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Alteridade radical e os limites da razão no século XVIII Fabiano Lemos (UERJ) Ulysses Pinheiro (UFRJ) 1. Identificação geral da proposta: O objetivo da pesquisa é determinar o modo como, na filosofia do século XVIII, o tema dos limites da razão depende da instituição de uma perspectiva externa ao próprio campo da racionalidade humana. Nesse contexto, a alteridade não será mais pensada, como ocorria no Seiscentos, a partir da ideia de um limiar a ser alcançado percorrendo-se imanentemente o domínio da própria razão até seus limites internos, sem nunca ultrapassá-los, e sim a partir da ideia de um deslocamento até um ponto de vista externo à própria razão, que deve ser habitado – e eventualmente conjurado – para que a razão, possa ser avaliada. A dubiedade das diversas figuras da alteridade nesse período da história da filosofia indica ao mesmo tempo a confiança e a suspeita nos poderes da razão. Três exemplos de alteridade deverão ser examinados na pesquisa: os cegos, os monstros e os moribundos. Ao retratar o modo como essas representações da alteridade articulam-se com conceitos filosóficos centrais da modernidade, pretende-se elucidar essa nova função da ideia de um Outro radical no discurso filosófico. 2. Circunscrição das questões:

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Alteridade radical e os limites da razão no século XVIII

Fabiano Lemos (UERJ)Ulysses Pinheiro (UFRJ)

1. Identificação geral da proposta:

O objetivo da pesquisa é determinar o modo como, na filosofia do século XVIII, o

tema dos limites da razão depende da instituição de uma perspectiva externa ao próprio

campo da racionalidade humana. Nesse contexto, a alteridade não será mais pensada,

como ocorria no Seiscentos, a partir da ideia de um limiar a ser alcançado percorrendo-

se imanentemente o domínio da própria razão até seus limites internos, sem nunca

ultrapassá-los, e sim a partir da ideia de um deslocamento até um ponto de vista externo

à própria razão, que deve ser habitado – e eventualmente conjurado – para que a razão,

possa ser avaliada. A dubiedade das diversas figuras da alteridade nesse período da

história da filosofia indica ao mesmo tempo a confiança e a suspeita nos poderes da

razão. Três exemplos de alteridade deverão ser examinados na pesquisa: os cegos, os

monstros e os moribundos. Ao retratar o modo como essas representações da alteridade

articulam-se com conceitos filosóficos centrais da modernidade, pretende-se elucidar

essa nova função da ideia de um Outro radical no discurso filosófico.

2. Circunscrição das questões:

Um lugar-comum, difundido, sobretudo, nos manuais de história da filosofia,

nos informa que o século XVIII explorou, com uma insistência sem precedentes, os

limites da razão humana que o século anterior havia formulado.1 Evidentemente restrita

– como toda tese demasiado genérica –, essa ideia passa voluntariamente desatenta pela

amplitude das consequências epistemológicas que podem ser deduzidas das obras de

1 É essa a posição defendida, por exemplo, por Kuno Fischer em sua Geschichte der neueren Philosophie (vol. 3, p. 613), onde a reflexão herdada do século XVIII é caracterizada como “uma ciência dos limites [Grenzen] da razão humana”. Heinrich Ritter retoma essa ideia quase identicamente a respeito de Rousseau (Geschichte der Philosophie, vol. 12, pp. 612 e ss.). Mais recentemente, Maria Rosa Antognazza identificou as complexidades do tema dos limites no século XVIII e seus tensionamentos políticos com a teologia cristã do período (ANTOGNAZZA, M. R., “Revealed Religion: The Continental European Debate” In.: HAANKOSSEN, K. (ed.), The Cambridge History of Eighteenth-Century Philosophy, vol. 2, pp. 666-682).

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John Locke ou Robert Boyle, por exemplo2; mas, por outro lado, ela apresenta uma

imagem que, articulando uma antropologia e uma metodologia filosóficas, a própria

modernidade procurou constituir para si. Essa visão retrospectiva, se abandonarmos

qualquer pretensão positivista da história, tem, em si mesma, um valor: ela assinala

como, desde os primeiros anos do século XIX, a reflexão filosófica procurou

reconhecer, nos pensadores da geração que lhe antecedera, o anúncio de uma nova

tarefa, de um novo projeto de sistema. Isso é particularmente notável em função de uma

herança ao mesmo tempo teórica e simbólica: na Prússia, a Afklärung de Kant e Jacobi

havia imprimido sua marca nos pré-românticos e nos românticos do século seguinte,

enquanto, na França, as Lumières dos enciclopedistas e philosophes se esforçavam para

garantir a consolidação de um ethos cujo legado a Revolução Francesa não deixaria a

Europa esquecer. Se o momento kantiano é esse que, para utilizar uma expressão de

Michel Foucault, constitui um ponto de junção3, é na medida em que uma inflexão

incontornável é instaurada a partir daí por seus leitores. A Crítica da razão pura, bem

como a Enciclopédia, constituiriam, assim, os signos luminosos de uma antropologia

filosófica emergente, capaz agora de fundar a emancipação no escrutínio dos limites do

pensamento.

É o próprio horizonte filosófico do século XVIII que autoriza essa instauração.

O leitor do Tratado da natureza humana, de Hume, sabe, desde as primeiras linhas de

sua Introdução, que se trata aí de deslocar os problemas da metafísica para “dentro do

alcance da capacidade humana”.4 Por outro lado, em uma passagem mais sugestiva que

analítica, o verbete Philosophe da Enciclopédia denuncia o excesso de orgulho do

filósofo em que “a liberdade de pensar substitui o raciocício” precisamente enquanto ele

pretende “reverter os limites sagrados impostos pela religião”, como se tivesse

“rompido o entrave onde a fé introduzia suas razões”5. Do outro lado do Reno, sabemos

o quanto o texto de Kant está comprometido com essa ideia. Todo o parágrafo 59 dos

Prolegômenos pode ser lido como a chave heurística de seu idealismo transcendental,

2 Sobre esse ponto, cf. SHANKULA, H. A. S., John Locke : Ideas, Knowledge, and the Limits of Science: A Historico-philosophical Examination of Some Aspects of An Essay Concerning Human Understanding, e WOJCIK, J. W., Robert Boyle and the Limits of Reason, especialmente pp. 151-187.3 Cf. FOUCAULT, M., Les mots et les choses, p. 339: “Le moment kantien fait charnière (…)”.4 HUME, D., A Treatise of Human Nature, Introdução, § 4 (doravante citado como T, seguido dos números do livro, parte, seção e parágrafo).5 Verbete PHILOSOPHE da Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, vol. 25. O autor provável do texto é o gramático César Chesneau Dumarsais, mas o verbete foi selecionado e edito por Diderot. Sobre esse ponto, cf. o estudo clássico de Herbert Dieckman, Le philosophe; texts and interpretation.

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justamente na medida em que circunscreve o conhecimento na “limitação [Begrenzung]

do campo da experiência”.6 Em todos esses casos, o tema da fronteira interna da razão

surge como divisa metodológica. A antropologia que eles fazem emergir depende,

assim, desse exercício – experimental ou sistemático – que o pensamento exige de si

mesmo: a construção de uma intimidade autorefletida, sem o auxílio do transcendente. É

assim que encontramos o philosophe e o Gelerhte medindo cuidadosamente os passos

até o limiar onde, entrando em uma zona opaca, mas constitutiva do mundo, eles

deixariam de ser eles mesmos, resvalando para o terreno da especulação sem freios, da

metafísica de castelos no ar que Hume e Kant souberam desprezar (ou temer).

Vê-se, portanto, o quanto a alteridade tem de figurar duplamente nesse universo:

como o avesso insondável da razão, mas também como seu viznho mais próximo,

através do qual ela, distinguindo-se negativamente, garante sua identidade. Essa

axiomática dupla do Outro no século XVIII permite ao procedimento filosófico dois

tipos gerais de análise. Em primeiro lugar, aquela onde o sujeito se depara com suas

fronteiras desde o solo seguro da luminosidade, do cognoscível. Não são essas as lições

mais imediatas da Crítica da razão pura? Não é esse o princípio, não da filosofia de

Newton, mas do newtonianismo, cuja versão vulgata circulou entre os eruditos às

vésperas da Revolução Francesa? Um elogio enfático da observação, da clareza, da

visualidade plena reverbera ao fundo dos inúmeros projetos de uma ciência

experimental – algo que encontramos mesmo em Hume, em alguma medida.7 Mas o sol

do Iluminismo também tem suas sombras. E é essa figuração do Outro como aquele que

também olha, de fora, para a razão humana, que inaugurará uma segunda abordagem

filosófica: a que teve de pensar a alteridade não apenas como a fronteira longínqua e

opaca do que se pode saber, mas como um ponto de vista radical desde o desconhecido.

O projeto de pensar a alteridade radical sob essa perspectiva assinala, assim,

uma reflexão disposta a considerar o fundamento da antropologia desde fora. Figuras

como o selvagem, o louco, o bêbado, o ateu, o libertino – enfim, todos os duplos do

grande Outro elencados a partir daí nos romances e tratados filosóficos – são investidas

de um novo poder. Já não mais empurradas para a escuridão silenciosa pelo poder de

uma razão homogênea, linear, elas ganham voz. É por isso que, mesmo que essas

6 KANT, I., Prolegomena, In. Gesammelte Schriften, vol. 5, p. 361 (edição doravante citada como Ak, seguida do número do volume e da página).7 Cf. STEWART, L., “The Trouble with Newton in the Eighteenth Century” In.: FORCE, J. & HUTTON, S. (ed.), Newton and Newtonianism – New Studies, pp. 221-238; especificamente sobre o newtonianismo de Hume, cf. FORCE, J., “Hume’s Interest in Newton and Science” In.: Hume Studies, vol. XIII, n. 2, pp. 166-216.

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figuras do Outro anunciassem sua presença bem antes do século XVIII – como é o caso

dos habitantes do Novo Mundo e toda reconfiguração do pensamento europeu que eles

promoveram nos séculos XVI e XVII8 – a crença irredutível na fonte luminosa da razão

teológica as apresentava com contornos suficientemente nítidos. No século das Luzes,

elas, paradoxalmente, assumem a dimensão positiva de sua informidade. O

renascimento do cinismo entre os intelectuais9, a insistência nos momentos de verdade

do discurso da loucura ou a emergência da libertinagem indicam à filosofia que ela tem

algo a aprender com o informe. Algo sobre si mesma.

O conjunto de estudos propostos neste projeto constitui uma leitura dessa escrita

da razão desde a perspectiva da alteridade radical no século XVIII, uma análise sobre a

compreensão de seus limites e da antropologia que eles fundam a partir da voz do

Outro. Trata-se, assim, em primeiro lugar, de reconstituir o horizonte teórico, político,

mas também simbólico em que a alteridade radical se inscreveu no século XVIII,

funcionando como um outro olhar sobre os limites da razão. Mas esse esforço analítico

deve ser complementado pela investigação de casos particulares, segundo um modelo

experimental perseguido nesse período. Trabalhos importantes já foram empreendidos

na direção de certas figurações dessa alteridade: o sobrinho de Rameau, os perversos de

Sade ou o ateísmo dos philosophes tiveram suas perspectivas discutidas em obras

recentes.10 Três figuras permanecem, no entanto, ao menos sob importantes aspectos,

relativamente pouco exploradas. A primeira é a do é a do cego. Embora ela, dentre as

três, seja a que tenha recebido maior atenção, uma dimensão importante permanece

pouco abordada: se, por um lado, é geralmente reconhecido que o discurso sobre a

cegueira, aproximando-a de modo aparentemente paradoxal da ciência ótica cartesiana,

introduz um elogio às belas aparências “supérfluas” da visão, esse mesmo discurso, por

outro lado, reconhece na cegueira um modelo para a linguagem em geral. Uma

radicalização do “perspectivismo” de Diderot nos permitirá não só compreender esse

movimento de contínua desestabilização das posições, mas também uma nova

concepção da unidade da razão aí articulada. A Carta sobre os cegos, de Diderot, se

apresenta como o conjunto discursivo onde essas questões podem ser reconhecidas. A

segunda figura é a do moribundo. Sua presença é constante nas memorabilia

8 Cf. BORNHEIM, G., “O bom selvagem como philosophe e a invenção do mundo sensível” In.: NOVAES, A. (org.), Libertinos libertários, pp. 59 e ss.9 Cf. SHEA, L., The cynic enlightenment : Diogenes in the salon, especialmente pp. 23-44.10 Cf. WERNER, S., Socratic Satire: An Essay on Diderot and Le Neveu De Rameau; ALLISON, D. ROBERTS, M. S. (ed.), Sade and the narrative of transgression; NEMO, Ph., La belle mort de l’atheisme moderne.

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iluministas.11 Como indivíduo limítrofe, ele permite avaliar o sistema moral da

perspectiva mesma de seu aniquilamento. A morte estóica de Hume, retratada

primeiramente por Adam Smith, e depois repetida à exaustão, ampliada ou desmentida

nas décadas seguintes, forneceriam, assim, um estudo de caso importante. Por fim, uma

terceira formulação do problema da alteridade se encontra no tratamento dado por Kant

ao Ungeheuer, ao monstruoso e à monstruosidade. Atravessando toda a filosofia crítica,

ela se transforma, gradualmente, na voz próxima da razão, o lugar para onde ela

tenderia a se deslocar em função de sua própria e excessiva natureza. O gesto com que

Kant afasta o Monstro não traduz mais o desdém cartesiano pelo erro, mas uma espécie

de assombro da razão que reconhece a si mesma também pela ameaça de seu

aniquilamento.

O moribundo, o cego, o monstro: essas três figuras da alteridade desenham uma

espécie de triângulo em cujo centro podemos identificar a antropologia com que se

ocuparam os filósofos modernos. As hipóteses de trabalho desse projeto se reunem,

portanto, a partir desses três estudos de caso, que devem ser precedidos por uma análise

mais geral sobre o problema da alteridade radical no século XVIII. A Carta sobre os

cegos para o uso dos que vêem, de Diderot, será usada como o meio para expor, de um

ponto de vista suscinto, tal análise geral.

De fato, a Carta de Diderot pode ser lida como um catálogo contendo as figuras

que, no século XVIII, são usadas para pensar a alteridade radical: os cegos, as mulheres,

os estrangeiros, os monstros, os moribundos. Não que essas figuras tenham surgido pela

primeira vez no século XVIII como forma de pensar a alteridade; ao contrário, todas

elas são retomadas de uma tradição muito longa, que não raro remete à Antiguidade

clássica. Entretanto, cada uma dessas figuras é investida de um novo significado,

repercutindo, com isso, as modernas concepções de racionalidade e, consequentemente,

de desvio que nasciam nessa época. É significativo notar que Diderot escreveu a Carta

pouco antes da exata metade do século XVIII, em 1749: tendo aparecido no meio do

século, ela ao mesmo tempo faz um ajuste de contas com a tradição filosófica que lhe

precedeu e anuncia as mudanças então em curso.

Um primeiro exemplo da importância da figuração da alteridade para a

compreensão da estrutura conceitual da Carta encontra-se desde o ponto de partida, na

escolha do gênero epistolar. Quando um homem do século XVIII lesse a Carta, ao ser

informado, já em sua primeira frase (“Je me doutais bien, madame...”), que deveria

11 O Dialogue entre um prêtre et um moribond de Sade seria apenas seu exemplo mais evidente.

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fazer sua leitura através dos olhos imaginários de uma mulher – e devemos nos lembrar

que as mulheres constituiam ainda, no século XVIII, uma parcela minoritária, embora

crescente, do público leitor (cf. SONNET, 2002, pp. 131-168 e LYONS, 2001, pp. 395-

406) –, um duplo descentramento ocorria. Primeiramente, um deslocamento de gênero,

pois os leitores masculinos teriam, ainda que apenas ficcionalmente, de se colocar no

lugar de uma mulher, ou, pelo menos, de imaginar-se lendo com olhos femininos;

simultaneamente, é proposta também uma aproximação do ato de leitura a um ato de

voyeurismo, experimentado pela violação (ainda que ficcional) da privacidade de uma

correspondência que não deixava de revelar aspectos íntimos, na medida em que o

remetente, de certa forma, corteja a mulher ao fazer filosofia.

Na verdade, a Carta tem por “objeto” – se fosse legítimo empregar essa palavra

–, não propriamente a cegueira, mas, antes, os vários deslocamentos pelos quais o

narrador ao mesmo tempo progride em seu discurso e adia uma posição definitiva

acerca da questão principal, desenvolvendo inúmeras digressões e interrupções que têm

como “fim” (mas o fim nunca chega12) mostrar a natureza própria da reflexão filosófica.

Mais do que sustentar uma “tese” (provavelmente a defesa do ateísmo materialista, tal

como esse texto de Diderot é usualmente interpretado por seus comentadores desde o

século XVIII, seguindo assim uma linhagem crítica inaugurada pelos censores que, dois

meses após sua publicação anônima, encarceraram o autor em Vincennes), trata-se aí de

encenar um constante deslocamento de “pontos de vista” – por mais inadequada que

essa expressão seja em um texto “sobre” a cegueira. Devemos nos deixar guiar a partir

deste momento por Kate Tunstall, no ensaio que precede sua tradução para o inglês

recentemente publicada da Carta, quando ela propõe que vejamos de forma positiva as

infinitas hesitações e deslocamentos do texto, sem explicá-las por uma interpretação

psicológica que nos remeteria às disposições internas do autor (nem, eu acrescentaria,

por uma “hermenêutica da suspeita”, tal como ela é proposta, por exemplo, por Leo

Strauss, segundo a qual deveríamos, em uma obra escrita em tempos de perseguição

política, ler “entre as linhas”, procurando ultrapassar os despistamentos lançados

propositalmente pelo autor ao longo do texto). “Eu proponho, ao contrário”, escreve ela,

12 Quando ele chega, é apenas para assinalar que o que não começou não pode, tampouco, terminar: “...il y a deux heures que j’ai l’honneur de vous entretenir”, escreve em suas últimas linhas o narrador para madame, “sans m’ennuyer et sans vous rien dire” (DIDEROT, p. 891). Devemos ler literalmente este final: nada é dito na Carta, pois seu “objeto” próprio são apenas as infinitas passagens de perspectivas; o “fim” da Carta reduplica, assim, suas linhas iniciais, que, desde o começo, exprimiam uma dúvida (“Je me doutais bien, madame...” (idem, p. 841)). Mais do que uma falsa modéstia usada com o propósito de fazer um galanteio final, a suspensão do fim e do começo revelam muito francamente o jogo proposto, suas regras, seu ponto de partida e sua “finalidade”.

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“que a Carta se engaja no que poderíamos pensar como um certo número de jogos

interpretativos deliberadamente desestabilizadores”13. O que podemos denominar aqui,

não sem um certo risco calculado, e de modo ainda provisório, o “perspectivismo” de

Diderot abriga as diversas posições apresentadas na Carta: o culto cego aos “fatos”

observáveis, representado pela figura de Réaumur, o teísmo de Holmes, o idealismo

berkeleyano (que é também o de Condillac), adotado afinal por Saunderson, dentre

outras posições. Isso não significa que devamos ou mesmo possamos escolher uma das

personagens (o narrador, Madame, a plateia muda constituída pelos philosophes que

acompanham o narrador a Puiseaux, o próprio cego de Puiseaux, o menino cego

operado por Cheselden, etc.) como representante única do “ponto de vista” de Diderot.

Se a tese de que o próprio “eu” é dividido em muitos no interior de si mesmo constitui

um dos elementos centrais do pensamento de Diderot, não há por que supor que

qualquer dessas personagens seja ela mesma unificada, perfeitamente idêntica a si

mesma. Tomemos, por exemplo, seus dois personagens principais: eles são, quase

certamente, o cego de Puiseaux, nunca apresentado através de seu nome próprio, e

Saunderson, o geômetra cego de Cambridge, explicitamente nomeado a partir de um

documento (as Memoirs, escritas por seu filho, que serviam de introdução a seus

Elementos de álgebra14). Nessa oposição inicial, reconheceremos, talvez, no cego de

Puiseaux, a figura do homem ilustrado, nem um trabalhador braçal nem um nobre

membro da côrte, mas sim um anônimo leitor burguês da Enciclopédia, que encontrava,

em seu anonimato, o estatuto próprio dessa nova “nobreza” da vida familiar e do

progresso das Luzes – enquanto Saunderson, apesar de suas origens humildes,

encarnava a figura dos colaboradores da Enciclopédia, duplo de filósofo e cientista.

Mais significativo do que essa diferença na nomeação, porém, é o fato de que ambos

são dotados de uma linhagem dignificante – embora a do cego de Puiseaux seja

apresentada a partir de uma descrição que, como a que substitui seu nome, também

preserva o anonimato de sua origem, a saber: como tendo “um pai que professou com

aplausos a filosofia na universidade de Paris”, enquanto Sauderson é caracterizado

através de outro nome próprio: ele é “sucessor da cadeira de Newton em Cambridge”. É

em torno de Saunderson, não por acaso, que gravitarão outros nomes (Berkeley,

Condillac, Molyneux, Locke); será ele, e não sua contraparte anônima, o cego de 13 TUNSTALL, p. 21. A tradução é minha; o original diz: “I argue instead that the Letter engages in what we might think of as a number of deliberately destabilizing interpretive games”.14 Sabemos bem que um segundo “documento” é usado pelo narrador para dar conta dos momentos finais de Saunderson em seu leito de morte – mas esse peculiar documento é, provavelmente uma ficção forjada por Diderot (ver TUNSTALL, p. 111).

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Puiseaux, quem enunciará, ao menos à primeira vista – e ainda que indiretamente –, a

solução diderotiana para o problema de Molyneux.

Sintetizando em si diversas formas de alteridade (em uma lista que,

necessariamente, permanece aberta), a figura do cego na Carta aponta, portanto, para

um traço comum a todas elas: a tematização dos limtes da razão feita do ponto de vista

de uma alteridade radical. Um cego em particular contém em si, na Carta, duas outras

dessas formas, além da cegueira: Saunderson, o matemático cego, sucessor de Newton

na Universidade de Cambridge. Em primeiro lugar, na caracterização de sua cegueira,

Diderot convoca alguns traços que indicam um certo parentesco com a monstruosidade.

Isso ocorre não apenas no momento em que, diante do pastor que o visita, ele evoca,

seguindo Lucrécio, o estado inicial do mundo, habitado talvez por monstros “sem

cabeça, e outros sem pés” – mas na própria descrição de seu aspecto físico: Saunderson

era cego por causa da ausência congênita dos globos oculares15. Em segundo lugar, boa

parte da narrativa sobre Saunderson na Carta se passa em seu leito de morte, no qual se

depede da família e conversa com seu pastor. Nesse ponto, a narrativa clássica em torno

das últimas palavras do filósofo moribundo é apresentada em tons melodramáticos que

quase antecipam um dos tableaux de O filho natural.

Entretanto, a síntese, na personagem de Saunderson, das figuras do cego, do

moribundo e do monstro não esgota as peculiaridades de cada uma delas nem o modo

como todas foram diferentemente apropriadas por diversos filósofos e correntes de

pensamento. A pesquisa pretende associar a cada uma dessas três figuras um nome

distinto, de modo a explorar essa diversidade: a cegueira em Diderot, a morte em Hume

e a monstruosidade em Kant. Passamos a expor brevemente as hipóteses desses três

momentos a serem abordados no desenvolvimento do estudo.

2.1. O cego: a instabilidade das perspectivas em Diderot:

No que diz reswpeito aos dois cegos mais importantes mencionados na Carta,

uma série de oposições, refletindo-se uma na outra como as imagens invertidas em um

espelho, vão se suceder ao longo do texto, seguindo a oposição inicial e fundante do

nome e da linhagem. A Carta opõe, assim, um a outro, o original à cópia (embora esses

papéis se alternem até o ponto da indiscernibilidade), como se um cego fosse o espelho

15 A conexão entre esses dois pontos foi notada por Tunstall (2011, 117).

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do outro. O cego de Puiseaux é a figura de um libertino convertido à vida familiar, mais

por falta de recursos do que por opção deliberada. Mas a vida em família tampouco o

desagrada, muito pelo contrário: ele se casou “para ter olhos que lhe pertencessem”16 e

educa seus filhos na leitura com o auxílio de palavras em relevo. Ele vive à noite,

ocupado em seus afazeres domésticos, enquanto Saunderson, apesar de igualmente

cego, permanecer acordado durante o dia, fazendo companhia assim aos homens que

vêem, pois ele não é o dono de seu tempo, submetido que está ao Sol que ilumina os

olhos de seus alunos. Saunderson deve ministrar aulas na universidade para garantir seu

sustento (o cego de Puiseaux, apesar de dono de uma fortuna modesta parcialmente

dissipada na boemia parisiense, ainda dispõe de meios para se sustentar como um

homem livre do trabalho). A Carta a informa Madame que Saunderson também tem

uma esposa e filhos (um menino e uma menina), mas sua vida privada ou afetiva não

tem por cenário um feliz ambiente familiar, tal como o do cego de Puiseaux, que se

dedica a tarefas cotidianas de manutenção de seu lar e faz uma viagem anual a Paris,

para onde leva os licores que ele mesmo destila em sua pequena propriedade rural. Ao

contrário, a cena familar de Saunderson ocorre apenas como o quadro de seu leito de

morte. Nessa ocasião, suas palavras finais para sua família são ao mesmo tempo

consoladoras e portadoras de conselhos sobre a educação das crianças, formuladas como

uma lição de vida, enunciados no limiar da morte. Essas palavras carinhosas são

imediatamente seguidas por um lamento sobre a infelicidade constante de sua vida,

devido à cegueira: enquanto o cego de Puiseaux não sente falta da visão, preferindo

antes, se lhe fosse dado escolher, que lhe fosse concedido um tato mais refinado, o cego

de Cambridge testemunha renunciar sem dor “a uma vida que foi para mim apenas um

longo desejo e uma privação contínua”17. Mais importante ainda, a moral e a metafísica

do cego de Puiseaux revelam-se como materialistas e ateístas, chegando mesmo até o

ponto da libertinagem e da insubordinação, enquanto Saunderson tem uma vida

perfeitamente de acordo com as leis e costumes da sociedade visual e, mesmo resistindo

aos argumentos de seu pastor para aceitar a existência de Deus antes de sua morte,

baseados na ordem e na harmonia de um universo que só poderia ser acessível pela

16 “Il s’est marié pour avoir des yeux qui lui appartinssent” (DIDEROT, p. 848). O caráter pouco convencional, meramente utilitário da instituição do casamento para o cego é enfatizado pela frase seguinte: “Auparavant, il avait eu dessein de s’associer un sourd qui lui prêterait des yeux, et à qui il apporterait en échange des oreilles”. Pouco antes, Diderot sugere que os casamentos em uma sociedade composta apenas por cegos oscilaria entre ser ou bem poligâmico ou bem dotado de regras rígidas de controle da monogamia a mais estrita.17 Grifo meu. O original diz: “Je renonce sans peine à une vie qui ná été pour moi qu’un long désir et qu’une privation continuelle” (DIDEROT, p. 873).

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visão, ele morre, como bom teísta racionalista, exclamando suas últimas palavras, após

um longo delírio (e essa ironia de Diderot não precisa retirar a seriedade dessa

conversão final): “Ó Deus de Clarke e de Newton, tende piedade de mim!”. Além disso,

o fato de que a aquisição tátil das ideias de figuras pelo cego geômetra o leva a um alto

grau de abstração, superior ao alcançado pelos homens dotados de visão, o conduz, pelo

mesmo passo, a uma metafísica “extravagante” – o idealismo de Berkeley –, que parece

só dever sua existência a cegos, mas que, devido a sua abstração, é o sistema “mais

difícil de combater”18. Já o cego de Puiseaux é um materialista que, também devido a

sua capacidade superior de abstração, mas sem misturá-la ao racionalismo individualista

do leibniziano, pode facilmente conceber que o corpo pensa – para ele, a excessiva

individuação visual do corpo, que aparece passivamente como uma coisa dada e

puramente material não tem lugar: ao invés disso, os corpos que o cercam se apresentam

dispersos e descontínuos, unificados unicamente pela atividade conjunta de sua

memória e de seu tatear em busca de uma completude que não é dada de uma só vez.

Ao fazer de um cego o espelho do outro, Diderot não precisa mais optar por um

deles como seu porta-voz único: o cego de Puiseaux formula, em imagem invertida,

certas posições centrais da Carta, negadas por Sauderson, embora só esse último possa,

como mostraremos ao longo da pesquisa, determinar a resposta positiva ao problema de

Molyneux, que é o “assunto” inicial da correspondência com Madame. Na imagem

refletida desses dois cegos, invisíveis um para o outro, a Carta encontra sua linha

estruturante e, ao mesmo tempo, sua força desestabilizadora, sendo a passagem entre o

primeiro e o segundo o (não) lugar próprio de uma “posição” que só pode ser ocupada

pelo narrador de seu desencontro. Essa última manifesta-se claramente em seu

parágrafo final, onde, sob a aparência de defender um ceticismo moderado19, a narrativa

propõe um lance muito mais radical, qual seja: o de que nada foi dito ao longo da

Carta. Um certo tédio (“ennui”) diante de todos os escritos do mundo (“... combien

d’écrits dont les auteurs ont tous prétendu savoir quelque chose!”20) insinua-se como

consequência desse ceticismo, mas o ato de leitura é redimido logo em seguida através

de uma disposição afetiva contrária, desta vez alegre; após confessar não entender a

razão que motiva os homens a lerem tanto para, ao fim21, nada saberem, o narrador

18 DIDEROT, pp. 865-866.19 “Hélas! Madame, quand on a mis les connaissances humaines dans la balance de Montaigne, on n’est pas éloigné de prendre sa devise. Car, que savons-nous?” (DIDEROT, p. 890).20 DIDEROT, p.891.21 Deve-se observar que essa consideração sobre o fim ocorre, não por acaso, no momento final da Carta. Trat-se de tentar encontrar uma maneira de terminar um texto que é, por natureza, interminável – o que só

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lança uma suspeita (note-se, não uma afirmação categórica): “... à moins que ce soit par

la même raison qu’il y a deux heures que j’ai l’honneur de vous entretenir, sans

m’ennuyer et sans vous rien dire”22. Mais do que um galanteio que faz a filosofia ser

perpassada por uma espécie de erotismo difuso (um discurso para conquistar Madame),

devemos ler essa frase final literalmente. Nada foi dito (ou, o que é o mesmo, “o nada”

foi dito) porque o discurso filosófico genuíno encontra-se nos interstícios da escrita, em

suas intermináveis digressões – encontra-se, em uma palavra, entre o cego de Puiseaux

e Saunderson (“... il faut que vous ayez la bonté, madame, de me passer toutes ces

digressions: je vous ai promis un entretien, et je ne puis vous tenir parole sans cette

indulgence”23). E é justamente do ponto de vista desse espaço intermediário que, na

parte final da Carta, o narrador responde a questão inicialmente proposta24, formulando-

a sob a forma clássica do problema de Molyneux25. Como, porém, um ponto de vista

pode partir de um espaço entre dois indivíduos? A não ser, como sugerimos acima, que,

tomando o problema formulado por Locke como mero pretexto, a “conclusão” da Carta

verse sobre outra coisa – sobre a passagem mesma entre perspectivas.

2.2. O moribundo: paroxismos ascéticos em Hume:

As divisas éticas prescritas por Hume em relação à morte encontram-se

exemplarmente formuladas em seu ensaio Of the immortality of the soul. O texto havia

sido escrito em 1755 com o propósito de integrar a coletânea Four Dissertations, mas,

dois anos depois, o livro surge sem que ele tenha sido incluído aí. É Hume mesmo quem

retira o ensaio já quando o texto se encontra em sua revisão final para publicação,

pode ser feito lançando ao leitor uma última questão, que prolongará o escxrito para além da folha de papel que o limita: uma questão sobre a própria finalização.22 DIDEROT, p. 891; grifo meu. Esse final reduplica, em uma reticência quanto a dar a última palavra que não tem nada a ver com a “suspensão” do juízo do cético, o início hesitante da Carta: “”.23 DIDEROT, p. 866. O verbo farncês “entretenir”, presente nessa passagem, exprime a localização dessa ação em um espaço essencialmente intermediário.24 Devemos nos lembrar de que o narrador escreve sua carta como um substituto do “espetáculo” oferecido por M. de Réaumur, o da operação de uma menina cega afetada por uma catarata congênita, para o qual ele não foi convidado. Ao invés desse espetáculo de grand guignol, o narrador reproduz uma das conversas (“entretiens”) com seus amigos philosophes. Eis aqui mais um dos inúmeros intermediários presentes no texto: uma carta representa indiretamente, por escrito, para uma pessoa distante, um diálogo travado a viva voz, a que o destinatário não teve aceso, e que era, sugere o narrador, apenas um dentre outros que versaram sobre o mesmo tópico. “Que je serais heureux”, escreve o narrador, após apresentar as circunstâncias que o levaram a escrever, “si le récit d’un de nos entretiens pouvait me tenir lieu, auprès de vous, du spectacle que je vous avais trop légèrement promis” (DIDEROT, p. 841).25 Sobre a história do problema de Molyneux, cf. DEGENAAR, Molyneux’ Problem. Three Centuries of Discussion on the Perception of Forms.

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temendo, ao que tudo indica, a repercussão negativa de suas hipóteses relacionadas mais

diretamente à religião.26 Mais especificamente, no entanto, o ensaio apresenta duas teses

que confirmam e justificam o tratamento estóico dado ao tema da morte já em seu

Tratado, vinte anos antes. A primeira delas retoma o paradigma cético:

“Raciocinando com o curso comum da natureza, e sem supor nenhuma nova interposição da causa suprema, que deve sempre ser excluída da filosofia, o que é incorruptível deve ser também irreprodutível [ingenerable]. A alma, portanto, se imortal, existia antes de nosso nascimento: e se o primeiro estado de existência não nos concernia, também o último não nos concernirá” (Essays, p. 592).

Essa incognoscibilidade incontornável, na medida em que nos torna alheios ao

desconhecido, se desdobra, em seguida, sob a forma de um ethos ciceroniano que Hume

perseguiu em todos os seus escritos morais: “No fim, a morte é inevitável” (Idem, p.

598). Que essa innevitabilidade seja descrita nos termos de uma ciência natural das

paixões humanas e não da perspectiva da providência divina é o que une a atitude diante

da morte ao projeto geral humeano.27 A imperturbabilidade do indivíduo diante da morte

se revela, assim, como índice da coerência necessária entre uma posição filosófica e um

projeto de vida. As agonias experimentadas ao final do livro I do Tratado, quando

Hume reconhece que “as profundezas imensas” da filosofia que ele havia erguido para

si haviam-no levado ao “desespero” (T 1.4.7.1) da inércia, precisam, de algum modo, se

resolver no resto do livro, caso contrário, tornariam seu projeto inconsistente. A

hesitação intermitantemente entre a reflexão, que desestrutura rigorosamente as certezas

metafísicas, e a trivialidade cega de um jantar ou de um jogo de gamão cede lugar a uma

certeza negativa – certeza que é derivada do deslocamento da questão da justificação

universal para a constatação da inevitabilidade da inconsistência das paixões: o

incognoscível não deve despertar o temor, mas a imperturbabilidade estóica.

É nesse sentido que a figura do moribundo exerce uma função simbólica

importante no pensamento ético de Hume. Limítrofe, ela apresenta, numa espécie de

26 Sobre a história do texto, cf. MILLICAN, P., Reading Hume on Human Understanding, pp. 34 e ss.; GASKIN, J. C. A., “Hume on Religion” In.: NORTON, D. F. (ed.), The Cambridge Companion to Hume, pp. 316-318 e MOSSNER, E. C., The Life of David Hume, p. 331. Hume se manteve constantemente preocupado com a possibilidade de uma publicação não autorizada do ensaio. Uma cópia de revisão das Four Dissertations contendo o texto acabou indo parar nas mãos de um colecionador e, assim que soube de sua morte, Hume solicitou ao seu sobrinho que fizesse a gentileza de lhe devolvê-la (cf. The Letters of David Hume, vol. 2, p. 253).27 Cf. T, App., 17: “A aniquilação que algumas pessoas supõem seguir à morte e que destói inteiramente essa pessoa [self], não é nada senão a extinção de todas as percepções particulares (...)”.

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momento paroxístico, o grau de coerência entre teoria do conhecimento e filosofia

moral sustentado por um indivíduo. Na fronteira última da vida, a alteridade da morte

nos permite avaliar o caráter do homem – é como moribundo que o filósofo se realiza.

É extremamente significativo que Hume tenha incluído, na História da

Inglaterra, ao final de cada conjunto de capítulos referentes a um reinado, uma seção

intitulada Death and character of the king.28 Mais do que um resumo, como supõe

Annete Baier (BAIER, 2008, p. VII), cada uma dessas passagens funciona como o

momento onde as narrativas históricas, dispersas na incoerência das paixões, são

reconduzidas à unidade do caráter. A partir daí é que o historiador poderá avaliar

moralmente o cenário político que tem por objeto. É assim que a austeridade da

administração do rei William deriva de seu espírito “forte e empreendedor” (HE I, p.

225). É assim, também, que a personalidade instável de Charles II se reflete não apenas

no comportamento francófilo que orientou suas estratégias de defesa durante as guerras

de seu reinado (HE VI, p. 448), mas, igualmente, no estado de incerteza derivado de

suas decisões enquanto moribundo: ao receber, no leito de morte, o sacramento da

Igreja Católica Romana, ele perpetuava um conflito com a Igreja Protestante da

Inglaterra que não seria sem consequências no reinado subsequente de James II (HE VI,

p. 446).

Além do problema da relação entre o moribundo e a filosofia explorado de modo

mais implícito no Tratado, na História da Inglaterra ou nos Ensaios, uma outra

dimensão da questão deve ainda ser analisada: aquela que está envolvida na morte do

próprio Hume. É como moribundo que Hume imprimirá, no nível simbólico, uma

herança persistente na recepção de sua obra.29 Por um lado, mais conhecido, sua atitude

nos últimos dias de sua vida é descrita, segundo relatos que se apoiam sobretudo na

carta de Adam Smith ao editor da História da Inglaterra, William Straham, como sendo

altiva, lúcida e mesmo plena de “vivacidade [cheerfulness]” (Adam Smith In. FIESER,

2005, vol. 9, p. 300). É no “mais baixo estado de sua sorte” que a “extrema gentileza de

sua natureza” se reune com o rigor de suas reflexões, de modo que é aí que se revela o

que Adam Smith considerou como o mais próximo de “um homem perfeitamente sábio

e virtuoso” (Idem, p. 302). O estoicismo de Hume é reforçado ainda pelo fato de que ele

é capaz de sintetizar em um único discurso as provações do moribundo e a solidez do 28 Annette Baier chama a atenção para esse fato e o tomo como ponto de partida para seu livro Death and Character – Further reflections on Hume.29 Os volumes 9 e 10 da coletânia Early Responses to Hume, organizada por James Fieser, reunem os comentários em torno da vida e da reputação de Hume escritos entre 1742 e 1888. Eles são uma fonte inestimável para o tratamento da questão abordada nesse ponto da pesquisa.

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filósofo: seu texto My Own Life, redigido em seu leito de morte, é o exemplar mais

acabado dessa ligação, e, reverberado na carta de Adam Smith, com a qual é publicado

pouco tempo depois de sua morte, esse discurso ao mesmo tempo sobre a morte e sobre

a vida, produzido no espaço onde as duas se confundem, abre caminho para uma

compreensão do Outro da filósofo, que é, na verdade, sua aniquilação, como um

próximo. O estoicismo de Hume no leito de morte é o legado simbólico mais imediato

de sua obra e o filtro com o qual ela será lida retrospectivamente. Que o século XIX

tenha discutido a validade dessas narrativas heróicas, que o testemunho de uma

empregada de Hume descreva um moribundo agoniado e cheio de remorsos e medos

(citado em FIESER, 2005, vol. 9, p. 326), apenas ressalta a importância desse legado. É

preciso reconstituir esse horizonte simbólico e tensioná-lo com o texto de Hume, o que

significa, em outras palavras, investigar a alteridade ética instaurada na conjunção de

sua representação do moribundo e como moribundo.

A investigação desse tópico na vida e obra de Hume nos permitirá, portanto,

vincular a figura do moribundo e a da alteridade de uma forma mais geral, vinculando-o

a um contexto intelectual importante desde o final do século XVII, e presente em todo o

Setecentos. De fato, as narrativas conflitantes em torno da morte de Hume espelham as

narrativas igualmente antagônicas sobre a morte de Spinoza, o “líder” dos ateus, deístas

e esprits forts, segundo a expressão de um teólogo alemão do início do século XVIII30.

O ascetismo e a tranquiladade com que Spinoza enfrentara a morte passou a ser um

campo de disputa entre seus partidários e opositores; esses últimos passaram a divulgar

versões de seus momentos finais, supostamente testemunhados por vizinhos e

conhecidos, nos quais ele teria mostrado profundo arrependimento por ter professado o

ateísmo, renegando seus escritos e suplicando o perdão de Deus. Essa conversão final

seria objeto de duas estratégias narrativas distintas: ou bem ela seria usada para mostrar

que é impossível ser verdadeiramente ateu e libertino, resistindo no interior de cada

coração a ideia inata de Deus, ou bem que mesmo o ateu verdadeiro encontra na morte o

limite de sua teoria31. Nos dois casos, é a situação-limite da morte que mostra a farsa

irracional (primeira estratégia) ou a fragilidade (segunda estratégia) da posição do ateu.

30 O teólogo chamava-se Christian Breihaupt, conforme citado por Jonathan Israel (2001, 298). Israel descreve diversos casos (os de Koerbagh, Bekker, Radicati, Du Marsais, Tindal, entre outros) que mostram que, nesse período, “freethinkers’ deathbed scenes [....] were of great significance and generally bitterly contested” (idem, ibidem). O capítulo do livro de Israel onde encontramos a análise dessas narrativas, intitulado “The Spread of a Forbidden Movement” trata da disseminação do spinozismo pela Europa no começo do século XVIII; seu primeiro item é significativamente intitulado “The Death of a Philosopher” (2001, 295).31 Sobre essas duas estratégias, cf. Israel (2001, 299-302).

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Em ambos, portanto, é a força ou a coerência da razão que encontra, no limite da morte,

uma prova definitiva.

2.3. O monstro: figuração do impensável na filosofia de Kant:

Ao contrário do que as apropriações mais recentes do tema podem sugerir, o

monstro é um problema clássico na história da filosofia. É verdade que os últimos cem

anos não pararam de recriá-lo no horizonte simbólico, político e filosófico,

especialmente a partir da Segunda Guerra. Ainda escutamos, apreensivos, as palavras de

Heidegger em Die Ursprung des Kunstwerkes que, retrospectivamente, parecia

pressagiar, ainda em 1935, os desmandos do Führer: nesse texto, o monstruoso estaria

no fundo do que é insuspeito, à espreita e à espera de uma escuta redentora. É assim que

a afirmação, em uma de suas passagens mais conhecidas, segundo a qual “aquilo que é

familiar [geheuer] é, no fundo, monstruoso [un-geheuer]” se complementa poucas linhas

abaixo quando se revela, enfim, que “a verdade [Wahrheit] é, em sua essência, não-

verdade [Un-Wahrheit]” (HEIDEGGER, 1980, p. 40). As análises mais recentes de

Foucault (1999), Derrida (2008) e Žižek (2009) sublinham os desdobramentos

históricos, políticos e éticos da tese heideggeriana.32 Mas esse corpus monstrorum, que

fez do estranho e do impróprio, o limite próximo e difícil do próprio pensamento, talvez

pertença a uma dinastia mais antiga. Isso não significa afirmar, por outro lado, que entre

nós e a Górgona de Homero ou o incubus e o succubus de São Tomás33 haja uma longa

e contínua linha reta. A hipótese a ser avaliada nesse ponto da pesquisa é a de que a

economia da monstruosidade com a qual estamos ainda lidando – assim como todos os

seus duplos: a Besta, o Estrangeiro, o Anormal – é constitutiva de uma ruptura

32 No extremo oposto dessas análises, em geral, as abordagens filosóficas do problema do Monstro parecem repousar na mesma intuição: a de que nosso fascínio contemporâneo com sua figura, ilustrada nos produtos da indústria cultural, teria uma origem duplamente articulada – na natureza humana mesma e em sua historicidade. É nesse sentido que as considerações iniciais e prefácios de obras como as de José Gil (2006), Roberto Romano (2003), das coletâneas Monster Theory (1996) e Monsters and Philosophy (2005), editadas, respectivamente, por Jeffrey Cohen e Charles Wolfe, apresentam uma espécie de antropologia como fundamento da racionalidade dos monstros. De minha parte, gostaria de dispor dessas duas dimensões horizontalmente, recorrendo a uma reconstrução histórico-conceitual, mesmo que ainda muito limitada, nos moldes da arqueologia de Foucault.33 Embora compreensivelmente desatualizada, uma das reconstruções históricas mais utilizadas na abordagem contemporânea da figura do monstro no pensamento ocidental, é a de Ernest Martin, Histoire des monstres depuis l’Antiquité jusqu’à nos jours, publicado em 1880. É esse livro a fonte de muitas observações feitas por Foucault (1999) e Canguilhelm (1993). Sobre as Górgonas na literatura da Grécia antiga, cf. VERNANT (2007), especialmente pp. 1484-1491; e sobre os incubus e succubus de São Tomás, cf. VAN DER LUGT (2001), p. 195.

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epistemológica através da qual, desde o final do século XVIII, a racionalidade teve de se

confrontar com um Outro, ou um Avesso, com o qual mantem relações insólitas.

Essa ruptura parece se instaurar, portanto, justamente na obra de Kant, aquela

com a qual a modernidade procurou refletir sobre sua identidade.34 É toda uma nova

dinâmica de forças, todo um novo mapa de fronteiras conceituais e ideológicas que se

desenha nessa obra. Não mais a visualidade aberrante do Erro, e, portanto, do Mal,

explícita o suficiente para permitir, ainda ao século XVII, que o Monstro pudesse ser

iluminado e reconhecido pelos seus signos. As “formas bizarras e extraordinárias” das

sereias e dos sátiros representados pela imaginação mais febril de um pintor, por mais

confusas que sejam, lembra Descartes na Primeira Meditação, podem sempre

reencontrar sua ordem no quadro da natureza através do exercício da razão. No fundo de

seu hibridismo, resta sempre um resíduo da racionalidade do mundo: afinal, o pintor

depende irremediavelmente das formas, ou ao menos das cores, pertencentes a uma

mathesis cujos rastros o espírito tem de perseguir (cf. DESCARTES, 1996, p. 15). Em

Kant, algo totalmente diferente se impõe. Ao longo de sua obra, o Monstro, o

Ungeheuer, se torna cada vez mais opaco e, ao mesmo tempo, mais próximo. Ele já não

habita o domínio clássico do erro, da confusão e da falta, mas o do dogmatismo, do

inabordável e do excesso.

O século XVI é o século dos monstros. A descoberta do Novo Mundo constituiu

um alargamento não somente dos domínios territoriais da velha Europa, mas, mais

fundamentalmente, de toda uma cosmografia que, forçada a rever os cânones de

Aristóteles e Plínio, se deparava, pela primeira vez em mais de um milênio, com “coisas

sem nome” (cf. FINDLEN, 2006, pp. 448 3 ss.). As fartas ilustrações dos relatos de

viagem da época testemunham algo diverso daquilo que se via nos mapas medievais.

Nesses, as representações de figuras monstruosas, desenhadas sempre no extremo – no

mar do Norte, no leste da África – assinalavam um limite indecifrável, oposto ao centro

cristão: guardavam, portanto, as portas demoníacas do fim do mundo (cf. MITTMAN,

2006, pp. 45-59)35. Os monstros que, a partir do século XVI, povoam os mapas de um

oceano mais vasto, mas mais familiar, bem como de terras insólitas, mas cartografáveis,

34 Não discutirei aqui o tema, tão vasto quanto equívoco, da função de Kant na autoreflexão da modernidade. Limito-me a enviar aos argumentos de Foucault (1994), pp. 562-578 e 679-688 e a meu artigo “Ressonâncias de um projeto filosófico: Foucault lê Kant” (2011).35 Em uma sugestiva passagem, José Gil identifica esse limiar topográfico como um “lugar-limite” presente tanto nos confins das terras representadas nos mapas quanto na acentralidade recôndita dos gárgulas das catedrais, das pinturas bestiais nas margens dos livros, nos interstícios entre imagens de santos (cf. GIL, 2006, p. 58).

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habitam, antes, um começo de mundo. Nesse espaço recém-esquadrinhado, o monstro

assume uma característica até então ausente em sua simbologia: a transitividade. Se sua

paradoxal existência incorpora, na natureza mesma, a contradição de suas leis, essa

confusão da mathesis é capaz de contaminar toda ordem à sua volta. A mera descrição

do monstro já bastaria para despertar o temor de seu ouvinte ou leitor.

Precisamente esse modelo clássico do Monstro é que encontramos ainda, de

passagem, em um dos textos de Kant de seu período pré-crítico, seus Träume eines

Geisterseher, erläutert durch Träume der Metaphysik, de 1766. Na segunda parte do

livro, após condenar as elocubrações místicas de Swendeborg, Kant o repreende,

também, por guardar em seu gabinete de curiosidades naturais não apenas espécimes de

animais com “forma natural [natürlicher Form]”, mas “abortos [Missgeburten]”, fetos

deformados. Isso porque, retomando a prudência exigida por Malebranche, ele teme que

uma mulher grávida possa, diante do monstro, sofrer uma profunda “impressão

{Eindruck]” (Ak II, p. 366)36.

Uma economia mais complexa da luminosidade parece se impor no período da

Crítica. Nesse segundo modelo, o Monstro é algo um pouco mais perigoso que uma

aberração de formas confusas. É nesse sentido que o uso desse substantivo e dos

adjetivos que são derivados dele, desde a década de 1780, já não exprimem mais a não-

conformidade com uma ordem estabelecida qualquer, mas com o próprio fundamento da

ação moral. Uma das primeiras ocorrências nesse sentido parece ter sido apresentada

por Kant em suas Vorlesungen über die philosophische Religionslehre, ministradas,

provavelmente, entre 1783 e 1786. Ali, aquele que se comporta sem se orientar segundo

fins [Zwecke] é identificado como “um animal ou um monstro [Thier, oder ein

Ungeheuer]” (Ak XXVIII, p. 1011). O que está em jogo nessa afirmação, portanto, não

é a ausência de ordem – afinal, os animais e, talvez, por extensão, os monstros, não

parecem prescindir dela – mas, antes, a ausência de lei. A segunda Crítica repetirá essa

compreensão, acrescentando a ela sua consequência lógica: a monstruosidade, cega para

os fins últimos da espécie humana – cega, assim, para o teísmo moral que Kant defende

no livro – no momento mesmo em que é pressentida, anuncia uma contradição interna,

já que ações sem fim estão fora do domínio transcendental da filosofia da natureza. Que

o inapresentável se apresente – mesmo que não completamente, ou que sua figuração 36 Kant, no entanto, não divide com Malebranche a opinião de que as impressões visuais são capazes de produzir no cérebro afecções de tal ordem que resultariam em um alteração física formalmente análoga a elas. Em uma nota do texto sobre Swedenborg, ele se limita a defender uma teoria dos signos [Zeichen] em que estes seriam capazes de promover nos nervos uma “agitação [Reizung]” cujo movimento seria semelhante ao das sensações (Ak II, p. 326).

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plena seja impossível – é justamente o que caracteriza o Monstro. Sua presença constitui

uma rasura no quadro da Razão. O Monstro e o Místico voltam aqui a se encontrar, mas

não mais graças à deformidade que lhes seria própria, como Kant ainda notava em 1766,

mas à informidade, à ameaça, que ambos concretizam, de submergir o sujeito,

“patologicamente”, na “desrazão ou na loucura [Unsinn oder Wahnsinn]” (Ak V, pp.

120-121).

Será preciso avaliar em que medida a emergência desse novo modelo de

monstruosidade em Kant – e de suas relações equívocas com a Razão – se manifestam,

por exemplo, no lugar mesmo onde o informe assume uma função filosófica até então

insuspeita, ou seja, na Analítica do sublime da terceira Crítica. O silêncio a que toda a

reflexão do idealismo transcendental condena o monstro encontra-se aqui em um limite,

pois, em alguma medida, é a violência do informe que serve de condição, ainda que

negativa, para a compreensão da destinação do homem. Com isso, a monstruosidade

revela uma dimensão política que, embora tratada por Kant de modo elíptico, não deixa

de ser importante para a compreensão de seu projeto de Aufklärung.

3. Estrutura e Metodologia:

De acordo com as hipóteses erguidas acima, a pesquisa proposta articula se

articula em dois níveis. Em primeiro lugar, uma investigação de caráter mais horizontal,

onde seriam debatidos os contornos gerais do sistema ao mesmo tempo teórico, político

e simbólico através do qual o século XVIII tensionou a ideia de limite antropológico e a

ideia de alteridade radical. Nesse ponto, as pesquisas de Michel Foucault37 em torno da

constituição da identidade moderna e os confrontos com seus duplos, desenvolvida

sobretudo em As palavras e as coisas, podem fornecer uma série de procedimentos de

leitura importantes. Considerando, assim, horizontalmente, o recorte historiográfico e

evitando o uso de categorias de análise comprometidas com universais antropológicos –

que, afinal, são objetos dessa mesma análise –, seria possível promover uma

investigação orientada, o menos possível, pelo privilégio do discurso da racionalidade.

Com isso, é a própria razão que se apresenta sob novas perspectivas.

Em segundo lugar, esse trabalho mais amplo se complementa significativamente

pelos estudos de caso apresentados. Nesses, uma leitura exegética conduziria o

37 Cf. FOUCAULT, M., Les mots et les choses. O capítulo IX do livro, “L’homme et ses doubles”, é, sob esse aspecto, o mais significativo.

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horizonte mais amplo do século XVIII às condições de sua realização enquanto

experiência – cultural, mas, mais especificamente, de pensamento. Não se trata aqui,

contudo, de uma fenomenologia da alteridade. O que se pretende, antes, é identificar os

nexos de continuidade entre a particularidade e a universalidade do Outro no século das

Luzes, sublinhando as transformações operadas em torno do sentido da racionalidade na

passagem entre esses dois níveis. A experiência é abordada, portanto, não como

condição matriz de inteligibildade do mundo, mas como efeito histórico. Ao

investigarmos os textos de Diderot, procurando assinalar a questão, apenas

aparentemente paradoxal, da cegueira como ponto de vista – assim como no caso dos

textos de Hume (ou sobre ele) e o problema da morte, ou de Kant e a representação do

Ungeheuer – não se pretende afirmar que a experiência do Outro se sobrepõe à do

Mesmo da Razão, mas, de modo mais complexo, que Outro e Mesmo constituem-se

aqui, mutuamente, enquanto experiência historicamente determinada.

Pode-se notar, com isso, a importância do aspecto histórico e historiográfico na

constituição das hipóteses da pesquisa. Se, por um lado, evidentemente, não se trata de

esgotar o problema da historicidade da razão, por outro, um certo número de trabalhos

históricos – capazes de relacionar aspectos conceituais a aspectos materiais e culturais –

nos permite evitar a universalização do sentido da filosofia na modernidade. Os

problemas erguidos por Robert Darnton, Roger Chartier e Jonathan Israel podem ser

citados como exemplos dessa abordagem, embora uma avaliação mais detalhada do

conjunto bibliográfico nesse sentido seja parte da execução do projeto. Esses trabalhos

circunscrevem, assim, um recorte histórico-conceitual que baliza os desenvolvimentos

da pesquisa e, colocados sob o mesmo estatuto epistemológico que o discurso filosófico,

acabam por evidenciar complexidades antes insuspeitas no processo de construção da

identidade da racionalidade modernas.

4. Resultados planejados e cronograma:

O projeto se propõe a executar no prazo de vinte e quatro meses, com previsão

par seu início em janeiro de 2013, os seguintes itens:

a) Organização de dois colóqios , um a cada ano da pesquisa, com a presença de

pesquisadores estrangeiros e brasileiros. O primeiro deverá ocorrer no primeiro

semestre do 2013. Alguns professores já foram contactados e manifestaram interesse em

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participar do evento, como os professores Cláudio Costa (UnB), e estão apenas

aguardando a confirmação das datas definitivas. O segundo deverá ocorrer no primeiro

semestre de 2014;

b) Organização de dois mini-cursos, um a cada ano da pesquisa. O primeiro deles já está

agendado, sob condição de aprovação da pesquisa, para o começo de junho de 2013,

quando o professor Charles Ramond, da Universidade Paris VIII, já confirmou a

disponibilidade para um encontro de três dias nesse período. O segundo mini-curso

deverá ocorrer ao final de 2014;

c) Publicação, por parte dos professores envolvidos no projeto, de ao menos um artigo

relacionado ao seu tema a cada ano da pesquisa;

d) Constituição de um grupo de pesquisa junto aos estudantes de graduação e pós

envolvidos no projeto, com encontros mensais e reuniões periódicas de apresentaçao de

resultados;

e) Participação dos alunos envolvidos no projeto em congressos relacionados ao tema.

5. Contribuições científicas da proposta:

A realização dessa pesquisa visa dar os primeiros passos para o estabelecimento

de um grupo permanente de pesquisa sobre a história da filosofia do século XVIII no

Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, além de pesquisadores que, de forma individual,

dedicam-se a estudar autores isolados desse período, não há um trabalho conjunto de

pesquisadores voltado para o tema na sua abrangência histórica mais ampla. Essa lacuna

manifesta-se concretamente tanto na baixa produção na área (artigos, livros e

congressos) quanto na ausência de muitos dos autores e temas dos currículos dos cursos

de Graduação e de Pós-Graduação em filosofia no Estado do Rio, ao contrário do que

ocorre em outros lugares (especialmente em São Paulo e em Minas Gerais). Do ponto

de vista dos professores, esse projeto viabilizaria a constituição de uma rede de

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pesquisas, ainda que de modo embrionário. Os alunos de graduação teriam

oportunidade, assim, de participar de um projeto de pesquisa envolvendo outros

pesquisadores – o que, normalmente, não é a característica de bolsas como a de

Iniciação Científica. Os alunos da pós, por outro lado, teriam uma oportunidade mais

sistemática de discutir suas pesquisas – vinculadas ao projeto, mas também às suas

dissertações e teses.

6. Membros da pesquisa:

a) Coordenadores:1. Prof. Fabiano de Lemos Britto (professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UERJ);2. Prof. Ulysses Pinheiro (professor Associado do Departamento de Filosofia da UFRJ);

b) Alunos:Carmel da Silva Ramos (aluna da graduação, bolsista de Iniciação Científica, UFRJ)Charles Antonio Moreira (aluno de graduação em Filosofia, UERJ)Daniel de Oliveira Netto (aluno de graduação em Filosofia, UFRJ)Eduardo Eudes Prazeres Lopes Junior (aluno de graduação em Filosofia, UFRJ)Marcelo Martins Mourão (aluno de graduação em Filosofia, UERJ)Victor Galdino alves de Souza (aluno do mestrado no PPGLM/ IFCS)

7. Bibliografia:

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