômica, porque, se de um
lado, o infante é capaz de aglutinar materiais com características bastante heterogêneas nas
construções lúdicas, do outro, apenas um simples refugo, por mais simples que seja, é
70 suficiente para ser reaproveitado criativamente nas suas brincadeiras e jogos. Sempre vale a
pena lembrar que, por mais que os infantes mimetizem situações alusivas ao mundo dos
adultos, não se trata de uma mera reprodução mecânica. “A criança quer puxar alguma coisa e
torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se
bandido ou guarda.” (Benjamin, 2007, p. 93). Na imitação, tanto o real como o corpo são
recriados pela fantasia mediante re-alocações de sons, cores, formatos etc. às demandas
despertadas no território da ludicidade.
O ponto nevrálgico da questão está em que, ao adequar objetos visando a satisfação de
suas necessidades lúdicas, dando-lhes fins adequados para tal, o infante está, a bem da
verdade, intervindo no mundo. Benjamin (2007) insiste que é desse modo que ele absorve a
cultura e adquire costumes da coletividade a qual pertence. “Pois é o jogo, e nada mais, que dá
a luz todo hábito (...) O hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo em suas formas
mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho de brincadeira.” (Benjamin, 2007, p. 102).
Em outras palavras, a criança assimila valores e objetos criando ativamente sobre eles,
porquanto apenas assim ela procede suas acomodações. Mesmo no singelo quadro da
modernidade, por mais que a orquestração de brinquedos tenha sido absorvida pela mesma
racionalidade que rege a fabricação de mercadorias, convertendo-os assim em commodities
industriais dotadas de finalidades específicas e formas rígidas, ainda assim a criança consegue
heterogeneizá-los pelo recurso à criatividade.
As orientações dadas pelo pensamento benjaminiano sobre o comportamento infantil
colocam então a criança na posição de agente de uma relação alternativa com o mundo da
cultura e da natureza: tornando-se trens ou moinhos, convertendo porções de seus próprios
corpos em rodas de automóveis ou patas de cavalos, assimilando um galho a uma hélice,
tornando um boneco uma arma fictícia etc. elas estão procedendo uma reativação das coisas
por meio de uma nova atribuição, diferente, em tese, da usual para a qual foram socialmente
71 designadas. Tal visão oferece uma perspectiva de parcial ruptura com rumos estabelecidos,
porque no desencantado mundo da modernidade, onde o sempre igual irrompe sem parar
travestido de novidade, as crianças pertencem ao rol daqueles que re-encantam, ainda que
momentaneamente, os elementos existentes.
De acordo com Lewandowski (1999), talvez seja esse o grande diferencial da análise
benjaminiana sobre a criança que joga e brinca, porquanto o filósofo reapresenta-a enquanto
agente rompedor das amarras de um futuro aparentemente incontornável. Por esse viés,
Benjamin distancia-se da visão rousseauniana e romântica, responsáveis por conceber a
infância como uma etapa da vida isolada das interferências da conjuntura histórico-social ao
seu entorno.
Pois se a criança não é nenhum Robinson Crusoé, assim também as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem. Da mesma forma, os seus brinquedos não dão testemunho de uma vida autônoma e segregada, mas são um mudo diálogo de sinais entre a criança e o povo. (Benjamin, 2007, p.94).
Ao olhar o agir infantil dessa maneira, Benjamin, na análise de Matos (1990), acaba
aproximando a criança dos grandes poetas, escritores, coreógrafos e pintores modernos,
porque as atitudes deste perante o percebido não se deixam censurar pela arbitrariedade de
sentidos prévios (detalharemos essa questão mais adiante). Nas suas forma de atuar, frisa a
autora, todos eles demonstram que não há evidências ou pontos fixos pré-determinando o
itinerário do que resolvem produzir, pois movem-se no território da falta de coerência típica
dos que abnegam os critérios de utilidade e finalidade para afirmarem suas verdades.
Extraviados de um mundo esquadrinhado pela racionalidade burguesa, suas livres criações
carreiam espontaneamente ao terreno do agora toda uma combinação de acontecimentos,
lembranças, cenários e contextos concernentes a outros espaços e tempos.
72 A configuração desse estado de desordem criativa, ausente de determinismos ou
simetria, permite constatar que o reaproveitamento das coisas para além do esgotamento de
sua funcionalidade contribui tanto para retirá-las da predestinação ao esquecimento no
passado como alavancar, dialeticamente, no plano da consciência, a elucidação de questões
bastante densas. O infante, quando retira os significados usuais das coisas, no jogo, dando-
lhes outros com conotações não existentes, não procede com neutralidade e impessoalidade
face ao que está sendo criado. Atuando de maneira semelhante a um alegorista, ele não se
fecha diante da tarefa de ter que protagonizar outros eventuais papéis circunstanciados pelos
efeitos retroativos de criações sobre seu ânimo.
Consoante essa disposição para a versatilidade, dificilmente aquilo colocado em jogo
envereda para a assunção de algum caráter definitivamente estável. Com efeito, o
reconhecimento da incapacidade de se declarar seguramente o que irá suceder instante após
instante em situações com forte acento lúdico endossa que o esteio dos acontecimentos prima
por uma certa atmosfera de mistério e impenetrabilidade. Deparamo-nos então com um
ingrediente que faz, de acordo com Scholem (2006), a brincadeira e o jogo metaforicamente
afins da figura do labirinto, pois nesses a ordem dos eventos não obedece a dogmatismos ou
consensos absolutos.
Ora, tramitar em labirintos significa percorrer e tomar decisões frente a caminhos
desconhecidos quanto ao que reservam. Então, o jogo também pertence ao domínio do
enigma, uma vez que, num labirinto, a opção por uma ou outra rota, em detrimento das outras,
não arraiga-se no domínio de informações exatas sobre o que ocorrerá no próximo momento e
o que, em decorrência, seguiu oculto. Paradoxalmente, eis aí, na interpretação de Scholem
(2006), um quesito profético do jogo, na medida em que esclarece que entre o desconhecido e
o conhecido vigora um ínfimo hiato, arraigado na singela sensação de que algo diverso do
efetivamente acontecido poderia ter sido mas não foi. Ela acontece porque, no fundo, os
73 subsídios que levam a uma ou outra escolha não são puros e absolutamente retilíneos:
gerados em um mundo estremado por coordenadas falíveis e imprecisas, seus veredictos
revestem-se do estigma da precariedade, porquanto sedimentados em percalços e desvios
abertos ao acaso.
O poeta alegorista em particular, notadamente Baudelaire, demonstra isso na
proliferação heterogênea dos detalhes, dissonâncias, confusões e exageros de escrita em seus
poemas; as crianças, nas surpreendentes reinvenções dos propósitos das coisas, de sua
gestualidade corporal e na fluidez dos papéis que exercem durante o brincar. Tal circunstância
indica, segundo Benjamin, que no plano da diagramação do espaço interno do sentimento e da
inteligência as informações exteriores captadas pelos sentidos estão sendo desorganizadas e
reformuladas pelos extremos da fantasia.
No rico artigo de revisão literária intitulado Problemas de Sociologia da Linguagem,
Benjamin (1992 b) analisa em pormenores essa conjuntura, argumentando que daí podem
emergir subsídios teóricos capazes de elucidar uma série de questões pertinentes ao campo da
linguagem. Segundo o filósofo, o caminho epistêmico das pesquisas na filosofia,
antropologia, lingüística, psicologia e etologia, sugere que, à vista do modo como os animais
superiores interagem uns com os outros, a aparição e uso dos recursos inteligentes de fala e
sinalização brotam do ajuste de gestos motores pessoais com estímulos ambientais afetivo-
reativos. As repercussões nascidas dessa combinação fazem com que o aparecimento da
linguagem infantil desponte como pista chave para a reconstituição da ontogênese da
linguagem humana. Indiretamente, o jogo e a brincadeira acabam adentrando essa discussão,
por se tratarem de atividades intrínsecas e corriqueiras do modo de ser infantil. Essa restrição
precisa ser tida em conta, caso contrário pouco se esclarecerá sobre o aparecimento da
linguagem em geral.
Para explicitar como o desenrolar das atividades lúdicas típicas da infância lança luzes
74 elucidativas sobre as origens da linguagem, Benjamin recorre aos trabalhos experimentais
de Piaget e Wygotski lembrando que, ao longo dos primeiros anos de vida, as repetidas
perturbações dos estados de estabilidade emocional e corporal ocasionadas por fatores
ambientais externos em crianças abalizam a aparição de sons e expressões vocais não
direcionadas a ninguém e sem transmissão de conteúdos. Esse tipo pueril de articulação vocal-
sonora, egocêntrica por definição, erige-se muito antes do amadurecimento formal das
estruturas de raciocínio lógico-cognitivas. Ou seja, as etapas mais adiantadas do pensamento
abstrato vêm a posteriori de uma anterior base lingüística surgida livre de atributos
comunicativos. Com a continuidade das freqüentes ações de desestabilização interior,
seguidas da restituição de novos níveis de equilíbrio, estabelecem-se os fundamentos do
pensar e o paulatino encerramento da emissão subjetiva de expressões sem maiores
literalidades.
Como fica então, à luz dessas interpretações benjaminianas de Piaget e Wigotski, a
questão dos contatos inter-geracionais entre adultos e crianças no panorama do jogar e do
brincar enquanto fatos culturais? Por elas, ambos são agentes desencadeadores de
desequilíbrios e novos equilíbrios. As adaptações lúdicas que os infantes engendram no corpo
e nos objetos para solucionar problemas que lhes instigam e abalam, em termos cronológicos,
já ocorrem desde o berço, muito antes dos primeiros esboços de maturação dos aparelhos
sonoro e vocal, observa Benjamin. Com base no pressuposto de que a cientificação dessa
característica é empiricamente confirmada nas observações sistemáticas dos dois cientistas
acerca do comportamento das crianças, o filósofo afirma que há de se convir que expressões
auditivas e bucais de sons não deixam de ser, em tese, um prolongamento gestual de ações
corporais motoras.
Contudo, as fases de um gesto proposicional manual, transpondo-se
75 nas fases correspondentes de um gesto proposicional (...) bucal, podem preservar muito tempo intacto o sentido concreto do original (...) Assim, a articulação como gesto do aparelho lingüístico relaciona-se como o conjunto da mímica do corpo. O (...) elemento fonético é portador de uma comunicação cujo substrato original era uma gesticulação expressiva. (Benjamin, 1992, p. 225-226) [b].
A admissão de que a palavra procede de elementos mímicos reitera o relativo
distanciamento de Benjamin das teorias que associam os primórdios da linguagem às ações
onomatopaicas de extrapolação direta dos sons do mundo em vocábulos. Gesto, fala e
componente vocabular escrito são, nessa ordem, manifestações sucessivas, cumulativas, auto-
complementares e não excludentes enraizadas no mesmo aspecto humano que sustenta a
imitação na brincadeira e jogo: a faculdade mimética. O poeta Mallarmé, com rara
perspicácia, soube detectar a riqueza desse fato.
A isto podemos acrescentar uma palavra de Mallarmé, que pode servir de motivo para A Alma e a Dança de Valéry. ´... a dançarina não é uma mulher [que dança, pelos motivos justapostos pelos quais ela não é uma mulher], mas uma metáfora resumindo os aspectos elementares da nossa forma: luta, golpe, flor, etc. [e que ela não dança, sugerindo pelo prodígio de uma síntese (...) com uma escrita corporal, aquilo que necessitaria de parágrafos em prosa dialogada, ou descritiva, para se exprimir, em termos de redação: poema libertado de todo o aparelho de escriba.` (Ibid. p. 226-227).
Pelo exemplo de Mallarmé, um mesmo fenômeno ou objeto pode assumir
expressividades diferentes dependendo da base lingüística onde se situa. Fazendo eco aos
dizeres do poeta, temos os trabalhos do filólogo Rudolf Leonhard, os quais advogam que
efeitos sonoro-auditivos desencadeados por recursos de fala e palavra pouco se aproximam
dos deflagrados pelas formulações lingüísticas não vocabulares (o contrário também é
verossímil). Ou seja, em seus relativos espectros de abrangência, conteúdos expressos numa
determinada combinação lingüística jamais são carreáveis na íntegra para outras combinações,
76 mesmo com grande conversibilidade de termos entre ambas.
É um fato notável, e que indica com que extraordinária lentidão se produz a evolução humana, que o homem civilizado não tenha ainda renunciado a utilizar os movimentos da cabeça e das mãos como meio de expressão do seu pensamento (...) Quando é que aprenderemos a utilizar esse admirável instrumento que é a voz com tanta arte e razão que possamos dispor de uma série de sons tendo a mesma riqueza e perfeição? É certo que não fizemos ainda uma tal aprendizagem (...) Todas as produções da literatura e da eloqüência não passaram até agora de formas elegantes, engenhosas, elementos lingüísticos formais ou fonéticos que, por seu lado, são completamente selvagens e incultos, tal como se formaram de modo natural sem nenhuma ação consciente da humanidade. (Leonhard, citado por Benjamin, 1992 b, p. 229).
Tanto Mallarmé como Leonhard concordam que os modos de emprego da linguagem
são infinitos e ontologicamente diferenciados, tornando seus plenos conhecimento e
desenvolvimento ainda bastante superficiais. Quanto a isso, o lingüista Kurt Goldstein fornece
mais alguns subsídios capazes de enriquecer o debate:
O que nós vimos é a aparição da linguagem nos casos onde ela não tem senão valor de instrumento. Mesmo no homem normal, pode acontecer que a linguagem apenas seja utilizada como instrumento. (...) Mas esta função instrumental supõe que, no seu princípio, a linguagem representa qualquer coisa de completamente diferente (...) A partir do momento em que o homem usa a linguagem para estabelecer uma relação viva como ele próprio ou com seus semelhantes, a linguagem já não é instrumento, não é um meio; é uma manifestação, uma revelação da nossa essência mais íntima e do laço (...) que nos liga a nós próprios e aos nossos semelhantes. (Goldstein, citado por Benjamin, 1992 b, p. 228-229)
De toda essa exposição, iniciada com considerações de Piaget e Wigotski e finalizada
com Goldstein, entremeada pelos comentários de Mallarmé e Leonhard, pode-se extrair
algumas conclusões parciais. Primeiramente, a linguagem é composta de múltiplos recursos
sujeitos a sofrerem modificações temporais, tanto em função de metamorfoses no
77 desenvolvimento pessoal do indivíduo como no curso dos acontecimentos históricos ao seu
entorno. Entretanto, cada recurso lingüístico possui capacidades formais expressivas e
representativas diferenciadas, e, portanto, características e alcance peculiares. Os usos
comunicativos marcadamente instrumentais que todos nós fazemos ao conversar ou informar
conteúdos nada mais são do que uma ínfima fração do montante de empregos que a
linguagem pode ter, visto haverem indícios de manifestações suas desprovidas de qualquer
viés utilitário mesmo depois de atingida a etapa dominada pelo componente vocabular falado
e escrito. Finalmente, o que dizer da singela situação das crianças imersas em ambiente de
jogo? Elas, com todas as idiossincrasias que o mergulho nos estados lúdicos alavanca,
apontam a cultura como o meio onde tais eventos têm vez.
Muito embora não seja explicitado, a linha de raciocínio de Benjamin em Problemas
de Sociologia da Linguagem organiza os principais acontecimentos relativos à gêneses da fala
e escrita dentro de um percurso com notável acento genealógico, pois coloca-os numa
transição unindo passado e futuro. Reflexões mais detalhadas sobre essa trajetória aparecem
em outro ensaio denominado Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana.
Nele, o autor assevera que todos os entes do mundo, vivos e inanimados, partilham entre si a
condição de serem dotados de linguagens. O cosmos adquire assim a possibilidade de ser
pensado como totalidade cortada por fluxos lingüísticos com diferentes intensidades e relativa
autonomia em relação ao elemento humano.10
Todas as manifestações da vida (...) podem ser concebidas como uma espécie de linguagem, e esta concepção (...) perspectiva em geral outras questões. Pode falar-se de uma linguagem da música, da plástica, da justiça que, de uma forma imediata, não é idêntica à linguagem em que as sentenças judiciais são redigidas, sejam elas em alemão ou em inglês; pode falar-se de uma linguagem da técnica que
10 A pressuposição de que a natureza das coisas do mundo reduz-se a um ou mais códigos de linguagem
antepara o pensamento de diversas correntes da tradição rabínica judaica. Isso é possível porque o princípio espiritual do universo, derivado no Verbo divino decantado no Livro do Gênesis, antecede a matéria.
78 não é idêntica à dos técnicos. Neste contexto (...) é (...) a comunicação através da palavra apenas um caso particular, subjacente a conteúdos humanos ou que nele se baseiam (justiça, poesia, etc.). Mas a existência da linguagem não se estende apenas por (...) domínios de manifestação espiritual do homem que (...) contêm sempre língua (...), mas acaba por estender-se (...) a tudo. Não há acontecimento ou coisa, seja na natureza animada, seja na inanimada que, de certa forma, não participe da linguagem. (Benjamin, 1992 c, p. 177).
O que aguardar então do sem número de linguagens que cortam o cosmos? Quais
conteúdos elas veiculam? Para Benjamin, toda linguagem, sem exceção, carreia a essência
espiritual das coisas que lhe correspondem. Tal transmissão é proporcional à consistência
interna de seus fundamentos estruturais, o que quer dizer que as potencialidades expressivas
de cada uma, vistas comparativamente, variam entre si.
No caso do gênero humano, um fator a mais precisa ser levado em conta: a fala. Ela
constitui o elemento preponderante de sua linguagem, e é essa circunstância que leva-o a ter
uma existência única. A exclusividade desse recurso dá a ele, e a mais nenhuma outra espécie,
a capacidade de designar objetos e representações. Portanto, apenas tal linguagem pode
nomear, diz Benjamin em Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana.
Aplicados às coisas, os nomes transmitem o teor das suas essências espirituais. Pelo lado do
homem, denominar representa a atividade factual responsável pela comunicação de sua
própria essência espiritual.
Isto é, o homem comunica a sua (...) essência (...) na (...) linguagem (...) por palavras (...) denominando todas as outras coisas. (...) Não se objecte que não conhecemos outra linguagem (...) designadora além da do homem. (...) Designar para quê? A quem se comunica o homem? Mas esta questão no homem será diferente das de outras comunicações (linguagens)? A quem se comunica o candeeiro? E a montanha? E a raposa? A resposta é a seguinte: ao homem Além disso: se o candeeiro, a montanha e a raposa não se transmitissem ao homem, como os denominaria ele? Mas denomina-os; ele comunica-se, denominando-os. (Benjamin, 1992 c, p. 180-181).
79
A denominação de objetos ocorre porque o universo e o elemento humano comungam
de uma certa identidade lingüística. Esse comunhão, insiste Benjamin, exibe a singela posição
metafísica do homem no cosmos, pois ao mesmo tempo em que pertence ao rol de seres
criados pela demiurgia divina decantada no mito do Gênesis, apenas ele, dentre todos, obteve
a graça para nomear. No Gênesis, Javé originou tudo pela profissão da palavra, exceto Adão,
feito de terra. Ele constitui o único exemplo, na história da Criação, de uma entidade feita de
insumo material, cuja compensação foi o dom da linguagem falada e escrita. Depois dessa
outorga de competência, Javé retirou-se para repousar.
A descendência de Adão fica então confirmada como a continuadora do trabalho de
Javé. “A criação empreendida por Deus atinge sua perfeição, na medida em que as coisas
recebem o seu nome do homem, do qual, no nome, só a linguagem fala.” (Ibid. p. 182).
Todavia, isso não quer dizer que a palavra humana substitua o Verbo divino. O filósofo
explicita isso com base no que entende como a ´fórmula da criação`, dedutível do primeiro
capítulo do Gênesis. Segundo ela, o advento das origens decompõe-se num esquema
lingüístico de três termos: Seja – Ele fez (criou) – Ele chamou. Desencadeadas com um ´Seja`,
as coisas vão paulatinamente surgindo no ritmo de uma processualidade criativa que agrega
constituição e denominação. Indicador de onipotência criativa divina, o vocábulo `Seja` é o
termo responsável pela determinação, em nomes, dos entes (Merquior, 1969).
Esse primeiro aspecto não denominador do Verbo retrata a coisa em si, e escapa a
qualquer possibilidade de entendimento ou compreensão. A face dela reconhecível limita-se
ao que obteve chancela nominal. Por que isso? Viu-se que a libertação do potencial da
linguagem por parte de Javé, no homem, seguiu-se ao contingenciamento deste em terra.
Logo, sublinha Benjamin, enraizada em restrições materiais, ela não é incomensurável, mas
mediatizada a priori. Longe de ser imagem direta e perfeita da realidade, a linguagem
80 humana, quando nomeia, apenas reflete a face designatória do Verbo. “O nome (...) é a
comunidade do homem com a palavra criadora de Deus. (Não é a única, e o homem conhece
ainda outra identidade lingüística com a palavra de Deus.) (...) Porque Deus criou as coisas, a
palavra criadora neles contida é o germe do (...) cognoscível.” (Benjamin, 1992 c, p. 188-
189).
Percebe-se então que a porção dos entes do mundo identificável pelo intelecto
humano, igualmente receptível aos epítetos que confere, depende justamente da maior ou
menor afinidade que ele nutre com a moldura nominativa que àqueles receberam no momento
da criação divina. “O homem (...) dá à natureza (...) o nome depois da comunicação que dela
recebe, porque também toda a natureza é percorrida por uma linguagem (...) resíduo da
palavra criadora de Deus, que se manteve no homem como nome cognoscível.” (Benjamin,
1992 c, p. 196). No fundo, declara Benjamin, o que o homem faz é simplesmente
sobredenominar os objetos outrora criados pela palavra de Javé nos primórdios. Por mais que
o Verbo e o homem encontrem-se no poderio mútuo para nomear, não há como, para o
filósofo, essa similitude ser perfeita, porque o primeiro age liberto de cerceamentos, enquanto
que o segundo, desde Adão, atua preso ao espaço e tempo, simbolicamente representados pelo
contingenciamento em terra.11
Encontramos mais alguns comentários esclarecedores de Benjamin sobre essa
capacidade humana para denominar em certos trechos de Passagens. Num deles, o filósofo
deixa a entender que Baudelaire foi alguém que soube usá-la com extrema sagacidade,
reportando-se, para isso, ao prefácio que o escritor, crítico literário e amigo Théophile Gautier
escreveu para este último na edição de 1863 das Flores do Mal:
11 Scholem (1994) arvora que, perante essa restrição, a Queda do Paraíso tende a ser inevitável para a
humanidade, pois sua constituição erige-se sobre determinações apriorísticas que, em algum momento, discernirão valorativamente o Bem e o Mal. Se, por um lado, o pecado original inaugurado pela ingestão do fruto proibido é conseqüência não contornável da condição humana, por outro, ele corrobora, para o autor, a inseparabilidade entre linguagem, ética e educação.
81
Sua maior glória, escreveu Théophile Gautier (prefácio à edição <das Fleurs du Mal> de 1863), ´será ter feito entrar nas possibilidades do estilo séries de coisas, de sensações e de efeitos inominados por Adão, o grande nomeador.` Ele nomeia ... as esperanças e os pesares, as curiosidades e os temores que se agitam nas trevas do mundo interior. (Benjamin, 2006, p. 352).
Baudelaire nomeia com precisão porque imagina, e é o recurso à imaginação que
permite-lhe ver com extrema acuidade as correspondências miméticas entre os objetos e as
palavras. “A imaginação é uma faculdade quase divina que percebe ... as relações íntimas e
secretas das coisas, as correspondances e as analogias.” (Benjamin, 2006, p. 330).
Imaginando, Baudelaire reinventa as palavras e os significados, como o infante que refaz os
sentidos dos objetos ao brincar. “A imaginação ... decompõe toda a criação e, com os
materiais recolhidos, e dispostos segundo regras cuja origem não podemos encontrar senão no
mais profundo da alma, ela cria um mundo novo, produz a sensação do novo.” (Ibid. p. 335).
Em Imagens do pensamento, Benjamin fala novamente desse vínculo entre imaginação
infantil, divindade e ludicidade ao se lembrar de um jogo comum entre as crianças da época
Biedermeier, cujo ponto de partida eram as palavras ´rosquinha`, ´pena`, ´pausa`, ´queixa` e
´futilidade`. A tarefa de cada jogador consistia de articulá-las em um texto conciso sem alterar
essa ordem. Quanto mais curto o texto, tanto mais notável seria a solução.
Esse jogo fomenta os mais belos achados, sobretudo junto às crianças. Ou seja, palavras (...) são como cavernas, entre as quais conhecem curiosas linhas de comunicação (...) Isso se torna palpável, sobretudo, nos textos denominados religiosos (...) E, de fato, frases que no jogo uma criança forma com palavras têm mais afinidade com as dos textos sagrados que com as da linguagem corrente dos adultos. Eis um exemplo que uma criança (no seu décimo segundo ano de vida) forma ligando as palavras acima: “O tempo se lança através da natureza feito uma rosquinha. A pena colore a paisagem, e se forma uma pausa que é preenchida pela chuva. Não se ouve nenhuma queixa, pois não há nenhuma futilidade.” (Benjamin, 1995, p. 272).
82
Sumarizando, a situação do homem guarda uma característica paradoxal, pois, dentre
todos os outros seres criados, apenas ele herdou o dom da nomeação, cujo termo inicial
remonta à pureza divina do Verbo de Javé, criador do cosmos. Nenhum outro consegue
reproduzir a criação e perpetuação nominal de coisas. Por outro lado, o arsenal lingüístico que
dispõe para conduzir tal empreendimento coincide com sua limitada condição existencial, o
que, em comparação com a abrangência e a potência eterna do demiurgo, restringe o que pode
alcançar. Depreende-se que a linguagem do homem tão somente imita a palavra criadora: ele
não vai além de providenciar a recuperação, no plano finito, de uma tarefa originariamente
infinita. Tomando-se o poeta Baudelaire na qualidade de um nomeador de primeira estirpe, a
riqueza estética de suas criações é proporcional ao modo com que relaciona-se ludicamente
com o teor das palavras e das coisas, tal qual uma criança brincando.
Essa conversão de um contexto em outro, de acordo com Benjamin, eqüipara-se a um
procedimento de tradução. Contactar coisas, investigá-las e traduzi-las em nomes significa
movê-las de suas linguagens singulares para a humana. Uma transposição desse tipo
necessariamente valoriza as primeiras, pois enriquece-as com qualificativos que não detinham
e que apenas o homem pode lhes oferecer. “A tradução da linguagem das coisas na do homem
(...) é (...) a tradução (...) do que não tem nome no nome. É (...) a tradução de uma língua
imperfeita numa mais perfeita (...) nomeadamente o conhecimento. Porém, a objetividade
desta tradução tem o aval de Deus.” (Benjamin, 1992 c, p. 189). Após o recolhimento em
linguagem humana, as coisas saem do silêncio e acabam indexadas, no que tange à sua
visibilidade, a uma situação existencial superior.
Antes de prosseguirmos, urge esclarecer algumas questões sobre essa análise
benjaminiana do teor das linguagens. Concordamos com Merquior (1969) que ela goza de
uma inegável textura teológica, mas nem por isso a reflexão peca pela ingenuidade dos
83 argumentos ou autoritarismo dogmático. O foco de Benjamin é a insistência na distância
entre o Verbo e a faculdade humana de nomeação: em nenhum instante a palavra humana é
exposta como nascida de epifania. A referida distância, ao invés de ser usada para justificar
uma inegável fragilidade da linguagem do homem, invoca justamente a inesgotabilidade do
real e o movimento incessante do espírito humano para apreendê-lo e traduzi-lo. Sob esse
ângulo, linguagem é energéia, ou, atividade dinâmica e auto-poiética que estabelece
horizontes e fronteiras para si na tradução que faz em si dos entes do mundo. Os nomes que
efetivamente recebem, enquanto indicadores de potência lingüística consumada em ato, são os
mediadores da ampliação dos universos conhecidos e da originação de novos.12
A exercitação humana da linguagem remete, assim, a um movimento de produção
incessante dela mesma. As inúmeras denominações científicas, maquínicas, ideográficas,
artísticas, jurídicas, religiosas etc. comprovam factualmente esse dinamismo. Embora todas
incidam sobre domínios espirituais específicos, Benjamin dedica especial atenção às
linguagens artísticas, sugestionando sua superioridade sobre as demais para traduzir a
natureza.
Há uma linguagem plástica, da pintura, da poesia. Da mesma forma que a linguagem da poesia assenta na linguagem humana dos nomes, ainda que não apenas nela mas, de qualquer modo, também nela, assim também é pensável que a linguagem da plástica ou, talvez, da pintura, assentem em determinados gêneros das linguagens das coisas, de forma que nelas se encontra a tradução da linguagem das coisas, numa linguagem infinitamente mais elevada (...). (Benjamin, 1992 c, p. 195).
12 Os primeiros esboços de uma teoria tratando a linguagem como energéia, ou atividade produtora,remontam
aos trabalhos do romântico Wilhelm Von Humboldt. Ao adaptá-la para os propósitos de seus estudos sobre digressões da palavra humana em analogia com o Verbo divino, Benjamin está tanto antecipando a revogação que mais tarde Jakobson fará da tese saussuriana do significante puramente arbitrário como apontando a possibilidade do pensamento humano formar-se em obediência à uma gramática generativa e transformacional, hipótese essa que é a coluna dorsal das correntes da lingüística contemporânea inspiradas em Chomsky.
84 Por que essa valorização das linguagens artísticas? O que o artista possui de único?
Consoante Gagnebin (2005), Benjamin enxerga no legítimo artista alguém que busca
incessantemente e de maneira voluntária o novo. Esse novo não é substância material, e sim
uma constante metamorfose das maneiras de olhar o mundo, porque os verdadeiros artistas,
caso se prendessem a certezas estanques, bloqueariam a auto-renovação das estruturas
perceptivas, mnemônicas e imaginativas das quais dependem a captação, gravação e figuração
do real em obras de arte. Procurar a revisão consciente das doutrinas e conceitos orientadores
de seu agir, com vistas à flexibilizá-los, ou até mesmo dissolvê-los, significa abertura para
outras possibilidades de aprender e mobilizar o diferente. Sem isso, a tradução estética da
realidade no formato mais engrandecido da obra de arte torna-se empreendimento com
validade e fidedignidade questionáveis.
O renascimento do mundo nesse mérito maior da arte dialoga assim com um duplo
movimento de aquisição e desapego, pelo artista, de determinados valores, convicções e
técnicas. A intensidade dessa troca revela-se fundamental para que o ato tradutivo avance em
qualidade e sofisticação. As peças teatrais de Sófocles re-escritas por Hölderlin, assinala
Benjamin, superam as versões similares dos demais dramaturgos exatamente por serem muito
mais do que transposição de vernáculos. Sua vitalidade incontestável deriva, acima de tudo,
da complexa teia de comentários, asserções, interpretações e divagações depositados nas
entrelinhas dos originais (Roberts, 1982).
Benjamin cita Hölderlin não por acaso. Assim como Baudelaire, ele tipifica o artista
que teve necessidade de reaprender a escrever, falar, avaliar e comparar sob pena de, caso em
contrário, não conseguir dar conta de revisitar e criar obras. Hölderlin não furtou-se a
desconcertar o patamar de estabilidade conceitual à sua disposição, onde achava-se
relativamente estável, para ampliar o entendimento da visão que tinha do autor grego. Houve
a renúncia de uma postura imóvel, engessada em certezas, em prol da aquisição de uma nova
85 fala, um novo palavreado, enfim, um novo aparato de linguagem. Nesse sentido, o
investimento de Hölderlin na assimilação de competências que até então não tinha exibe
traços de um comportamento com certa dose de infantilidade, pois, sem pejoração, o marco
fundador em que, pela primeira vez, sujeito e aprendizado da linguagem penetram-se e
examinam-se aos extremos não é outro senão a infância.
Na visão de Agamben (2005), filósofo comentador de Benjamin, o ser humano sem
infância não passa de natureza inerte. Não há como os indivíduos viverem fora da história,
porque todos têm de aprender a falar e tornarem-se falados numa infância que não pode ser
universalizada ou antecipada. Interessa notar que essa infância não é apenas cronológica, pois
experiência e infância não antecedem a linguagem, mas são suas condições originárias,
fundantes. A humanidade (condição de ser humano) inexiste sem elas, e sem elas, não há
sujeito que possa falar (ou ser falado). Em certo sentido, Agamben (2005) ainda nos lembra
que estamos sempre aprendendo a falar (e a ser falados), nunca sabemos falar (ou somos
´sabidos` pela linguagem) de forma definitiva, jamais acaba nossa experiência na e da
linguagem. Nessa medida, permanecemos fadados à infância. Quando acreditamos tudo
dominar e perdemos a curiosidade de saber algo novo, convertemo-nos em natureza. Caso
negligenciemos a experiência da infância, diz o autor, seremos repetição invariante,
normalidade imodificável; assumindo-a, ratificamo-nos como interrupção e reinício,
inventividade e versatilidade; enfim, historicidade plena.
O autêntico artista não deixa esmorecer em si essa atmosfera desconstrucionista e
reconstrucionista típicas da infância. De um ponto de vista teórico, as colocações de Agamben
(2005) sobre o pensamento de Benjamin abrem campo para a introdução de novos elementos
nas reflexões sobre a arte enquanto vetor de transformação social. Mesmo sem mencionar
diretamente, Agamben (2005) acaba trazendo ao lúmem certos tópicos discutidos por
Benjamin em um tímido artigo de 1928, intitulado Programa de um teatro infantil proletário.
86 Nesse texto, Benjamin (2007) oferece algumas pistas sobre o aspecto revolucionário
da conexão entre produção artística e infância. Para tal, vai ao livro Schriften über Kunst
(´Escritos sobre Arte`), do crítico Konrad Fiedler, usando como exemplo emblemático a
pintura. “Nós sabemos – para falar apenas da pintura – que o essencial, (...) nessa forma de
atuação infantil, é o gesto.” (Benjamin, 2007, p. 116). O diferencial nas análises de Fiedler,
segue Benjamin, reside na perspicácia de demonstrar que o grande pintor não vê de modo
mais naturalístico, poético ou extático do que outras pessoas. Ele apenas observa mais
intimamente com a mão o que foge ao olhar, isto é, consegue transmitir a inervação
receptadora dos músculos óticos à inervação inventora da mão.
Inervação criadora em correspondência precisa com a receptiva, eis todo gesto infantil (...) enquanto preparação de requisitos teatrais, pintura, recitação, música, dança (...). Em todas elas a improvisação permanece como central; pois (...) é a constituição da qual emergem os sinais, os gestos sinalizadores. (Ibid. p. 116).
O improviso do artista alude então a uma maneira de romper com o convencional sem
abdicar totalmente do que ele oferece, porque o pincel, a caneta, a espátula, o papel, a tela e as
outras ferramentas que deve empunhar e manusear corporalmente para expressar sua
imaginação também são produtos alocados na história. Mesmo os conteúdos de suas criações,
atualizados sob forma de poemas, peças, gravuras, estátuas etc. nascem do recolhimento de
informações e linguagens localizadas no fluir do cotidiano. Essa gestualidade improvisadora é
igualmente profética porque, mesmo em sua feição microscópica, confirma a possibilidade da
história ser revirada de dentro através da atividade do sujeito sobre os elementos lingüísticos,
materiais, ideológicos, semióticos etc. disponibilizados no espaço e tempo. Afinal de contas,
improvisar presume retirar alguma coisa de contexto e pô-la noutro, com alteração funcional
de papéis e sentidos. Uma improvisação quebra, portanto, com a monotonia e padronização
87 uniformizadoras por meio de certa irreverência, informalidade e ausência de censura diante
dos objetos, fatos esse que ratificam sua familiaridade com o jogo. “Ela representa (...) aquilo
que o carnaval representava nos antigos cultos. O mais alto converte-se no mais baixo (...)
assim como em Roma, nos dias saturnais, o senhor servia ao escravo. Novas forças (...) vêm à
luz (...) nessa selvagem libertação da fantasia (...) no jogo.” (Benjamin, 2007, p. 118).
Consumada como manifestação de um comportamento infante pelo artista, com tudo o
que isso implica, a obra de arte reflete o movimento de tradução das linguagens imperfeitas e
mudas da natureza em outras mais elaboradas. Tal conversão de universos lingüísticos
demanda a participação de determinadas habilidades e disposições improvisadoras, visto que,
guardadas as proporções, ela segue a lógica de um peculiar jogo de ´quebra-cabeças`, onde, ao
contrário do homólogo com o mesmo nome, não existe total e perfeito encaixe de peças. A
improvisação criativa é crucial para o preenchimento dos hiatos surgidos entre os desacordos
de suas arestas e, por conseguinte, para a qualidade do produto final. Esse duplo exercício de
desconstrução e reconstrução de mundos, lúdico por si mesmo, pode ser igualmente
compreendido como imagem do dinamismo transformador da história, e, nessa circunstância,
contribuir para efetivar análises sobre o que aguardar da arte em se tratando da temporalidade
mítica da modernidade. Isso será feito a seguir.
88 CAPÍTULO II
CULTURA, ESTÉTICA E POLÍTICA
Na seção anterior, vimos que a não acomodação do artista no que se refere às
influências, critérios de criação e técnicas de trabalho representa um quesito seminal para que
ele consiga realizar a tradução da linguagem insonora da natureza na linguagem estética da
obra de arte. Isso pode ser também entendido como uma necessidade de explorar
indefinidamente sua capacidade de aprendizado.
De acordo com Gagnebin (2005), esse movimento pode ser interpretado como um
enfrentamento da possibilidade de auto-estagnação mediante a efetivação de uma constante
busca, em espaços universais, do que é ausente ou limitado no aspecto particular,
acompanhada de uma respectiva filtragem de tudo aquilo que foi descoberto. Para Benjamin,
tal temática permeia um dos principais textos fundadores da reflexão estética na modernidade:
o ensaio Le peintre de la vie moderne, de Baudelaire.
Para Benjamin, Baudelaire revela-se bastante original no modo com que trata o
problema, porque, evitando análises academicistas, considera-o com um sentido concreto. O
poeta apresenta o artista moderno enquanto alguém que, para criar, precisa oscilar entre o
ensimesmamento solitário e a imersão no cotidiano das multidões. Em função desse trânsito
entre ambientes tão distintos, dificilmente não se acha nas suas criações um tom de exagero e,
nos casos mais extremos, delírio.
O corolário disso é a verificação de que a plasticidade e versatilidade estéticas
emergem como uma característica preponderante do artista moderno. Baudelaire deixa isso
claro na seguinte citação, extraída de Le peintre de la vie moderne:
89 Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência que, a cada movimento, representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida. É um ´eu` insaciável pelo ´não-eu`, que a cada instante o revela e exprime em imagens mais vivas que a vida, sempre instável e fugidia. (Baudelaire, 2006, p. 4)
Contudo, Baudelaire admite que esse mergulho ´caleidoscópico` nas massas deixa o
artista exposto a influências tanto opostas como complementares: de um lado, adentrar o ir e
vir delas a fim de colher subsídios que serão depois trabalhados nas suas reproduções significa
sujeitar sua percepção ao recebimento de múltiplos estímulos, muitas vezes além de sua
capacidade de captá-los na íntegra. De outro, o mesmo precisa travar uma luta consigo mesmo
para refazê-los na obra antes que desapareçam da lembrança. Em suma, sua movimentação
obedece às exortações de duas tendências distintas. Uma delas é a temporalidade moderna das
aglomerações urbanas e da linha de montagem capitalista, onde levantes de coisas trocam de
posição com imensa velocidade; a outra, a do combate contra o esquecimento das informações
que absorveu de suas submersões no cotidiano. Perante esse cenário, Baudelaire situa o dia a
dia do artista moderno como o de uma figura submetida ao crivo da vontade de duas entidades
míticas: os deuses Cronos e Mnemósine.
Cronos personifica os processos de metrificação e racionalização do tempo, cujo ápice
acontece justamente no contexto da época moderna. Filho mais novo de Urano, o céu, e Géia,
a terra, pertence ele à primeira geração de seres celestiais, os titãs, anteriores aos Olímpicos.
Narra o mito que Cronos, depois de tramar com sua mãe, envolveu-se em árdua batalha com o
pai intentando tomar seu lugar no céu. Saído vitorioso, proclama-se senhor do mundo e decide
desposar sua irmã Réia, contrariando a predição de seus genitores que dessa união incestuosa
nasceria um descendente capaz de destroná-lo de sua posição. Para evitá-lo, Cronos
sucessivamente gerava e devorava os filhos recém-nascidos, até que um dia, enganado por
Réia, não conseguiu comer um deles, Zeus, que, fugindo para Creta e lá crescendo, retornou
90 anos depois para destituí-lo, finalmente cumprindo a profecia. Como Cronos, o tempo
medido e contado numericamente tanto pode fecundar a vida como acelerar a sua destruição.
Com relação a Mnemósine, ela simbolizava a memória para os gregos. Enquadrada
pelos mitógrafos na categoria das titânidas, pois igualmente nasceu de Urano e Géia, os rituais
celebrando-a ocorriam num manancial localizado diante do Oráculo de Trofônio, na região da
Beóscia. Grimal (2000) registra que nesse mesmo lugar, porém em outra fonte, os beóscios
rendiam homenagens a Lete, deusa do esquecimento. Acreditava-se que a água da fonte de
Lete vertia do Hades, tendo os condenados que bebê-la para apagar as lembranças
remanescentes da vida terrena.13 Lete veio ao mundo por intermédio do ventre de Éris, a
discórdia, que integrava a familia das Erínias, um grupo de gênios alados formados das gotas
de sangue caídas de Urano durante o combate com Cronos. “Assim como as Moiras (o
destino), elas eram originalmente as guardiãs das leis da natureza (...) física e moral (...), e por
isso puniam todos aqueles que ultrapassassem seus direitos à custa dos de outrem, quer entre
os deuses, quer entre os homens.” (Chevalier & Gheerbrant, 2002, p. 376).
Nos poemas homéricos, as Erínias são investidas da função de reparar faltas cometidas
contra os laços de família e a tradição. Por exemplo, o crime premeditado de Altéia contra
Meleagro foi inspirado por elas como vingança pelo fato de Meleagro ter provocado a morte
dos tios. Das Erínias também vieram as múltiplas desgraças que assolaram os familiares de
Agamenon, como conseqüência do sacrifício de Ifigênia. Também elas estimularam Orestes a
castigar Climnestra depois desta matar o marido. No mais, o anúncio da maldição que
assolaria Édipo após o assassinato de Laio e o casamento com Jocasta deu-se por uma delas.
Em suma, o que extrair de todo esse panorama? O desenrolar da narrativa mitológica
exposta, tomando-se por base a colocação inicial de Baudelaire de que o processo criativo do
artista moderno é governado, em termos figurados, pelas influências de Cronos e Mnemósine, 13 Pelo mesmo motivo, Platão, na sua doutrina da metempsicose, advertia que todas as almas encarceradas nas
prisões do Hades necessitavam ingerir tal líquido antes de regressarem à vida encarnadas em um novo corpo.
91 permite-nos chegar a algumas constatações. As relações entre essas duas entidades míticas,
segundo o caminho que trilhamos, são mediadas por personagens coadjuvantes que, sempre
quando focalizados em particular, invocam logo a seguir a sugestiva presença de algum outro
ou outros imediatamente próximos. Ou seja, a forma como Cronos e Mnemósine interagem
dá-se no bojo de uma complexa trama cujo desenrolar chama a constante participação de
elementos adjacentes. Cada um desses elementos protagoniza papéis que não se bastam em si
mesmos, sempre remetendo ao envolvimento de algum outro. Guardadas as proporções, esse
aspecto bastante singelo da trama exemplifica com alguma propriedade a essência do conceito
de alegoria. “A alegoria é (...) pluralista e não monista (...). Sua maneira de reportar-se ao todo
consiste em aludir sem cessar ao outro.” (Merquior, 1969, p. 106).
Ainda que a afinidade da arte moderna com a alegoria realmente mereça destaque por
se tratar de importante descoberta no campo da história da arte, Benjamin acaba re-
aproveitando esse vislumbre baudelaireano para estruturar um empreendimento muito mais
grandioso e original, a crítica dos fundamentos que suportam os saberes na modernidade. De
acordo com Merquior (1969), o ponto de partida do filósofo é a premissa de que só a profunda
e irrefreada penetração do sujeito no objeto possibilita o mapeamento dos recônditos da
cultura:
O ´espírito objetivo` já não pode ser rastreado de maneira muito confiante na transparência da intenção que animou seus passos (...) O método (...) de Benjamin aspira a uma ´desmedida entrega ao objeto`, porém essa crescente aproximação da coisa pelo pensamento torna o espaço objetivo estranho, estranho à própria intenção que se pensara fundá-lo: só assim a crítica descobrirá os segredos da realidade subterrânea da cultura.” (Merquior, 1969, p. 102).
Semelhante procedimento orientava a leitura dos antigos textos cifrados do
Renascimento e do Medievo. Em termos epistêmicos, eles e as produções da cultura eram
92 concebidos como miniaturas de mundos mais amplos. “A exegese de Benjamin, o hábito
(...) de tomar o texto (ou o objeto cultural de maneira geral) por um microcosmo, por um
´speculum mundi` (...) parece pertencer ao universo analógico dos intérpretes medievais ou
renascentistas.” (Merquior, 1969, p. 103).
Portanto, por este raciocínio, a alegoria moderna condiz então com um determinado
estágio temporal do juízo, do conhecimento e da cultura. Como a crítica da cultura deve então
se portar? Que diretrizes seguir? Benjamin insiste que o realmente inovador para ela remete a
perquirir, no tempo que testemunha a produção da obra de arte, o perfil do tempo correlato
que lhe circunda, conhece e avalia.
Ora, o objeto alegórico, justamente por causa de sua constante remissão a algum outro
contexto, reveste-se de polissemia. Com isso, não se consegue extrair de sua interpretação um
resultado estável, decisivo e acabado. Portanto, sem precisão, ele é incompatível com o
encaminhamento de procedimentos racionais monistas. “O acontecimento é significativo, mas
seu pleno significado (...) não é ´dado` de uma vez por todas – o acontecido significa mais de
uma coisa. Em conseqüência, significado aberto e polissemia coincidem.” (Ibid. p. 110).
Incompleta, a estética do alegórico dissona de boa parte dos resultados a que as
investigações filosóficas desde Kant sobre a obra de arte chegaram. O estranhamento causado
pelo anacronismo da alegoria envereda para a formulação de suspeitas contra a radicalidade
da arte moderna, centradas no argumento de que o abstracionismo suspende o sentido. Mas no
fundo, diz Merquior (1969), a profusão e substituição de detalhes no objeto alegórico
contrariam a intenção dos saberes norteadores do contemporâneo moralismo socialista ou
liberal, defensores da plenitude de um movimento da humanidade para os diferentes télos que
colocam.
Assim, com a alegoria benjaminiana, a obra de arte e os produtos da cultura assumem
a condição de exemplares de problemas epistêmicos sem, contudo, deixarem de ser
93 averiguados no que guardam de singulares em si mesmos. Logo, o modo mais profícuo de
discorrer sobre suas interfaces com o entorno cultural e o estado presente do conhecimento
existente acaba sendo, para Benjamin, o ensaio filosófico. Uma definição concisa e ao mesmo
tempo bastante abrangente desse gênero de escrita, realçando seus principais pontos, nos é
dada por Lukàcs:
O ensaio fala sempre de algo já formado ou (...) de algo que já foi, em outra ocasião; pertence à sua essência não extrair coisas novas do vazio, mas ordenar, de maneira nova, coisas que em algum momento, já foram vivas. E como se limita a reordená-las, em lugar de dar forma a algo novo partindo do informe, acha-se vinculado a essas coisas, tem que dizer sempre ´a verdade` sobre elas, e exprimir sua essência. (Lukács, citado por Merquior, 1969, p. 113).
A técnica ensaística prima pela busca do universal através do escrutínio do particular
condensado na criação cultural e artística, desviando-se assim das doutrinas dominantes desde
Platão, segundo as quais o mutável e o efêmero são indignos de investigação filosófica. Com
ela, apaga-se a distinção entre a metafísica, enquanto filosofia primeira, e uma até então
secundária filosofia da cultura.
Urge destacar que, malgrado o ensaísmo privilegiar a descrição como eixo
estruturador da reflexão filosofante, nem por isso ele converge para a pura descritividade
fenomenológica que busca conciliar a apoditicidade das essências com o material concreto,
afirma Merquior (1969). Sabe-se que para Husserl, a fenomenologia é uma operação de
descrição da estrutura específica do fenômeno por uma consciência cuja intencionalidade
constitui as suas significações. A colocação das coisas do mundo e da crença nelas entre
´parênteses` é um pré-requisito metodológico para se chegar ao terreno maior da consciência
pura e das atividades por ela realizadas, independente dos objetos visados por ela existirem ou
não. Apenas depois de alcançada essa etapa é que ocorre a reflexão transcendental, capaz de
94 levar o eu ao conhecimento fidedigno que recupera o mundo.
Em se tratando das relações entre fenomenologia e história, Zilles (2007) informa que
Husserl também enfatizou a necessidade de se colocar entre ´parênteses` a concepção das
ciências modernas sobre o mundo e a cultura. A ciência deve ser vista como uma determinada
práxis histórica. “A vida moderna, sua consciência científica e cultural, é apenas uma entre
outras possíveis.” (Zilles, 2007, p. 221). A redução fenomenológica seria uma forma de
impedir que formas culturais historicamente criadas, como a ideologia do progresso ad
infinitum, fossem hipostasiadas como a priori. Daí, a pergunta forçosa: o que então realmente
perdura na constituição do mundo para Husserl? A subjetividade transcendental, conclui
Zilles (2007). “A subjetividade transcendental é absoluta e se manifesta com suas estruturas
essenciais no processo (...) da história.” (Ibid. p. 221).
A perspectiva de Benjamin envereda para um outro caminho, conforme nos revela o
seguinte trecho extraído de Passagens:
É importante afastar-se resolutamente do conceito de “verdade atemporal”. No entanto, a verdade não é – como afirma o marxismo – apenas uma função temporal do conhecer, mas é ligada a um núcleo temporal que se encontra simultaneamente no que é conhecido e naquele que conhece. Isso é tão verdadeiro que o eterno, de qualquer forma, é muito mais um drapeado em um vestido que uma idéia.
A verdade (o drapeado) remete assim a um contexto embasado em um fundo de
linguagens e conceitos (o vestido) que lhes servem de suporte, os quais podem ser lidos por
aqueles que tenham a necessária presença de espírito para decodificar seus sinais com
acurácia, como o faz o jogador de cassino com os dados e cartas. Por outro lado, o formato
dos vestidos tende a sofrer mudanças no transcorrer do tempo devido ao aparecimento de
novos tipos de tecido, novos modos de costura, alterações nos padrões de corte, atualização da
moda, reviravolta das demandas sociais, etc. Agregando a si esses novos ingredientes, ele
95 pouco a pouco assume um perfil mimético diferente daquele que possuía, o que se reflete
no contorno imagético dos drapeados, de maneira que nuanças outrora despercebidas podem
passar ao primeiro plano do olhar ao preço da ocultação de outras que até então eram
evidentes. Ou seja, o aspecto deste não é indissociável do estado geral do vestido. Em
Passagens, encontramos um outro fragmento que versa sobre essa questão:
O que distingue as imagens das “essências da fenomenologia” é seu índice histórico (...) Essas imagens devem ser absolutamente distintas das categorias das ciências do espírito (...) O índice histórico das imagens, diz, pois, não apenas que elas pertencem a uma determinada época, mas que elas só se tornam legíveis numa determinada época. E atingir essa “legibilidade” constitui um determinado ponto crítico específico do movimento em seu interior. Todo presente é determinado por aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é o agora de uma determinada cognoscibilidade. (Benjamin, 2006, p. 504).
Colocadas essas informações, podemos agora visualizar com mais nitidez o que
efetivamente separa a descrição ensaística benjaminiana da fenomenológica: a opção pelo
mergulho filosófico nos termos lingüísticos de fato usados pelos escritores para redigir as
ficções (poesias ou prosas), pois eles são o tecido que abriga as imagens e verdades contidas
nestas. Apenas o envolvimento subjetivo com estes termos permite o acesso do intelecto à tais
imagens e verdades. Portanto, as premissas do ensaio benjaminiano, segue Merquior (1969),
condizem com uma criticidade alternativa que não se mede pela envergadura conceitual com
que consegue tematizar os conteúdos e assuntos convencionalmente abarcados pela teoria
social. Sua radicalidade está na maneira como é formulada, alheia a idéia de que o discurso
filosófico, para alavancar transformações, precisa do abstrato espírito de sistema. Em outras
palavras, esse modelo de ensaio não se dispõe a esquadrinhar o objeto via teoria, porque tal
caminho, que é o da sistematização formal, periga encurtar o espaço e a mobilidade do
pensamento inovador; para não cair no equívoco de engessar e empobrecer a compreensão do
96 objeto cultural, ele volta-se metodologicamente para uma sempre aberta revisão de si e
daquilo sobre o qual discorre, anteparado no pressuposto alegórico deste último.
Visto de outro modo, a propositada abertura interpretativa da linguagem do ensaio
benjaminiano como meio de recortar o objeto e exibir seus contornos mais íntimos por
intermédio do retorno incessante às suas minúcias condiz muito mais com a natureza
polissêmica e fragmentária da alegoria do que o excessivo rigor das doutrinas sistemáticas. O
ensaísmo crítico de Benjamin, procurando reproduzir lingüisticamente o polimorfismo do
objeto alegórico, corrobora-se como discurso de conhecimento compatível com uma imagem
do Todo que não é mais mediação universal absoluta. Isto quer dizer, por outros mecanismos,
que a proposta do ensaio benjaminiano continua a coadunar-se com os grandes problemas da
filosofia moderna; sua diferença está na recusa em procurar explicações generalizantes
derivadas de fenômenos determinados, como o fetichismo da mercadoria ou a práxis do
proletariado. A totalidade, para Benjamin, aparece dialeticamente nos panos de fundo
dinâmicos de cada objeto histórico trabalhado pela crítica.
Consoante os comentários de Adorno (1992), Benjamin revigora o princípio da ´omnis
determinatio est negatio`, de Spinoza.14 É a livre comparação que franqueia o acesso às
profundezas do objeto e legitima a abordagem epistemológica.
No capítulo introdutório de Origem do drama barroco alemão, Benjamin adapta essa
consideração ao mundo das idéias, advertindo que estas não são passíveis de apresentação 14 O princípio ´omni determinatio est negatio` (´toda determinação é negação`) supõe que qualquer realidade
possui uma outra que lhe é alheia. Essa última constitui algo como um ´a partir de fora`, contra o qual os elementos constitutivos daquela primeira se confrontam. Assim, não se pode negar a relevância desse ´fora` enquanto elemento componente de sua estruturação interna (Mora, 2001). No livro Passagens, Benjamin chega a sugerir a adaptação desse princípio como base para uma proposta metodológica de investigação dialética da história cultural: “É muito fácil estabelecer dicotomias para cada época, em seus diferentes ´domínios`, segundo determinados pontos de vista: de modo a ter, de um lado, a parte ´fértil`, ´auspiciosa`, ´viva` e ´positiva`, e de outro, a parte inútil, atrasada e morta de cada época. Com efeito, os contornos da parte positiva só se realçarão nitidamente se ela for devidamente delimitada em relação à parte negativa. Toda negação, por sua vez, tem o seu valor apenas como pano de fundo para os contornos do vivo, do positivo. Por isso, é de importância decisiva aplicar novamente uma divisão a essa parte negativa, inicialmente excluída, de modo que a mudança de ângulo de visão (mas não de critérios!) faça surgir novamente, nela também, um elemento positivo diferente daquele anteriormente especificado.” (Benjamin, 2006, p. 501).
97 direta: sua apreensão esbarra numa vasta arquitetura de conceitos, exemplificações,
divagações etc. reunidos sob elas. “Pois idéias não são representáveis em si mesmas, mas
única e exclusivamente em uma combinação de elementos concretos no conceito: como
configuração desses elementos (...) Idéias estão para objetos como constelações para as
estrelas.” (Benjamin, 1998, p. 34-35).
Disposto a encurtar o hiato que separa o intelecto humano da esfera das idéias, o
ensaio benjaminiano abandona a técnica da exposição corrida e explícita de argumentos por
uma densa engenharia de citações, excertos e pareceres. Cabe ao crítico agregar todo esse
material e deixar que a montagem resultante fale por si. Parafraseando o filósofo, as
verdadeiras surpresas da linguagem capazes de arrebatar o leitor e deixá-lo estupefacto,
exatamente como os bandidos que saltam dos galhos das árvores na estrada e rendem as
carruagens, brotam dos interstícios dessa bricolagem. Na exposição ensaística, radicalidade
filosófica e aguçamento da crítica social caminham de mãos juntas.
Sobre o aspecto multifacetado do ensaio, Adorno (1981) ainda acrescenta que essa
estratégia de Benjamin objetiva eqüiparar-se ao estilo dos grandes nomes da arte moderna.
Muito dessa convicção deve-se ao papel que a leitura de Kafka desempenhou junto à
Benjamin, no sentido de que, frente à violência e os absurdos do mundo, urge adotar medidas
que levem os poderes institucionalizados a mostrarem-se como tais. “Não foi resignação que
Kafka apregoou, mas, antes disso, o mais eficaz modo de ação contra o mito: astúcia.”
(Adorno, 1981, p. 269). Benjamin assimilou a astúcia kafkiana não como arte e crítica cultural
imbuídas da missão de descortinar um rumo ideal para a humanidade, um sentido positivo de
realidade, como Lukács procurou descortinar, mas sim na dissecação minuciosa da miséria do
existente com toda sua pujança. Nas profundezas do projeto estético benjaminiano, assume
Adorno, mora a esperança de que, se o mundo for mostrado com toda a sua carga de violência
e totalitarismos, efeitos de choque poderiam ser gerados elidindo um sentimento comunitário
98 de indignação contra a injustiça.
Nessa virtual contribuição estética da arte moderna para a libertação do homem,
reaparece a sombra do jogo de azar, pelo fato dele igualmente representar, em sentido
figurado, um dínamo produtor de choques e traumas (os comportamentos corporais
automatizados e reflexos dos jogadores nas mesas de apostas, como vimos, são o testemunho
carnal desse acometimento). O que Benjamin acaba propondo é um aproveitamento dialético
desse princípio para a causa política da emancipação humana. Não apenas a escrita de Kafka,
mas o teatro de Brecht, o romance de Proust, o surrealismo, o dadaísmo, a fotografia, o
cinema e a fundadora poesia de Baudelaire constituem vetores a serem empregados nessa
empreitada. Adorno (1981) sintetiza a questão dessa maneira: “Especificamente, toda arte
moderna pode ser considerada uma tentativa de manter a dinâmica da história viva através da
magia, provocando uma sensação de horror que se faça sentir como choques paralisantes, por
retratar a catástrofe do a-histórico de forma tal que, repentinamente, promova a aparição de
sua face arcaica.” (Adorno, 1981, p. 58). Discutiremos tal questão, com acentos mais
específicos, na seção adiante.
ESTÉTICA DO IMPACTO E EMANCIPAÇÃO
Em artigo de 1934 denominado Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de
sua morte, Benjamin dedica-se a explorar os meios pelos quais, para o crítico da cultura
atento, a literatura de Kafka anuncia-se como inovadora. No universo literário kafkiano, o
burocrata de Estado aparece como alguém com uma vida decrépita e eivada de escuridão
existencial. Como exemplos, temos o juiz de direito que todo dia trancafia-se no sótão de casa
depois de chegar do trabalho, ou o secretário executivo que despacha isolado na solidão de
seu quarto de castelo; ambos retratam esse personagem tão desgastado do dia a dia da
modernidade. Muitas vezes, Kafka desloca o mesmo traço decadente para personagens
99 tipicamente subalternos, como porteiros e empregados, e serviçais. Mas são as figuras
paternas os elementos mais repulsivos da ficção kafkiana.
O pai é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos para Kafka. Essa semelhança (...) é feita de estupidez, degradação e imundície. (...) A imundície é de tal modo um atributo dos funcionários que eles podem ser vistos como gigantescos parasitas. Isso não se refere, naturalmente, às relações econômicas, mas às forças da razão e da humanidade, que permitem a esses indivíduos sobreviver. Do mesmo modo, nas estranhas famílias de Kafka, o pai sobrevive às custas do filho, sugando-o como um imenso parasita. Não consome apenas suas forças, consome também seu direito de existir. (Benjamin, 1994, p. 139-140).
Entre as instituições familiares e o corpo da administração pública estatal, Kafka
enxerga similitudes ímpares. Tanto uma como a outra deixam poucas esperanças de salvação
para seus membros, mesmo os mais corretos. Os únicos personagens da galeria kafkiana ainda
possuindo alguma oportunidade de salvação são os ajudantes, os estudantes, os vigaristas
urbanos, os loucos e os inábeis. Vivendo à penumbra, aparecendo e sumindo de cena como
que feitos de névoa, eles circulam entre todos os grupos sem, contudo, pertencerem a nenhum
em específico. Benjamin compara a natureza cambiante desses seres ao herói épico Ulisses.
Homero descreve Ulisses, ou Odisseus, na condição de um dos mais inteligentes
combatentes da guerra de Tróia. Seus conselhos e táticas de batalha foram fundamentais para
que os gregos saíssem vitoriosos de muitos confrontos. A idéia da construção do grande
cavalo de madeira que penetrou em Tróia carregando guerreiros escondidos nas entranhas
constitui o mais famoso dos ardis desse grande guerreiro. Entretanto, sua estatura física
causava surpresa por ser bastante inferior a dos demais legionários. Muitos mitógrafos
comparam o tamanho de Ulisses ao dos anões. Propositadamente, interpreta Benjamin, o
paradoxo de uma grande sagacidade vivendo nos limites de um diminuto e franzino corpo
100 infantil não só representa a principal chave para a compreensão da sina dos personagens
merecedores de salvação no mundo de Kafka como também o retrato de suas convicções
sobre a modernidade.
Na ´Odisséia`, Homero nos conta que Ulisses ordenou à sua tripulação que tapasse os
ouvidos com bolas de cera para não escutar o fatal canto das Sereias, e depois amarrasse seus
braços e pernas no mastro da nau. Mesmo que implorasse, seus marinheiros estavam
proibidos de desfazer as amarras. Em um determinado momento, ouviu a melodiosa voz
desses seres marinhos e sentiu um incontrolável desejo de lançar-se ao mar, no que foi
imediatamente impedido. Abaladas com o fracasso, as Sereias, do alto dos rochedos onde se
encontravam, atiraram-se às águas e lá acharam a morte.
Benjamin frisa que Kafka goza de esperteza tão grande como Ulisses; porém, diante
dele, essas entidades mistas de mulher e peixe provavelmente silenciariam a voz. Tal
mudança de atitude decorreria da subversão que sua literatura operou no gênero narrativo.
Uma coisa é certa: Kafka (...) está na fronteira do mito e do conto de fadas. A razão e a astúcia introduziram estratagemas no mito; por isso, os poderes míticos deixaram de ser invencíveis. O conto é a tradição que narra a vitória sobre esses poderes. Kafka escreveu contos para os espíritos dialéticos quando se propôs narrar sagas. Introduziu pequenos truques nesses contos e deles extraiu a prova de que ´mesmo os meios insuficientes e até infantis podem ser úteis para a salvação.` (Benjamin, 1994, p. 143).
A escrita de Kafka prima por toda uma série de inflexões e idiossincrasias provindos
do teatro. Esse competente enovelamento abre margem para intermináveis reflexões,
porquanto questiona a solidez das fronteiras que separam literatura e encenação. Nesse ponto,
Kafka firma-se como crítico da cultura, uma vez que seus textos exploram zonas pouco
conhecidas e convidam a incessantes revisitações, citações e traduções de si mesmos.
101 Podemos ir mais longe e dizer que muitos estudos e contos (...) de Kafka só aparecem em sua verdadeira luz quando transformados, por assim dizer, em peças (...). Somente então se perceberá claramente que toda a obra de Kafka representa um código de gestos, cuja significação simbólica não é de modo algum evidente (...); eles só recebem essa significação depois de inúmeras tentativas e experiências, em contextos múltiplos. O teatro é o lugar dessas experiências. (...) Assim, os gestos dos personagens kafkianos são excessivamente enfáticos (...) e extravasam para um mundo mais vasto. (Ibid. p. 146).
Essa transcendência dos personagens para outro mundo além dos limites textuais
existe porque Kafka singulariza cada um deles enquanto atores que apenas auto-interpretam
papéis. E que papéis são esses? As próprias vidas que levam. “Está absolutamente excluído
que eles sejam o que representam.” (Ibid. p. 150). Em outras palavras, os valores que
normalmente a sensibilidade dos autores transpõe para os escritos ficcionais, perenizando-os
na personalidade dos protagonistas que criam, não se vê em Kafka, pois, de acordo com
Benjamin, o formato de seu universo literário segue a linha de um grande teatro do mundo:
por detrás de cada personagem, encontra-se alguém contratado para atuar nesses palcos
interpretando as mesmas funções que exerce no cotidiano. Mas por que isso? Qual o motivo
dessa aproximação? Benjamin assim responde:
Representando seus papéis, os atores procuram um abrigo no teatro (...) como os seis atores de Pirandello procuram um autor. Para uns e outros, a cena constitui o último refúgio, e não é impossível que esse refúgio seja também a salvação. A salvação não é uma recompensa outorgada à vida, mas a última oportunidade de evasão oferecida a um homem, como diz Kafka, ´cujo crânio bloqueia... o caminho`. A lei desse teatro está numa frase escondida no Berich für eine Akademie (Relatório à academia): ´... eu imitava porque estava à procura de uma saída, por nenhuma outra razão.` (Benjamin, 1994, p. 150).
A dimensão mimética do teatro insurge assim como uma possibilidade de desvio na
direção salvadora de um outro real pelas vias da ludicidade, do mesmo modo como a criança
102 evade do mundo real recriando seus matizes nos espaços da brincadeira. Curiosamente,
ainda em Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte, Benjamin lembra
que no texto de ´Amerika`, uma importante obra de Kafka cujo tema central é o convite a um
homem de nome Karl Rossman para que integre uma companhia de teatro ao ar livre situada
na cidade de Oklahoma, há um momento em que os atores que nela aceitaram ingressar são
colocados em um grande banco recoberto com toalha branca para serem celebrados. O
ambiente dessa celebração é caracterizado como uma quermesse ou festa de infantes, o que de
certa forma invoca a alegria, o cenário e a fantasia reinantes nessas ocasiões como atributos
típicos de quem acha no mimetismo inerente ao brincar e jogar tanto o eixo diretor como a
salvaguarda de suas existências.
A original alteração que a literatura de Kafka estabelece nas relações entre autor, obra
e leitor, afirma Benjamin, está para o gênero narrativo assim como a proposta de Brecht de
reformulação do teatro épico está para o mundo dos palcos modernos. Afinal de contas, este
último jamais escondeu sua preocupação em tentar modificar os padrões interativos entre
público e palco, diálogos e representação, direção e atores.
No trabalho Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht, Benjamin (1994)
apresenta e discute as seis prerrogativas conceituais delineadas por Brecht como os pontos de
partida para a consecução desse empreendimento: 1) o palco, outrora entendido como um
´círculo mágico`, eqüivale a uma sala de exposição, diagramada em ângulos favoráveis; 2) o
público que freqüenta as salas de teatro possui interesses que devem ser satisfeitos; 3) a
representação, enquanto interpretação virtuosística do texto, cai para um segundo plano,
passando a ser uma forma de gestão das possibilidades intrínsecas desse de chamar outras
questões; 4) o texto deixa de constituir um fundamento inviolável orientador da ação dos
atores, ascendendo como roteiro de trabalho onde se registram transformações necessárias; 5)
o diretor não é um instrutor de atores que apenas fornece informações visando obter efeitos,
103 mas um expositor de teses diante das quais posições precisam ser assumidas; 6) o ator
converte-se num minucioso investigador de papéis e personagens, de modo que sua diagnose
emerge como requisito da representação.
A satisfação dessas premissas, na visão de Brecht, é fulcral para que o teatro épico
adapte-se às circunstâncias da vida moderna sem perder a sua característica de, desde a Grécia
antiga, ser um teatro de consciência incessante, viva e produtiva. “Essa consciência permite-
lhe ordenar experimentalmente os elementos da realidade, e (...) no fim desse processo (...) o
teatro épico presta homenagem, de forma dura e pura, a uma prática socrática.” (Benjamin,
1994, p. 81).
O aspecto socrático do moderno teatro épico de Brecht está no chamado às massas
para que ela, atores, direção e cenários engajem-se num amplo processo reflexivo com
finalidades de auto-aprendizagem coletiva. Tal postura, na ótica de Benjamin, instaura um
rompimento com a visão disseminada pela burguesia dos espetáculos teatrais enquanto
diversão ou passatempo. A hegemonia da crítica especializada termina fragilizada com essa
proposta, pois a participação ativa das massas retira de suas mãos os ´segredos` que julgava
deter.
No momento em que a massa se diferencia através de debates, de decisões responsáveis, de tomadas de posição bem fundamentadas, no momento em que a falsa e mistificadora totalidade ´público` começa a fragmentar-se (...) - nesse momento, a crítica sofre o duplo infortúnio de ver desvendada a sua função de agente e (...) se converte, voluntária ou involuntariamente, em representante do que os antigos chamavam de ´teatrocracia`: tirania das massas, baseada em reflexos e sensações, que constitui o contraste mais completo com as decisões das coletividades responsáveis. (Benjamin, 1994, p. 87).
A adesão voluntária e consciente das massas, continua Benjamin, pode ser um ponto
de partida para inovações que, em grande medida, excluirão as idéias não realizáveis pela
104 conjuntura dominante da sociedade moderna. O sentimento de comunhão gerado amplifica
a capacidade delas reconhecerem a si mesmas nos gestos, pausas e ritmos dos atores com o
necessário distanciamento que precede a perplexidade e a subseqüente busca de saídas para
dilemas. Por esse viés, no rastro dos debates e discussões que suscita, o teatro épico eterniza-
se nos comentários, lembranças e remissões de todos aqueles envolvidos comunitariamente na
sua processualidade. “A tarefa maior da dimensão épica é exprimir a relação existente entre a
ação representada (...) e o comportamento teatral, que mostra essa ação. (...) Tais formulações
podem evocar (...) a significação e a aplicabilidade social da dialética.” (Ibid. p. 88).
Pelas palavras de Benjamin, todos os eventos levados a cabo no espaço do palco,
desde a passagem do texto até ensaios, envolvendo direção, cenografia, construção do
personagem etc. presumem exames concretos do corpo social. “O que se descobre na
condição representada no palco, com a rapidez do relâmpago, como cópia de gestos, ações e
palavras humanas, é um comportamento dialético imanente. A condição descoberta pelo teatro
épico é a dialética em estado de repouso.” (Ibid. p. 89).
Um entendimento mais detalhado dessa associação entre a proposta conceitual do
teatro de Brecht e a questão da dialética em repouso pode ser obtido por meio do seguinte
parecer, extraído do livro Passagens:
Não é que o passado lança sua luz sobre o presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética – Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas (...) A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico (...) subjacente a toda leitura. (Benjamin, 2006, p. 505).
As peças de Brecht compõem-se de ricos arranjos lingüísticos não apenas textuais,
105 reunindo também elementos corporais, sonoros, iluminatórios, decorativos, etc. dotados
das mais variadas características. A originalidade com que essas combinações são
meticulosamente concebidas contribui para que produzam efeitos estéticos até certo ponto
associados a um certo estranhamento; porém, o diferencial de Brecht está no fato de que a
surpresa que suas criações causam nos espectadores vem acompanhada não de uma sensação
de resistência e negação perante o que seus olhos observam, mas de um chamado para que
leiam, interpretem e partilhem discursivamente essas problemáticas. Isto é possível porque
suas elaborações levam em conta que todos possuem alguma herança cultural que lhes permite
decodificar as mensagens expostas, herança essa que reaparece no presente sob os aspecto de
imagens lembradas justamente nos momentos em que a interação com os atores em cena tem
vez. A constituição do sentido passa então pela resolução de questões que envolvem o resgate
daquilo que está guardado nas profundezas da memória, cujo ressurgimento igualmente
implica numa reconstituição subjetiva de valores, certezas e discernimento. Assim, tanto o
público que assiste como a encenação executada mostram-se abertos a novas influências e
configurações (Nicié, 2008).
Tal descoberta suscita nos espectadores uma sensação de recompensa e satisfação, o
que conduz a uma natural troca de informações entre eles. Logo, sem fechar-se ao prazer, ela
impele um auto-aprendizado próprio de quem está vivenciando algo muito próximo do
ambiente lúdico de uma brincadeira. Sobre a importância pedagógica e mesmo moral de se
debater algum assunto em bases lúdicas, Benjamin assim comenta em Imagens do
Pensamento: “Pois (...) só se aprende desse modo: a alegria pela discussão que chega até o
prazer lúdico no parceiro, a grande capacidade de (...) perder de vista a meta (...) e (...) acima
de tudo, amabilidade.” (Benjamin, 1995, p. 189). O reconhecimento de que é possível
inscrever a vida humana num fluxo de eventos dinâmicos e em perpétua atividade já
representa, por si próprio, um saber regozijador.
106
O fato de que ele é modificável por seu ambiente e de que pode modificar essa ambiente, isto é, agir sobre ele (...) provoca um sentimento de prazer. O mesmo não ocorre quando o homem é visto como algo de mecânico, substituível, incapaz de resistência (...) O assombro, que devemos incluir na teoria (...) da tragédia, deve ser visto como uma capacidade que pode ser apreendida. (Brecht, citado por Benjamin, 1994, p. 89).
Sumarizando, podemos afirmar que a variedade e a originalidade das proposições do
teatro de Brecht e da literatura de Kafka instituem quebras nas linguagens perpetuadoras dos
convencionalismos dominantes. Guardadas as proporções, Benjamin pontua que a
representatividade dessas cisões compara-se a queda de um corpo sólido num ambiente
aquático, que, depois de varar a superfície e invadi-lo até o auge da profundidade, gera
refluxos em todas as direções. Por onde passa, tal refluxo impacta os marasmos existentes; o
efeito redundante condiz com o assombro que Brecht menciona no excerto acima. Mais uma
vez aparece aqui a sombra da presença de Baudelaire, pois foi ele o primeiro artista moderno
a eleger a produção propositada de efeitos impactantes sobre as pessoas como princípio
cardinal das criações estéticas, do qual não só Kafka e Brecht são tributários diretos, mas todo
um levante de escritores, poetas, pintores, desenhistas e mesmo expoentes das novas artes
(cinema, fotografia, etc.).
Mas a partir de que perspectiva esses autores conseguem ocasionar quebras na
linguagem a ponto de produzirem choques nos seus leitores? Qual o motivo de seus sucessos?
Benjamin nos fornece algumas pistas em Imagens do Pensamento: “Em toda prova, as
maiores chances não estão, portanto, com o candidato bem preparado, mas com o
improvisador.” (Benjamin, 1995, p. 190). Não bastam a genialidade, a erudição ou a
eloqüência; o escritor realmente diferenciado atua como um brincalhão re-inventor do que é e
do que pode ser dito com base no acervo lingüístico ao seu dispor, o qual também não deixa
107 de estar sujeito à sua criatividade. Todavia, tais reinvenções não são planejadas com
antecedência; ao invés disso, elas seguem um percurso aberto aleatoriamente.
Isso significa pois: compreender a língua na qual a sorte faz seu acordo conosco (...) A estrutura do sucesso é, no fundo, a estrutura do acaso. Repelir o próprio nome sempre foi o modo mais radical de se livrar de todas as inibições e sentimentos de inferioridade. E o jogo é tal qual um ´steeple-chase` sobre a pista de obstáculos do próprio ego. O jogador é anônimo, não tem nome próprio nem precisa de qualquer nome alheio. Pois o substitui a ficha de aposta que se encontra lá numa área bem definida do pano, que se diz verde como a dourada árvore da vida mas é cinza como o asfalto. E que êxtase nesta cidade da sorte, nessa rede rodoviária da sorte, de poder se fazer duplo onipresente e espreitar, de uma só vez, nos quatro cantos, a fortuna se aproximando. (Benjamin, 1995, p. 190).
Com características de jogadores, Benjamin chega a afirmar, com um certo tom de
trocadilho, que o sucesso de autores do porte de Baudelaire, Kafka e Brecht não está no
espírito, e sim na ´presença de espírito`. “Assim, não é o Quê nem o Como, mas só o Onde do
espírito que determina. Que ele esteja presente no momento e no espaço, isso só consegue
penetrando o tom, o sorriso, o emudecer, o olhar, o gesto. Pois, presença de espírito só o
corpo é que cria” (Ibid. p. 191). Saber antever na palavra, no palco, na folha em branco ou no
breve resíduo de memória o que deve ser colocado em jogo para se chegar a algo maior é o
que caracteriza os grandes nomes da arte, das finanças etc. “O sucesso com que gênios (...)
fizeram sua carreira é (...) da mesma qualidade que a presença de espírito com que um Abbé
Galiani operava no salão.” (Ibid. p. 191).15
Destarte Baudelaire, Kafka e Brecht serem comparáveis, nas suas perspicácias, aos
jogadores de azar, Benjamin ainda nos dá alguns outros subsídios para entendermos o porquê
15 Abbé Galiani foi filho de Ferdinando Galiani, diplomata e oficial da Real Administração financeira do Reino
de Nápoles durante o século XVIII. Economista, latinista, arqueólogo, nunismático, geólogo e escritor, Abbé adquiriu fama igualmente nos Salões de Paris pela forma com que transitava por entre eles inventando e contando estórias e piadas bastante criativas. Uma detalhada biografia de sua vida pode ser encontrada em Kaplan, S.L. La Baggare: Galiani`s lost parody. New York: Springer-Verlag, 1979.
108 da arte deles ser assimilada como algo que choca quando traça um paralelo entre elas e as
interpretações psicanalíticas de Freud acerca dos sonhos dos acidentados da Primeira Grande
Guerra registrados em Além do Princípio do Prazer.
Nesse livro – um dos mais importantes na evolução do seu pensamento – Freud
argumenta que os traços residuais da memória são mais intensos e duradouros quando o
processo que os depositou na mente não chega a atingir o limiar da consciência. Os dados
armazenados por esse tipo de memória, involuntária por definição, não recebem a chancela
das vivências privadas do sujeito. As distinções da consciência no referido processo ocorrem
porque, de acordo com Freud, é igualmente crucial para o organismo vivo que ele tenha meios
de se proteger de boa parte das sensações que possui. O organismo armazena um certa
quantidade de energia, e deve tender, sobretudo, a proteger as formas particulares de
transmutação psíquica que nele acontecem contra as interferências destrutivas e niveladoras
dos outros gradientes de energia vindos do mundo externo.
Os traumas, ou choques, são o modo como o corpo sente a ameaça desse afluxo de
energias provindas do exterior. Nos momentos em que a consciência dá conta de registrá-los,
tal efeito traumatizante não apenas fica reduzido como até converte-se em fator de estímulo
orgânico. Os sonhos e devaneios dos ex-combatentes de guerra denotam, mais do que o
desejo, o esforço de reconquista do controle dos estímulos e da proteção da consciência em
face das agressões do universo exterior. Contudo, nesse caso, devido à insuficiência de meios
da consciência, quem se mobiliza no sentido de auxiliá-la acaba sendo o inconsciente.
Essa dupla manifestação, mista de convergência e diferença, coaduna-se, consoante
Freud, com o ambíguo sentido das expressões alemãs ´heimlich` e ´unheimlich`. ´Heimlich`
significa o reconhecimento, a familiaridade e a identificação que asseguram a alguém o
desfrute resguardado de uma sensação segura. Mas esse resguardo também guarda
familiaridade com recolhimento, esconderijo, saída das vistas de alguém. Por causa disso, o
109 vocábulo comporta também o seu oposto, pois o prefixo ´un` refere-se a afastamento,
reclusão ou contenção. Portanto, ´heimlich` e ´unheimlich` pertencem a dois conjuntos de
idéias que concordam mesmo com suas singularidades, porque familiaridade e identificação
envolvem também uma parcela de misteriosa ocultação e permanência em segredo. “Dessa
forma, ´heimlich` é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência,
até que finalmente coincide com seu oposto, ´unheimlich`.” (Freud, citado por Matos, 1990).
Por meio dessa noção, é compreensível a tentativa de socorro que o inconsciente, sob
o aspecto de sonhos e devaneios, tenha prestado ao debilitado estado de consciência dos ex-
soldados de guerra. Benjamin encontra de maneira direta não em Freud, mas nos estudos de
seu ex-discípulo Jung, considerações concernentes ao mesmo fenômeno
´heimlich`/´unheimlich` aplicadas a lógica da criação da obra de arte. Vejamos o seguinte
fragmento do livro Passagens:
O processo criativo...consiste em uma ativação inconsciente (...) até resultar na obra perfeita. A nova configuração (...) é, de certa forma, sua tradução para a língua do presente...Nisso reside o significado social da arte: ... ela traz à tona as formas de que mais sente falta o espírito do tempo. Insatisfeito com o presente, o desejo do artista se retrai até atingir no inconsciente a imagem (...) apta a compensar...a unilateralidade do espírito do tempo. O desejo apodera-se dessa imagem e, ao aproximá-la da consciência, muda também sua forma até que ela possa ser apreendida pelo homem do presente segundo sua capacidade de compreensão. (Jung, citado por Benjamin, 2006, p. 513-514).
No fundo, Benjamin apropria-se da discussão freudiana e junguiana sobre a
composição das mônadas energéticas individuais e coletivas adaptando-as a um novo
contexto, o da história da cultura. Consoante essa apropriação, a dinâmica criadora das obras
de arte localiza-se numa esfera de tensão estremada, de um lado, pela história enquanto
manancial de estímulos traumáticos, e de outro, pela filtragem psíquica da subjetividade que
110 retém, revolve e novamente envia esses estímulos ao cotidiano. A questão secundária que
se impõe em função disso é justamente que sorte de possibilidades o emprego da reflexão
consciente sobre a dialética de tal processo implica para o sujeito e sociedade. “A utilização
dos elementos do sonho ao despertar é o cânone da dialética. Tal utilização é exemplar para o
pensador (...).” (Benjamin, 2006, p. 506).
Antes de mais nada, Benjamin afirma que a especificidade dos processos dialéticos
dissipa a aparência de que o curso dos eventos não se altera. O que significa agir em
consonância com eles, no rastro daquilo que mostram? “Para o dialético, o que importa é ter o
vento da história universal [Weltgeschichte] em suas velas. Pensar significa para ele: içar as
velas. O que é decisivo é como elas são posicionadas. As palavras são suas velas.” (Benjamin,
2006, p. 515). Em outras palavras, a abertura do pensamento ao movimento da história
reverbera sobre a composição das linguagens que ele usa para se expressar; tal reviravolta
desvela novas possibilidades a serem exploradas para ambos. A aplicação desse princípio no
plano concreto da arte moderna traz à baila elucidações que apenas uma presença de espírito
refinada, exatamente como a que o jogador de azar evoca antes de apostar, consegue ler.
Em toda obra de arte autêntica existe (...) uma aragem como a brisa fresca do amanhecer. Daí resulta que a arte, muitas vezes considerada refratária a qualquer relação com o progresso, pode servir a sua verdadeira definição. O progresso não se situa na continuidade do tempo, e sim em suas interferências, onde algo verdadeiramente novo se faz sentir pela primeira vez, com a sobriedade do amanhecer. (Ibid. p. 516).
Essa interrupção dialética representa, para Benjamin, o acontecimento originário da
história. A apologia de Baudelaire, Kafka e Brecht justifica-se por terem eles conseguido
alinhavar com bastante precisão, nos moldes de uma lógica ´heimlich/unheimlich`, o caminho
do ensimesmamento subjetivo fundamental para a criação estética com a lucidez reflexiva do
111 pensamento dialético. Se suas criações provocam sensação de assombro, isso ocorre
porque a intercessão que operam nos rumos da história vem sob a forma de uma modernidade
retratada para as pessoas através de imagens portando ao mesmo tempo caracteres familiares e
estranhos. O duplo desafio que se põe, e nisso Brecht exerceu um papel pioneiro, é o de
aproveitar e mesmo ampliar essa dimensão golpeadora, impactante, que a arte moderna exerce
sobre a percepção do sujeito justamente pela capacidade que tem de desalinhar o semblante do
sempre igual do continuum da história.
Aos olhos de Benjamin, o cinema encarna a grande possibilidade de estender tais
intenções ao nível das massas. “O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos
existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo.” (Benjamin,
1994, p. 192). Contudo, os primórdios do que apenas ele conseguiu anunciar de modo ímpar,
guardadas as proporções, já permeava momentos dos romances de Proust, do surrealismo,
dadaísmo e da fotografia artística.
Os treze volumes da coleção A la recherche de temps perdu, a grande obra de Proust,
tida por analistas literários como uma das mais importantes do século XIX, são o resultado de
uma minuciosa e surpreendente síntese de elementos místicos, descritivos, satíricos, eruditos e
autobiográficos articulados segundo um ordenamento cênico que transcende os padrões
vigentes de seu tempo. Por debaixo de toda essa miscelânea, declara Benjamin, acha-se uma
unidade homóloga a do sonho, no sentido de que os acontecimentos narrados, malgrado suas
particularidades, concentram incontestáveis semelhanças uns com os outros. “Ou seja, eles
não aparecem de modo isolado, patético e visionário, mas são anunciados (...) e carregam
consigo uma realidade frágil e preciosa: a imagem. Ela surge da estrutura das frases
proustianas.” (Benjamin, 1994, p. 40).
As imagens que brotam das rebuscadas figurações metafóricas de Proust, tematizando
os recônditos da sociedade burguesa, eqüivalem, para Benjamin, a densos e enebriantes
112 correspondentes miméticos da distorcida luta existencial que os patéticos e saudosistas
habitantes da metrópole parisiense precisam travar todos os dias para sobreviver. Os abalos
que tal artimanha causa nos leitores devem-se a sutileza com que ela cruza, para a
consciência, duas temporalidades distintas, a da eternidade de reminiscências oníricas com a
do envelhecimento cronológico dos objetos do mundo; por meio dessa estratégia muitos
segmentos da modernidade são virados ao avesso e forçados a exibir detalhes de uma clausura
que até então passavam despercebidos. As elaborações lingüísticas de Proust, mais até do que
Baudelaire, conciliaram essas duas tendências justamente porque deram conta de estabelecer
um circuito em que as expressões factuais do território do vivido e as imagens primevas das
coisas em estado de semelhança, mais do que interpenetrarem-se, retroalimentam uma a outra.
Quanto a isso, Benjamin é taxativo:
Compreender a interação do envelhecimento e da reminiscência significa penetrar no coração do mundo proustiano (...). É o mundo em estado de semelhança, e nela reinam as ´correspondências` (...) em sua existência vivida (...). ´A la recherche du temps perdu` é a tentativa interminável de galvanizar toda uma vida humana com o máximo de consciência. (Ibid. p. 46).
O que será que Benjamin quer dizer com a expressão ´...galvanizar toda uma vida
humana com o máximo de consciência.`? Normalmente, o verbo galvanizar é empregado para
ilustrar a eletrificação de metais através de alguma bateria ou pilha química. Entretanto,
durante o século XIX, com o avanço das pesquisas científicas em fisiologia e anatomia
humanas, observou-se a adoção desse procedimento na consecução de diversos estudos
laboratoriais cujo foco era a ativação de músculos vivos sem nenhuma mobilidade ou mesmo
a tentativa de reanimação de corpos imediatamente após a morte. A exploração
sensacionalista desse tipo de prática por boa parte dos meios de comunicação de massa da
época levou o vocábulo a ser adotado em conversas despreocupadas com a conotação de
113 descarga energética reanimadora em alguém com sinais de apatia. Mais tarde, dado esse
desvio, galvanizar tornou-se sinônimo de libertação de algum estado inercial, ressuscitação e
mesmo renascimento (Ariès, 1975).
De acordo com Benjamin, o universo de Proust possui o poder de ´galvanizar` a vida
de quem se deixa penetrar por ele porque, destarte ser esvaziado de interesses metafísicos ou
consoladores, a estrutura fundamental de cada frase, parágrafo ou capítulo consiste de um sutil
envio do leitor a um espaço de visualizações imagéticas sugestivamente provocadas, seguido
de um convite para que o mesmo procure ler, de forma consciente, as informações dispersas
nos interregnos dessas imagens. Além disso, o filósofo tece mesmo uma analogia entre a
atividade artística de Proust e a natureza transformadora do jogar infantil, da qual discorremos
no capítulo anterior.
Para dizer (...) Proust usa (...) de modo (...) fascinante (...) a ponte para o sonho. (...) As crianças conhecem um indício desse mundo, a meia, que tem a estrutura do mundo dos sonhos, quando está enrolada, na gaveta de roupas, e é ao mesmo tempo ´bolsa` e ´conteúdo`. E, assim como as crianças não se cansam de transformar, com um só gesto, a bolsa e o que está dentro dela, numa terceira coisa – a meia – ,assim também Proust não se cansava de esvaziar com um só gesto o manequim, o Eu, para evocar sempre de novo o terceiro elemento: a imagem (...) de um mundo (...) no qual irrompe à luz do dia o verdadeiro rosto da existência, o surrealista. (Benjamin, 1994, p. 39-40).
Assim como Proust, o surrealismo, como movimento de vanguarda, implodiu
dialeticamente a arte por dentro na medida em que defendeu sua distensão até os limites da
fronteira entre o sono e a vigília, onde palavra, som e imagem interpenetram-se com precisa
exatidão, declara Benjamin em O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia.
A especificidade da cosmovisão surrealista enraíza-se na diluição do sujeito em um ambiente
de embriaguez que, ao mesmo tempo em que pode fasciná-lo ao nível do deslumbramento,
114 oferece também apoios para ele desligar-se dela.
Não obstante assinalar algumas divergências em relação aos posicionamentos
assumidos por alguns dos seus mais notórios nomes, especialmente Aragon e Breton,
Benjamin elogia a vitalidade com que as produções surrealistas enovelam o reino lógico do
conceito com o reino místico da poesia e do desenho.
Todavia, Benjamin condenou a extrapolação ingênua e intempestiva das premissas
teóricas do movimento para outras regiões do saber com o intuito de ajuizá-las e mesmo
deliberar sobre suas naturezas epistêmicas. Muito precipitadamente, Apollinaire e Breton
ousaram dizer que as conquistas da ciência e da tecnologia obedecem muito mais a critérios
surrealistas do que lógicos. Tal digressão, segue Benjamin, marca o início da saída do
movimento de seus propósitos apenas estéticos na direção do abraço da causa política, em
grande parte devido às hostilidades do modus vivendi burguês contra qualquer manifestação
de liberdade e criatividade espirituais.
Esse incômodo contribuiu para que uma parcela razoável de pensadores e artistas do
surrealismo optasse pela afiliação a partidos e ideologias políticas de esquerda. Certos
acontecimentos, como a deflagração da guerra do Marrocos, apressaram essa tomada de
atitudes.16 Por outro lado, ao fazê-lo, acabaram ficando afins do que Benjamin denomina de
´moral burguesa de esquerda`, concepção essa que não vai além de um idealismo político
revolucionário ancorado na idéia de que as energias da embriaguez artística, devidamente
canalizadas, são capazes de alavancar revoluções. “Pois o que é o programa dos partidos
burgueses senão uma péssima poesia de primavera, saturada de metáforas? O socialista vê ´o
futuro mais belo dos nossos filhos e netos` no fato de que todos agem ´como se fossem anjos
(...), ricos e (...) livres.`” (Benjamin, 1994, p. 33). 16 Pelo nome de Guerra do Marrocos, compreende-se uma série de conflitos bélicos ocorridos inicialmente
entre Espanha e Marrocos, entre 1840 e 1860. Na primeira década do século XX, o despertar do interesse imperialista da Alemanha, França e Inglaterra pelo país norte-africano deu início a diversos embates diplomáticos entre eles. Novamente, essa querela recebeu a denominação de Guerra do Marrocos.
115 Um outro segmento desse mesmo grupo elege o pessimismo integral típico da
radicalidade comunista como sua bandeira. “Desconfiança (...) do destino da literatura, (...)
liberdade, (...) humanidade européia, e principalmente desconfiança com relação a qualquer
forma de entendimento mútuo: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos. (...) E
então?” (Ibid. p. 34).
Diante do impasse observado, Benjamin ressalva uma terceira via, a sugerida por
Aragon, cuja coerência e originalidade demandam sua necessária ampliação. Aragon, numa
intuição estilística extremamente feliz, detectou que na esfera da política os domínios da
metáfora e da imagem se diferenciam de forma rigorosa e sem a menor oportunidade de
conciliação. Caso se enxergue o espaço da política não mais pelo viés da metáfora moral, e
sim pelo das linguagens imagéticas, o pessimismo da radicalidade comunista adquire uma
chance de ser revisto e reorganizado. Toda vez que uma ação gera não apenas uma imagem de
si mesma, mas de fato converte-se nessa imagem sem nenhum distanciamento, nasce daí um
universo multidimensional onde qualquer coisa torna-se passível de ser dialeticamente
despedaçada e metabolizada (indivíduo, psiquismo, materialismo político, etc.). O filósofo
assim se pronuncia em O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia:
No entanto, e justamente em conseqüência dessa destruição dialética, esse espaço continuará sendo espaço de imagens, e algo mais concreto ainda: espaço do corpo. Não podemos fugir a essa evidência, a confissão se impõe: (...) o coletivo é corpóreo. E a ´physis`, que (...) se organiza na técnica, só pode ser engendrada em toda sua eficácia política e objetiva naquele espaço de imagens (...). Somente quando o corpo e o espaço de imagens se interpenetrarem (...) tão profundamente que todas as tensões revolucionárias se transformem em inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões revolucionárias; somente então terá a realidade conseguido superar-se (...). (Ibid. p. 35).
Mesmo sem nominar, a declaração de Benjamin, em grande medida influenciada por
116 Aragon, mostra sua fé nos atributos estéticos do cinema. “O cinema: desdobramento
[Auswicklung] (...) de todas as formas de percepção, velocidades e ritmos já pré-formados nas
máquinas atuais, de tal maneira que todos os problemas da arte contemporânea encontram sua
formulação definitiva apenas no (...) cinema.” (Benjamin, 2006, p. 439). Sem desmerecer o
papel do surrealismo na teorização benjaminiana sobre cinema, urge pontuar que o dadaísmo
talvez tenha sido o movimento de vanguarda que mais insistiu em tentar replicar através da
pintura, da poesia e da literatura os mesmos efeitos que apenas a projeção filmográfica viria a
efetivar na íntegra. Sua preocupação inicial consistiu da criação de obras de arte totalmente
impróprias para usos contemplativos. “Seus poemas são ´saladas de palavras`, contêm
interpelações obscenas e todos os detritos verbais concebíveis. O mesmo se dava com seus
quadros, nos quais colocavam botões e bilhetes de trânsito.” (Benjamin, 1994, p. 191).
A distração, assevera Benjamin, emerge como a categoria chave da estética dadaísta.
Propositadamente, as obras dos dadaístas eram planejadas de modo a causar a diluição da
atenção dos espectadores por entre suas associações de cores, palavras, formas, sons e objetos
à medida que estes aceitavam percorrê-las. Com isso, dificultavam a focalização da percepção
e, por conseguinte, o alcance dos estados necessários de concentração indispensáveis para a
retenção de informações na memória, mesmo que por intervalos de tempo breves. Em outras
palavras, a estética dadaísta objetivava sobrecarregar a memória com doses de estímulos
muito além da capacidade da cognição absorvê-los e processá-los devidamente. Nesse sentido,
nenhum estímulo captado é completamente assimilado na íntegra, pois mal a percepção dele
se assenhora, logo vem outro para substituí-lo. Tais interrupções assemelham-se aos abruptos
términos das sensações de prazer experimentadas pelos jogadores de azar depois que o rolar
dos dados ou o virar das cartas termina e o resultado da partida torna-se finalmente conhecido,
restando-lhes tão somente fazer novas apostas o mais rápido possível a fim de provocarem o
reinício desses momentos extremos.
117 Esse objetivo declarado de distrair o público via obra de arte colocou o dadaísmo
no centro de um escândalo; com isso, ele atingiu sua meta precípua: suscitar a indignação
pública. “De espetáculo atraente para o olhar e (...) o ouvido, a obra convertia-se num tiro.
Atingia, pela agressão, o espectador. E com isso, esteve a ponto de recuperar para o presente a
qualidade táctil, indispensável para a arte nas (...) épocas de reconstrução histórica.” (Ibid. p.
191). As criações dadaístas são produções tácteis porque a indignação que propositadamente
causam faz-se sentir no próprio corpo: os impactos ocasionados ao olhar que aceita aventurar-
se nos seus cambiantes lugares, ângulos e planos tanto pode diminuir como acelerar os
batimentos cardíacos; elevar ou reduzir a temperatura interna, provocar transpiração excessiva
ou calafrios; gerar gestos de não aceitação ou resignação; suspender ou aumentar a freqüência
respiratória; elevar ou cessar a voz. Em grande medida, esses efeitos são análogos, segundo
Benjamin, aos que acometem os indivíduos apaixonados por jogo perante o revolver de bolas
numeradas numa urna de sorteio ou os giros de uma roleta.17
Semelhantes incômodos atravessaram novamente os setores mais tradicionais da arte
européia quando Tristan Tzara declarou a versatilidade da fotografia para abrir novas frentes
de trabalho. “Quando tudo o que se chamava arte se paralisou, o fotógrafo acendeu sua
lâmpada (...) e (...) absorveu alguns objetos de consumo. Ele tinha descoberto o poder de um
relampejar terno e imaculado, mais importante que todas as constelações oferecidas (...) para
nossos olhos.” (Tzara, citado por Benjamin, 1994). Brecht também emitiu pareceres sobre o
assunto, notificando que a fotografia inaugura um momento em que a retratação do real por
meio de artifícios óticos e técnico-mecânicos informa mais e melhor sobre facetas de sua
natureza do que a observação direta e a olho nu das dimensões originais. A bem da verdade,
Brecht e Tzara estão dizendo que a exacerbação tecnológica dos aspectos sensíveis das coisas
reverbera na estruturação do aparelho perceptivo. As fotografias inquietam porque a livre 17 Conferir a transcrição literal que fizemos de um fragmento de Benjamin denominado O jogo, apresentado nas
página 45 e 46 do presente estudo.
118 contemplação não lhe cabe. “O (...) observador (...) pressente que deve seguir um caminho
definido para se aproximar delas. Ao mesmo tempo (...) as legendas explicativas se tornam
pela primeira vez obrigatórias.” (Ibid. p. 175).
A defesa da fotografia por parte do dadaísmo, na perspectiva de Benjamin, serviu
como um breve aperitivo para o cinema. Esse, bem mais do que ela, exige do observador que
abandone qualquer expectativa de acompanhamento contemplativo das imagens que associa.
Quando o observador percebe uma imagem, ela já deixou de ser o que era. A lógica do cinema
é a de imagens em movimento com ângulos e lugares abordados também diferenciados. A
cada instante, ele intercepta os sentidos de um modo que não condiz com o da imagem exibida
anteriormente, e, em função dessa fugacidade temporal, a atenção e a procura pela
compreensão do mostrado são o tempo todo requeridas.
As múltiplas abordagens efetuadas pela captação filmográfica do real e reproduzidas
para o espectador, mesmo incidindo sobre objetos e paisagens reais, como, por exemplo, ruas,
avenidas, montanhas etc., resultam em criações finais com uma certa característica de
efemeridade. Isso acontece porque o processo cinematográfico atrofia o que Benjamin chama
de aura da obra. “Em suma, o que é aura? É uma figura singular, composta de elementos
espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.”
(Benjamin, 1994, p. 168). Admirar uma cordilheira de montanhas ou deleitar-se com as ondas
do oceano significa absorver a aura desses fenômenos naturais. O cinema é uma manifestação
artística cujo produto final revela-se modificado na aura porque reduz ao extremo a distância
entre o objeto tematizado na imagem e o olhar humano. Além do mais, ele supera o caráter
único de qualquer fato na medida em que pode reproduzi-lo ad infinitum por meio do aparato
tecnológico que lhe ampara. Com isso, ele retira da quintessência do objeto o que a
continuidade da tradição lega ao patrimônio da cultura.
A perda da quintessência da obra subentende a destituição de sua autenticidade.
119 Assim, toda a função social da mesma se altera, pois, se antes do extremo
desenvolvimento dos meios de reprodução técnica ela fundamentava-se no ritual, na religião
ou na celebração mítica, com a instituição da modernidade há o afastamento dessas esferas e o
estabelecimento de um intenso diálogo com a política e a economia. Por que isso? A produção
de filmes demanda a participação de um sem número de técnicos especializados em alguma
função, sem olvidar do elenco de atores. A gestão de todo esse procedimento é tão custosa que
não se sustenta sem a adesão de consumidores dispostos a comprar o resultado final. Logo, a
obra cinematográfica é uma criação de coletividades para coletividades ainda maiores. “Em
1927, calculou-se que um filme de longa metragem, para ser rentável, precisaria atingir um
público de nove milhões de pessoas.” (Ibid. p. 172).
Ainda com respeito a produção de filmes cinematográficos, Benjamin assinala que ela
exige, por mais paradoxal que possa parecer, perfectibilidade e descartabilidade. Qualquer
gravação, não obstante de longa ou curta metragem, necessita da constituição inicial de um
grande acervo de imagens, onde apenas as melhores e mais adequadas serão aproveitadas para
edições. “Para produzir a opinião pública, com uma duração de 3000 metros, Chaplin filmou
125000 metros.” (Ibid. p. 174). A quase totalidade do material não utilizado nessa seleção
acaba descartada como refugo.
A participação do ator cinematográfico em todo esse empreendimento reveste-se de
características também únicas, que não se repetem no contexto do palco teatral. O ator de
cinema não representa diante de platéias, mas desempenha performances para grupos de
especialistas – diretores, operadores, cinegrafistas, iluminadores, engenheiros de som – que a
todo momento tem o poder de interpelar aquilo que assistem. Logo, sua atuação decompõe-se
em seqüências quebradas, cuja concretização obedece a fatores muitas vezes aleatórios e sob
os quais não tem o menor controle (tal qual a submissão do jogador de azar ao desígnio das
partidas), como a disponibilidade dos outros atores, o entendimento do que a direção aspira,
120 os compromissos promocionais de divulgação do filme, o bom funcionamento dos
recursos técnicos, etc. “É óbvio (...) que (...) pode-se filmar, no estúdio, um ator saltando de
um andaime, como se fosse uma janela, mas a fuga subseqüente será talvez rodada semanas
depois, numa tomada externa.” (Ibid. p. 180-181). Não convém ao ator de cinema reivindicar
o direito de saber o contexto total em que sua atuação está inserida. O desempenho de tarefas
independe de como e onde os registros delas serão encadeados. Portanto, a auto-alienação é
uma exigência da sua profissão.
Há que se dizer que tal auto-alienação admite aplicações bastante criativas. As
execuções performáticas do ator cinematográfico para as lentes de uma câmera gerenciada por
uma equipe técnica, imbuída da função de criar e selecionar as melhores tomadas, acaba
tornando sua imagem, bem como as narrativas que protagoniza, destacáveis e transportáveis
para os mais diversos locais freqüentados pelas massas. Além disso, a sofisticação dos
aparelhos de filmagem, permitindo acelerações ou retardamentos da velocidade de rodagem
das películas, ampliações ou miniaturizações dos objetos focados, paralisações de cenas e
outras situações afins, oferece ao olhar, segundo o filósofo, a experiência de um inconsciente
ótico.
Pois os múltiplos aspectos que o aparelho pode registrar da realidade situam-se em grande parte fora do espectro de uma percepção sensível normal. Muitas deformações e estereotipias, transformações e catástrofes que o mundo visual pode sofrer no filme afetam realmente esse mundo nas (...) alucinações e sonhos. Desse modo, os procedimentos da câmara correspondem aos procedimentos graças aos quais a percepção coletiva do público se apropria dos modos de percepção individual do psicótico ou do sonhador. (Ibid. p. 190).
O corolário dessa apropriação é a submissão das reações individuais à resposta
coletiva das massas ao estímulo fílmico. “Assim, o mesmo público, que tem uma reação
progressiva diante de um filme burlesco, tem uma reação retrógrada diante de um filme
121 surrealista.” (Ibid. p. 188). As atitudes induzidas pelo cinema arraigam-se na constatação
de que os recortes e diagramações cênicas evidenciam uma gama de pormenores sobre os
condicionamentos, objetos e valores que norteiam a existência coletiva das pessoas sem os
cerceamentos espaço-temporais cotidianos aos quais estão submetidas. “Através dos seus
grandes planos (...) e (...) sob a direção genial da objetiva, o cinema (...) assegura-nos um
grande e insuspeito espaço de liberdade.” (Ibid. p. 189).
Por meio dos aparelhos de filmagem e gravação, as massas acessam o próprio rosto de
maneira tal que seus aspectos íntimos mais desconhecidos são trazidos à baila. O mesmo
desenvolvimento técnico e científico que viabiliza esse auto-conhecimento cinematográfico
também transforma-se em questão moral quando necessariamente se nota que, caso as
relações de produção na modernidade permaneçam intocadas e sem expectativa de mudança,
o único destino que lhe resta não é outro senão suprir interesses bélicos ou econômicos.
A (...) guerra moderna se apresenta do seguinte modo: como a utilização natural das forças produtivas é bloqueada pelas relações de propriedade, a intensificação dos recursos técnicos, dos ritmos e das fontes de energia exige uma utilização antinatural. Essa utilização é encontrada na guerra, que prova com suas devastações que a sociedade não estava suficientemente madura para fazer da técnica o seu órgão, e que a técnica não estava suficientemente avançada para controlar as forças elementares da sociedade. Em seus traços mais cruéis, a guerra imperialista é determinada pela discrepância entre os poderosos meios de produção e sua utilização insuficiente no processo produtivo, ou seja, pelo desemprego e pela falta de mercados. Essa guerra é uma revolta da técnica, que cobra em ´material humano` o que lhe foi negado pela sociedade. (Ibid. p. 195-196).
Apesar dessa advertência final, torna-se desnecessário ratificar o louvor de Benjamin
ao cinema e a crença depositada na expansão tecno-científica. “Nossos cafés (...) e nossas
ruas, (...) escritórios, (...) estações e (...) fábricas pareciam aprisionar-nos inapelavelmente.
Veio então o cinema, que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite dos seus
122 décimos de segundo, permitindo-nos (...) viagens aventurosas.” (Ibid. p. 189). No entanto,
a defesa otimista de que as conquistas tecnológicas trariam benefícios emancipatórios para a
humanidade, desde que modificados os parâmetros diretores da ordem social vigente, põe
Benjamin no lado oposto de contemporâneos seus de peso, notadamente Adorno e Marcuse
(Merquior, 1969).
Mas por que essa divergência? Qual o seu fundamento? Como explicá-la? Consoante
Merquior (1969), a argumentação de Marcuse gravita em torno da tese de que, no mundo ,
contemporâneo, a negação do real existente, enquanto baliza dialética de seu movimento
histórico, tende a fenecer, em função da primazia absoluta adquirida pela dinâmica tecno-
científica para lhe reger. Para ele, esta última converteu-se no determinante único das
possibilidades do real, a ponto mesmo de retirar dele o papel da negação do dado enquanto
motor da criação histórica. Isto fica patente quando olha-se para as propostas oferecidas ao
homem comum por alguns de seus ´filhos` mais representativos: a sociedade estetizada e a
tecnologia humanizada. O primeiro, reflete a desenfreada importância assumida pelo lazer,
publicidade e culto das aparências no dia a dia cultura de massas, enquanto o segundo diz
respeito ao peso assumido pelos aparatos de mídia na gestão social das grandes questões
cotidianas. Tanto um como o outro não anunciam a latência de nada radicalmente diferente do
que já está em vigor como também cerceiam com competente eficácia a aparição de qualquer
coisa com esse sentido.
Dada essa gigantesca tendência niveladora que padroniza com veemência as formas do
indivíduo perceber e se expressar, dificilmente pode-se esperar que a prática, enquanto
resposta à teoria, transcenda o real a ponto de redirecionar o rumo de sua transformação
histórica. Para não cair na inércia e nem ser colonizado, cabe ao pensamento erigir-se como
grande recusa; protestar e mostrar pessimismo terminam sendo aquilo que deve ser feito.
De certa maneira, a posição de Marcuse pouco difere da de Adorno, porquanto para
123 este a conquista tecnológica do mundo em nada garante que uma vida humana
verdadeiramente melhor será alcançada. A procura pelo desmascaramento científico da
natureza, em grande medida estimulado pelo discurso da Aufklärung, confirma, para Adorno,
o elevado estado de angústia que assola os homens modernos diante das ameaças que
acreditam existirem naquela e que podem destroná-lo. Na interpretação de Merquior (1969),
O espírito de domínio tecnológico da natureza (...) é uma força intimamente desorientada: o “espírito sem finalidade”. A civilização mais atenta a seus recursos, a sociedade mais lúcida quanto a seus meios, é cega na essência de sua ação. Ela é a cultura que trabalha na ignorância dos fins humanos, no esquecimento dos interesses da felicidade. O iluminismo triunfante é infeliz. Destruindo as ilusões e os mitos, não chega a substituí-los por uma ordem amena; o homem iluminista permanece hostil ou estranho ao remanso da totalidade, à euforia de integração no cosmos. (Merquior, 1969, p. 49).
Assim, a razão tecno-científica acaba convertendo-se numa investida do homem
contra ele próprio. Os desdobramentos disso sobre o campo da cultura são imediatos: “O
desgosto (...) termina por condenar globalmente a arte. Esta fica (...) responsabilizada pela sua
incapacidade de redimir a cultura.” (Merquior, 1969, p. 134). Benjamin diverge desse ponto
de vista porque, segundo Merquior (1969), se por um lado, ele não nega a historicidade das
linguagens da arte e da cultura, por outro, endossa que no interior das mesmas vigem
elementos que, se não podem ser propriamente chamados de atemporais, pelo menos
acompanham o homem em todas as fases de seu itinerário histórico.
A estética de Benjamin conjuga a noção dos universais da conduta humana com a consciência das raízes históricas da arte. A teoria de Adorno não tem lugar para esse primeiro elemento. Ela relativiza, em sentido historicista, todos os componentes do significado da obra de arte – sem relativizar, contudo, essa própria relativização. Benjamin sabe que a História contém ela mesma o trans-histórico; Adorno não. Por isso, o pensamento de Benjamin (...) especula sobre a dimensão da origem, ao passo que Adorno permanece (...) alheio a esse motivo.
124 (Merquior, 1969, p. 135).
Esse aspecto trans-histórico não é outro senão a própria capacidade nomeadora da
linguagem de criar novos epítetos ou combinações de signos verbais, imagéticos, sonoros etc.
e, com isso, tornar conhecidas facetas do real até então ocultas.
Após esse breve parênteses, retornando novamente à questão da confiança depositada
por Benjamin nas possibilidades transformadoras do cinema, um outro ponto polêmico
observado por comentadores seus é justamente a possibilidade do estabelecimento de uma
ponte, por meio da idéia de inconsciente ótico, entre a exibição fílmica, enquanto terapia de
massas, e sua respectiva mobilização para finalidades políticas. O filósofo reconhece que a
modernidade tanto intensificou e mesmo alavancou o surgimento de novas fobias, medos e
ansiedades outrora desconhecidos, como também aprimorou sutis mecanismos para, senão
curá-los, pelo menos apaziguá-los.
Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas conseqüências, engendrou nas massas – tensões que em estágios críticos assumem um caráter psicótico – perceberemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de certas fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso. A hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e saudável dessa psicose de massa. A enorme quantidade de episódios grotescos (...) consumidos no cinema constituem um índice impressionante dos perigos que ameaçam a humanidade, resultantes das repressões que a civilização traz consigo. Os filmes grotescos (...) produzem uma explosão terapêutica do inconsciente. (Benjamin, 1994, p. 190).
O cinema exerce efeitos terapêuticos sobre as massas, primeiro, porque elas se deixam
impregnar pelos efeitos das câmeras nas cenas, e só conseguem isso pelo motivo que lhes guia
até as salas de projeção: divertimento. O fundamento que ampara essa sensação de alívio
sentida ao final dos filmes reside no poderio que as lentes tem de reordenar artificialmente as
125 valências físicas que abalizam nossa existência corpóreo-material no espaço e tempo:
ritmo, profundidade, velocidade, distância, ondas sonoras, luzes, cores, etc. Nossa percepção
não encontra livremente fontes de estímulos com esse formato no dia a dia; o imperativo de
adaptá-la às mesmas influencia na equilibração do sistema psíquico.
De acordo com Benjamin, o diferencial da questão emerge quando a procura pelo
cinema para diversão converte-se em hábito popular, pois quanto mais freqüente se tornar a
ida das massas às telas guiada por esse motivo, mais elas estarão disponibilizando suas
estruturas perceptivas, e, por conseguinte, seu corpo, ao que o autor chama de ´toque` das
imagens fílmicas. Dito de outro modo, as imagens em movimento, remodelando a percepção,
influenciam a parte táctil do corpo. Para o filósofo, os desdobramentos de tal fato repercutem
nas relações entre juízos críticos e práxis política.
Através da distração, como ela nos é oferecida pela arte, podemos avaliar, indiretamente, até que ponto nossa percepção está apta a responder a novas tarefas. E, como os indivíduos se sentem tentados a esquivar-se a tais tarefas, a arte conseguirá resolver as mais difíceis e importantes sempre que mobilizar as massas. É o que ela faz, hoje em dia, no cinema. (...) E aqui, onde a coletividade procura a distração, não falta de modo algum a dominante tátil, que rege a reestruturação do sistema perceptivo. (Ibid. p. 194).
A experiência cinematográfica, na formulação benjaminiana, sintetiza o espectador
como alguém duplamente passivo e ativo: as sucessivas inserções lúdicas na terapia de
massas contribuem para maturar um indivíduo mais consciente, com maior capacidade de
examinação.
Concordamos com Merquior (1969) que, em primeira mão, a declarada confiança
benjaminiana nos benefícios dessa arte indiretamente afiliada ao aprimoramento científico-
tecnológico parece até certo ponto ingênua. Mas, no trecho a seguir, extraído de Passagens,
Benjamin, tomando novamente o cinema como modelo, elabora uma argumentação concisa
126 acerca do que ainda parece pouco compreendido: o porquê da arte moderna representar
um veículo político potente o suficiente para convencer as massas de que o direito à
felicidade, enquanto causa histórica comum de toda a humanidade, também lhes pertence.
Sobre o significado político do filme. O socialismo jamais teria surgido no mundo se tivesse pretendido despertar o entusiasmo do operariado simplesmente por uma melhor ordem das coisas. O que constitui a força e a autoridade do movimento foi o fato de Marx ter conseguido despertar o interesse dos operários por uma ordem na qual as condições de vida deles seriam melhores, mostrando que essa seria também uma ordem justa. Exatamente o mesmo vale para a arte. Em nenhuma época, por mais utópica que seja, será possível conquistar as massas para uma arte superior, mas apenas para uma arte que lhes seja mais próxima. E a dificuldade consiste justamente em dar a esta arte uma forma tal que se possa afirmar, em plena consciência, que se trata de uma arte superior. Ora, algo desse gênero dificilmente será por aquilo que é propagado pela vanguarda burguesa (...) As massas decididamente exigem da obra de arte (...) algo que as aqueça. (...) Ora, o que importa para as formas vivas e em desenvolvimento é que tenham em si algo que aqueça, que seja utilizável, enfim, algo que traga felicidade (...) Atualmente, talvez apenas o cinema esteja à altura desta tarefa – de qualquer modo, é ele que se encontra mais próximo dela do que qualquer outra forma de arte (...) Somente o cinema pode detonar as substâncias explosivas que o século XIX acumulou (...). (Benjamin, 2006, p. 439-440).18
Nota-se que a visão de Benjamin sobre a significância da arte na modernidade destoa
do pessimismo declarado de Adorno e Marcuse, pois o mesmo consegue mostrar que a
inacessibilidade e mesmo hostilidade da arte moderna a qualquer atitude de contemplação 18 Filho das mesmas forças técnicas que conferem ao mito moderno o seu suporte objetivo, o cinema encarna
uma possibilidade de uso reverso dessas mesmas forças de modo a romper politicamente a continuidade do idêntico travestida de novidade. Assim, ele aparece como um agente capaz de reaquecer, entre os homens, a esperança na possibilidade de um tempo de felicidade, o mesmo tempo que, consoante Gagnebin (2005), é desejado pelas figuras angelicais, presenças marcantes em muitos escritos de Benjamin. Vejamos o comentário da autora: “Dito de maneira política e profana, é quando os homens se resignam ao curso inelutável da infelicidade, dele fazem uma necessidade supra-histórica que chamam, depois, do nome ambíguo de ´progresso`, é nesse momento que eles cessam de poder tomar em mãos sua história e de poder agir sobre o presente e no presente, que eles continuam fixados no passado e se abstêm de inventar seu futuro (...) Neste presente pervertido que só é continuação do idêntico, nenhum anjo mais consegue abrir passagem. Pois o que todos os anjos de Benjamin, sem exceção, desejam profundamente, é a felicidade; essa não é nem a volta a um paraíso antes da história, nem tampouco a avidez devoradora da modernidade, sempre em busca de novidades. A felicidade é muito mais, segundo a fórmula do anjo Agesilaus Santander, ´O confronto (...) onde se opõem o estremecimento do único, do novo, do ainda não-vivido com a beatitude do mais uma vez, do repossuir, do (já) vivido.`” (Gagnebin, 2005, p. 133).
127 passiva exigem, tanto do criador como do receptor da obra, algo mais do que o simples
emprego da atenção; para acompanhá-la, o envolvimento do trabalho cognitivo torna-se
salutar. Curiosamente, em escrito póstumo publicado em 1951 na coletânea Prismas, Adorno
rende-se ao teor da descoberta de Benjamin durante suas investigações dos pormenores da
música de Schoemberg. “Quanto mais ela dá aos seus ouvintes, menos oferece a eles. Isso
requer do ouvinte que componha espontaneamente seus movimentos internos, demandando
não mera contemplação, mas práxis.” (Adorno, 1981, p. 149-150).
Finalmente, o que deve ser retido dessa discussão? Em linhas gerais, entender a arte
moderna como produção potencialmente impactante para a subjetividade significa aceitar a
possibilidade dela romper de modo dialético com a sincronia das rotineiras percepções
cotidianas do mito moderno e, outrossim, das convenções morais correlatas.19 Tal interação
define, assim, um nicho onde diferenciações comportamentais podem acabar emergindo;
nesse sentido, isso também caracteriza-a como espaço educacional. Todavia, estamos diante
de um processo de aprendizagem arraigado na instantaneidade mimética de um insight, e não
na sistematicidade dos pensamentos objetivadores; o mesmo insight que muitas vezes leva o
jogador de azar a desistir de apostar numa série de números e escolher outros em função de
algum sentimento profundo, e mesmo o infante a mudar radicalmente o significado de um
objeto durante sua brincadeira.
19 Tal posição benjaminiana reaparecerá novamente numa série de trabalhos de Habermas publicados nos anos
setenta. A arte moderna, na visão habermasiana, problematiza com extrema acurácia a maneira artifical com que a racionalidade instrumental refere-se às práticas comunicativas espontâneas maturadas no panorama da cultura. O detalhamento dessa discussão está em Communication and the Evolution of Society, London, Heinemann, 1979.
128 CAPÍTULO III
EDUCAÇÃO E ÉTICA
A apregoação de que a arte moderna, em geral, e o cinema, em particular, representam
veículos educativos com o poderio de abalar perceptivamente o sujeito por meios lúdicos,
assim como sua forma de relacionar-se moralmente com a atmosfera mítica da modernidade,
subentende a necessidade de adentrar algumas outras questões.
A primeira delas alude à constatação que Benjamin, de certa forma, comunga do
argumento desenvolvido por Weber e também Heidegger de que, com a ascensão das
sociedades modernas européias, o desenvolvimento técnico atingiu um nível de
confiabilidade, abstracionismo e emprego para resolução de problemas jamais experimentado
por qualquer outra formação coletiva em épocas anteriores. A complexificação deste
aprimoramento técnico, base da cultura enquanto segunda natureza humana, acaba
denunciando, por outras vias, que a chegada do processo civilizatório ao estado moderno
envolve o alcance de uma determinada correlação de forças sociais, políticas, econômicas,
institucionais e administrativas sobre as quais a vontade humana não exerce mais nenhum
controle. Verificada tal conjuntura, Benjamin é então bastante incisivo, como podemos notar
no parecer abaixo, extraído de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica:
Diante dessa natureza, que o homem inventou, mas há muito não controla, somos obrigados a aprender, como outrora diante da primeira. Mais uma vez, a arte põe-se a serviço desse aprendizado. Isso se aplica, em primeira instância, ao cinema. O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido. (Benjamin, 1994, p. 174).
129 Verificamos aqui, com clareza, que a imagética da arte e do cinema modernos é
pedagógica porque introduz o sujeito ao contexto maquinal que rege a modernidade sem, com
isso, abdicar, por princípio, da possibilidade de operar a reversão dos preceitos mestres que
determinam essa configuração. Em linhas gerais, Benjamin está indicando a existência de dois
panoramas ao mesmo tempo distintos, porém interligados: um, o efetivamente hegemônico,
outrora tão bem descrito por Marx em O Capital, onde o trabalhador é prolongamento
humano de uma lógica maior que o ultrapassa, a dos sistemas produtivos hiper-racionalizados
do ponto de vista instrumental. As práticas educacionais nele vigentes, demonstra o filósofo,
possuem um ordenamento lógico próprio que, veremos, não abre mão de empregar uma certa
estetização dos meios em função dos fins que almeja atingir. Todavia, em se tratando de sua
potencialidade ética, Benjamin critica-a com veemência. O outro panorama alude não a
negação desse ambiente, mas a re-inserção do sujeito enquanto fator ativo da condução e
mediação das circunstâncias balizadoras do próprio. É aqui que impera a necessidade de um
exame mais acurado da pedagogia artística do surrealismo, dadaísmo, cinema, etc. à vista de
suas nuanças ´chocantes`.
Sabe-se que boa parte dos textos de juventude de Benjamin sobre educação referem-se
ao modo como o ensino burguês se auto-constitui e como engendra antinomias das quais não
consegue sair. Um dos motivos que mais concorre para isso remete, na sua visão, ao excesso
de instrumentalização científica das atividades educacionais. O advento da literatura escolar
moderna, pautada nas recomendações da didática e da psicologia, é o grande exemplo da
instauração desse processo.
Inicialmente filhos do Iluminismo, principalmente na sua vertente alemã, até o
alvorecer do século XIX os livros para crianças conjugavam uma intensa combinatória lúdica
de cores, formas e desenhos com enredos textuais adaptados dos antigos contos, lendas e
mitos tribais. Tal conjuntura motivava as atenções infantis por invocar uma atmosfera de
130 enigmática disputa contra certas presenças desafiadoras e desconhecidas, mas que no
fundo revelavam-se grandes companheiros de brincadeira. Propostas desse tipo, independente
de como e onde aparecem, tendem a deixar as crianças deveras à vontade para estabelecer
relações novas e modificadas com o mundo das coisas concretas e o da fantasia. Por outro
lado, a ênfase na articulação entre escrita, forma e conto, vista historicamente, denota o peso
que a estética barroca exerceu nos rumos da educação até o final da época Biedermeier. Os
potenciais efeitos por ela desencadeados sobre a percepção são assim descritos pelo filósofo:
A exortação taxativa à descrição (...) em imagens (...) desperta a palavra na criança. Mas, assim como descreve essas imagens com palavras, a criança as descreve de fato. Ela habita as imagens. A sua superfície não é (...) nem em si mesma e nem para a criança (...) A criança penetra nessas imagens com palavras criativas. E assim ocorre que ela as ´descreve`, no outro sentido do termo, ligado aos sentidos. Cobre-as de rabiscos. Nessas imagens, aprende ao mesmo tempo a linguagem oral e a escrita: os hieróglifos. (Benjamin, 2007, p. 65-66).
O modo com que tais livros fomentavam o estudante a decifrar as conexões ocultas e
misteriosas entre signo gráfico, cor e som aponta para algo que a educação racionalista não
captou na íntegra. “Certamente (...) aprender a ler é, em boa parte (...) aprender a adivinhar
(...). Pois durante todo o tempo em que o ensino se agrupou ao redor dos eclesiásticos, a
posição dos pedagogos esteve sempre ao lado do saber, de certa forma junto a Deus.”
(Benjamin, 2007, p. 140). Logo em seguida a esse fragmento, extraído do ensaio
Chichleuchlauchra, de 1930, Benjamin registra, como exemplo, os curiosos recursos
pedagógicos usados pelos religiosos para promover o ensino da linguagem: loterias de letras,
dados de letras e semelhantes jogos. Ou seja, aprender a ler e a escrever alude a uma
competência cuja exercitação conclama a razão; entretanto, sua descoberta advém da
interveniência divinatória da presença de espírito. Portanto, é justificável que os escolásticos
recorressem a jogos em que o elemento acaso fosse constante como forma de forçar sua
131 aparição. “Tal combinação possibilitou a valorização genuinamente dialética das
inclinações infantis para colocá-las a serviço da escrita.” (Ibid. p. 140).
A relação entre memorização e respectiva sonorização de sinais gráficos, enquanto
agentes catalizadores de aprendizados por meio de adivinhações, remonta a uma característica
ímpar da natureza dos gestos lúdicos: o seu aspecto gestáltico. Ainda que não tenha explorado
mais a fundo essa intuição, Benjamin explicita-a durante o fechamento do trabalho
Brinquedos e Jogos: observações marginais sobre uma obra monumental, datado de 1928. O
filósofo considera a palavra ´gestalt` não no seu sentido germânico literal, o de uma interação
figura-fundo; ao invés disso, recorre a ela enquanto conceito concernente a uma determinada
configuração ambiental onde as partes componentes não são percebidas como coisas
conectadas aleatoriamente, mas na perspectiva de totalidades estruturadas dotadas de sentidos
mais amplos. Como exemplos do viés gestáltico de atos corporais lúdicos, o autor cita
algumas situações típicas do esporte e de algumas brincadeiras: os jogos de gato e rato,
polícia e ladrão, etc. enraizam-se na primitiva perseguição das presas realizadas pelos
primeiros caçadores paleolíticos; o tenista rebatendo bolas ou o goleiro protegendo a meta
revivem fêmeas animais protegendo filhotes no ninho; os demais jogadores disputando a bola
supõem a luta pelo objeto causador de satisfação sexual.
Feita essa colocação, a que universos então as afinidades eletivas, ou gestálticas, entre
cor, forma, imagem e som presentes nos livros infantis do período barroco até o final da
Biedermeier, parafraseando Goethe, carreiam dialeticamente o leitor infantil? Qual a sua
dimensão gestáltica? Benjamin encontrará boa parte dessas respostas na produção teórica de
Paul Klee desenvolvida na Bauhaus. Klee insistia que palavras e figurações combinadas
ludicamente levam o espírito a mundos intermediários, situados nos interstícios das
informações captadas pela percepção, mas que ainda assim podem ser re-projetados
exteriormente.
132 Os mundos intermediários de Klee versam sobre uma dada conformação da
natureza existente ainda em condição de potência. O que a consciência captura e representa de
seus interiores é de cunho não fenomenal. Na avaliação de Fronza (2006), a dedicação de
Klee aos estudos sobre tal tema arraiga-se na hipótese de que o contato com esses mundos
intermediários constitui uma etapa necessária para quem almeja vislumbrar os horizontes da
pureza conceitual. “Conseguir franquear o acesso ao mundo intermédio constitui um dos
legados mais profundos da pintura de Klee, dos romances e contos de Kafka (...) A colocação
no mundo intermédio é uma conquista dessa proposta filosófica que pôs no seu centro a
questão da representação.” (Fronza, 2006, p. 2).
Klee considera que a experimentação de alguma situação nos mundos intermediários e
sua respectiva representação, material ou mental, libertam tanto o representado como o agente
que representa da escravidão do dado. “O homem modifica aquilo que é, e manifesta, na ação
presente, o futuro que agora lhe pertence e com o qual estabelece contato. Através da ação
representativa, a experiência histórica se desestrutura em si mesma e se recompõe em um
estado ulterior, para lá de qualquer apreensão banal” (Ibid. p. 2-3). Como conseqüência desse
desdobramento libertador, o movimento de representação estética dos conteúdos dos mundos
intermediários permite ao sujeito mobilizar, no campo da cultura, processos que até então
eram da ordem exclusiva do divino natural.
Entretanto, Paul Klee avisa que isso não é fácil e muito menos imediato. Não são
todos que conseguem ter uma presença de espírito tão apurada, como a que os jogadores de
azar crêem possuir, a ponto de ler a conjuntura de fatores que os mundos intermediários lhes
expõem, e muito menos absorver, digerir e criar algo diferente em cima dessas informações,
tal qual os infantes fazem em suas brincadeiras com toda sorte de materiais. Um parênteses
deve ser aberto para Kandinsky, pois, na ótica de Klee, foi ele o artista que melhor soube
transitar nos meandros desse universo: “No fundo, eu não sou como um aprendiz de feiticeiro
133 diante do qual o grande mago joga (...) Me perco no mundo intermédio (...) Muito daquilo
que provém do mundo intermediário, um homem como Kandinsky enxerga (...) Kandinsky
enxerga o puro mundo da luz.” (Klee, citado por F. Klee, 1960, p. 162-163).
Os escolhidos que, como Kandinsky, conseguem ver a luz, visualizam as questões
morais ainda em estado de potência. Em tal circunstância, não enredadas a substratos
concretos ou expressas em linguagens, sua conformação ainda é incompleta, o que fá-las
metaforicamente homólogas aos únicos personagens de Kafka passíveis de salvação: os não
acabados. Logo, finaliza Fronza (2006), a dinâmica do mundo intermédio deve ser entendida
como imagem dialética de uma vigília, oscilando entre o sono e o despertar.
Depois dessas colocações, o que extrair delas à vista da leitura banjaminiana de Klee,
enquanto referência para se entender as concepções de educação reinantes do período barroco
até a época Biedermeier, testemunhadas no advento do livro infantil? Em linhas gerais, nota-
se que associações gestálticas de signos gráficos, sonoros, figurativos e de cores tratados
ludicamente eram compreendidos como fortuitos veios ontológicos de acesso a realidades
espirituais mais densas; a tramitação nesse plano concorria para a aprendizagem divinatória
da linguagem, a capacitação para formulação de conceitos e a autêntica postura moral. Tal
visão da educação subentendia, quanto aos princípios, estratégias e metas, a preponderância
do filósofo, do eclesiástico, do artista e do enciclopedista enquanto formuladores e gestores
privilegiados.20
De maneira bastante pontual, Benjamin detecta a partir de que momento essa
concepção educacional começou a dar sinais de esgotamento. “Os fenômenos mais notáveis
surgem (...) por volta do final do Biedermeier, nos anos quarenta, simultaneamente com a
expansão da civilização técnica e o nivelamento da cultura, o qual não estava desvinculado
20 Para um exame mais detalhado das tarefas e papéis que cabiam a cada um deles no bojo da cosmovisão
educacional reinante pós Renascença, recomendamos a leitura do livro História da educação: da Antigüidade aos nossos dias, de Mário Alighiero Manacorda, editado desde 2001 no Brasil pela Cortez.
134 desse contexto.” (Benjamin, 2007, p. 62). Ocorre a autonomização da educação em
relação às artes, filosofia, tradição escolástica e enciclopedismo, em grande medida
capitaneada pelo desenvolvimento da então recente psicologia comportamental. O psicólogo
do desenvolvimento, em função do domínio de técnicas e métodos de trabalho sedimentados
nas ciências positivas, converte-se na principal autoridade educacional, visto dominar saberes
sobre a vida interior da criança, do adolescente e do adulto.
Os desdobramentos dessa ascendência repercutiram na educação em duas grandes
frentes, afirma Benjamin. A primeira diz respeito ao modo com que a criança e o jovem
passaram a ser representados, como seres demasiado complexos, retendo pulsões e anseios
misteriosos. A segunda remete a toda uma produção literária de teses, monografias, textos
didáticos, etc. sobre e para os infantes e jovens em idade escolar, predizendo a necessidade de
racionalização sistemática do ensino caso se queira atingir o objetivo principal de educar as
populações urbanas para a cidadania.
O orgulho pelo conhecimento psicológico da vida interior da criança, conhecimento que em profundidade e valor vital jamais pode ser comparado com uma antiga pedagogia, como a ´Levana`, de Jean Paul, fomentou uma literatura que, em seus vaidosos caprichos pela atenção do público, perdeu o caráter ético que confere dignidade mesmo às mais frágeis tentativas da pedagogia classicista. (Benjamin, 2007, p. 66-67).21
Como exemplo emblemático dessa nova produção literária fundamentada em
deliberações da psicologia da aprendizagem, Benjamin menciona o livro de um certo
pedagogo dos anos 30, Alois Jalkotzky, denominado Märchen und Gegenwart. Das deutsche
Volksmärchen und unsere Zeit [Contos maravilhosos e o presente. O conto maravilhoso
21 Jean Paul corresponde ao pseudônimo de Johann Paul Friedrich Richter (1763-1825), escritor do tempo do
idealismo alemão, deveras admirado por Walter Benjamin. Detentor de uma extensa obra envolvendo romances de formação, sátiras, idílios popularescos, o diferencial em seus escritos era o uso exacerbado da imaginação. Levana, ou Teoria Educacional é, porém, o seu único tratado pedagógico, publicado em 1807.
135 alemão e o nosso tempo]. Nele, o autor esforça-se em desqualificar as narrativas fabulares
originais da cultura alemã, como as veiculadas pelos irmãos Grimm, por considerá-las alheias
a sensibilidade dos tempos modernos. Uma das justificativas para a condenação do mundo
fantástico dos ogros, bruxas e heróis é o atraso que geram na evolução da personalidade
infantil, uma vez que a mantém narcisicamente identificada com personagens simbolizadores
de um mundo adulto hostil e pouco acolhedor. A outra é a manutenção de uma memória típica
dos tempos monárquicos centro-europeus, que deve ser esquecida por corresponder a um
momento da história que pouco contribui para o aprimoramento dos ideais modernos do povo
alemão. Jalkotzky recomenda como solução o revisionismo minucioso de cada uma dessas
estórias, dada a necessidade de refazê-las didaticamente a partir de fantasias condizentes com
o cotidiano dos atores sociais das fábricas, cidades, centros comerciais, arranha-céus, etc.
Benjamin critica com veemência a superficialidade de tal forma de raciocínio,
argumentando que a falta de rigor dos conceitos que ele articula, sobretudo freudianos, apenas
atesta seu compromisso velado com o pensamento burguês.
Não se encontrará com facilidade um livro em que o abandono do mais autêntico e original seja exigido com a mesma naturalidade com que se concebe a delicada e reservada fantasia da criança, sem a menor consideração, enquanto demanda espiritual, no sentido de uma sociedade produtora de mercadorias, e com que se vê a educação com desenvoltura tão lamentável, enquanto mercado colonial para bens culturais. Essa espécie de psicologia infantil (...) constitui o equivalente exato da famosa ´psicologia dos povos primitivos`, vistos como clientes enviados por Deus para consumir as quinquilharias européias. (Ibid. p. 147-148).
A comparação da educação infantil com um processo de colonização subentende duas
particularidades. Tanto a educação passa a ser vista como nicho de mercado promotor da
circulação de mercadorias pedagogicamente criadas para o consumo à vista das demandas
escolares de crianças, como a juventude representada enquanto herdeira do modus vivendi da
136 burguesia moderna. A necessidade de organização didática dos ambientes de ensino, em
função dessas restrições, leva o filósofo a duvidar da propriedade dos mesmos para carrear o
desenvolvimento moral de educandos segundo a matriz kantiana.
No artigo O ensino de moral, de 1913, Benjamin apresenta essa tese tomando por base
a clássica distinção que Kant faz entre legalidade ética e moralidade no prefácio da
Fundamentação da metafísica dos costumes: “Pois que aquilo que deve ser moralmente bom
não basta que seja conforme à lei moral, mas tem também de cumprir-se por amor dessa
mesma lei.” (Kant, 2005, p. 16). Sabe-se que para Kant, a liberdade de motivações externas
ou inclinações também são fatores de determinação da vontade ética, pois cabe apenas à
forma da lei constituir a vontade moral pura. Portanto não há porquê e nem como o estudo e a
fundamentação das temáticas sobre composição da lei ética necessitar de premissas
psicologizantes, pois a psicologia limita-se a investigar as ações e balizas do querer humano
como um todo.
Por esse prisma, a famosa afirmação kantiana de que nada pode ser pensado no
mundo, ou fora dele, como absolutamente bom a não ser uma boa vontade recebe de
Benjamin um comentário salutar:
Essa sentença (...) contém a orientação fundamental da ética kantiana (...) que nos interessa (...). ´Vontade` não significa nesse contexto nada de psicológico. O psicólogo constrói em sua ciência um fato psicológico, e, para a realização deste, a vontade, enquanto causa, representa no máximo um fator. Ao indivíduo ético importa o aspecto ético do fato, e este não é ético por haver procedido de inúmeras razões, mas tão somente enquanto procedeu de uma intenção ética. A vontade do ser humano compreende a sua obrigação perante a lei ética; esgota-se neste fato o seu significado ético. (Benjamin, 2007, p. 13).
A reflexão benjaminiana contida nessas linhas abre espaço para que os problemas de
uma educação ética denotem a antinomia que lhes é inerente. Se a finalidade da educação
137 ética é a formação de vontades éticas, nada torna-as mais inacessíveis do que vê-las
enquanto grandezas psicológicas abordáveis por instrumentos de mensuração. Ou seja,
nenhuma resposta empírica obtida através de estímulos comportamentais garante o
atingimento da vontade ética enquanto tal. “Será que a bancarrota da educação ética é a
conseqüência dessas reflexões? Seria certamente o caso se irracionalismo significasse a
bancarrota da educação. Irracionalismo significa tão somente a bancarrota de uma ciência
exata da educação.” (Benjamin, 2007, p. 14). Deriva daí a renúncia benjaminiana às teorias
científicas do ensino para a educação ética, pois não há compatibilidade entre ela e esquemas
didáticos fechados. “A lei ética não se deixa apreender com maior exatidão pelos meios do
intelecto, isto é, de maneira universalmente válida.” (Ibid. p. 15).
Será que então a idéia de educação ética está fadada ao fracasso? Benjamin afirma que
não; o que deve ser esboçado é uma outra maneira de conduzi-la. “O princípio da comunidade
estudantil livre e da coletividade ética parece ser aqui de fundamental importância.” (Ibid. p.
14). A ´plasmação do ético` (expressão benjaminiana concernente à edificação de normas
grupais de conduta conversíveis em ordem empírica legal) requer a composição de
comunidades necessariamente livres. “A essência da formação ética da comunidade parece
fundamentar-se na imbricação entre rigor ético na consciência do compromisso comum e
aceitação da eticidade pela ordem comunitária.” (Ibid. p. 15).
Como princípio norteador das comunidades estudantis livres, que devem ser
fomentadas desde o ensino elementar até a universidade (agremiações poéticas, musicais,
literárias etc.), Benjamin sugere o aproveitamento pedagógico dos critérios de religiosidade
comuns aos discentes. Religiosidade no sentido que Hanna Arendt dá a palavra ´religare`, ou
seja, o de uma comunhão de sentimentos e predisposições assentes em afinidades
naturalmente identificadas sobre determinadas afeições, preferências, valores e práticas
138 culturais.22 A pouca importância atribuída pela educação formal burguesa a esse quesito,
dada a centralidade de interesses nos aspectos técnicos do ensino, mais do que relegar a um
segundo plano a criação de condições para que educandos formem laços éticos autênticos,
termina engendrando efeitos concretos que terão elevado custo político sobre si mesma.
Um deles concerne ao fato de que ela, diante da obrigação de ter que ensejar nos seus
descendentes a adesão aos valores da existência liberal, fundamentais para reproduzir o
aparato ideológico que lhe sustenta, termina quase sempre tendo que apelar aos ideais cívicos
para realizá-lo. A opção forçada pelo civismo, declara Benjamin, reforça o embotamento da
eticidade, pois parte do princípio de que a moralidade necessita da proclamação da coragem
heróica, do elogio do extraordinário e da exaltação dos sentimentos pátrios para ser motivada.
Ora, Kant não se furtou de condenar a fiança em exemplos como fator heterônomo da
intenção ética, porquanto tal medida pertence ao território das inclinações. Benjamin vai ainda
mais além, acrescentando que esse tipo de proposta, não obstante retirar das atitudes morais
qualquer fundamento de liberdade, periga contaminá-las com a falaciosa casuística da
predestinação racial. Essa idéia caminha lado a lado com outra bastante parecida, a de
enaltecimento étnico; o casamento das duas fundamenta o ideário de nazismo e fascismo.
No trabalho Entre erotismo e economia geral: Bataille, Habermas (2002) comenta que
Benjamin já havia constatado mesmo antes de Battaile a competência do poder imaculado dos
regimes do ´Führer` e do ´Duce` para mobilizar características funcionais das sociedades
homogêneas capitalistas (disciplina, amor à ordem, padronização dos comportamentos,
obediência incontestável) lado a lado com elementos heterogêneos não pertencentes à esse
domínio, como a veneração do sagrado, da embriaguez e dos contramundos místicos. Esse
encontro de tendências radicalmente opostas atraía levantes populacionais porque
apresentava-se como encarnação viva de alteridades inteiramente radicais, capazes de cindir o 22 Esse conceito é desenvolvido pela autora no ensaio ´O que é autoridade?`, contido no livro ´Entre o passado e
o futuro`, São Paulo, Perspectiva, 1997.
139 fluxo fastidioso e impotente dos fluxos temporais contínuos e conseguir realizar algumas
das promessas de felicidade perpetuadas nos discursos escatológicos. Assim, as manifestações
militares de massa e a intensa propaganda midiática do fascismo e nazismo não só evocavam,
pelo recurso à faculdade mimética, a possibilidade de concretização de um mítico Paraíso
Perdido como sugeriam ser factível mantê-lo para a eternidade no mundo material através do
recurso à violência.
Em 1915, Benjamin, ainda exercendo o cargo de presidente do Estudantado Livre de
Berlim, descreve no ensaio denominado A vida dos estudantes o complexo processo de
transformação sofrido no modo de pensar das antigas associações estudantis fundadas no
âmago das guerras de libertação contra a ocupação napoleônica (as ´Burschenschaften`), a
ponto de, nos primeiros anos do século XX, terem elas deixado de lado a crença nos discursos
amparados nos ideais de justiça e liberdade para assumir o culto exacerbado ao nacionalismo
e anti-semitismo como grande marca identitária.
O demasiado apego afetivo dos jovens à essas idéias reflete, nas palavras do filósofo, o
imenso processo de deserotização que a modernidade exerceu sobre suas personalidades
desde a tenra infância. Esse Eros a que Benjamin se refere não é o amante de Psiqué, mas a
fidedigna personificação do amor. Nas antigas teogonias, Eros era considerado um deus
nascido ao mesmo tempo que a Terra, a partir do Caos originário. Mas com o passar do
tempo, apareceu outra versão do mito, colocando-o como um dos filhos do Ovo primordial
colocado pela Noite, irmã de Céu e Terra. “É ele que assegura não somente a continuidade
das espécies, mas também a coesão interna do Cosmos, tema sobre o qual se exerceu a
especulação dos autores de cosmogonias, dos filósofos e poetas.” (Grimal, 2000, p.148).
Todavia, em O Banquete, Platão questiona as doutrinas dominantes, responsáveis pela
excessiva valorização da figura de Eros, através da lembrança de Diotima, sacerdotiza de
Mantinéia, que, segundo ele, foi a grande iniciadora de Sócrates. Afirmava ela que Eros não
140 passava de um gênio intermediário entre deuses e homens, fruto da união de Poro (o
Expediente) com Pênia (a Pobreza) no jardim dos deuses durante uma festa para a qual
haviam sido convidadas todas as divindades. “Aos seus progenitores deve as qualidades bem
significativas e definidas que possui: sempre em busca do seu objecto, como a Pobreza, sabe
(...) atingir os seus fins (como o Recurso). Mas longe de ser (...) todo-poderoso, é uma força
eternamente insatisfeita e inquieta.” (Ibid. p. 148).
O que concluir então disso tudo? Nem deus e nem homem, o Eros da reflexão
platônica guarda as peculiaridades de uma entidade inacabada, semelhante aos personagens de
Kafka. Os poetas tornaram-se os responsáveis pela sua representação tradicional, a de uma
criança alada que, no momento repentino em que surge, estabelece uma diacronia que abala o
sujeito e quebra a continuidade do estado em que se achava no instante imediatamente
anterior. Com ele, outras dimensões vitais descambam a ser vislumbradas e mesmo trilhadas.
Portanto, uma educação que denega pedagogicamente a participação erótica do amor na sua
processualidade impede a fundação e o avanço dos laços de religiosidade na perspectiva do
livre e autêntico religare. Além disso, ao não estimular o livre comunitarismo discente como
pré-requisito ético, ela reduz as chances da presença do amor brotar entre os mesmos. Decorre
daí um círculo vicioso gerador de vácuos existenciais cuja necessidade de preenchimento
levou ao abraço do norte afetivo mais próximo que despontou enquanto absorvente das
deturpações emocionais geradas: o irracionalismo consumado na intolerância ao diferente.
Ora, rechaçar o diferente eqüivale a apartar-se das circunstâncias em que a vida
transcorre e auto-regenera sua essência. “A estranheza hostil, a incompreensão (...) perante a
vida (...) pode ser (...) interpretada como recusa da criação imediata (...). Isso transparece no
comportamento escolar (...).” (Benjamin, 2007, p. 40). As particularidades desse tipo de
escola, à vista dos princípios que lhe servem de guia e das armadilhas aporéticas em que
necessariamente cai, aduz Benjamin, oblitera as chances de evolução espiritual ainda na raiz.
141 Com base na abordagem que Habermas (2002) desenvolve no ensaio A
consciência de tempo da modernidade e sua certeza de autocertificação, pode-se afirmar que
modelos pedagógicos como este em questão, dado o perfil dos parâmetros organizacionais
que lhe regem, dificilmente conseguem provocar auto-inquietações morais nos indivíduos a
ponto de solidarizá-los na íntegra com as injustiças do passado e ainda em curso na história.
O que Benjamin tem em mente é a idéia altamente profana de que o universalismo ético também tem de levar a sério as injustiças já sucedidas e, evidentemente, irreversíveis; de que há uma solidariedade das gerações com seus antepassados, com todos aqueles que foram feridos pela mão do homem em sua integridade física e pessoal (...) que pode ser efetuada e comprovada. (Habermas, 2002, p. 22).
Dizer que as instituições pedagógicas burguesas modernas tendem a falhar com esse
propósito moral significa indiretamente admitir que o modo como elas se apropriam e
transmitem formalmente a cultura arraiga-se em assimetrias cujos desdobramentos interferirão
na capacidade subjetiva dos discentes de absorver e avaliar os acontecimentos da história. O
fato de que as barbáries vigentes e as de outrora não suscitam reações de indignação ou sequer
são percebidas ratifica essa observação.
Isto posto, convém pontuar que a crítica de Benjamin sobre a educação moderna não
representa uma descrença total na modernidade. Esta última é um estado do qual não se pode
escapar; todavia, as perversões que estrangulam-na e bloqueiam a plena efetivação de suas
potencialidades implicam não só questionamentos, mas a urgência de mudança política das
relações sociais nela desenhadas. Essa dualidade explica a coexistência, em Benjamin, de
atitudes contra-modernas, evidenciadas na minuciosa caracterização dos traços mítico-
infernais da mesma, com outras pró-modernas, saudando o potencial revolucionário da técnica
consubstanciada no cinema, surrealismo, dadaísmo, etc. Contra os aspectos da modernidade
que cerceiam a configuração do universalismo ético (a efetivação de seu projeto educacional é
142 um deles), Benjamin, segundo Rouanet & Witte (1992), assume uma conduta cuja
explicitação paulatina ao longo de sua obra convém ser normativamente chamada de ética da
recusa. Mas essa ética da recusa não esgota-se nas meras denúncia e inaceitação do quadro em
voga, pois seu horizonte de referências jamais abre mão da possibilidade existencial de
revertê-lo. “A (...) modernidade real abre um espaço para a crítica – o real é denunciado
através do normativo – e para a utopia – ela torno visíveis os contornos de uma ´outra`
modernidade.” (Rouanet & Witte, 1992, p. 115).
É no bojo desse debate que cabe uma análise mais precisa do estatuto pedagógico das
artes modernas, tendo em vista a utopia da mudança em cima da qual Benjamin situa-se. No
capítulo anterior, discutimos cinema, surrealismo, dadaísmo e outras manifestações artísticas
modernas a partir de uma matriz subsidiada na leitura crítica que o filósofo faz da literatura,
psicanálise, crítica teatral, história política, etc. Agora, trataremos de tematizá-las
considerando suas implicações educacionais. Como estratégia para tal, recorreremos
novamente ao tema do jogo e da ludicidade enquanto mecanismos de suporte.
Apenas como recordação, quando discorremos sobre os estudos banjaminianos acerca
dos jogos de azar e brincadeiras/jogos infantis, algumas situações bem singelas foram
discriminadas pelo filósofo. No caso dos primeiros, eles emergem como eqüivalente mimético
das relações, representações e divagações da precariedade humana no que tange às
circunstâncias imprevisíveis e indiscerníveis do destino. Ao passo que a ciência das
informações que o destino traz é, em vista da sua aleatoriedade, um evento por si mesmo
chocante, o recurso à aposta em dinheiro serve para amplificar esse impacto bem como
impulsionar o exercício de tentar antecipá-lo via recorrência à leitura divinatória. Quanto às
crianças, no que lhes compete, elas dialogam com o mundo circundante mimetizando
prazerosamente objetos e coisas, e do emprego desses meios deriva tanto a internalização do
mundo adulto bem como a gênese e o amadurecimento das estruturas lingüísticas. A mímesis
143 está assim ligada de maneira lúdica ao aprendizado e conhecimento. Os homens são
dotados da dupla capacidade de produzir semelhanças e interagir com as criadas por outrem.
No entanto, tal situação não deixa de ser paradoxal, pois segundo o próprio Benjamin,
não há como as semelhanças permanecerem estanques no transcorrer das eras. Pela teoria
benjaminiana, existe uma história da capacidade mimética humana, porquanto não existem
semelhanças imutáveis e eternas; todas elas são geradas e inventariadas pelo acervo de
conhecimentos e técnicas humanas disponíveis nas épocas. Malgrado a ascensão do
pensamento científico e da razão abstrata ser interpretada por muitos historiadores das idéias
como a definitiva derrocada dos saberes milenares centrados no mito, na magia, na astrologia
e na adivinhação mística, Benjamin vai justamente no sentido contrário dessa elucubração, ao
defender que a capacidade mimética não desaparece, mas refugia-se nas linguagens falada e
escrita durante a história. Portanto, não há extinção, mas adequação e auto-transformação
correlatas ao ritmo dos tempos. Assim, a leitura das constelações, a aprendizagem e o uso
infantis do alfabeto, a decifração das mensagens anunciadas nas vísceras de um animal
sacrificado em ritual, o mergulho num texto e a adivinhação dos resultados desenhados em
combinações de números ou cartas numa mesa de jogo alinham-se mimeticamente da mesma
maneira que o gesto corporal na dança e no brincar com a poesia ou pintura.
A teorização benjaminiana sobre a capacidade mimética, ressalva Gagnebin (2005),
não assume então um perfil demasiado restritivo, pois não erige-se sobre uma noção fechada
de semelhança. Benjamin não enxerga-as apenas como cópias ou reproduções, apesar dessa
dimensão realmente existir em certas ocasiões. Ou seja, semelhanças não limitam-se a uma
figuração analógica e identitária entre coisas sensíveis. “Saber ler o futuro nas entranhas do
animal sacrificado ou saber ler uma história nos caracteres escritos sobre uma página significa
reconhecer não uma relação de causa e efeito entre a coisa e as palavras ou as vísceras, mas
uma relação comum de configuração.” (Gagnebin, 2005, p. 96-97). Em se tratando de relações
144 de configuração, mesmo que nos seus começos tenha existido imitações, seu
desaparecimento não destitui a similitude das partes. Por outro lado, podem haver
configurações cuja natureza não é tão determinada por imitações. Nesse caso, estamos falando
de uma semelhança não sensível. O próprio Benjamin, num auto-depoimento de memória
apresentado em Infância em Berlim por volta de 1900, ilustra uma ocorrência desse tipo:
É numa velha rima infantil que aparece a Muhme Rehlen. Como na época Muhme nada significava para mim, essa criatura se tornou em minha fantasia uma assombração: a Mummerehlen. Os mal entendidos modificavam o mundo para mim. De modo bom, porém. Mostravam-me o caminho que conduzia ao seu âmago. Qualquer pretexto lhes convinha. Assim quis o acaso que, certo dia, se falasse em minha presença a respeito de gravuras de cobre [Kupferstich]. No dia seguinte, colocando-me sob uma cadeira, estiquei para fora a cabeça – a isto chamei de ´gravuras de cobre` [Kopf-verstich]. Mesmo tendo (...) deturpado a mim e às palavras, não fiz senão o que devia para tomar pés na vida. A tempo aprendi a me mascarar nas palavras, que, de fato, eram como nuvens. O dom de reconhecer semelhanças não é mais que um velho resquício da velha coação de ser e se comportar semelhantemente. Exercia-se em mim por meio de palavras. Não aquelas que me faziam semelhantes a modelos de civilidade, mas sim às casas, aos móveis e as roupas. (Benjamin, 1995, p. 98-99).23
Para a criança, a palavra da lembrança do filósofo jamais é engessada por convenções:
ela abriga um universo a ser explorado. Os indícios dessa exploração, que os adultos
normalmente desaprenderam a fazer, perdura na essência das linguagens artísticas, diz
Gagnebin (2005). À luz da noção de semelhanças não sensíveis, da mesma maneira que na
história pessoal do indivíduo o desenvolvimento lingüístico segue um percurso marcado pela
não disjunção mimética entre letra, palavra, objeto material, adivinhação, brincadeira, pinturas
coloridas, etc., na história da humanidade verifica-se algo parecido, no sentido de que desde
sua gênese, a linguagem dos homens transita dos desenhos e pinturas em cavernas e
monolitos para a arquitetura, ideogramas, hieróglifos, escrita rúnica, alfabetos e, finalmente,
23 A palavra ´muhme`, atualmente obsoleta, significa ´tia` em alemão.
145 bricolagens entre som, letra e imagem (eis um dos porquês das cartilhas barrocas do
Biedermeier, fidedignos testemunhos desse leque de combinações, figurarem entre os
documentos históricos que mais receberam a atenção de Benjamin).
Curiosamente, numa ocasião bastante despretensiosa, Benjamin teria dito a um amigo
acreditar que as palavras de qualquer língua são retratações gráficas dos objetos e eventos que
designam. Essa intuição é novamente retomada em um trabalho onde o idioma chinês é
investigado (Gagnebin, 2005). Por outro lado, o enovelamento do leitor com a literalidade da
palavra desprende de suas funduras mais viscerais a dimensão mimética, exatamente como as
imagens que brotam e somem dos cenários teatrais entre um ato e outro. No excerto abaixo,
retirado do original alemão de Teoria das Semelhanças, encontramos elementos que, mais do
que ratificarem essa relação, fornecem subsídios para avançarmos um pouco mais no que
concerne ao potencial pedagógico das artes modernas:
O texto literal é o único e imprescindível fundo para a enigmática imagem-quebra cabeças poder se formar. O composto de sentido que se encontra nos sons da frase é portanto o fundo em que o semelhante pode, como um relâmpago, vir à luz a partir de um tom. (Benjamin, 1972, p. 208-209).
Com a arte moderna, vem se juntar ao texto e som, enquanto núcleos desencadeadores
da faculdade mimética, a influência da cor, desenho, imagens abstratas pintadas, fotografia,
filme, mosaicos, artefatos de metais, blocos de concreto e outros ingredientes mais. Assim,
pode-se dizer que ela espelha a emergência de uma singular situação histórica da configuração
lingüística do semelhante e dos comportamentos miméticos. Caso consideremos o cinema
como fidedigno retrato da culminância desse rico processo, os arranjos miméticos
dinamizados no interior do inconsciente ótico com as profusões de cenas, tomadas fílmicas,
aproximações, distanciamentos, acelerações e retardamento de quadros, na medida em que
aproximam coisas, situações e presenças pertencentes a diversos espaços e tempos,
146 contribuem para impulsionar uma dialética da proximidade e da distância, do familiar e do
não reconhecido, do imagético movimentado e do real imobilizado. Ou seja, as interfaces das
condensações e dilatações rítmicas dos circuitos de imagens, diálogos, luzes e sons acalentam
o alvorecer de momentos onde fluxos até então separados se encontram e se juntam gerando
novas intensidades. Logo, nas idas e vindas por entre as linhas de tensão que esse contexto
inusitado e descontínuo estabelece, vige a chance repentina de um verdadeiro outro eclodir
(Gagnebin, 2007).
Nesse sentido, o tipo de relação que o sujeito tem com objetos, conteúdos e situações
mediado pelas estruturas do cinema remete a uma forma de conhecer o mundo que não
obedece diretamente aos padrões estabelecidos pelas categorias do entendimento. Nela, o
sujeito não toma posse do objeto para em seguida esquadrinhá-lo, mecanismo esse que não
deixa de ter um certo ingrediente de dominação. Trata-se antes de uma interação onde
predomina muito mais a tactibilidade entre partes, por meio da qual o sujeito deixa-se afetar
pelas emanações do objeto sem necessariamente inclinar-se a submetê-lo. Portanto, uma
esfera do conhecer que, na perspectiva de Gagnebin (2007), enovela o escrutínio de Logos e a
sensibilidade de Eros.
No esteio de tal interpenetração entre Logos e Eros, é lícito falar que esse outro
registro de saber tende a aprumar-se fora dos ditames que guiam os passos do conhecedor que
domina e do conhecido que é dominado. Em contrapartida, seria ingênuo achar que essa
dimensão crítico-libertária sustenta-se epistemicamente por si mesma. Para que ela ocorra,
urge que o cultivo das prerrogativas que abalizam suas radicais aparições nas brechas das
linguagens se dê livre de manipulações ou camuflagens. O desrespeito à essa exigência
fertiliza a massificação alienadora, como o provam a indústria cultural e o ideário nazi-
fascista. Apenas assim garante-se ao olhar o necessário afastamento que enquadra a
estranheza sem julgá-la como convivência impossível ou fonte de angústia e medo. Satisfeita
147 essa restrição, experiência estética e formação insurgem como pólos complementares que
retroalimentam-se. Ou, como diz Gagnebin (2007):
A experiência estética, experiência da distância do real em relação a nós, experiência também da distância entre o real tal como é e qual poderia ser, essa experiência pode configurar um caminho privilegiado para o aprendizado ético por excelência, que consiste em não recalcar o estranho e o estrangeiro, mas sim em ser capaz de acolhê-lo na sua estranheza. (Gagnebin, 2007, p. 94).
148 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Iniciamos nosso estudo levantando o quanto o jogo, ao longo da história da filosofia,
foi abordado como questão problemática por pensadores tributários das mais diferentes
orientações filosóficas. Todavia, caso situemos as abordagens feitas pelos Iluministas como
intensamente ricas, detalhadas e com enfoques específicos (jogo como paradigma de
conhecimento: Leibniz e Bernouilli; jogo como referência para investigações sobre justiça:
Pascal e Fermat; o jogo e seu papel na educação: Erasmo de Roterdam e Rousseau), há que se
lembrar a original inovação proposta por Kant, conduzindo-o ao território da estética. O
caminho inaugurado por Kant em grande medida exerceu influências sobre as concepções dos
Românticos sobre arte e linguagem, que, por sua vez, sofreram revisões por parte de Walter
Benjamin.
Em seguida, procuramos caracterizar, no capítulo um, as perspectivas próprias a partir
das quais Walter Benjamin trabalha o tema do jogo, o qual, nas palavras de Missac (1998),
permanece como item de grande importância no bojo de sua obra. Vimos que Benjamin
realizou reflexões bastante peculiares sobre a lógica dos jogos de azar adotando como pano de
fundo o advento da Modernidade, tal qual entendida por Charles Baudelaire, e sobre a
natureza dos jogos e brincadeiras de crianças. Também mostramos como a análise
benjaminiana sobre o jogo pode ser articulada com outros conceitos significativos seus, tais
como presença de espírito, faculdade mimética, semelhanças, alegoria e ´Witz`.
Depois, tratamos de investigar como tais inter-relações nos possibilitam compreender
o porquê de Benjamin conferir elevada credibilidade ao que seria o papel político-pedagógico
dos produtos da cultura e da arte modernas junto às massas (capítulo dois), bem como seu
potencial para promover processos efetivos de formação ética contrapostos ao ideário
educacional burguês (capítulo três).
149 Feito esse apanhado geral, acreditamos que determinados pontos abordados no
estudo ainda carecem de breves observações finais.
O primeiro deles alude ao fato de que Benjamin não se preocupa em conceituar jogo,
no sentido de precisamente dizer o que ele é, como também não o fizeram Tomás de Aquino,
Leibniz, Bernouilli, Pascal, etc. Todavia, suas análises trazem à baila informações que
possibilitam o encaminhamento de uma definição. Assim, por nossa própria conta e risco,
ousaríamos dizer, com base em Benjamin, que o jogo é uma representação mimética das
complexas malhas de relações que os homens estabelecem com os objetos, entidades,
concepções e linguagens do mundo, cuja constituição segue caminhos espaço-temporais
imprevisíveis e, por isso mesmo, sempre abertos a novos horizontes de configuração. Apenas
a título de exemplo, cumpre afirmar que tal formulação distancia-se relativamente das
propostas de dois grandes autores contemporâneos que efetivamente resolveram conceituar
jogo: o historiador Johan Huizinga e o filósofo Hans Georg Gadamer. Por mais que os dois
não tenham sido discutidos neste trabalho, ainda assim acreditamos que, mesmo nas
considerações finais, convém invocá-los apenas para mostrar como a noção de jogo é
polissêmica, e em função desse aspecto, diferentes caracterizações podem vir à tona. No seu
livro Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, Huizinga (1995) define jogo como
sendo uma atividade livre na qual há alguma disputa, desprovida de utilidade imediata e
ocorrida dentro de cercanias espaço-temporais particulares, dependente de regras e capaz de
aproximar pessoas em função da certeza de partilharem coisas em comum. Já Gadamer, em A
atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, concebe jogo como movimento da
vida: “O jogo aparece (...) como um auto-mover-se que por seu movimento não pretende fins
nem objetivos, mas o movimento como movimento, que quer dizer um fenômeno de
redundância (...) do estar vivo.” (Gadamer, 1985, p. 38). Em linhas gerais, notamos que, ao
passo que Huizinga propõe um conceito apenas descritivo de jogo a partir tanto do registro de
150 suas características empíricas como de análises documentais, Gadamer denota afinidade
com a noção kantiana de livre jogo estético das faculdades. Como vimos na introdução e
capítulo primeiro de nossa tese, Benjamin segue um caminho diferenciado.
Curiosamente, em se tratando da afeição de Benjamin por jogos, Missac (1998) afirma
que o filósofo denotava ser intensamente crítico com os jogos esportivos profissionais. No seu
entender, a lógica reinante no esporte profissional nutria grande semelhança com a dinâmica
própria da Modernidade. A produção constante de novas informações disseminadas pelas
mídias sobre os limites do corpo humano sendo superados através de quebras de recordes
esportivos somente mitiga o modo como ele de fato é realmente concebido pelas relações de
produção invariáveis norteadoras do mundo capitalista burguês: um prolongamento carnal de
máquinas engenhadas para funcionarem com eficiência, essas sim representadas como os
organismos centrais reguladores da vida moderna. O jogador esportivo que estatisticamente
faz mais pontos num jogo, defende mais bolas, corre distâncias no menor tempo etc. e logo
adiante é superado por algum companheiro que faz tudo isso melhor representa um signo
alegórico da contenção das imensas potencialidades técnicas da Modernidade em relações de
produção padronizadas e invariáveis.
Um outro item que gostaríamos de destacar diz respeito ao aparecimento de uma
questão bastante específica que, a nosso ver, é significativa para futuras pesquisas filosóficas.
Em um artigo de 1928 denominado Velhos brinquedos: sobre a exposição de brinquedos no
Märkische Museum, Benjamin reitera o quanto os pedagogos rousseaunianos não
conseguiram captar as tendências despóticas e desumanas do comportamento das crianças.
“Deparou-se então com a faceta cruel, grotesca e irascível da natureza infantil (...) As crianças
são insolentes e alheias ao mundo.” (Benjamin, 2007, p. 86). Todavia, continua o filósofo,
Paul Klee e o escritor Joachim Ringelnatz não deixaram isso passar desapercebido em seus
trabalhos. Por outro lado, em Rua de Mão Única, Benjamin assevera: “Há muito o eterno
151 retorno de todas as coisas tornou-se sabedoria de criança, e a vida, uma antiqüíssima
embriaguez de dominação, com a retumbante orquestra, no centro, como tesouro de coroa.”
(Benjamin, 1995, p. 39). Pois bem, o que será que Benjamin quer dizer com a expressão
“eterno retorno de todas as coisas”? E, além disso, por que o eterno retorno guarda afinidade
com o que seria o mundo próprio da infância? Eis um problema que com certeza requer
maiores aprofundamentos.
Por fim, vimos que, consoante Benjamin, os efeitos impactantes dos trabalhos de
Baudelaire, Kafka, Proust, Brecht, Tzara e outros artistas em muito derivou de suas singulares
presenças de espírito. Através delas, conseguiram com rara perspicácia captar a grandiosidade
fulgurante das palavras e empregá-la em contextos artísticos dos mais diversos perfis. Muito
dos sucessos e polêmicas que engendraram decorre destas intervenções criativas e
deliberadamente lúdicas nas linguagens. Ora, assim como Benjamin, Wittgenstein e Jacques
Derrida, salvaguardando a especificidade dos recortes teóricos de cada um, empregaram a
noção de jogo para fundamentar diversas reflexões acerca dos horizontes e possibilidades das
linguagens. Portanto, constituiria um contribuição notável proceder o mapeamento dos
principais conceitos e raciocínios destes dois últimos em relação aos de Walter Benjamin no
que tange à referida problemática.
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159
160
LISTAS
DE
ANEXOS
ANEXO I
161
“O Retrato de Georges Dyer num Espelho”, de Francis Bacon (1909-1992) Disponível em http://francis-bacon.cx/1966_67.html Acessado em 19/03/2008.
ANEXO II
162
“A pequena Torre”, de Charles Meryon (1821-1868) Disponível em www.chrislee.org.uk/InspringCreativity/GR165 Acessado em 22/01/2008.
ANEXO III
163
“Les jouers de cartes” , de Pierre Bergaigne (1652-1708) Disponível em http://www.picture-desk.com Acessado em 30/09/2008.
ANEXO IV
164
“Rouge et noir (card game): gambling table in the Palais-Royal”, de Georges Cruikshank (1792-1878) Disponível em http://www.lesartsdecoratifs.fr/fr/05bibliothequeartsdeco/index.html Acessado em 01/10/2008.
165
“O CONCEITO DE JOGO EM WALTER BENJAMIN E SUAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS PARA O SUJEITO". Tese de Doutorado em Filosofia apresentada por DIRCEU RIBEIRO NOGUEIRA DA GAMA em 30 de março de 2009 ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UGF-RJ, e aprovada pela Comissão Julgadora formada pelos seguintes professores:
Prof. Dr. Filipe Ceppas de Carvalho e Faria (Orientador)
Universidade Gama Filho – UGF
Prof. Dr. Jorge Luiz Rocha de Vasconcellos Universidade Gama Filho – UGF
Prof. Dr. Norman Madarasz
Universidade Gama Filho – UGF
Profa. Dra. Claudia Castro Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/Rio
Profa. Dra. Andréa Bieri Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/Rio
Rio de Janeiro, 30 de março de 2009
Prof. Dr. Edson Peixoto de Resende Filho Coordenador do Programa de Pós-graduação em Filosofia
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