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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 55-79, jun. 2006. 55 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E FICÇÃO Fabio Herrmann * RESUMO O presente artigo trata do futuro da Psicanálise; em primeiro lugar, se terá ou não futuro. A discussão traz à baila problemas nodais de sobrevivência: tecnologia versus ficção (Freud, pensador por escrito), pseudoconhecimento e fatores teóricos ignorados, extensão ou encolhimento da clínica etc. Baseia-se nas notas e redação do capítulo introdutório de A Psique e o Eu (Herrmann, 1999). Palavras-chave: Futuro da Psicanálise. Epistemologia psicanalítica. Método interpre- tativo. Psicanálise e ficção. Este artigo reúne diversos excertos do capítulo de introdução ao livro A Psique e o Eu (Herrmann, 1999), a qual o leitor não tem mais que consultar, e aos demais capítulos, caso lhe interesse seu desenvolvimento. Também, ainda que embrionariamente e sem uma nomenclatura precisa, encontrará aqui a noção de análogo da Psicanálise, ou seja, a função especial desempe- nhada pela ficção, que equivale à das matemáti- cas na Física. Do ponto de vista clínico, este texto não é carente de interesse também, já que trata da extensão da prática às condições do real humano, para lá da análise convencional de consultório, o que viria, posteriormente, a denominar clínica extensa. Por fim, este artigo tematiza um assunto de interesse geral: sobreviverá a Psicanálise, ou nós a conseguiremos destruir, por atos e omissão de criatividade? Psicanálise, ciência e ficção (1999) 1 Para a saúde da ciência futura, que terá de optar entre ser tecnologia ou saber, entre a propa- * Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP e Professor da PUC. 1 Foram acrescentadas notas e atualiza- das as referências bibliográficas.

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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(70): 55-79, jun. 2006. 55

PSICANÁLISE, CIÊNCIA E FICÇÃO

Fabio Herrmann*

RESUMO

O presente artigo trata do futuro da Psicanálise; em primeiro lugar, se terá ou nãofuturo. A discussão traz à baila problemas nodais de sobrevivência: tecnologia versusficção (Freud, pensador por escrito), pseudoconhecimento e fatores teóricos ignorados,extensão ou encolhimento da clínica etc. Baseia-se nas notas e redação do capítulointrodutório de A Psique e o Eu (Herrmann, 1999).

Palavras-chave: Futuro da Psicanálise. Epistemologia psicanalítica. Método interpre-tativo. Psicanálise e ficção.

Este artigo reúne diversos excertos docapítulo de introdução ao livro A Psique e o Eu(Herrmann, 1999), a qual o leitor não tem maisque consultar, e aos demais capítulos, caso lheinteresse seu desenvolvimento. Também, aindaque embrionariamente e sem uma nomenclaturaprecisa, encontrará aqui a noção de análogo daPsicanálise, ou seja, a função especial desempe-nhada pela ficção, que equivale à das matemáti-cas na Física. Do ponto de vista clínico, este textonão é carente de interesse também, já que trata daextensão da prática às condições do real humano,para lá da análise convencional de consultório, oque viria, posteriormente, a denominar clínicaextensa. Por fim, este artigo tematiza um assuntode interesse geral: sobreviverá a Psicanálise, ounós a conseguiremos destruir, por atos e omissãode criatividade?

Psicanálise, ciência e ficção (1999)1

Para a saúde da ciência futura, que terá deoptar entre ser tecnologia ou saber, entre a propa-

* Membro Efetivo e Analista Didata daSBPSP e Professor da PUC.1 Foram acrescentadas notas e atualiza-das as referências bibliográficas.

Fabio Herrmann

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ganda e a hesitação, é desejável poder-mos contar com a existência de umateoria da alma que, mal parodiandoCastoriadis (1978), possa vir a conside-rar-se ciência. O requisito mínimo paratal psicologia seria, espera-se, o de nãocontentar-se em solucionar o problemada psique por simples eliminação, substi-tuindo-a por comportamento emocionalou por atos cognitivos, sob o pretexto detornar a psique verificável, testável,comprovável ou qualquer coisa do gêne-ro. Resolver um problema mudando deassunto não é difícil. Mas as conseqüên-cias, nesse caso, são inequívocas: a recu-sa em fazer face à questão do psiquismoprecipita a confusão final entre tecnologiae ciência e entre informação e conheci-mento, mal que tem vitimado parte daprodução intelectual de nosso século. Ointeresse extremo que ainda hoje desper-ta a Psicanálise vem em grande parte dofato de ser esta a mais forte candidata àposição de teoria científica da alma, es-trategicamente colocada como está entreFilosofia, Psicologia, Medicina e Literatu-ra. Talvez venha a surgir alguma outraforma de psicologia mais apta a cumprir opapel; já houve promessas: a conjugaçãode fenomenologia e Gestalt, por exemplo,prometia muito. É preciso esperar. Porenquanto, a Psicanálise reúne as melho-

res aptidões ao posto e, mesmo que não ovenha a preencher pelos azares da dispu-ta científica, continuará a ser a fonteprincipal dos tratamentos psicoterápicosdisponíveis e uma especulação de longoalcance sobre o homem2.

Nascida nos fins do século XIX, aPsicanálise completou cem anos de exis-tência; que se pode esperar então de seufuturo, no próximo milênio? As ciênciascostumam crescer devagar e durar muito,tanto tempo pelo menos quanto resiste acultura em que nasceram. Mas será umaciência a Psicanálise, uma árvore grossae bem copada, com fundas raízes, ou umcapinzal que se espalhou vertiginosamen-te pelo solo de nossa cultura, mas quepode desaparecer sem deixar vestígio?

Inclino-me a pensar que a nossa éuma situação média, nem peroba nemgrama, nem provisória técnica terapêuti-ca, à espera da solução bioquímica dadoença psíquica, nem ciência completa.Como ciência, falta-nos alguma coisaessencial. E não é a ausência de compro-vação empírica, nem mesmo o carátersingular de nossas conclusões clínicasque constituem o empecilho para em sãconsciência reivindicar o título de ciência.Que por essas razões a teoria do conhe-cimento hoje dominante negue à Psicaná-lise estatuto científico é bastante com-

2 Ao contrário, é menos provável que possa manter indefinidamente seu rito de exclusão — que sustentaa seleção de analistas e de escolas —, baseado em regras de moldura clínica, standards de formação e escolasdominantes. Ele nos traz dois problemas sérios: afasta de nossa área pessoas e formas de conhecimentode grande valor e tende a transformar-se em autodefinição de nossa disciplina, de nossas instituições e dospsicanalistas: constituir-se por diferença não é apenas antipático, é perigoso.

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preensível: completa como pode vir a ser ouincompleta como ainda é, a Psicanálisepode esperar com tranqüilidade que seinvente uma epistemologia à sua medida. Oóbice fundamental para dizer-se da Psica-nálise uma ciência reside, a meu ver, naparcialidade com que encara seu próprioobjeto. Numa palavra, a Psicanálise nãoocupa ainda o espaço inteiro a ela reservadopor direito de origem, não preenche o hori-zonte de sua vocação3.

É de Althusser uma sugestão inspi-radora sobre este problema: a Psicanáliseseria uma “teoria regional” que carece dacorrespondente “teoria geral”. Entretan-to, diferentemente daquele autor, nãoprefiguro a constituição de uma “teoriageral do discurso”, à qual se iria filiar aPsicanálise como um saber localizado eespecial, fosse este o do discurso terapêu-tico, fosse o do discurso do inconsciente. Aocontrário, a “teoria geral” requerida pelaPsicanálise atual, segundo imagino, deveser a própria Psicanálise, porém uma Psica-nálise generalizada, tanto em seus temas,que praticamente se centram hoje nas áre-as de interesse terapêutico, sem cobrir atotalidade da experiência psicológica dohomem, quanto em seu método, que haveriade preparar-se para esta última e decisiva

extensão, uma Psicanálise coextensiva aohorizonte de sua vocação. Esta idéia exigeexplicação, naturalmente, mas uma conclu-são inicial já se pode adiantar: para que aPsicanálise sobreviva longamente e bem,para que produza todos os frutos que dela seesperam, é forçoso que se transforme na-quilo que é por vocação, completando otodo de que a obra de Freud é a semente, aantecipação de sua forma geral, talvez sepudesse dizer: os prolegômenos.

É certo que não somos ainda tudoisso, mas como seremos nós quando (ou se)o formos? A direção em que pode progredirda situação de incompletude presente rumoao desejável estado de inteireza envolvediversas batalhas numa frente muita ampla:é necessária uma rigorosa recuperaçãocrítica do próprio método psicanalítico, quese confundiu depois de Freud com o dotratamento clínico; também é de esperar-seuma generalização das teorias metapsicoló-gicas que venha a dar conta das condiçõespsíquicas não individuais, sem prejuízo doaprofundamento da própria especulaçãoteórica sobre a psicopatologia individual e aposição da consciência; nem se pode dis-pensar a análise do real humano, lugar ondea Psicanálise encontra as demais ciênciasdo homem4; por fim, há que ser ampliado

3 Esta expressão — horizonte de sua vocação — diz respeito à idéia de a Psicanálise vir a se tornar umaciência geral da psique (Herrmann, 2001b, capítulo 1: “O momento da Psicanálise”).4 Uma generalização da Psicanálise de extensão e profundidade suficiente para a transformar em ciênciageral da psique — mantendo ou não o nome psicanálise — deveria não apenas confrontar seus limites comoutras ciências do homem, porém verdadeiramente incluir certas formas de interpretação, praticadas porelas, que participam da mesma vocação crítica da ruptura de campo. A título de exemplo, o Adorno dasMinima moralia deveria a rigor vir a ser contado entre tais psicanalistas, lato senso, pese a que afirme numadelas: “Na Psicanálise nada é verdadeiro a não ser seus exageros”.

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o espectro de temas que se considerampsicanalíticos, hoje ainda limitados quaseapenas àqueles que Freud pessoalmenteabordou. Um exemplo mais ou menosóbvio, tratado de passagem numa nota daPsicanálise do quotidiano: “Seria tal-vez demasiado exigir de Freud que, alémde convencer o leitor das complexas ra-zões psíquicas subjacentes ao esqueci-mento do nome do pintor Signorelli, comque abre seu livro (A psicopatologia davida quotidiana), também o pretendes-se convencer de que toda e qualquercorreta lembrança de um nome segueprovavelmente caminho tão estranho e deigual complexidade” (Herrmann, 2001b,pág. 273, nota 51). E no entanto tudoindica que assim deva ser, que, submetidoà interpretação psicanalítica, o processoassociativo normal não difira grandemen-te daquele que surge ao dissecarmos oscaminhos tomados por um ato falho ousintoma. Sucede, porém, não ser esta apraxe psicanalítica; sem muita reflexão,usamos a Psicanálise para a exceçãopatológica e uma psicologia comum paraos rendimentos normais. Uma Psicanáli-se que venha a cobrir todos os casosenglobados pelo horizonte de sua voca-ção de ciência da psique não pode eviden-temente ter por fronteira a exceção pato-lógica ou a situação terapêutica, nemmuito menos o sujeito singular, mas temde preparar-se para ser uma Psicologiacompleta do indivíduo, da coletividade e

sobretudo da psique do real — o reino dosentido humano que constitui, a rigor, omundo em que vivemos.

Dentre os limites a superar, existeum, muito peculiar e até curioso, que afetao analista em sua atividade clínica. Aolongo da história de nossa prática, temosestado pouco à vontade em nossos con-sultórios, como se nos estivéssemos apro-priando de uma ação que não é completa-mente nossa. Certos maneirismos repe-tem-se automaticamente, repete-se umaforma de dizer, de portar-se, até de trajar-se para o trabalho. Estamos com certezaimitando alguém, e não é difícil adivinharquem. Mesmo a produção teórica ressen-te-se disso. Ou nossos trabalhos são co-mentários das idéias freudianas, ou rom-pem em demasia com elas e tomam umsetor da problemática psicanalítica comonovo ponto de partida, reduzindo o todo auma parte menor, como se se estivessealmejando um recomeço arbitrário — queprivilegia só os instintos e a metapsicolo-gia, só as relações de objeto, só o pensa-mento, só a prática clínica etc. —, proces-so a que chamei, noutra ocasião, de as-sassinato metonímico da Psicanálise5.

Existe causa para isso, na verdadeduas causas. A primeira é a mais surpre-endente. Freud foi antes de tudo umescritor, muito mais que conferencista,professor ou até mesmo terapeuta. Elepensava por escrito e escrevia boa ficção,mesmo quando fosse ficção científica —

5 Interpretação: a invariância do método nas várias teorias e práticas clínicas, conferência realizadadurante o Congresso da Federação Psicanalítica da América Latina, São Paulo, 1988 (Herrmann, 1989).

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num sentido que não se confunde, salvopor maldade, com o gênero literário quese havia de criar nos meados do séculoXX. Suas histórias clínicas são literaturade primeira água, mas sua teoria da soci-edade e da cultura, sua descrição dopsiquismo e do destino humano formamum conjunto respeitável de ficçãoespeculativa, como raramente se encon-tra na Filosofia, na Física teórica e atémesmo na Literatura. Ora, entre tantascoisas que inventou Freud, o escritor,estamos justamente ele e nós, bem comoa Psicanálise e o movimento psicanalíti-co. Ele se soube criar por escrito como“pai da horda primitiva” — e quem nega-ria a força literária da imagem? E criou-nos, a nós, psicanalistas praticantes, comopersonagens de sua obra. Os dramas dospioneiros e discípulos, o segredo dos anéis,a ascensão e derrubada do herdeiro aria-no, o isolamento esplêndido, a epopéia daconquista do mundo científico são emlarga medida um enredo literário; nãomenos, cumpre notar, o analista atual,sentado em sua poltrona diante de umdivã, escapa desse destino. Como pode apersonagem questionar a obra de que fazparte? Assim, um pouco canhestramente,aceitamos o ritual prescrito; o tempo arbi-trário da sessão, o número e a forma dasmesmas, até os tiques e jargões que pen-samos haver herdado de nossos analistasdidatas, são na verdade o caráter dapersonagem literária por excelência cria-da por Freud: o psicanalista. As diferen-ças, mínimas aliás, vão por conta do jeito

de cada um e de seu grupo, mais ou menoscomo muda um pouco a personagem deum livro quando este é transformado emfilme: o analista didata é no máximo umdiretor, mas o script já estava montadomuito antes que qualquer candidato oprocurasse.

A outra causa disso a que poderí-amos chamar em conjunto alienaçãointerna da Psicanálise — a dificuldadedos analistas em se sentirem plenamenteautores de sua clínica e de sua produçãoteórica, característica, a propósito, quecostuma separar ciência de doutrina —foi o obscurecimento do método psicana-lítico, em parte confundido com a técnicade consultório, em parte com as teoriasmais bem admitidas e mais tradicionais.Por método, entenda-se a forma geral daprodução psicanalítica, tanto na investi-gação teórica, quanto nos estudos con-cretos de configurações psíquicas indivi-duais e culturais, isto é, o método inter-pretativo. Nosso método parece estarenvolto em brumas de mistério, comouma casa assombrada — assombrada, nocaso, pelas grandes figuras da disciplina,por Freud e pelos chefes de escolas, mastambém pelas figuras teóricas, das quaiscada grupo costuma dizer: “Sem isso ouaquilo, sem après-coup ou sem identifica-ção projetiva, não se pode já falar emPsicanálise”. A relação entre teorias emétodo é muito complexa para que adiscutamos aqui; mas o importante, dequalquer modo, não é a assombração,senão a bruma que nos impede de dizer

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com clareza que vem a ser uma interpre-tação6.

Em essência, propor uma interpre-tação significa geralmente mostrar quecerto conjunto de idéias, de falas, decomportamentos, de emoções, de fatossociais etc. significa algo diferente do queparecia manifestar, daí a expressão usual“conteúdo manifesto”. Como se faz parao provar? Em geral, o analista, acuado poruma pergunta simples como esta, recorrea expressões do tipo intuição, vivênciaemocional, metáfora, teoria. Com isso,diz-se aproximadamente que uma intui-ção de sentido evocou certa vivênciaemocional na dupla analítica, a qual mos-tra que os ditos do paciente eram naverdade uma metáfora de certa teoriacanônica, do complexo de Édipo, porexemplo. Não parece mau, em princípio,mas há problemas nesta definição. Paracomeçar: de onde vem a intuição? Se vemda teoria, estamos diante de um casomodelar de petição de princípio, a premis-sa repetida na conclusão. Se vem daprópria vivência emocional, já se trata deum clássico exemplo de sugestão, nossapraga epistemológica maior, pois a vivên-cia emocional produz uma sensação deverdade a que é impossível a intuição

resistir. Se a intuição vem de si mesma,como não é raro escutar, há que conside-rar ser a intuição algo como o cheiro deuma cor: porventura guia o pintor numapincelada, mas não dá sentido ao quadro.O mais comum, segundo tenho observadona escuta de trabalhos clínicos, é vir aintuição da própria metáfora, ou melhor,da perspectiva iminente de uma metáforaque dê sentido ao conjunto das falas dopaciente, conjunto que se pode traduzirentão, ponto por ponto, nos termos dateoria, enquanto a vivência emocionalconfere-lhe credibilidade e certa eficáciaprática. À parte o fato de não estarmostratando aqui propriamente de metáfora,mas de alegoria7 — figura retórica devalor duvidoso —, descontando ainda adificuldade de operar por vivências emo-cionais quando se trata de psicanálise dacultura, é preciso pelo menos argüir quemetáforas, como diz o nome, apenasabrem caminho para o conhecimento,levam-no adiante, mas não provam oresultado.

A contribuição que a Teoria dosCampos pode proporcionar à superaçãodesse obstáculo ao crescimento da Psica-nálise consiste exatamente numa investi-gação cuidadosa do método interpre-

6 Remeto o leitor ao meu livro Clínica psicanalítica: A arte da interpretação, especialmente a seu capítulo6 (Herrmann, 2003).7 Uma interpretação alegórica põe em paralelo duas histórias, das quais a segunda é o sentido correto daprimeira — por exemplo, as peripécias da Busca do Santo Graal representam passo por passo o caminhoda alma até Deus, ou, inversamente, o material de um paciente pode ser traduzido como representação decada figura ou tema do Édipo Rei. Já de uma metáfora, literária ou científica, espera-se um pouco mais —a saber, que, como a alegoria, ilumine algo obscuro ou problemático, mas que desempenhe esta função comvalor heurístico.

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tativo8. Partindo da evidência de que ométodo psicanalítico, empregado porFreud com naturalidade clássica, trans-formou-se num problema misterioso paranós, tivemos de esforçar-nos para o res-gatar de sua bruma, por meio de umareflexão às vezes árdua. Porém, sim-plificando um pouco o resultado, creiohaver uma resposta sensata para a ques-tão que nos ocupa agora, pese a que comderivações que — sou o primeiro emadmiti-lo — devem soar bastante insen-satas. E a resposta é: a interpretação nãoprova coisa alguma, ela apenas cria con-dições para que surja o sentido, sentidoeste que, para ter validade, deve serdiverso do da própria sentença interpre-tativa que o analista eventualmente hajaformulado. Interpretar é como partejar— espera-se que nasça um bebê e nãoque nasça um fórceps, que do pacientesurja um sentido, não que resulte o instru-mento teórico do analista. Esta é a idéiabásica da noção de ruptura de campo. Oanalista que interpreta, ao tomar em con-sideração o valor metafórico do discursodo paciente — ou, a propósito, de qual-quer recorte do real —, espera induzir(outra palavra obstétrica) uma rupturados pressupostos que limitavam seusentido, encarnados numa área psíquicatransferencial ou campo, provocando oestado de momentânea confusão chama-

do vórtice9, em que ressurgem repre-sentações que haviam sido proscritas daconsciência por estarem em desacordoou serem incoerentes com as regras da-quele campo em particular. Comparandoas qualidades de tais “representaçõesaberrantes”, é possível deduzir com algu-ma precisão qual a regra que as excluía,ou seja, a regra de organização do camporompido, que agora podemos conhecerrazoavelmente. Trata-se simplesmente deum método indutivo-dedutivo: a rupturade campo corresponde ao movimento deindução que evidencia uma nova repre-sentação eficaz; desta, deduz-se a estru-tura do sistema (campo) que a negava.Tal representação é confiável, porque oanalista não a criou ou sugeriu, mas sóabriu caminho para ela; enquanto a dedu-ção da regra é confiável porque limitou-sea buscar a fôrma estrutural da formarepresentacional. E se isso não é umademonstração científica aceitável, pelomenos no reino psíquico, então a Psicaná-lise deve resignar-se a ser arte ou ofício,mas dificilmente ciência.

Claro, esta é a parte boa das notí-cias. O preço a pagar por este elementarexercício de sensatez é considerável, cons-tituem-no as tais derivações insensatas,que são inúmeras. Tratarei de duas delaspor sua relevância epistemológica. A pri-meira é o próprio objeto de nosso conheci-

8 Tarefa a que foi dedicado o livro Andaimes do real: O método da Psicanálise (Herrmann, 2001a).9 Ver, sobre a noção de vórtice, Herrmann, 2001a, Parte Terceira, capítulo I. Resumidamente: entende-se, por vórtice, o estado de confusão que uma interpretação eficaz produz, aspirando as representaçõesperiféricas e negadas de um campo para o centro da consciência.

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mento, ou, para dizê-lo sem rodeios, oHomem Psicanalítico10, este ser que,como logo veremos, tem por carne eossos seu sentido e por hábitat e origem oreal humano, psíquico. A segunda deriva-ção importante para nosso tema será omontante de desconhecimento que é pre-ciso admitir, quando se trabalha com ométodo de ruptura de campo, pois nemsempre Freud explica…

Vamos por partes: o Homem Psi-canalítico. Por que psicanalítico? Sim-plesmente porque o objeto da Psicanálise— que nasce na clínica —, a psique, ohomem da psique, não é o homem inteiro,concreto, total. É verdade que não háciência que abarque o homem total, nemmesmo a Antropologia — onde se pensaapanhá-lo inteiro, ele escapa por uma dasportas de vai-e-vem da epistemologia dasciências humanas: natureza e cultura,sujeito e objeto, corpo e alma, infra ousuperestrutura etc. De qualquer modo,nosso objeto é que não poderia ser ohomem total. Primeiro, por ser este so-mente o psiquismo humano, o reino dossentidos e significados; segundo, porqueele é estudado através de um métodointerpretativo muito especial, como aca-bamos de ver, que só é confiável quandopõe seu objeto em movimento dialogal;terceiro, por ser constituída de campos apsique assim exposta, vale dizer, apreen-sível apenas em subconjuntos particula-res, circunstanciais, histórica e social-mente determinados. O Homem Psica-

nalítico é o ser do método da Psicanálise,transferencial e descentrado internamen-te, dividido e múltiplo no íntimo de suasoperações, este que aparece na sessãopor efeito da ruptura de campo: o HomemPsicanalítico é um ser da estranheza.

Porém, se cada uma das ciênciashumanas confunde, em certo momentode sua evolução, seu objeto com o homeminteiro e pugna por impô-lo às demais, quemal haveria em fazermos nós o mesmo?Creio que para nós o risco é mais sério,por não manejarmos tão-somente umoperador de conhecimento como outrasdisciplinas, em que a ilusão de totalidadeé de pequenas conseqüências imediatas,mas ao mesmo tempo um operador decura, uma ação concreta. Quer dizer:podemos criar de fato aquilo em queacreditamos. Quando o clínico confundeHomem Psicanalítico com homemconcreto, gruda-se à realidade, tentando,por exemplo, adaptar o paciente à vidasocial dominante, sem crítica da mesma,ou, ao contrário, propondo que a realidadepessoal deva seguir algum dos cânonespsicanalíticos, com o resultado prático deinduzir comportamentos egoístas, dejustificar implicitamente condutas pauta-das pela liberação emocional, de favore-cer o irracionalismo ou a racionalização,dois equívocos parecidos. O saneamentodesse desvio fático não é terrivelmentedifícil, mas é caprichoso, sobretudo por-que implica o reconhecimento dos direitosda ficção dentro da Psicanálise. Vamos

10 Cf. “O Homem Psicanalítico: identidade e crença” (Herrmann, 1983) e “Introdução” (Herrmann, 2001a).

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deixar clara a idéia: ficcional não significafalso, nem mesmo cientificamente me-nor, mas inserido num tipo de verdadepeculiar à literatura, que é em geral maisapropriada para a compreensão do ho-mem que a própria ciência regular. Fic-ção é uma hipótese que se deixou frutifi-car até as últimas conseqüências, antesde decidir sobre sua validade, é um instru-mento poderoso de descoberta, mas ten-de a capturar o investigador, que tambémé personagem dela, levando-o a crer quesua história é fato. Nem mesmo Freud,nosso inventor, escapou por completo àatração fática da clínica. Quando eledesenvolve sua teoria da relação do apa-relho psíquico com a realidade, temos aimpressão de que toma a realidade comofato posto, cumprindo ao psiquismo acatá-la, reconhecê-la, percebê-la no mínimo.Vem daí uma teoria da relação entrepsique e mundo que se poderia dizerperceptualista: a percepção da realida-de é a grande tarefa do psiquismo, quetem de evitar os erros causados peloprincípio do prazer que gere os instintos eas emoções deles decorrentes. É inegá-vel, por outro lado, que existe em Freuduma outra e diversa teoria da relação coma realidade, onde esta é essencialmenterepresentação ativa criada pelo sujeito,sendo o próprio mundo humano uma es-pécie de psique extensa, confrontada àpsique individual11. O legado desta teoriaimplícita, que norteia seus grandes histo-riais clínicos e as análises da cultura —

implícita, por oposição à teoria explícita,de matiz perceptualista, que aparece noProjeto, no capítulo sétimo daTraumdeutung, nos textos metapsico-lógicos, no Ego e o id —, será, a propósito,nosso ponto de partida neste artigo. Oshistoriais freudianos constituem grandeficção, saber literário, penetração naessência humana singular — e por estavia na humanidade que em cada qual denós reside. A ficção antropológicafreudiana é ciência fantástica realizadaem grande estilo. Certos textos doutriná-rios, posteriores ao Ego e o id, como “Anegação”, os ensaios sobre “Neurose epsicose”, o “Fetichismo”, as “Divisões doeu no processo de defesa”, assim comoalguns momentos privilegiados do Maisalém do princípio do prazer, podemcontar-se igualmente entre os subsídiosde uma ciência ficcional rigorosa doHomem Psicanalítico. A estreita vincula-ção entre nosso conhecimento e a ficçãoconstitui uma parte do preço a pagar —nada exorbitante, a meu ver — pelageneralização da Psicanálise como ciên-cia completa: seu objeto de conhecimen-to, o Homem Psicanalítico, não pode sero homem inteiro e concreto, mas umaficção verdadeira.

Penso que a ambigüidade represen-tada pelas teorias explícita e implícita darealidade habita o miolo mesmo daPsicanálise que leituras diferentes de Freudpermitem destacar. Explicitamente e porpropósito original, a Psicanálise foi

11 Esta análise encontra-se no capítulo 12 de meu livro sobre a psicanálise do quotidiano (Herrmann, 2001b).

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chamada a explicar os desvios da percep-ção correta do mundo. Os homens nãosão suficientemente racionais em seu jul-gamento da realidade, deixam-se levarpelas emoções, pelas paixões, pelaneurose; assim, surge uma discrepânciaque deve ser explicada: a diferença entreo desejável realismo e a indesejávelapreensão emocional que, por exemplo,faz ver perigos em situações inócuas ouque distorce os fatos em busca de prazer.Dentro desta visão simplista, a realidadeé um conjunto de fatos e coisas, confunde-se com materialidade, e a percepção nãoconstitui senão uma espécie de fotografiado mundo, que sai errada se se interpõe ofiltro colorido dos conflitos psíquicos entrelente e objeto. Realismo ingênuo costumachamar-se esse tipo de proposição. Aobuscar razões para o filtro emocional queproporciona uma imagem distorcida domundo, Freud, porém, foi derivandoinsensivelmente numa direção de inícioimprevisível. Ainda que explicitamenteestivesse à procura de explicação para asexceções à racionalidade da percepção,acabou por construir um sistema depensamento que refuta cabalmente todae qualquer ingenuidade perceptualista.Inexiste percepção não emocional domundo, por um lado, e, por outro, a reali-dade mesma mostrou ser uma complexae mutável construção subjetiva. Ou, parasituar com economia o paradoxo, arealidade para a Psicanálise é em si mesmamuito pouco realista.

Vem daí a ambigüidade a que hápouco me referia. Em nossa disciplina

convivem as duas posições: explicita-mente, realismo ingênuo e a idéia de umadistorção subjetivo-emocional, implicita-mente, uma teoria do real que sustenta sera realidade pura representação — o quesignifica que nos falta sempre o termo decomparação absoluto para julgar asdistorções, mas não que estas deixem deocorrer — e o real, uma espécie de psiqueembrenhada no mundo, em paz ou emguerra com a psique do sujeito individual,mas sempre humana no que concerne àPsicanálise. Este real demasiado humano,logo absurdo, domina vasta porção dopensamento do século XX, que haverá deser conhecido, ao que tudo indica, como oséculo de Kafka, seu intérprete mais lúcido,objetivo e, portanto, realista — uma épocamarcada pela crise aguda da noção derealidade, desafio cuja resposta justaconsiste provavelmente numa atitudeepistemológica de descrença relativa,solução do confronto entre objetividadetecnológica e ceticismo niilista.

A segunda prestação, por assimdizer, do preço a pagar pela Psicanáliseno cumprimento de seu horizonte devocação, o montante do desconhecimen-to que nos cumpre aceitar, não é tãodiferente desta primeira, pensando bem.É até um pouco embaraçoso tratar doassunto do desconhecimento na Psicaná-lise, pois os psicanalistas estão sempreprontos a admitir que sabem pouco ou quenada sabem, talvez pressurosos demaisem admiti-lo. A verdade é que descobri-mos muita coisa acerca da alma humana,bem mais do que a Psicologia e a Psiqui-

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atria sonharam desvendar; apenas nãosabemos aquilo que pensamos saber. Porexemplo, se nosso conhecimento é essen-cialmente provido pela ruptura de campo,então devemos encarar de frente o fatode que cada bocado de saber alcançadopor nosso método diz respeito a um cam-po psíquico — a um complexo inconsci-ente, usando a expressão de Freud —mas que não temos meio algum de reunira totalidade dessas descobertas numateoria monolítica. O inconsciente, a uni-dade total, é o nome que se dá a umaabstração, ao conjunto de todos os cam-pos possíveis. Por conseguinte, qualquerdiscussão de princípios, em que um ana-lista diz ao outro: “Para mim, o essencialdo inconsciente é isto (o complexo deÉdipo, os mecanismos da posiçãoesquizoparanóide, a cesura, a repressãoetc.)”, carece de sentido, não apenas pelaarbitrariedade do argumento, mas princi-palmente pela inexistência do objeto refe-rido, a substância inconsciente unitária.Mesmo que, por um artifício duvidoso,colocássemos no mesmo plano todos osfragmentos de saber a respeito dos cam-pos do inconsciente, como uma coleçãode objetos sobre a mesa, ainda assim nãosaberíamos dizer qual a relação exata

entre eles, pois é seguro que, entre oobjeto B e o A, existiria uma centena deobjetos I (I de ignorados), cuja omissãoinviabilizaria qualquer proposição positivasobre o organismo anímico12. Teoriasgerais, nesse caso, são especulação ficci-onal: úteis, utilíssimas para evidenciar aextensão do desconhecimento, mas difi-cilmente probatórias. Analogamente, naordem genética, é preciso reconhecerque nenhuma ruptura de campo podecomprovar que o bebê pensa dessa oudaquela forma, nem que a série do desen-volvimento psíquico de certo campo pos-sa ser extrapolada para os demais. Emsuma: para que a Psicanálise complete-secomo ciência geral, não se pode fazercaso omisso dos elos desconhecidos, nemé permissível englobar apressadamenteos campos numa teoria unificada do in-consciente, ou tampouco acreditar que osindícios de séries genéticas correspon-dam, mesmo que aproximadamente, àrealidade da desconhecida vida emocio-nal da primeira infância. Dito isso, paga aconta, o que sobra para nós?

A Teoria dos Campos não é umcomentário da obra de Freud, muito me-nos um comentário desabonador. Tam-pouco é uma teoria independente, ou uma

12 Na realidade, os campos do inconsciente não se podem sobrepor arbitrariamente, como se estivessemdispostos sobre uma mesa. Diante de um paciente, ou de outro recorte do mundo humano, a visão que oanalista pode alcançar a cada momento é comparável a olhar de cima uma caixa contendo vários quebra-cabeças de armar incompletos: pode ser que a cena visualizada faça sentido, que apareça, por exemplo,uma casa, frente a um lago, com pessoas e um cão; porém, ao tentar organizá-lo sobre a mesa, logo se constataque, embora as cenas se complementem na aparência, o formato das peças de nível diferente não admiteencaixe e, pior, ao puxar uma só peça do terceiro ou quarto nível, desmonta-se todo o conjunto, que nadaera mais que passageira ilusão de óptica.

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escola psicanalítica, mas uma espécie deinterpretação: uma forma de ver a Psi-canálise e, conseqüentemente, umaforma de ver a psique. Parte das duaspremissas acima: que, para sobreviver, aPsicanálise deve ocupar o espaçodemarcado pelo horizonte de sua vocaçãoe que, para ocupá-lo com coerência, deveaceitar as limitações de seu método, dasquais decorre em particular a inexistênciade uma teoria geral do inconsciente. Oque lhe sobra são campos, regiõespsíquicas cuja lógica emocional o processode ruptura permite compreender. Cadacomplexo psíquico investigado pelaPsicanálise possui propriedades caracte-rísticas, que, numa analogia aproximada,são como a forma do espaço-tempo quese oferece aos corpos materiais na Teoriada Relatividade, os campos sendo oespaço-tempo e os corpos, as represen-tações que neles ocorrem. Quase sempreignoramos como se formam tais campos,qual sua gênese e história, porém — enisto talvez resida boa parte da contribui-ção da Teoria dos Campos à Psicanálise— nem por isso nosso trabalho ficainviabilizado: operamos com as regrasdos campos, mesmo sem as podersubordinar a uma teoria geral das origens;a Teoria dos Campos lucra o possível doreconhecimento da ignorância daPsicanálise. Esta peculiaridade de nossoaparelho científico torna-o útil para aanálise de condições psicossociais, masigualmente faz dele uma espécie demetateoria, de epistemologia internada Psicanálise, a que se poderia chamar

teoria do conhecimento limitado, ou,como talvez fosse preferível, teoria dodesconhecimento relativo. Nessesentido, a Teoria dos Campos trata asteorias vigentes na Psicanálise tambémcomo relações internas aos campos emque foram produzidas e, com isso, procuraevitar o erro básico em que hoje incidecomumente nossa disciplina, que é o detransformar algumas regras, descobertasnum contexto particular, em doutrina ousistema geral de uma escola de pensa-mento. O próprio progresso da teoriapsicanalítica não é concebido comoacumulação paulatina, no feitio que seconsagrou no reino da tecnologia ondeuma descoberta possibilita a seguinte,senão como rupturas sucessivas daspróprias teorias; a generalização de teoriasparticulares em teorias mais amplasafigura-se para nós não como uma soma,um processo de adição de novos dados ede novas concepções, mas como umacrise: o choque entre teorias deve pôr a nuseus pressupostos gerais, suas regras deorganização, que servirão em seguidacomo ponto de partida da generalização.Por isso é adequado dizer que a Teoriados Campos não é mais que umainterpretação da Psicanálise: induz ruptu-ras dos campos teóricos.

Talvez uma vista rápida da clínicada Teoria dos Campos possa ajudar oleitor a compreender melhor essa formade procedimento. Como ciência da psique,a Psicanálise pode fundar diversasmodalidades de terapia, porém é justo queo tratamento-padrão, a psicanálise, seja o

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laboratório — o lugar de trabalho — emque suas teorias ganhem corpo e sejamverificadas. Para tanto, é fundamentalque não se incorra no erro vulgar deaplicar mecanicamente concepçõesgerais a qualquer analisando. É muitofácil inventar uma teoria psicanalítica:basta juntar alguma hipótese sobre aestrutura do psiquismo a alguma hipótesesobre a origem do psiquismo e aplicar oresultado à direção da cura analítica, queos efeitos de sugestão inerentes ao campotransferencial sempre acabarão por“provar” qualquer premissa. Este gênerofalacioso de comprovação prática está,todavia, muito abaixo da dignidade que seespera de um saber de raiz que pretendedesvelar a constituição da alma humana.O antídoto previsto pela Teoria dosCampos para tal falácia é relativamentesimples, embora seja preciso admitir quenunca chegará a ser muito popular entreos analistas. Ao caçador que mal vislumbraseu caminho no mato cerrado da clínica,aconselha-se apagar a lanterna teóricapara não espantar a caça.

Em primeiro lugar, diante de umpaciente, nunca partimos de qualquer umdos roteiros que propõem via de regra asdiversas correntes para o processo analí-tico. Para nós, nenhum tema é em princí-pio mais importante que outro. É provávelque a sexualidade jogue um papel central

em todas as análises, para usar um exem-plo extremo, mas estaremos antes demais nada interessados em saber quesignifica sexualidade neste caso particu-lar — e freqüentemente acabamos pordescobrir que é algo a que anteriormentenem sonharíamos aplicar semelhantenome. A interpretação, o ato psicanalíticoessencial, sendo considerada pela Teoriados Campos como indutora de rupturas,não se confunde com as falas do analista,por mais acertadas que sejam; às falaschamamos sentenças interpretativas,enquanto reservamos o termo interpre-tação para o entrejogo de pequenas inter-ferências, toques emocionais, digressões,silêncios que induzem o surgimento derepresentações disruptivas do campo aque se limita a vida psíquica de nossopaciente; e em geral tais representaçõessurgem dele mesmo, não são sugeridas.Em conformidade a tal procedimento, asfalas do analista não procuram ser expli-cativas nem mesmo completas; bastanormalmente uma repetição, uma mo-dulação especial do tom de voz, unspedaços de sentença para ressaltar oponto eficaz do discurso do analisandoe precipitar uma ruptura de campo. Aexplicação, a sentença interpretativa,vem depois, para dar ciência ao anali-sando do que se passou; não é o motordo processo13.

13 Uma das funções da sentença interpretativa, que é aquilo a que vulgarmente se chama de interpretação,é a de convocar a consciência do paciente à análise, para que possa oferecer resistência ao processo, poisa resistência indica o ponto de eficácia de uma intervenção. Sem resistências, o analista estaria tentandoescrever no gelo: nada é mais fácil, mas como ler depois? (Herrmann, 2004, capítulo 5, “O sentido da técnicapsicanalítica”).

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Talvez o melhor caminho para com-preender dois dos pontos mais difíceis daTeoria dos Campos dentre os que viemostratando, a diferença entre interpretaçãoe dito do analista e a idéia de ruptura decampo teórico, passe pela questão datransferência no processo analítico(Herrmann, 2001a, “Introdução”). Podenão ser estranha ao leitor a frase queafirma: psicanálise é a operação docampo transferencial — mas que signi-fica ela exatamente? Reduzindo-o ao ter-mo mínimo que o uso consagrou, o con-ceito original freudiano afirmava ser atransferência uma repetição com outrafigura, a do analista principalmente, decertos padrões emocionais conflituosos,dirigidos de início a uma das figuras-chave da vida infantil. Ou seja, a emoçãocerta, porém na hora errada e com al-guém que nada tem a ver com isso.Depois, com a evolução da prática clínica,transferência passou a designar igual-mente uma forma muito especial de tra-dução metafórica, em que se consideraque tudo o que o paciente diz ou faz “temuma dimensão transferencial”, um se-gundo sentido, bem ou mal escondido, queexprime as emoções vividas no aqui eagora da sessão; e é esse sentido que oanalista deve mostrar a seu paciente.Aceitamos a dupla acepção do termo,mas pensamos também que não bastatentar traduzir a emoção transferencial,sendo antes necessário, ou melhor, inevi-tável, tomar em cuidadosa consideraçãoa força de criação ficcional da transfe-rência na análise. A análise de um pacien-

te não é psicanálise + paciente, um pro-cesso sempre igual com diferentes pesso-as, senão uma história singular, um campobem determinado pela história psíquica,capaz de organizar os demais campos quenele ocorram. Assim sendo, cada análisetem um enredo que é a vida do analisan-do, sob espécie transferencial. Ao ana-lista cabem vários papéis nesse enredo,podendo ser um deles o de tradutor, masa análise encarnada é como a neurose dopaciente: é história viva. Seria um poucoforçado querer desempenhar o papel depríncipe Hamlet, em Macbeth.

É notável como as análises deFreud, relatadas em seus historiais clínicos,tinham a feição exata dos pacientestratados, enquanto as nossas descriçõestêm muito mais a cara da Psicanálise. Éque para ele a análise era um experimentohistórico, este o sentido forte da noção deneurose de transferência. Freudcompartia o enredo psíquico dosanalisandos, aceitava entrar no campotransferencial para o romper com a cura.Ao discutir os detalhes do sonho do Homemdos Lobos, as peripécias da dívida nãopaga do Homem dos Ratos, os lances dahistória amorosa do Caso Dora, já estavainterpretando transferencialmente, sem anecessidade de dizer: “O senhor (ou asenhora) sente que eu…”. Tomando ao péda letra essa atitude fundadora da clínicapsicanalítica, a Teoria dos Campos propõeque o processo de construção da sentençainterpretativa, e não sua comunicação aopaciente, constitui a verdadeira interpre-tação, sendo aquela apenas um momento

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posterior e às vezes prescindível dentro dotrabalho analítico. E mais, que as teoriasenvolvidas nessa construção fazem partedo campo transferencial — ou ele só agesobre o paciente? —, e sobretudo que ateoria que serve de eixo para umainterpretação, dure esta quanto dure, de umcurto instante até a análise inteira, nuncaestá acima da interpretação, não é umcidadão acima de qualquer suspeita. Aruptura do campo particular em que se estátrabalhando (dentro do campo transferen-cial mais amplo) acarreta necessariamentea ruptura da teoria em uso, que poderessurgir fortalecida, refutada ou corrigida.Na prática analítica, esta é a função possívelda teoria: operar como interpretante naruptura de um campo, e é caso de desconfiarde qualquer teoria que passe incólume pelaprova de ruptura de campo; ou não se tratade uma legítima teoria clínica, mas de umaespeculação abstrata que não se deixatocar, ou o analista a emprega com fé cegae não está disposto a teorizar por sua contae risco.

Essa mesma atitude pode ser trans-posta para a interpretação de condiçõessociais. Uma ciência da psique não se háde restringir ao campo de uma só situa-ção, a terapia analítica, criada artificial-mente para que funcione bem. Tendo aPsicanálise de ser mais que a ciência dasituação analítica, somos convidados apraticar uma clínica generalizada para ascondições concretas do homem; práticadifícil, em que a noção de campo transfe-

rencial passa a ser realmente indispensá-vel, já que o fenômeno transferencial nãoestá disponível. Um campo transferencialé uma rede de indução de sentidos, semindutores concretos, causais; ele determi-na o sistema estudado, levando-o aposicionar-se em relação ao sujeito doconhecimento, e cria uma interação, mes-mo onde não existe um diálogo material.Mas as mesmas regras de operação con-tinuam vigentes aqui grosso modo, emespecial a que rege a validade das teorias,que só se mantêm na medida em que setransformam com o uso. Ao contrário daHistória ou da Arqueologia, não é opatrimônio de conhecimentos adquiridoso principal suporte da Psicanálise, massua capacidade de arriscar parte dessecabedal acumulado a cada novo problemaque enfrenta, mais ou menos como o faza Filosofia. É neste sentido também que aTeoria dos Campos deve ser vistasobretudo como uma interpretação daPsicanálise: não só é uma reinterpretaçãoteórica de alguns conceitos psicanalíticos,como opera ao modo de uma interpretaçãopsicanalítica da própria Psicanálise, porruptura de campo.

Quero usar, como exemplo desseproceder da Teoria dos Campos, umabreve discussão sobre a noção de eu naPsicanálise14. Enquanto o grosso dos con-ceitos psicanalíticos aponta em direção auma crítica bastante radical do realismoingênuo — processos como negação, re-pressão, transferência, projeção etc. não

14 Tema a que dedico meu livro A Psique e o Eu (Herrmann, 1999).

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constituem desvios psíquicos, mas o modomesmo do funcionamento mental —, anoção de eu, um pouco deslocada doconjunto, encarna o ideal superado deretratar objetivamente o mundo. Valedizer que o eu, uma das instâncias dopsiquismo, sede das funções de juízo,ação motora, memória etc., mais que umasimples teoria, é um agente ideológicoinfiltrado: a noção de eu funcional guarda,no interior do sistema teórico psicanalíti-co, os restos da psicologia funcionalistade onde se desgarrou a Psicanálise. Noentanto, mesmo este eu funcional não éum ente puro. Os fenômenos de interfe-rência que Freud descreve com farturaatingem o eu, através de sua representa-ção psíquica — ou não se diz, por exem-plo, que o eu é amado ou atacado pelosuperego? Não cabendo falar em duasentidades distintas, o eu-função é arras-tado pelo eu-representação ao jogo ver-tiginoso dos valores emocionais; então,temos de tomar uma decisão, ouconsideramos o eu funcional uma espéciede transeunte que se vê metido na brigaalheia, ou reconhecemos, com Freud ali-ás, que o exercício das funções psíquicasque se costuma atribuir ao eu são produtode complexos arranjos posicionais entreos atores que contracenam na vida men-tal, cada qual portando suas próprias re-presentações e disfarces (Herrmann,1999, capítulos 1 e 2).

Por força dessa última opção pelacomplexidade, até mesmo a existência deuma unidade singular chamada eu podeser questionada. Freud deixou perfeita-

mente clara a relativa impotência do eudiante da pressão dos instintos e dasexigências da realidade. Não impotênciacompleta, mas relativa impotência, numsentido análogo ao que se dizia acima dadescrença relativa na possibilidade depercepção correta do mundo. Todavia,mesmo a idéia de um eu relativamentefraco tentando fazer acordos parasobreviver em meio à tempestade dosinstintos pode ser enganadora. E isto poruma simples razão. Dos três elementosem jogo nessa figuração — realidade,eu, instintos —, só o terceiro épropriamente psicanalítico quando assimformulado; a realidade exigente é muitomais uma noção do senso comum — osfatos e as coisas, a exigência implacávelda matéria —, enquanto o eu parecerepresentar uma noção psicológicacorrente, apanhada pela turbulênciaafetiva e pelo emaranhado de signifi-cados que propõe a teoria psicanalítica.O passante incauto…

Pensando melhor, essa noção deeu está ligada a um modelo do psiquismo,do sujeito e da realidade que, por serintuitivo e usual, geralmente nos escapaquando estudamos Psicanálise: nãoacreditamos estar diante de um modelo,mas da verdade pura e simples, e reserva-mos nossa atenção e esforço para com-preender apenas aqueles conceitos com-plicados que tentam dar conta dos desviosdessa verdade. É um modelo, porém, euma pequena filosofia que aí se escon-dem. Neste modelo pelo qual passamoshá pouco, o eu percebe a realidade, que é

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aquilo que o cerca, que é dado. Percebe-abem, quando vê o que existe, às vezes seengana e troca o que é pelo que não é. Asrazões dessas confusões periódicas de-vem-se a causas internas, à força dosinstintos e ao desejo de não enfrentardesprazer contrariando-a. O mundo ex-terno influi sobre o psiquismo de fora, viapercepções. A situação é, por conseguin-te, análoga à de um homem a ler umapágina de texto. O texto já estava láquando abriu o livro, mas ao ler podecometer algum lapso — ler más ondeestava escrito mas, por exemplo. Comose sabe que era mas o que estava escrito?Porque ele mesmo depois se corrige aovoltar à página, bem como qualquer outrapessoa que porventura tenha acesso aolivro o pode testemunhar. Compreenderpor que cometeu o ato falho demanda umesforço de análise, ler corretamente nãochama a atenção.

Verdadeiramente simples, não éfato? Notemos, entretanto, algumaspeculiaridades do modelo. Em primeirolugar, é um modelo perceptual e, dentretodos os sistemas sensoriais, escolhe oolhar como paradigma — não o olfato,cujo mundo é impregnante e envolvente,nem a propriocepção, cujo mundo é incor-poração orgânica, mas a visão, este sen-tido que põe o mundo à distância e queserve à distinção entre os seres e entresujeito e objeto15. Em seguida e conse-

qüentemente, neste modelo a realidade éa própria matéria tangível, visível ou inte-ligível — as manchas de tinta no papel quepossuem significado fixo na língua, não osentido, a rede de conotações do textolido. Por fim, o sujeito leitor é distinto doautor: é um indivíduo, não a comunidadecultural, que pode ler um texto por meio deum eu individual, justamente porque oescreveu por meio de outro eu individual.Por isso, é compreensível que se distingatão bem interior de exterior; pois a cultura,o real humano, ela estaria dentro e fora,como sistema gerador de realidade. Querealidade? Ora, a materialidade certa-mente existe e permanece, mas não éassunto psicanalítico; já o sentido, arepresentação do real, é a realidade quenos concerne, mas esta não permaneceincólume e inalterável, um texto lido milanos depois de escrito já quer dizer outracoisa, modifica-se mesmo a uma releituraimediata, ou no cotejo com a leitura alheiae, fora do contexto de alguma interpre-tação, não possui sentido algum. E,última conseqüência do modelo, os instin-tos animais, a fome e o impulso reprodutivo,da mesma forma que as secreçõeshipofisárias ou que a bomba sódio-potássioda célula nervosa, embora existam e de-terminem o comportamento, tampoucosão primariamente assunto nosso, mas sósua transformação cultural; o homem édecerto instaurado no animal humano,

15 Na realidade, o paradigma perceptual mais comum de Freud é visual-auditivo; poderia ser figurado comoa visão que se tem de uma palavra escutada e, reciprocamente, como os efeitos de sentido atuantes sobreo objeto visível. A metáfora do mundo como um grande livro, tão comum em Borges por exemplo, poderiaaplicar-se sem atrito à maior parte dos textos freudianos.

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mas a Psicanálise apenas trata do ho-mem, não de seus muitos substratos físi-cos, orgânicos, bioquímicos etc.16. Assimsendo, o interior que nos concerne nãoestá isolado do exterior, é a continuidadeinterna daquilo que está aí gerando senti-dos no indivíduo, na coletividade humana,ou, por outra, no reino do espírito encar-nado.

Logo, não sem surpresa, temos deadmitir que o que parecia simples evidên-cia começa a mostrar-se uma filosofia dosujeito e do mundo. Esta filosofia, quecombina realismo e perceptualismo emdoses equivalentes, é de fato útil parainúmeras situações da vida humana eserviu como ponto de partida para a Psi-canálise, sem qualquer problema. A inter-rogação só viria depois e não por acaso.É que a própria Psicanálise, quando esta-belecida como forma de pensar o homem,começa a exigir outros modelos de rela-ção entre homem e mundo. Freud criou osistema de pensamento que abala seuponto de partida, levando-nos à curiosasituação de ter por base um modelo filo-

sófico que se presta bem a quase todasas condições quotidianas, até mesmo acertos setores da ciência, mas não àúnica condição que nos importa, à pró-pria visão psicanalítica do homem. Paraque a Psicanálise se transforme numaciência geral da psique, é forçoso reco-nhecer o modelo que se oculta em seusalicerces e construir alternativas quepermitam ao psicanalista compreenderpsicanaliticamente não apenas os mo-mentos de estranheza manifesta — umsintoma, um ato falho —, senão a tota-lidade da vida anímica, o normal comoo patológico, os equívocos de leitura,mas também a leitura em si, para nãofalar dos diversos mundos em que vive-mos: olfativo e gustativo, visceral emotor, sexual e agressivo, cada qualrepleto de sentido humano que nos cabedeslindar. E este modelo alternativonão é preciso procurá-lo fora, ou dartratos à mente para o inventar, pois aprópria teoria freudiana já o supõe im-plicitamente e seus conceitos mais vi-tais esboçam-no a contento17.

16 Se fosse possível delimitar num segmento de reta o domínio da Psicanálise, destacando-o arbitrariamentede quaisquer outras considerações metodológicas, diríamos que à sua esquerda, por exemplo, está o fatode ocorrerem sensações de prazer quando os genitais masculino e feminino são estimulados e à sua direitaa legislação atual sobre o casamento. O domínio próprio da Psicanálise começaria, portanto, nas curiosascondições que levam (ou não) a serem simultâneos tais estímulos prazerosos, estendendo-se pelo conjuntodas mediações que levaram à não menos curiosa idéia de legislar sobre essas condições. Dentro de seudomínio próprio, ganham sentido as contribuições psicanalíticas às áreas fronteiriças, no caso, o de umapsicanálise da sexualidade biológica ou das instituições culturais.17 As noções de transferência e de neurose de transferência propõem uma teoria clínica do real, modeladano ato analítico; negação, ressignificação (Nachträglichkeit) etc., uma teoria psicológica do real, o temainteiro dos mecanismos de defesa e, em especial, os estudos sobre a psicose, uma teoria psicopatológica;certos momentos das investigações sobre sociedade e cultura não apenas põem em prática a teoria implícita,como introduzem o método ficcional em seu desenvolvimento (Moisés e o monoteísmo, Totem e tabu etc.).

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Tentemos figurá-lo brevemente.Imagine-se o real — o real humano evi-dentemente, encarnado na vida cultural eno indivíduo — como um sistema geradorde sentidos. Um puro produtor de sentidohumano, uma psique mundanizada, con-creta, sempre ativa. O sujeito, individualou coletivo, seria então criado por ummovimento que se poderia comparar auma dobradura, um canto da folha depapel dobrado sobre o resto, para facilitara comparação com o modelo anterior. Ocontato entre a folha e o canto dobradodelimita um espaço virtual: é como se opapel encarasse a si mesmo, como se oreal fosse posto diante dele próprio. Talcontato corresponde, nesta analogia, àrepresentação que o sujeito (essa porçãode real seqüestrado no indivíduo ou nasubjetividade social) cria continuamentedaquilo que se lhe antepõe. A issochamamos realidade, à tentativa sempreprecária de representar o real que nosestá diante da consciência. Contudo, hátambém uma porta de trás. É esta acontinuidade entre real e sujeito, acontinuidade do papel que foi dobrado.Esta dimensão “real” do sujeito — isto é,o conjunto das determinações irrepresen-táveis que o fabricam, o real seqüestrado— pode ser compreendida de diferentesmaneiras e receber nomes diversos,segundo a ciência que a estude. A Psica-nálise encontrou o nome desejo paraidentificá-la e chamou instinto às deter-minações mais básicas que o impulsio-nam, àquelas que fazem fronteira com aanimalidade do homem, mas que, convém

não esquecer, já são parte do real huma-no, da cultura (Herrmann, 2001a, ParteSegunda, capítulos V e VI).

Este não é um modelo necessaria-mente verdadeiro, nenhum modelo o é,mas serve-nos para pensar o eu. Aceitan-do-o provisoriamente, teremos como re-sultado não ser o eu forte ou fraco, e simo agente (ou agentes) da tentativa derepresentar a porção do real que interna-mente o constitui — o desejo — e todo oresto do real que o constitui externamen-te: ao primeiro grupo de representaçõeschamaríamos identidade e ao segundo,realidade (Herrmann, 1998, “Prólogo: Oescudo de Aquiles”). O eu não é pois umpassante inocente, vindo sabe-se lá deonde, da Psicologia em última instância,mas o produto de uma perturbadora rela-ção dialética entre duas dimensões doreal que, sem prejuízo de sua continuidadeprofunda — a porta de trás… —, duelame procuram negar-se na superfície dasrepresentações. Digamos que o organis-mo humano — a cria da espécie, o bebê,o corpo físico, as potencialidades psíqui-cas — é o lugar onde se inventa o homem,onde o real dedica-se a sua autocontem-plação consciente, mas sobretudo ondecria a possibilidade de auto-superação. Anoção de eu procura fixar esse passoproblemático do processo.

Conclusão. O eu não pode vencera batalha contra os instintos, pois instintoé o nome que se aplica à constituiçãobásica do eu, àquilo que o impulsiona, eque já é cultura — o instinto animal, bemcomo as flutuações hormonais e o siste-

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ma nervoso, não são assunto psicanalíti-co, já ficou dito. Seria como querer serraro galho da árvore em que se assenta, ou,ainda melhor, o galho da árvore de que éfruto. A consciência, por conseguinte,não é uma folha no vendaval das paixões,um anão numa guerra de instintosgigantescos. Ela, sabemos muito bem, éextremamente forte, para o bem ou parao mal. Apenas é impotente quando procuraexecutar alguma tarefa absurda, como ade controlar suas próprias determinações,negando ser produto delas mesmas. Nósnão vivemos no escuro, podemosconhecer-nos razoavelmente e agir deacordo, só não podemos escolher quemsomos. É possível que os psicanalistastenham por vezes menosprezado o poderda consciência, assim como, noutras,exagerado suas expectativas sobre ela.Ter consciência de um conflito não significaresolvê-lo, aí o exagero da expectativa.Mas considerar a consciência como umsimples observador do psiquismo é oexagero oposto. A consciência é ativa ecapaz de estabelecer rumos e soluções,mesmo na vida intrapsíquica. Porém, nãoé unitária ou homogênea, não é sempre amesma a consciência que temos das coisasou de nós mesmos (Herrmann, 2001a,Parte Primeira, capítulos IV e V).Ademais, seu instrumento fundamental,as representações, não cobre a totalidadeda identidade nem da realidade, asrepresentações são sempre parciais ecomprometidas. Basta reconhecer queesses dois pólos, identidade e realidade,apenas se distinguem pela posição relativa

ao eu, ou ao setor do eu que está deserviço no momento; se o desejo é umaextensão do real, se é a porção do realseqüestrado no interior do sujeito, cadarepresentação de realidade deve conteruma representação da identidade, direitoe avesso do mesmo tecido.

Talvez o fenômeno que ilustremelhor a força e a fraqueza da consciênciahumana seja este equívoco universal equotidiano a que se chama projeção. Éextremamente comum vermos umpaciente avaliar uma situação complicadade maneira muito precisa, distinguindocom clareza os elementos que compõema trama de um conflito psíquico e sabendoindicar o caminho a seguir, para culminaratribuindo às circunstâncias ou ao outroaquilo que está a sentir ou fazer. Esteequívoco ocorre tão sistematicamente quese poderia até generalizar, afirmando quea consciência incide sempre num erroessencial de pessoa em seus julgamentos.Mas não resta dúvida, por outro lado, deque esse mesmo julgamento temconseqüências muitas vezes gravíssimas— pensemos no preconceito, por exem-plo —, atestando o poder efetivo da cons-ciência em encaminhar o psiquismo acerta direção, mesmo que na direçãomais absurda (Herrmann, 1998, capítulo2). De modo geral, a consciência é bastanteeficaz na criação e transformação dosujeito sempre que opera no sentido decriar formas de ser, a partir doreconhecimento das tendências internas,e muito pouco eficaz quando tentacontrolá-las: a consciência humana é bem

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mais competente como artista que comoguarda de trânsito intrapsíquico.

Outro aspecto da questão psicanalí-tica do eu que mereceria ser reconsideradodentro do modelo com que estamostrabalhando agora — a dobradura do realhumano que produz sujeitos — é a noçãode narcisismo. Esta pode ser deslocadada simples quantidade de amor exigidopelo eu das demais instâncias psíquicas,ou dos outros eus que a compõem, e deseu reflexo na exigência de amor eaprovação externos, para a relação entreo real seqüestrado no sujeito e a extensãomuito maior do real que se lhe antepõe.Com efeito, seria difícil compreender aspsicoses como produto de uma intoxicaçãolibidinal, por maior que fosse. O problemaestá antes, é pelo menos concebível, nograu de exclusão imposto pelo desejo aoreal: na psicose, o desejo retira-sedesgostoso do real e se proclamaautônomo, ou decide que constitui atotalidade do real. Mais interessante, en-tretanto, é a recíproca desta situação.Pois o real humano pode também serafetado de narcisismo, recolher-se em sipróprio, excluindo o sujeito humano einterrompendo o circuito dialético de suaconstituição. Essa situação infeliz não seresume à proverbial indiferença das coisasàs nossas necessidades e intenções, poisnão se trata aí propriamente do real, masda materialidade. Ao contrário, é no exa-gero da humanização do mundo que

sobrevém o narcisismo do real, quando ohomem passa a ser um simples elementoda cadeia de meios para a consecução deum fim humano. O fenômeno daalienação é presumivelmente o exemplomais perfeito do narcisismo do real, queocorre também nas condições de super-representação, como o regime demoralidade e a farsa18, e em geral namaioria das patologias sociais, caso daanomia, das crises coletivas de identidade,de certos fenômenos de massa etc.

O projeto de generalização da Psi-canálise como ciência da psiquedificilmente poderia ser esboçado hojecom precisão suficiente para transformá-lo num programa de trabalho. Faltamcondições organizacionais, por exemplo,já que o movimento psicanalítico estácentrado no desenvolvimento e na defesada profissão de psicanalista, especial-mente na formação de novos analistas.Falta-nos igualmente uma reflexãofilosófica mais aprofundada sobre os fun-damentos requeridos por essa ciência aconstruir e mesmo sobre a disciplina jáexistente. Nem mesmo é claro, nomomento, quais tópicos teóricos deveriamser tratados com prioridade; no entanto,creio estar acima de qualquer dúvidarazoável que a discussão da noção deeu tem de ser um deles, ou, quandomenos, que sua discussão fornece umbom exemplo dos limites que encontra-mos pela frente.

18 Ver, a propósito, a terceira parte de meu livro sobre a Psicanálise do quotidiano, “O mundo em quevivemos”.

Fabio Herrmann

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Voltemos ao caráter ficcional daprodução psicanalítica pelo problema clí-nico-teórico mais amplo e delicado acimaabordado: a posição complexa entre fatoe ficção ocupada pelo Homem Psicanalí-tico. Sob um prisma restrito, o problemasurge por ser a situação analítica umacondição artificial, montada especialmentecom vistas ao bom funcionamento daoperação interpretativa. Durante umaanálise, incontáveis vezes o par terapêu-tico embarca a velas soltas numa certalinha de representações — numa identi-dade perdida ou num disfarce potencial,só o futuro do trabalho o esclarecerá —,cujo enredo tem de ser acompanhadosem qualquer garantia de que seja verda-deiro ou relevante, a tal hipótese levada àsúltimas conseqüências. Pode ser umahistória inventada com propósitos defen-sivos, mas toda história é História paranós até prova em contrário, no sentido daprática encarnada freudiana. Verossimi-lhança ou plausibilidade não constituementão um crivo útil para a exclusão ou oacolhimento de certo conjunto de repre-sentações, mas só a produtividade heurís-tica que ele promete. No interior do pro-cesso analítico com nossos pacientes,portanto, a ficção reclama vigorosamenteseu direito de cidade.

Será esta uma peculiaridade, oumesmo um vício, exclusivos da Psicaná-lise? Não, com certeza. Com todas asciências dá-se o mesmo, e muito especi-almente com a Filosofia. O pensamentocientífico e filosófico desnaturaliza o mun-do do quotidiano: o mundo físico é o

mundo encarado pelo método da Física,Sociedade é um conceito sociológico eassim por diante. Onde aparece a ciência,a coisa do senso comum afasta-se enca-bulada, entra num eclipse parcial, do qualsobrevém este análogo negativo da coisaque é o objeto. Falando com rigor, overdadeiro objeto da Física não é a pedranem é o átomo em que esta se dissolvediante do olhar teórico, mas o própriomovimento de solvência cinematográficaque representa tal dissolução — ainda sevê a sombra da pedra, já se notam asminúsculas partículas, mas o foco é arepresentação do movimento teórico queleva de uma às outras, e do átomo àspartículas subatômicas etc.; analogamen-te, na Psicanálise, o objeto não é certaconsciência racional ou o inconscienterelativo em que esta se dissolve a cadaruptura de campo, mas o mesmo momen-to mágico de solvência, como entre pedrae átomo, quando o pensamento põe suasentranhas à vista, sob forma de vórtice, eo movimento metodológico entra em foco.Na ruptura de campo o fato transforma-se em ficção e ganha mais verdade.

Diante do método e do objeto daciência, o espírito do quotidiano costumaperguntar: “Tudo está muito bem, masonde estão as coisas de verdade?”. Re-cordo-me de uma aula de ciências, emque nos era apresentado um esquema docorpo humano — ossos, músculos, vísce-ras etc. —, quando um dos colegas desecundário perguntou: “Professor, e ondefica a carne?”. Essa mesma iluminadaquestão ou estúpida — segundo o ponto

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de vista —, repetem-na incessantementeos leigos antepostos à crítica filosófica darealidade, à relativização dos conceitosde tempo e espaço na Física, à dissoluçãodo eu, enquanto consciência racional, naPsicanálise. “Onde enfim está a carne deverdade?” A resposta pode ser rude —no açougue — ou mais sutil e embaraça-da — são ordens diferentes de ser, segun-do o olhar que os visa. O que não há,evidentemente, é uma realidade para ládos pontos de vista, ou das escutas, ou dosentendimentos, isto todo mundo sabe etodo mundo esquece. Em nosso caso, oesquecimento manifesta-se numa espé-cie de reticência com respeito aos limites daPsicanálise, dos quais estamos tratando.Quando é que um homem tem psicologiae quando suas representações são mesmode verdade? Muito embora a questão ca-reça completamente de sentido, o fato é queo termo psíquico acabou por associar-se aparapsicológico (como em fenômenospsíquicos), ou, mais comumente, a psico-patológico: dir-se-ia que alguém com psi-cologia já é candidato ao hospício…

Pois bem, o Homem Psicanalítico,além de ter psicologia, sofre gravementede psicanálise. O mundo, visto pela ópticadas ciências, é composto de objetos, desolvências cinematográficas das coisas edas pessoas, de eclipses parciais da ma-téria comum. A descrição mais realistadesse mundo é, por conseguinte, umaobra de ficção. Só com ela saberemosresponder à pergunta sobre “como são ascoisas de verdade”. Espera-se da ciênciafutura saber combinar-se com a literatura

para produzir essa grande obra que pode-rá sintetizar vida quotidiana e ciência,selando o hiato que hoje as separa, hiatoonde o homem acabou por ser vítima datecnologia, do retorno sobre si daquilo quelhe é essencialmente alheio, por ser pro-duto direto de sua alienação. A ciênciageral da psique que se dispuser a partici-par dessa tremenda realização deveráestar preparada para empregar correta-mente os recursos da ficção a fim detransmitir aos homens uma visão corretae ao mesmo tempo apreensível de simesmos, habitados por psicologia, talvezpor psicanálise, se o destino assim o quiser.

REFERÊNCIAS

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Fabio Herrmann

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Herrmann, F. (2003). Clínica psicanalí-tica: A arte da interpretação. (3ªed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Herrmann, F. (2004). Introdução à Teo-ria dos campos. (2ª ed.). São Paulo:Casa do Psicólogo.

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SUMMARY

Psychoanalysis, science and fiction

This paper deals with the future of Psychoanalysis, firstly if it will or will not havea future. The discussion points out crucial questions on psychoanalytic survival:technology versus fiction (being Freud a writer), pseudo knowledge and unknowntheoretical propositions, clinical extension or shrinkage, and so on. The paper is basedon notes and in the text of the introductory chapter of A Psique e o Eu (The Psyche andthe Self, Herrmann, 1999).

Key words: Future of Psychoanalysis. Psychoanalytic epistemology. Interpretativemethod. Psychoanalysis and fiction.

RESUMEN

Psicoanálisis, ciencia y ficción

El presente artículo trata del futuro del Psicoanálisis; en primer lugar, si tendráo no futuro. La discusión pone en cuestión problemas nucleares de supervivencia:Tecnología versus ficción (Freud, pensador por escrito), seudo-conocimiento y factoresteóricos ignorados, extensión o reducción de la duración de la clínica etc. Se basa enlas notas y redacción del capítulo introductorio de A Psique e o Eu (Herrmann, 1999).

Palabras-llave: Futuro del psicoanálisis. Epistemología psicoanalítica. Método inter-pretativo. Psicoanálisis y ficción.

Fabio HerrmannR. Agrário de Souza, 106 — Jardim Paulistano

01445-010 São Paulo, SPFone: 3088-8123

E-mail: [email protected]

Recebido em: 20/03/2006Aceito em: 20/04/2006