Psicanálise e Linguística

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Muito Bom esse livro porque tem a ver com a psicanálise e outras teorias que combinam com a teoria de Lacan e Freud, por isso é interessante

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  • Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia

    Programa de Ps-Graduao em Teoria Psicanaltica Tese de Doutorado

    Clnica Geral Psicanlise e Lingstica

    Daniel Menezes Coelho Orientador: Waldir Beividas (Doutor Adjunto IV)

    Rio de Janeiro Maro 2004

  • ii

    Daniel Menezes Coelho Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do grau de Doutor.

    Banca Examinadora:

    Waldir Beividas orientador UFRJ

    Magno Machado Dias Doutor Honoris Causa UFRJ/UERJ

    Iv Lopes Doutor USP

    Fernanda Costa-Moura Doutora UFRJ

    Vladimir Safatle Doutor USP

    Rio de Janeiro Maro 2004

    Clnica Geral Psicanlise e Lingstica

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    Coelho, Daniel Menezes Clnica Geral Psicanlise e Lingstica. Daniel Menezes Coelho Rio de Janeiro: UFRJ/IP, Programa de Ps-Graduao em Teoria Psicanaltica, 2004. vii, 176 fls.

    Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. Programa de Ps-Graduao em Teoria Psicanaltica.

    1. Psicanlise; 2. Lingstica; 3. Clnica Geral; 4. Cincia; 5. NOVAmente

    (Dout UFRJ Teoria Psicanaltica) I. Clnica Geral Psicanlise e Lingstica.

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    Agradecimentos:

    - A Waldir Beividas, meu orientador e amigo. - Capes, pelo apoio sempre dispensado, desde o mestrado at aqui, e pela oportunidade do estgio na Frana. - A Michel Arriv, pelo acolhimento, ateno e instigao em territrio francs.

    - A todos os outros que tornaram tudo possvel.

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    Resumo:

    Coelho, Daniel Menezes. Clnica Geral psicanlise e lingustica Tese

    apresentada como parte dos requisitos necessrios para a obteno do grau de doutor em Teoria Psicanaltica.

    O presente trabalho tem como preocupao fundamental a colocao da problemtica relao entre psicanlise e lingstica a partir de um ponto de vista clnico aquele apontado por MD Magno como Clnica Geral.

    Para isso, partimos de uma limpeza do problemtico campo da psicanlise, a fim de desfazer alguns mal-entendidos e situar o que pensamos ser a postura exigida pela psicanlise para que se possa tratar a questo. Passamos ento a um Retorno a Saussure,

    no sentido de explicitar seu parentesco com Galileu (e sua revoluo), e tentar uma demonstrao de suas idias atravs de um volume menos gasto que seu Curso. Em meio a isso, esbarramos com srios problemas no tocante s relaes entre phisis e thesis, e ainda, linguagem e realidade.

    Finalizamos tomando a questo do conhecimento, que deriva dos problemas colocados acima. Enquanto Saussure parece preferir encerrar a questo numa fico do esprito pela positivao da rede de negatividades da lngua, a psicanlise pode revelar que tal fico, no que tem peso de realidade, deve ser dita delrio.

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    Rsum:

    Cette thse tiens comme question fondamentale la mise em scne de la problmatique relation entre la psychanalyse et la linguistique, partir dun point de vue clinique celui prsent par MD Magno comme Clinique Gnrale.

    On parts dune nettoyage du problmatique champ de la psychanalyse, fin dclairir quelques malentendus et de situer ce que nous pensons tre la posture exige par la psychanalyse au trait de la question. On passe alors un Rtour Saussure, au sens dexpliciter son rapport avec Galile (et sa rvolution), et dessayer une dmonstration de ses ides en utilisant un volume moins connue (parce que de plus rcente publication) que son Cours. Encore, on va se dparer avec les srieuses problmes qui touchent les rlations entre phusis et thesis, et plus, entre langage et ralit.

    On finira en mettant en cause la question de la connaissance, qui drive des problmes poses ci-dessus. En tant que Saussure semble preferer encerrer la question dans une fiction de lesprit par la positivation du raseau ngatif de la langue, la psychanalyse peut rveler quune tel fiction, dans ce quelle a poids de ralit, doit tre dite dlire.

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    ndice:

    Introduo ................................................................................................................... 8 Apresentao geral .................................................................................................... 8 Clnica Geral ........................................................................................................... 14 Plano da tese ........................................................................................................... 21

    Parte 1: O campo do problema (ou o problema do campo) .......................................... 25 Jacques Lacan: apropriao e subverso ............................................................... 27

    Sobre a transferncia do psicanalista ...................................................................... 29 Apropriao e subverso ..................................................................................... 34 Ainda sobre a transferncia do psicanalista ............................................................ 48

    Fetiches e horrores: cincia e psicanlise ............................................................... 51 O projeto radical de Lacan ...................................................................................... 52 De fetiches e horrores ............................................................................................. 59 A soberania da psicanlise ...................................................................................... 68

    Parte 2: Retorno a Saussure .......................................................................................... 74 Estruturalismo: moda e corte .................................................................................. 76

    Um programa de pesquisa e um movimento de opinio ......................................... 78 Saussure e Chomsky ............................................................................................... 85 Thesis e Phisis ......................................................................................................... 88 1AR, 2AR, OR ........................................................................................................ 90

    Matemtica de Galileu .............................................................................................. 98 Entre experimento e teoria ...................................................................................... 98 Papel da matemtica ............................................................................................. 103 A metfora do livro ............................................................................................... 105

    A negatividade radical de Saussure ...................................................................... 109 O Curso de lingstica geral e os Escritos de lingstica geral ............................. 109 O objeto do lingista ............................................................................................. 112 Negatividade radical da lngua ............................................................................. 119 Negatividade do mundo, negatividade da lngua .................................................. 126

    Parte 3: De Fices e Delrios o Conhecimento ...................................................... 130 Fico Saussuriana ................................................................................................. 132

    Economia e morfologia: da positividade dos negativos ....................................... 132 A fico necessria do esprito ............................................................................. 139 Uma questo sobre a metalinguagem ................................................................... 142

    Delrio Analtico ...................................................................................................... 150 Freud e a questo sobre uma Weltanschauung ..................................................... 150 O exemplo a prpria coisa .............................................................................. 159 O que quer que se diga da ordem do conhecimento ....................................... 165

    Concluso ................................................................................................................. 170 Bibliografia .............................................................................................................. 173

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    Introduo

    Apresentao geral

    Quando resolvemos nos arriscar a um exame das relaes entre a psicanlise e a

    lingstica, era sem grandes pretenses que o fazamos. que parecia preciso, at para

    ns mesmos, discernir direito tais relaes, pois de tudo o que escutvamos, s havia

    uma concordncia: que elas haviam ido gua abaixo. Havia as tentativas de salvao,

    aqui e acol, principalmente vindas das partes lingsticas quanto psicanlise que ela

    via ir rio abaixo, cada vez mais afastada; da parte dos psicanalistas, no rio que

    enxergavam passava j longe a lingstica, e a torcida era bem contra: que se afogasse,

    aquela l1.

    O discurso das relaes entre os campos, ento, se dava mais ou menos assim: o

    lingista, especialista da linguagem, escondia o riso quanto s besteiras2 que o

    psicanalista falava sobre o assunto. Um ou outro no, uma ou outra acusao de mal-

    entendimento, e (mesmo porque o outro lado no lhe prestava assim tanta ateno) uma

    certa dose de complacncia. O psicanalista, por sua vez, teve duas faces bem opostas

    quanto a isso (na verdade a mesma): fascinado pela formalizao que vinha ocorrendo

    1 Que se note, portanto, o real ponto de concordncia: que a outra no sabe nadar.

    2 Autorizo-me o uso do termo, pois o ouvi mesmo da boca de um lingista dos mais interessados na discusso. Michel Arriv, em seu seminrio Linguistique et psychanalyse realizado em Nanterre (Universit de Paris, X) no ano de 2001-2002 dizia, a respeito de um psicanalista que lhe acusava, de qualquer sorte, de anacronismo no tema das pesquisas. Comentando que gostava mesmo do que este psicanalista escrevia, e se interessava por suas colocaes, ele faz uma ressalva: mais, quand il sentrane parler de linguistique... je suis dsol, mais l, il dit des btises.

  • 9

    no campo das humanidades pela tal lingstica, apaixonou-se por ela, colocou seu

    campo como o da palavra e da linguagem, vestiu o uniforme da nomenclatura,

    encontrou em Saussure a mola para desencravar Freud do destino que havia recebido at

    ento pelas mos das psicologias do ego que o rondavam; a bem depois acusar a outra

    de costurar o buraco no qual queria fazer morada: ali onde sujeito habitaria.

    E ento encontrvamos por a, mormente, quem no quisesse a relao: nada a

    ver uma coisa com a outra; houve subverso; fujamos deles seno eles nos

    dominam; no somos eles, o Lacan j dizia que o dizer dele, de que o inconsciente era

    estruturado como uma linguagem, no era do campo da lingstica (cf. Lacan, 1985, p.

    25). Isso, do lado da psicanlise. Do outro, viam-se muitos para os quais essa tal

    psicanlise era coisa de gente no muito sria. Mas, mesmo no to srio, duas ou trs

    prolas se encontravam ali pelas anlises dos sonhos, chistes e atos-falhos (no, porm,

    valiosas a ponto de se investir muita energia nisso). Quanto a Lacan? Era essa a resposta

    (se das mais gentis): sim, ele houve, mas aquela coisa de significante sem sentido...

    no sei3....

    Se a reserva do lingista quanto ao que a psicanlise pudesse apontar a ela era

    plenamente compreensvel (afinal, o campo era deles, eles eram os grandes especialistas

    no assunto, metiam as fuas nas mincias da lngua), a reserva do psicanalista, no

    entanto, era de se chamar ateno. Pois se, de um lado, simplesmente escolhia-se o

    silncio, do outro sempre se abria a boca: enfim, por que, se realmente a psicanlise no

    3 claro, aqui coloco as coisas um tanto caricaturalmente. Abaixo surgem os nomes de duas excees no que tange a esse distanciamento.

  • 10

    tinha nada a ver com a lingstica, por que era preciso a todo momento dizer isso? Por

    que sempre se voltava ao assunto?4

    Sim, era preciso considerar que daqui se escuta a todo momento falar sobre

    significante (que no o da lingstica), metfora e metonmia (que no so as da

    lingstica), linguagem (que no a da lingstica), etc., etc., etc (que no so os da

    lingstica). No acredito que se precise tanto afirmar o bvio: que a psicanlise no a

    lingstica. A no ser que Freud tenha alguma razo em seu artigo sobre a Verneinung.

    Uma certa evitao da discusso (para alm, claro, do no ) era bem patente.

    Pelo menos que no fosse s comigo: dois outros que se aventuraram no terreno (pela

    outra porta) um deles, o que me convidou a entrar e o outro a quem bati na porta mais

    tarde5, contavam-me histrias do horror ou do desdm com que o psicanalista olhava

    suas pesquisas.

    Um deles, Michel Arriv, que tive o prazer de ter como orientador da parte da

    pesquisa realizada na Frana, conta no prefcio do volume resultante do colquio

    Lingstica e psicanlise dirigido por ele e Claudine Normand em 1998, e publicado

    em 2001 (Arriv e Normand, 2001) de dois alertas ocorridos durante a etapa de

    organizao do evento, na verdade de dois episdios que indicavam que o psicanalista

    talvez no estivesse l to interessado no tema.

    4 Poupamo-nos de fazer referncias bibliogrficas nesse ponto, pois parece ser o consenso. Encontraremos mais adiante um captulo inteiro onde fazemos uma leitura crtica de um texto que nos parece exemplar quanto a isso, e no qual tentamos demonstrar que talvez no seja pela via da exegese bibliogrfica que resolveremos a questo. Se, no entanto, nos pedissem um recenseamento quanto aos autores que adotam tal posicionamento, colheramos entre a massa dois nomes de notoriedade maior: Juan-David Nasio e Jacques-Alain Miller. Um terceiro que, no entanto, nos parece merecer mais ateno que os outros dois nomes j apresentados Jean-Claude Milner merecer nossa ateno em diversos momentos deste volume.

    5 Trata-se, respectivamente, de Waldir Beividas, orientador da presente tese, e Michel Arriv, orientador da pesquisa realizada na Frana por ocasio de uma bolsa sanduche cedida pela CAPES.

  • 11

    O primeiro episdio: Arriv conta que certa vez recebe um telefonema de um

    psicanalista muito respeitado e bem quisto no meio, com quem tinha relaes pessoais

    bastante amigveis, se bem que esparsas. Em meio conversa, comenta da realizao

    do colquio, e recebe como resposta um instante de hesitao seguido de uma

    reprovao ao projeto: quem que se interessaria em discutir o tema, a essa altura dos

    acontecimentos?

    Segundo episdio: Arriv toma conhecimento de um volume que encerra as atas

    de um colquio realizado pouco antes por Monique Pigol-Douriez chamado Pulsions,

    Rpresentations, Langages6 onde, apesar do tema, nota-se a ausncia quase total do

    lingista. De todos os artigos ali presentes, nenhum tem a sua autoria, e apenas um

    conta com qualquer tipo de referncia a ele: o texto que abre o volume, assinado por

    Andr Green. Arriv, que fora mesmo citado no artigo, dirige uma srie de observaes

    e crticas a Green, que em carta de resposta parece encerrar a discusso com o seguinte

    ponto: eles no iam jamais se entender, porque um era lingista, e o outro psicanalista.

    Ponto Final.

    No entanto, o lingista saca do bolso uma evidncia: h uma figura estranha, a

    do psicanalista-lingista (ou lingista-psicanalista). Como poderia, estes irreconciliveis

    conciliados num s sujeito? A Green tampouco a questo escapa, e Arriv encontra em

    seu texto o comentrio acerca de um desses seres estranhos que, perguntado por ele

    sobre quanto uma atividade afeta a outra na verdade, no qu o fato de ser lingista

    afeta sua escuta clnica responde que no afeta em nada; que ele nunca pensa nisso;

    exceto, talvez, com crianas, porque til para reconstruir a fala delas depois da sesso.

    6 Publicado em 1997 pela Delachaux et Niestl.

  • 12

    Sorte que pelo menos o lingista deixa-se afetar pela psicanlise na sua prpria

    escuta (clnica, alis):

    Mas estou estupefato de ouvir de um especialista profissional da linguagem que ele esquece pois bem isso que ele diz, no ? todo o seu saber lingstico quando ele pratica a anlise. E que ele no rememora seno s-depois depois de qu, alis? Da sesso? Da anlise? (...). (2001, p.14)

    Por fim realizou-se o congresso, e com bastante sucesso (graas talvez ao ouvido

    inspirado de seus diretores).

    Isso apontava um problema muito maior do que a articulao terica que eu, na

    poca, esforava-me em redesenhar e atualizar a importao do conceito de

    significante por Lacan: pelo menos da parte do psicanalista (afinal, a parte que me

    interessa), a conversa no ia para frente por razes muito outras que no as

    discordncias tericas. No se chegava a elas, mas partia-se delas, como se elas

    mesmas se colocassem de sada, como se fosse apenas o bvio ululante: sonhamos com

    o significante, mas ele no era da lingstica. Enfim, era bvio o que se passava.

    Contava a meu favor, no entanto, a sorte de ter sado do grupo analtico que

    sonhava com o significante, me filiando ao grupo que se forma em torno de MD Magno

    e de sua teoria da NOVAmente. L a sonhao outra. Para alm das questes da

    divergncia terica entre Magno e Lacan, ou entre Magno e lacanianos, poder olhar com

    menos comprometimento (pois eles estavam em outro canto) para a cena lacaniana, e

    principalmente no que tangia lingstica, me fez surgir o fundo clnico da questo

    (crucial tal cena).

    Mesmo porque a psicanlise de MD Magno quer-se uma clnica geral. E exige

    dos que ali querem se formar que haja esta postura. Vemos mesmo que ele est em boa

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    companhia quanto a isso. preciso no esquecer que somos psicanalistas, dizia

    Jacques Lacan, que em outros momentos levava seu seminrio nas escadas da

    universidade tomada pelos estudantes revolucionrios. Ou a postura de um Freud que,

    nem diante da guerra perde a escuta clnica7.

    preciso, ento, que o analista intervenha (de outro modo, esquecemos que

    somos analistas). E no s no espao cerceado do consultrio. Lacan tentava dar o

    modelo quanto a isso na sua prpria escola. Dizia ele, a psicanlise cria um novo lao

    social, ou uma nova possibilidade de lao social (de discurso. Cf. p. ex. 1985, 24-37), e

    tentava colocar este lao em ato na escola (embora nunca com resultados excelentes, ao

    que tudo indica). E, nos parece, no se deve proceder diferentemente em teoria.

    O novo lao lacaniano certamente se refere a uma nova forma de pensar, a uma

    nova referncia, a um novo ponto de vista, para usar o termo do lingista suo

    Ferdinand de Saussure. O ponto de vista, segundo Saussure, cria o objeto: ou ainda,

    uma espcie de referenciaro que, como todas, nos faz enxergar algumas coisas, e no

    outras. Nada diferente na psicanlise, quer dizer: apenas que somos avisados disso, e

    que tal ponto de vista, ter um ponto de vista, muito antes de ser virtude pura e

    simplesmente sintoma: que muitas vezes tem, alis, l suas virtudes (aqui e agora,

    dependendo do que queremos)8.

    7 Refiro-me sua resposta carta de Einstein, Por que a guerra? (1933).

    8 O lema sintoma no virtude surge, por exemplo mas em discusses at certo ponto alheias s nossas em Reviro2000/2001 (Magno, 2003): Sintoma no virtude. No vcio tambm (p. 427). Na discusso, acerca da instaurao da lei jurdica, Magno aponta para a distncia que h entre ordem estabelecida e verdade: Podemos obedecer ordem, mas no temos que consider-la verdadeira. nesse sentido que, neste trecho, aponta que sintoma no virtude nem vcio (que seja um ou outro o que quer o pensamento jurdico): apenas sintoma, nada mais. O lema, no entanto, geral.

  • 14

    Clnica Geral

    Uma das virtudes do sintoma psicanaltico que sempre nos dada a inarredvel

    possibilidade de dizer no9. Isso pode dar em morte, mas sempre possvel. Pedir mais,

    ou pedir outro, ou pedir outro que tudo isso. Que seja: nenhum me serve, no a todos.

    No retorno (pois sempre h), que se diga o inevitvel sim, mesmo que para aquele que

    se acabou de inventar.

    A psicanlise de MD Magno10 coloca esse no, esse no me serve, como lugar

    de hiperdeterminao. Para alm do campo da determinao (do campo que h), mas

    ainda dentro dele (pois no h outro, ou ainda Outro, do Outro), a possibilidade de

    requisitar o outro lado. Seja in loco, seja em extenso: pedir o avesso de tudo o que h.

    Este pedido, ele sempre possvel em que pese suas conseqncias por um lado, e a

    impossibilidade de seu cumprimento, por outro.

    Magno faz mesmo a suposio de que isto atravessa tudo o que h (melhor, o

    Haver como um todo), e que o empuxo a isto, to visvel nos seres humanos, mas

    suposto alhures como biolgico (Cf. Freud, 1920), ou como linguageiro (Cf. Lacan,

    1966), chama-se pulso de morte. Ou mesmo: pulso. Ou ainda a frmula: Haver desejo

    de no-Haver. Quanto suposio plermica, que pese apenas isso: no de lugar

    9 MD Magno aponta em diversos momentos para a possibilidade do no, como princpio de espelhamento: h, para ns (humanos, sujeitos falantes, idioformaes, ou o que quer que sejamos), sempre, a possibilidade de considerar o avesso de qualquer coisa, o no-isso, o no-aquilo, e mesmo o empuxo a tal (o desejo no quer seno esta outra coisa considerada). , na verdade, da que MD Magno retira o seu axioma da pulso. Haver desejo de no-Haver quer dizer que se deseja o avesso, o oposto, do que quer que Haja desejo de impossvel, portanto.

    10 No nos caber, no interior deste trabalho, a tarefa da exposio sistemtica da NOVAmente de Magno. Tentamos, no entanto, situar o leitor a cada momento em que recorrermos a conceitos e proposies deste aparelho terico. Ao leitor que se interesse por uma exposio deste tipo, recomendo a leitura do artigo A psicanlise, NOVAmente (Magno, 1999), e ainda mais fortemente o recm publicado volume homnimo (Magno, 2004), uma srie de conferncias proferidas em 1999 guisa de introduo ao aparelho terico-clnico.

  • 15

    nenhum que isso surge, pois se concordarmos que s determinao que h (seja ela

    determinao, sobredeterminao, ou a hiperdeterminao proposta) que este desejo

    de no-Haver inscritvel, pela infinita rede de determinaes, ao resto todo. Pensemos

    tambm na considerao cientfica de que o universo infinito, sem Outro, portanto.

    preciso supor, mesmo que para no nos supormos muito deuses, que a vontade de ser

    Deus (da natureza, da linguagem ou de qualquer coisa) anterior a mim, anterior ao

    animal Homem, anterior ao cultural Homem: como possibilidade, isso sempre esteve a.

    Aconteceu apenas, talvez, anlise: wo es war, soll ich verden. Quem sabe? Se isso fosse,

    ainda mais estaria a meu cargo fazer, dIsso, a anlise11.

    Nos parece que a postura de uma clnica geral, se explicitamente anunciada na

    obra de MD Magno a partir de 1990, em seu seminrio Arte & Fato A nova

    psicanlise, da arte total clnica geral (publicado em dois volumes, Magno, 2001,

    vols. I e II), tem razes antigas. Notemos sobretudo seu esforo em fazer a psicanlise

    quebrar o ambiente fechado do gabinete, e passar a praticar seu discurso em praa

    pblica12. O gabinete, se laboratrio essencial e palco privilegiado da prtica analtica,

    no pode tomar o papel de pequeno feudo onde clnica e teoria encontram-se a salvo das

    11 E ainda, de tempos em tempos (mais aceleradamente com o passar deles), nos surgem indcios de que se trate mesmo de um regime s. Seja a determinao biolgica de um desvio de moral, seja a discursividade da vida apontada na gentica atual, de se notar que h continuidade entre um e outro. Sem, no entanto, nenhum reducionismo: a psicanlise dele no precisa, pois h um conceito seu que no se situa nem num nem noutro (muito embora possamos localiz-lo entre: psquico e somtico, como Freud queria).

    12 Trata-se, de fato, da generalizao da psicanlise (como clnica). Ou, antes de perguntar qual a tica da psicanlise, perguntar qual seja sua poltica, ou sua poltica (como assinala o ttulo de seu seminrio de 1981, Psicanlise e Poltica Magno, 1986. Como se explica no texto, a posio de uma poltica da psicanlise seria a rememorao para a polis do seu fundamento tico, p. 6). Ou ainda, sua Esttica: o retorno do analisado do seu ponto de neutralidade de tica radical de no-saber absoluto, ou seja, de saber o no-senso, para dentro do mundo, o retorno do artista. Sem se pensar uma Esttica, Esta tica do bem-dizer, quer me parecer que no se pode bem dizer plenamente seno artisticamente, na produo do artifcio, do artefato (Magno, 1992, p.3). O que est em jogo aqui a insero, seja da psicanlise (de seu fundamento tico), seja do analista (melhor, do analisado), no mundo.

  • 16

    perturbaes vindas de fora (para parafrasear Saussure em suas discusses sobre o

    que externo e o que interno lngua). A diviso entre teoria e clnica tambm no

    encontra mais lugar. A teoria psicanaltica no mais que outra forma de praticar a

    clnica, e esta segunda passa a figurar mesmo como modo de pensamento. Fazer teoria

    em psicanlise, portanto, nada mais que fazer a clnica: clnica do mundo, em primeiro

    lugar, e clnica da prpria teoria (j que ela participa inexoravelmente deste mundo),

    logo depois.

    H uma certa postura que podemos mesmo colocar em termos de poltica (da

    psicanlise para com o mundo), mas que interfere diretamente no trabalho terico. Essa

    posio poltica, ou tica, ou mesmo esttica diante do mundo, d-se a partir de uma

    neutralidade. Visto o que requisitado pulsionalmente, os plos internos ao Haver

    tornam-se neutros, me so indiferentes. Diante do fato de que o que desejo em ltima

    instncia, o no-Haver, no h o que uma forma mais algbrica de se colocar a

    castrao as diferenas no campo que h se vem, no apagadas nem coincidentes,

    mas indiferentes: pouco importa preto ou branco, mais ou menos, grande ou pequeno,

    sagrado ou profano. Na exasperao do desejo, na considerao da impossibilidade de

    seu objeto, o resto apenas o resto: mas o nico que h.

    Isso passa nos consultrios com a maior clareza. A impossibilidade de resolver a

    questo do desejo, de aquietar o inconsciente, foi vista e revista tanto por Freud quanto

    por Lacan nos mais diversos momentos. O umbigo do sonho, o tema do mal-estar, a

    interminabilidade da anlise em Freud; o no existe relao sexual, a dialtica do

    desejo, ou o encontro com o Real em Lacan, todos parecem apontar para essa

    impossibilidade.

  • 17

    Apontar pura e simplesmente esta impossibilidade do objeto do desejo no , no

    entanto, suficiente. Fazer essa experincia ou esse apontamento requer que se pense, na

    verdade, o que vem depois, o que se faa no retorno ao haver. A questo, portanto, :

    como o psicanalista, suposto ter passado por essa experincia de impossibilidade,

    retorna ao mundo dos possveis (j que no h outro)? nesse momento que temos o

    questionamento tico, esttico, ou poltico de que falvamos acima. Magno prope que

    essa poltica seja a mesma que se faz com os sintomas em consultrio:

    Qual , pois, a, a posio poltica do analista? A mesmssima que ele tem no trato de uma anlise: deixar pintar a situao em sua crise especfica e fazer alguma interveno que transforme esta crise num evento, num acontecimento. Da o acontecimento tem futuro (Magno, 2001, p. 65, vol II).

    Trata-se ento do retorno desse momento de crise de esbarrar em no-Haver (ou

    em sua impossibilidade), trazendo da a possibilidade de interveno onde tenha lugar

    um evento, um acontecimento qualquer.

    Nas ltimas sesses do seminrio daquele ano, MD Magno busca delimitar e

    articular o que ele est chamando, de um lado, de Arte Total, e de outro, de Clnica

    Geral13. Magno procede esta articulao pela via de uma Ecloso: do limite, da

    fronteira, do Sujeito, do semlugar no esprao. Trata-se de pensar e fazer surgir o fundo

    inconsistente de qualquer consistncia, a fim de retornar de l com a ecloso de algo da

    ordem da Arte. Colocando-se isso sobre o pano de fundo do Haver, trata-se de forar a

    barra ao no-Haver (que no h, mas que justamente por no haver parece ser a ltima

    fronteira a atravessar), de modo a fazer a experincia de sua impossibilidade, e retornar

    com essa ecloso. Na medida em que no h sada para o Haver, nenhuma espcie de

    13 Ao que se segue, cf. Magno, 2001, sesses 24: Ecloso 1, Arte Total (165-174); 25: Ecloso 2, Clnica Geral (176-189); e 26: Da arte de forar a barra (191-195)

  • 18

    salvao para nossa condenao havncia, o que resta essa possibilidade de ecloso,

    de cisura interna, de corte imanente, possibilitado pelo pedido excessivo da pulso que,

    ao pedir o no-Haver e esbarrar na sua impossibilidade, no retorno me d a

    possibilidade de colocar uma obra um evento, um acontecimento, que ser pensado

    sempre em termos de arte.

    A Arte Total, como ecloso, colocada como a prpria arte da cura, ou a arte de

    freqentao da impossibilidade de no-Haver. MD Magno aponta (p. 165) que esta arte

    coisa sria demais para ser monoplio dos analistas. preciso reencontrar essa arte

    praticada alhures, reconhecer esse processo de ecloso em outros cantos.

    Freqentemente, por isso, Magno recorre ao artista e mesmo a qualquer outro campo

    cincia, religio, filosofia ou o que seja que venha a reconhecer, mediante produo

    de novas articulaes, a experincia de impossibilidade de no-Haver. No retorno dessa

    experincia, o artista coloca um fato novo, uma ecloso do campo no qual se pode

    reconhecer a experincia anterior.

    Tal arte parece ser, alis, a nica possibilidade mediante o encontro com a

    impossibilidade de no-Haver. Se no-Haver no h, se no h salvao no sentido de

    livrarmo-nos da condenao a haver, no h sada que no a sada da arte: eclodir,

    mesmo por um ato de violncia, recompondo o campo. Como diz Magno, volta pra c

    e (h)age (p.172). Sem, no entanto, nenhuma possibilidade de permanncia nessa

    recomposio. A obra de arte nada garante aqui. Ela apenas testemunho da quebra de

    simetria entre Haver e no-Haver, testemunho de que o artista tenha passado pela

    experincia dessa quebra. A questo principal, portanto, no a do reconhecimento da

    obra, mas sim da sua produo, ou ainda, da possibilidade de sua produo pela via

    dessa experincia proposta. Trata-se, portanto, de forar a barra da hiperdeterminao,

  • 19

    forar a barra a no-Haver, para que se possa, depois, colher a obra de fato, apenas

    resto do processo.

    Assim preciso, sobretudo e eis a o psicanalista zelar por essa arte e pela

    sua possibilidade. No por sua sobrevivncia (pois que desde sempre tentaram mat-la),

    nem tampouco pela sobrevivncia dos seus restos (ou obras), mas por ela mesma

    enquanto ecloso. Da, ento, a Clnica Geral: ou a criao de condies para o

    exerccio da Arte Total.

    Para esclarecer o que seja criar estas condies, Magno lana mo do mito grego

    de Prometeu. Prometeu aquele que, trado por Zeus, que lhe prometera distribuir aos

    homens o poder dos Tits se ele o ajudasse a venc-los, acaba acorrentado nas rochas do

    Cucaso, com aves carniceiras comendo seu fgado. Zeus quer que Prometeu lhe conte

    sobre a profecia que diria quem iria mat-lo (a ele, Zeus), e sobretudo quer que

    Prometeu desista de distribuir aos homens o fogo dos cus. Magno relaciona a figura

    das correntes de Prometeu neurose. apenas com essas correntes que Zeus consegue

    manter seu reino, na verdade. A questo, portanto, libertar Prometeu de suas correntes

    (o ttulo da segunda obra da trilogia de squilo seria, depois de Prometeu Acorrentado,

    Prometeu Libertado), fazer seu fogo correr por a (a terceira obra, completando a

    trilogia, Prometeu Portador do Fogo). Este fogo signo tanto da destruio quanto do

    poder de criao.

    Tal libertao j no seria fcil, e revela-se ainda mais difcil quando Magno

    aponta para uma certa indiscernibilidade entre Zeus e Prometeu: como distingui-los, na

    prtica? Os menores gestos prometicos so imediatamente traduzidos em

    funcionalidade jupteriana para calar ou amarrar Prometeu (p. 184). Ou seja, no tarda

    que o poder de Prometeu seja, sempre, usado contra ele mesmo, ou ainda: contra seu

  • 20

    fogo. a esse fogo, de fato, que Magno quer se reportar em toda a tragdia: preciso

    pass-lo adiante. Isso implica, no a reclamao neurtica de estar acorrentado, mas

    mesmo estando acorrentado, ...mand-lo [a Zeus] efetivamente todo dia merda: Voc

    me mantm acorrentado, mas no vai me matar (p. 185). O fogo talvez no seja, alis,

    mais que isso.

    Traduzindo o mito nos termos da obra de arte que comentvamos acima,

    preciso notar a homogeneidade entre a obra de arte e o que impede o exerccio da

    prpria arte (de freqentao da impossibilidade de no-Haver). enquanto resto do

    processo que os gestos de Prometeu se traduzem em funcionalidade de Zeus, em

    neurose. Zeus e Prometeu so, no fundo o mesmo. Sua nica diferena de vetor: um

    apontando para o fogo, outro apontando para o que se produz, ou o que se produziu,

    mediante esse fogo (no intuito de apag-lo, de impedir a produo, preservando o

    produzido).

    Trata-se, ento, de uma referncia constante ao fogo, ou em linguajar terico,

    trata-se da referncia hiperdeterminao, ao desejo de no-Haver, e de sua

    impossibilidade. Sem dvida, tratamos aqui de forar a barra: seja a que Lacan

    imprime em seu sujeito ou em seu Outro, ou a que podemos supor entre Haver e no-

    Haver.

    desta forao que pode surgir a ecloso de algo novo, no retorno. Este, na

    medida em que retorno de um lugar de indiscernibilidade ao lugar da mirade de

    diferenas, fronteiras e desenhos, implica em uma deciso. Tal deciso no ser, no

    entanto, um recalque agarrar-se sintomaticamente em um alelo, desconsiderando

    radicalmente o alelo oposto mas um juzo foraclusivo: a deciso prtica, e no

    abole o seu oposto, mas o considera como resto a ser levado em conta no que se refere

  • 21

    inconsistncia do Haver, justo porque deciso tomada na referncia

    indiscernibilidade da fronteira entre Haver e no-Haver.

    Ento, a Clnica Geral, que tentamos resumir aqui, queremo-la como a

    lembrana e a referncia hiperdeterminao, ao Originrio, ao desejo de no-Haver,

    portanto ao movimento prprio da Pulso, seja ela exercitada dentro de um consultrio

    a portas fechadas, seja em debates universitrios, seja em qualquer cenrio, trazendo

    com isso a possibilidade de tomada de deciso, mesmo que em total indiscernibilidade

    o que tambm podemos chamar de fazer histria. Por fim, o percurso do desamparo

    radical de no haver o no-Haver, ao abandono na tormenta do que h, para retornar

    produo de uma alegria possvel (p. 194) numa aposta que, sem nenhuma garantia,

    possa trazer sucesso (aquele que Freud teve onde o paranico fracassou).

    Plano da tese

    Seria chover no molhado, ao que nos pareceu, conduzir um trabalho formal de

    investigao, nas teorias, dos pontos de encontro e desencontro. Outros tomaram e

    tomam a cabo tal tarefa com mais brilhantismo que ns, intrusos no complexo e

    refinado mundo da lingstica. A quem se interesse, indicamos fortemente os trabalhos

    dos nossos orientadores, que so alguns dos pontos de partida deste trabalho:

    Inconsciente et Verbum (Beividas, 2000), Linguagem e psicanlise (Arriv, 1999) e

    Lingstica e Psicanlise (Arriv, 1994).

    Interessava mais a ns escapar do ambiente epistmico (mesmo que isso nos

    colocasse com um p do lado de fora do ambiente acadmico no qual se produz uma

    tese de doutorado), e observar as conseqncias das discusses acadmicas nas prprias

  • 22

    inseres e relaes que as disciplinas tinham com o mundo. Nosso interesse foi levado

    ento cada vez mais para o ponto de vista clnico, seja colocando o potencial de cura de

    lingstica e/ou psicanlise, seja colocando as neuroses de psicanlise e/ou lingstica.

    As discusses epistemolgicas e tericas, se so utilizadas aqui, tero sempre, no

    horizonte, tal meta.

    As resistncias primeiras so, certamente, as nossas prprias. Era preciso

    desbastar um pouco os restos que ficaram do antigo caso de amor, e colocar ao

    psicanalista a evidncia da relao por trs do dio aparente, e no s com a lingstica.

    O psicanalista ficou fbico de seus prprios fetiches passados, ainda que

    denegadamente continue deslumbrado pelo brilho daqueles objetos.

    Partimos ento deste desbaste. A primeira parte deste trabalho ter como objeto

    o campo do problema na verdade, o problema do campo, do nosso campo, a

    psicanlise. Tomamos para crtica trabalhos que no so brilhantes, que no tem o peso

    da assinatura reconhecida, mas que demonstram o ambiente em que travamos nossa

    discusso. Tambm apresentam a vantagem de servirem mais facilmente caricatura: o

    exagerar nos traos mais grotescos aposta que, quem sabe, o unheimelich comparea.

    Esse estranho no algo a ser evitado. No de pito que se trata aqui (no s

    disso). Da apontarmos, no final, a soberania da psicanlise, tenha ela relaes (e

    mesmo, em um ponto ou outro, relaes de dependncia) com que campo for (pois

    sempre h). a tolice narcsica do ego achar que ele ou deve ser a exceo separada

    do resto todo, independente e autnomo, coincidente com apenas ele mesmo.

    Tendo colocada essa soberania, encaramos a tarefa de um retorno a Saussure

    eis a segunda parte do trabalho. Primeiro, com uma leitura do estruturalismo, enquanto

    movimento de opinio, moda, doxa corrente num dado momento da histria recente,

  • 23

    principalmente da Frana; e enquanto projeto de pesquisa, brilhante e arrebatador, mas

    que apodrece quando quer um reino s dele: a phisis para um lado, a thesis para outro.

    preciso comear a encarar o problema das relaes entre um e outro, ou ainda mais

    grave, entre a linguagem e a realidade, ainda que o lingista prefira, via de regra,

    demitir-se humildemente da herclea tarefa. Da, e da filiao evidente e repetida em

    diversos cantos entre a lingstica saussuriana e a fsica galileana, colocarmos uma

    leitura desta segunda, e apontarmos que a articulao da matemtica galileana no em

    muito diferente daquela que vemos mais radical e ntida na morfologia saussuriana.

    Se Lacan dizia que o inconsciente estruturado como uma linguagem, preciso

    perguntar: mas o que no o ?

    Saussure parece ele mesmo espantado com a mquina por ele montada, na

    medida em que a nica forma pela qual ele consegue ver tudo isso funcionando ainda

    que ele no fique insistentemente repetindo isso, assim como o faz com a negatividade

    radical da articulao lingstica colocando uma fico tida necessariamente pelo

    esprito, de que aquela articulao negativa est l como objeto, como positividade de

    fato existente.

    Que o esprito esteja necessariamente enganado, algo de que o psicanalista de

    boa estirpe est avisado. Apenas que a nomenclatura, digamos, certa, no fico, mas

    sim delrio: eis o nome pelo qual nos acostumamos a evocar a fico vivida sem

    fronteira alguma com a realidade mesma dos fatos. Freud apontou relativamente cedo o

    risco que corria de, no futuro, ser Schreber o certo, e ele o delirante.

    A fronteira entre o conhecimento verdadeiro e o delrio indiscernvel. Todo

    conhecimento, se de bom tom levar a cincia em conta neste quesito, pode-se

    demonstrar falso num momento ou noutro. Quem quer que queira descrever o real s

  • 24

    poder faz-lo em refrega: em dialtica, como dizia Bachelard, ou em semiose, como

    sugerem lingistas e semioticistas interessados em epistemologia. Desta refrega, o

    resultado, para qualquer um dos lados, que eles no saem iguais, e que o produto desta

    articulao corre o risco de diferir radicalmente dos anteriores que o formaram. Todo

    delrio, toda fantasia, todo sonho, por sua vez, conhece algo. Que no seja de estirpe

    primria, fsica, no quer absolutamente dizer que no esteja l, que no haja (mesmo

    que no exista). Sabemos que em certas condies patolgicas devemos lev-las

    sempre em conta demonstra-se que isso toma peso de realidade.

    Por fim, concluiremos com o que podemos: sem a pretenso de ter a anlise

    terminada, faremos um balano de nossas questes e de nossos achados.

    O aparelho terico que nos serve, o de MD Magno e sua NOVAmente, no ser

    apresentado com a formalidade e o rigor de um captulo a ele dedicado. Nossa postura,

    no entanto, ser eis o nosso esforo a proposta por tal aparelho terico.

    Recorreremos, sim, a apresentaes pontuais, mas apenas na medida necessria de

    nossas demonstraes. Os prazos e limites para a execuo de tal tarefa com o cuidado

    devido a uma teoria viva, que se transforma a cada sesso do Falatrio de MD Magno

    so impraticveis na medida em que tal apresentao nunca foi nossa proposta de

    trabalho. No obstante, a disponibilidade de tais apresentaes, por MD Magno ou por

    seus alunos, muito melhores dos que a que poderamos realizar no escopo do presente

    trabalho, nos eximem de tal responsabilidade.

  • 25

    Parte 1: O campo do problema (ou o problema do

    campo)

    Espera-se, numa tese de doutorado, que sua primeira parte seja uma reviso,

    histrica, conceitual ou outra, do campo ou do problema ao qual se dedica o trabalho,

    que sirva de base para a colocao de um questionamento que o guie at sua concluso.

    O que temos aqui, no entanto, no exatamente isso. Ao que nos parece, tal

    esforo de delimitar o campo do nosso problema traria a inocuidade de dizer tudo o que

    todos sabem, e de colocar problemas dos quais, j acostumados que esto com eles, o

    pblico interessado precisasse apenas remexer os bolsos na procura defensiva da

    resposta pronta.

    Seria ento o caso, no de desenhar o campo do problema, mas a resposta pronta

    a ele: o problema do campo. E de situar tal resposta em outro terreno que no o

    comumente dito conceitual (embora este seja de suma importncia): o problema no

    est no conceito ou em seu entendimento (embora a haja problemas, e muitos), mas na

    prpria postura do psicanalista diante do conceito.

  • 26

    Na verdade, na prpria postura do analista: por vezes cego de amores, por outros

    vendendo o seu peixe em consignao a mercados alheios, o analista no raro se

    esquece de que o .

    No com o grande mestre que discutiremos abaixo. Tomamos artigos e textos

    pouco notrios, de nosso prprio ambiente circundante.

    Primeiro, um sobre Lacan e seu uso dos argumentos e conceitos lingsticos, no

    qual apontaremos o trabalho terico na dependncia estrita da transferncia da autora,

    sem que esta passe por qualquer aparelho crtico. Trata-se, antes, de uma declarao de

    amor transferencial do que de um artigo cientfico.

    Poder-se-ia nos objetar que nosso erro de esquecer aqui a epistemologia, neutra

    o suficiente para descrever com propriedade as fronteiras e campos, suas passagens

    possveis, seus problemas eventuais. A questo da cientificidade da psicanlise, se a

    acompanhou desde o seu incio, prenhe de armadilhas. Entre os prs e os contras,

    preferimos apontar que no h tanta diferena entre o fetiche que se desenha no

    primeiro e a fobia que se esboa no segundo. H que se notar a, tambm, todo tipo de

    luta de prestgio e de mercado, acordos escusos e propagandas enganosas, ora

    defendendo a autonomia da psicanlise, ora defendendo sua dependncia: em quem

    mandamos, quem manda em ns, com quem podemos nos esfregar, com quem no

    podemos. H que se notar tambm o conselho de Lacan: no deixar de ser psicanalista

    ao tratar da questo. Eis nosso segundo captulo.

    Fosse a responder a questo sobre as hierarquias e a posio epistemolgica da

    psicanlise, a diremos soberana, e guiaremos nosso trabalho posterior nesta postura. De

    outra forma, a possibilidade de clnica que se esvai ou seja, a psicanlise mesma.

  • 27

    Jacques Lacan: apropriao e subverso

    No preciso procurar muito para encontrar leituras deturpantes da obra

    saussuriana. A edio crtica do Curso preparada por Tullio de Mauro j suficiente

    para notarmos que esta obra especialmente dada a confuses e deturpaes. Nada mais

    natural a uma obra que, ela prpria, nasce escrita pela mo de terceiros, em grande parte

    j confundida e deturpada pela prpria edio do texto em que pese sua imensa

    contribuio: dele se gerou no menos que a lingstica moderna. O trabalho de exegese

    do Curso volumoso na lingstica, e continua ainda hoje. Talvez no se conhea outra

    obra de carter cientfico a que tanto se recorreu como ainda o caso a fontes

    manuscritas, a anotaes dos editores, a rascunhos, comparaes entre verses, etc., a

    fim de restabelecer o sentido original do pensamento de um autor14.

    Apesar de todo o esforo, no entanto, ainda hoje a confuso acerca desta obra

    notvel. Se considerarmos ainda aqueles que l vo motivados pela leitura de Lacan, tal

    confuso mostra-se ainda maior, na medida em que a comunidade psicanaltica ps-

    lacaniana acostumou-se a pensar que psicanlise e lingstica so campos heterogneos

    e irreconciliveis. E que pouco importa ao psicanalista o que a lingstica diga ou deixe

    14 E ns mesmos continuaremos este esforo: refiro-me recente publicao dos crits de linguistique gnrale, volume publicado em 2002, que encerra uma srie de manuscritos de Ferdinand de Saussure encontrados em 1996. Obrigamo-nos, no escopo deste trabalho, a uma leitura destes escritos, com uma dupla motivao: esclarecer um pouco a prpria lingstica saussuriana, de forma a retomar o dado da negatividade radical da lngua e suas conseqncias, e no menos por simples esforo de apresentao da lingstica dirigida ao psicanalista pela via de uma obra menos gasta, menos comentada que o Curso, e logo menos prenhe de pr-conceitualizaes.

  • 28

    de dizer, chegando ao limite de que pouco importa ao psicanalista ouvir minimamente o

    que a lingstica tenha a dizer.

    Considerao preliminar disso: no momento em que pouco importe ao

    psicanalista ouvir o que algum ou alguma disciplina tem a dizer, preciso perguntar-se

    sobre a sobrevivncia da prpria psicanlise, pois ela no sobrevive se estiver surda ao

    mundo. Mesmo em sua teoria, a psicanlise uma clnica, tem status clnico, e disso

    segue que suas regras clnicas (associao livre por um lado, escuta flutuante por outro)

    so tambm regras, digamos, da sua epistemologia15. Ora, estas regras incluem a

    considerao de que, a priori, tudo interessa (no h outro sentido em pedir que o

    paciente diga tudo o que vier mente). Marcou-se desde sempre que a psicanlise tem,

    talvez como nico instrumento de trabalho, o ouvido, a orelha, a escuta. Se assim ,

    preciso zelar sempre que esta orelha esteja ouvindo bem, e que ela oua o mximo

    possvel. Se se recusa a ouvir uma matria, certamente recusar-se- tambm em escutar

    certos pacientes.

    Por outro lado, no seria demais lembrar das referncias freudianas fsica e

    biologia, e histria, e arte, e ao mito, e antropologia, e a tantas outras matrias,

    inclusive aos estudos lingsticos de fillogos como Abel e Sperber (sem que entremos

    j aqui na questo da validade ou da caducidade de suas observaes), ou das

    referncias lacanianas lingstica, ou antropologia, topologia, teoria dos

    conjuntos, entre tantas outras.

    15 Guardemos reserva quanto a esse termo por enquanto.

  • 29

    Sobre a transferncia do psicanalista

    O psicanalista hoje parece ter como referncia nica a prpria psicanlise. Em

    nome talvez de uma defesa da legitimidade do saber psicanaltico, e certamente pelo

    efeito transferencial do engajamento na prpria psicanlise, vivemos um momento em

    que a endogenia do discurso analtico faz apenas repetir, em diferentes arranjos mais ou

    menos felizes, o que Lacan disse na lio x do seminrio y, ou procede ao

    recenseamento de referncias obrigatrias para que se entenda o conceito de

    identificao por trao de Lacan na obra freudiana, ou coisa que o valha.

    O efeito de um excesso transferencial comum no ambiente psicanaltico de

    pesquisa bem apontado por Waldir Beividas em dois artigos publicados em

    Psicologia: Reflexo e Crtica (1999, p. 661-679 e p. 789-796)16. O texto de Beividas

    parte da constatao de que, no ambiente psicanaltico, iniciamos nossos dizeres e por

    tantas vezes sequer samos disso mormente pela repetio do dixit Freud ou do dixit

    Lacan, como se a se apresentassem exclusivamente os fundamentos para qualquer dito

    em psicanlise. A coisa se passa como se o Moi do aforismo lacaniano Moi, la vrit, je

    parle fosse em verdade o autor da frase, a pessoa de Jacques Lacan, e no a coisa

    mesma ou a verdade mesma. Isso, por efeito de uma transferncia pnica, excessiva,

    que invade a pesquisa sob o pretexto de que inarredvel a sua presena no campo

    clnico ou terico da psicanlise17.

    16 Tratou-se na verdade de uma discusso, nascida do primeiro texto enviado por Beividas a esta revista, que mereceu uma rplica do ento consultor ad-hoc Luciano Elia (primeiramente seu parecer sobre o texto, publicado como rplica), e uma posterior trplica de Beividas, respondendo s crticas de Elia.

    17 Beividas no o primeiro nem o nico a apontar este fenmeno. Em seu prprio artigo, ele toma por base as crticas feitas por Petitot (1978: E(n)trave: psychanalyse et phnomnologie, in Analytica 10, 27-59, 1981: Psychanalyse et logique, pladoyer pour limpossible, in Le lien social, 171-234, Paris: Confrontation, e 1988 Juste lobjectivit, in

  • 30

    esse o ponto principal da rplica de Luciano Elia ao texto de Beividas, na

    sesso de debates do mesmo nmero da revista (Elia, 1999: 775-87): que a

    transferncia, como condio prvia da clnica (no h clnica sem transferncia), e

    mesmo como corao e motor da anlise, faz com que, neste campo, as coisas s

    possam ser conduzidas sob transferncia. E que, por outro lado, acusar um excesso

    transferencial na pesquisa analtica no procede, j que no h quantificao possvel da

    transferncia, e sem o dado do quanta, no h espao para se falar de excesso.

    Elia tem toda razo em apontar que a transferncia inarredvel do processo

    analtico, seja ele clnico ou terico. Desde Freud vemos a psicanlise ser construda s

    custas de transferncia: supor um saber na histrica (a ponto de querer ouvir suas

    sandices), ou em certos amigos e confidentes (basta que tomemos as correspondncias

    de Freud com os seus, e exemplarmente com Fliess). Com Lacan, a coisa no difere

    tanto: supor um saber na lingstica e no lingista, ou na matemtica e no matemtico (a

    ponto de faz-los guiar a leitura e a produo terica).

    Porm, tanto em Freud quanto em Lacan observa-se que a transferncia na

    verdade gera um grande impasse, pois se ela motor da anlise, se a responsvel por

    haver engajamento de algum na atividade da anlise, tambm a responsvel por

    grande parte do entrave da prpria clnica. A transferncia coloca-se primeiramente

    como uma neurose atual, uma atualizao da neurose dentro da clnica, que leva o

    paciente a idealizar a pessoa de seu analista, a depender da relao estabelecida na

    C. Deschamps (org.), Matire et philosophie, 111-139, Paris : Centre Pompidou) e por Roustang (1976, Un destin si funeste, Paris, Minuit). Poderamos ainda enriquecer a lista dos denunciadores do fenmeno da transferncia excessiva ou pnica com Franois George, Leffet yau de pole (Paris, Hachette, 1979) e com um episdio mais recente que acabou nomeado Affair Sokal, ou seja, a publicao de Imposturas Intelectuais (Sokal, A. e Bricmont, J., Rio de Janeiro, Record, 1999) e todas as publicaes e agitaes miditicas e intelectuais que se deram tanto antes da publicao quanto depois dela em torno das denncias que faz Sokal. Quanto ao Affair, cf. tambm Jourdant (dir.), Impostures Scientifiques, Paris, La Dcouverte, 1998 (trata-se de um compndio de rplicas s acusaes feitas por Sokal).

  • 31

    anlise, no limite a apaixonar-se pelo analista a primeira notao da transferncia em

    Freud justamente essa, a do apaixonamento que entrava o andar da cura. E, nesse

    sentido, a transferncia , ela mesma, uma resistncia apenas que uma resistncia

    necessria ao prprio andar da clnica18.

    J Lacan ainda mais preciso e contundente, principalmente quando fala do fim

    da anlise como uma destituio do sujeito suposto saber, e sua decadncia em objeto a,

    em seu seminrio sobre O Ato Psicanaltico (1967-1968). Ele fala, na verdade, do

    esquecimento, por parte do analista, de um dado fundamental: que ele ocupa, para o seu

    analisando, uma posio insustentvel de suposto saber. O analista ento fica numa

    posio paradoxal: por sua prpria anlise pessoal, sabe espera-se que saiba de sua

    condio de dejeto e, no entanto e ao mesmo tempo por razo disso assume, ou

    dispe-se a assumir este papel de suposto saber para outrem.

    O imperdovel, para Lacan, que se esquea disso. Que se esquea ento que a

    posio do analista na clnica um semblante, um fingimento por parte do analista de

    que ele tem o saber suposto nele pelo analisando. Ou seja, para nosso uso: preciso no

    nos perder, se somos analistas, nos meandros da suposio de saber que fazem em ns,

    sob pena de supormos ns mesmos um saber em ns mesmos. E da, em retorno,

    podemos acrescentar: preciso no nos perder, se somos psicanalistas, nos meandros

    de nossas prprias suposies de saber, sob pena de supormos alhures um saber que

    certamente no est l. Isso tudo com o reconhecimento de que impossvel no ter a

    miragem deste saber seja em ns ou alhures e que, no obstante, essa miragem que

    nos move19.

    18 Cf. os Artigos sobre a tcnica (ESB, vol. XIII), em especial A dinmica da transferncia e Observaes sobre o amor transferencial.

    19 Cf. em especial a sesso de 29/11/67.

  • 32

    Dito isso, a sim podemos dizer que a transferncia fundamental tanto para a

    clnica quanto para a pesquisa terica e mesmo para a formao do analista. Ela

    fundamental, mas seu destino certamente a decadncia (pelo menos de seu objeto),

    mesmo que, a fim de levar algum ao prprio lugar em que chegamos, ns simulemos o

    esquecimento disso. O excesso a que Beividas se refere me parece passar por este ponto.

    Ele no de forma alguma a quantificao da transferncia a que se refere Elia, mas sim

    a insistncia da suposio de saber em um objeto dado, que por um lado paralisa

    qualquer outro circuito, e que por outro no deixa que este objeto (ou sujeito) suposto

    saber se mostre em sua face de dejeto, na sua decadncia a objeto a.

    Seria til notar aqui a proposta de MD Magno em A natureza do vnculo (1994):

    ali o autor prope que pensemos a transferncia como vinculao. Nisso, pouca coisa a

    difere da hipnose que Freud supostamente teria abandonado no momento da criao da

    psicanlise. O que acontece como vnculo entre analista e analisando, seria difcil negar,

    tem tanto de sugesto e de transe (para no recorrermos ao hypnos, j que no se parece

    tratar de sono nenhum) quanto qualquer hipnose, ou quanto qualquer outra vinculao20.

    Magno apenas aponta que, na psicanlise, a proposta a no-sugesto. E, de modo que

    toda e qualquer vinculao envolva sugesto, a sugesto analtica que vai nesse vnculo

    que a faz diferente: em psicanlise, trata-se de sugerir a no-sugesto, a suspenso

    das sugestes (Magno, 1994, p. 12).

    20 Freud tambm o apontava, de fato. Na sua Psicologia das massas (1921) h um captulo inteiro dedicado s relaes do amor e da hipnose (Estar amando e hipnose, 141-147) a partir do qual, se considerarmos a transferncia sob o vis do amor transferencial descrito nos Artigos sobre a tcnica, chegaramos facilmente mesma concluso. Se do estado de estar amando hipnose vai, evidentemente, um curto passo (1921, p. 144; na verdade, um passo curto demais para considerar a uma fronteira definida), o mesmo se pode dizer da transferncia.

  • 33

    Considerar isto nos coloca a par do seguinte problema: s diante do transe

    transferencial e de todas as suas idiossincrasias, que podemos colocar essa sugesto

    suspensiva. Se no parece ser o caso de poder dispensar o transe, preciso pelo menos

    consider-lo como tal. Eis a sujeira da relao analtica (e de qualquer outra):

    No tenho a menor dvida de que no possvel limpar a relao analtica ela uma relao suja a no ser em absoluto silncio, para sempre. Talvez mesmo o silncio cadavrico, pois silncio no s quando no se fala, com pequenos gestos, um esgar, uma tosse que tambm tem entonao: pode-se tossir diferente j se diz alguma coisa, j uma sugesto forte. Tudo isso inarredvel e no possvel tirar a questo da hipnose (Magno, 1994, p. 92)

    Sustentar a transferncia na pesquisa sem esse tipo de considerao talvez seja

    uma posio anloga do velho Homem dos Lobos, no momento em que Freud fixa

    uma data limite para seu tratamento: inexpugnavelmente entrincheirado por trs de

    uma atitude de amvel apatia (ESB, vol XVII, p. 23), ele escuta e compreende mas

    permanece inabordvel. Imuniza-se da anlise na justa medida em que parece mais

    disposto a ela.

    Nos ainda recentes (mesmo que j re-editados) primeiros Estados Gerais da

    Psicanlise, o filsofo Jacques Derrida fez a mesma observao sem, no entanto,

    evocar o caso freudiano. Estaramos falando aqui de uma das resultantes da imunidade

    que a psicanlise cria em seu entorno, tanto a ela prpria quanto ao mundo? De libis

    criados pelos que, primeiramente, defendem um discurso muito acertadamente colocado

    pelo autor da crtica como, de sada, sem libis? E que, na medida em que o libi d

    mostras de cansao, procuram um que lhes d salvas, como brinca o filsofo que,

    estranhando o papel, preferiu denunci-lo?21

    21 Derrida brinca constantemente no texto com estes trs pontos: os libis do discurso sem libi que constitui a psicanlise, a imunidade da psicanlise ao mundo, e mormente prpria

  • 34

    Apropriao e subverso

    Voltando ao caso que nos interessa, examinemos agora a postura do psicanalista

    diante da lingstica e do lingista. Interessa menos, na parte que se segue, distinguir

    verdades de inverdades, ou fazer a crtica de um contedo terico qualquer (muito

    embora isso entre acessoriamente em questo, e nos sirva de introduo ao

    esclarecimento de algumas questes importantes). O que realmente temos em vista ,

    para parafrasear o filsofo, um diagnstico dos tats dme do psicanalista no momento

    em que se defronta com a tarefa de considerar as relaes entre a psicanlise e a

    lingstica, ou mesmo o papel inegvel da lingstica na re-inveno lacaniana da

    psicanlise.

    A revista gora: estudos em teoria psicanaltica de janeiro / junho de 2002 traz

    em seu corpo um artigo, intitulado Jacques Lacan: apropriao e subverso da

    lingstica, no qual visa-se demonstrar que as transformaes operadas (...) por Lacan

    separam de forma irreconcilivel a psicanlise da lingstica (Ferreira, 2002, p. 113). O

    ttulo, j pesado em si, ganha ainda mais peso pelo fato de que a autora tem, ao que

    parece, todos os requisitos para falar do assunto: doutora em letras, professora titular

    de literatura brasileira e psicanalista.

    psicanlise (sem o que no haveria libi para o psicanalista), e seu prprio papel de destaque (foi o responsvel pela abertura do evento) nos Estados Gerais da Psicanlise: o que esperariam os psicanalistas ouvirem do filsofo? Ao que, irreverente, brinca com as salvas entre a saudao e a salvao (Derrida, 2001). O filsofo ainda provoca quanto vocao de algo chamado Estados Gerais da Psicanlise, o que evoca razes histricas de brigas pelo poder e pela salvao (ou condenao) de uma ou outra cabea mais ou menos adornada, assim como ao prprio projeto geral do encontro, de uma expurgao, do ambiente psicanaltico, de uma crueldade que, a julgar pela obra freudiana, inarredvel. O ttulo, levemente deturpado pela traduo ao evocar os estados-da-arte (nvel atingido por uma tcnica, numa cincia, etc., Nota do Editor, p. 3), deixa transparecer o carter diagnstico do texto em questo: qual o tat dme da instituio analtica quando ela mesma, apesar de si, busca algo para alm da soberana (e inarredvel) crueldade?

  • 35

    O artigo pretende defender que Lacan, ao tomar a lingstica estrutural como

    farol de leitura, procede a uma verdadeira subverso da disciplina. O raciocnio no

    exatamente novo: parte do estado da psicanlise nos anos 50, nos quais a IPA

    dominante impunha uma psicanlise pasteurizada com a proposta de adaptao do

    indivduo ao meio social, e da sua re-conduo por parte de Lacan aos caminhos da fala

    e da linguagem, supostos os essenciais desde a descoberta freudiana do inconsciente. A

    lingstica parece ter feito parte desse caminho no, porm, com a importao de

    conceitos, mas com sua apropriao e posterior reconstruo (p. 114).

    Antes de proceder ao exame desta colocao e do desenvolvimento que a autora

    lhe d, penso ser interessante uma apresentao do estilo (ou estratgia?) de sua

    composio de texto. Comentando primeiramente as diferenas entre o signo

    saussuriano (aquele que encontramos no Curso) e o signo lacaniano (que encontramos

    na Instncia da Letra22, e que Lacan credita explicitamente a Saussure), a autora

    estabelece uma srie de discordncias, buscando justific-las na articulao com

    algumas citaes lacanianas, fazendo aparecer a autonomia do significante em relao

    ao significado. Faz praticamente a mesma operao quando trata da linguagem: mostra

    as discordncias entre um sistema e outro, apoiando-as em citaes do texto lacaniano,

    tomando, porm, o nome de Jakobson mais do que o de Saussure, para colocar ento

    embora no explicitamente nesta parte o aforismo lacaniano do inconsciente

    estruturado como uma linguagem.

    A partir de ento, entram em cena A letra e o trao unrio. Daqui at o fim do

    artigo, qualquer proposta inicial de examinar a subverso supostamente operada por

    Lacan na lingstica esquecida. Passamos ao terreno lacaniano estrito, as citaes

    22 Em Escritos, Lacan, 1998, p. 500.

  • 36

    lingsticas cessam, e o que vemos so grandes justaposies definitrias entremeadas

    de citaes lacanianas, para que ao fim cheguemos a uma pura e simples coleo de

    citaes lacanianas justificadas pela fase ainda exploratria de uma pesquisa sobre o

    gozo (cf. as duas ltimas partes do artigo, Gozo flico e Gozo para alm do falo, p.

    128-130). O que se propunha primeiramente como uma anlise das apropriaes e

    subverses lacanianas da matria lingstica acaba virando, no decorrer do texto, um

    puro exerccio, seno de reverncia ao mestre Lacan, pelo menos de re-edio de seus

    ditos.

    Quanto ao raciocnio apresentado para justificar a subverso suposta em Lacan

    no seu uso da lingstica, ele deixa-se resumir no seguinte: em Saussure, h um

    aprisionamento do significante ordem do significado (p. 114), com uma proposta de

    signo montada na biunivocidade entre significante e significado. Se, na busca das leis de

    articulao entre os dois termos no se encontra nada, arbitrariedade que Saussure

    recorre para reger o signo. Completa a autora que, mesmo que o lingista no abandone

    a correspondncia entre significante e significado, no h dvida de que, ao abordar

    a questo do valor, ele privilegia o significante em detrimento do significado. A

    subverso lacaniana estaria justamente na introduo da autonomia do significante em

    relao ao significado, marcada fundamentalmente pelo papel que, em seu algoritmo,

    exerce a barra. Levar em conta esse trao, dando-lhe valor de barra, implica segundo

    o artigo privilegiar a pura funo do significante em detrimento da ordem do

    significado. Marca a autora que esta funo do significante, ou sua estrutura se

    caracteriza pela articulao e pela introduo da diferena que funda os diferentes (p.

    115).

  • 37

    Muito embora tenhamos dito acima que no iriam nos interessar os erros de

    leitura, verdades ou inverdades acerca de um contedo terico qualquer, preciso

    passar por eles. Primeiro, porque nos parecem erros comuns ao campo da psicanlise no

    momento de tratar da lingstica, e interessa-nos denunci-los. Segundo, porque eles

    do estofo ao que se nos apresenta como problema nosso. A subverso que a autora

    aponta colocada de sada, aceita como dada, e no constatada nos textos, seja o de

    Lacan, seja o de Saussure, seja no confronto dos dois. propriamente de um pr-

    conceito que tratamos aqui.

    Sua bibliografia saussuriana inclui o Curso em sua verso brasileira editada pela

    Cultrix, alm de suas fontes manuscritas preparadas por Godel. Escapam-lhe outras

    obras importantes discusso, como as preciosas notas crticas de Tullio de Mauro, os

    minuciosos estudos de Arriv (1994 e 1999) ou as fortes teses de Milner (1996, 2002,

    para ficar apenas com as ltimas).

    de fato complicado ler o Curso sem o apoio de um bom aparato crtico, e sem

    prestar muita ateno no que, nele, corresponde ao aparato terico proposto por

    Saussure, e no que, por outro lado, corresponde ao esforo (hercleo, mas sem garantias

    de sucesso) de edio preparada por seus alunos a partir de suas notas de curso, ou ainda

    ao esforo do professor Saussure em tornar as coisas mais didticas.

    Assim, a autora cai em trs erros a nosso ver primrios: 1) supor em Saussure

    uma correspondncia biunvoca entre significante e significado; 2) que, no

    encontrando nada que esteie a relao entre significante e significado, Saussure recorra

    ao arbitrrio do signo (ao passo que Lacan sugira a uma simples no-relao); e 3) que,

    na teoria do valor, Saussure admita, mesmo que revelia, um privilgio do significante

  • 38

    em relao ordem do significado23. Tratemos ento de tais erros. Para alm da pura

    denncia, eles nos serviro de introduo a algumas questes lingsticas importantes.

    Biunivocidade do signo

    Parece-nos que a correspondncia biunvoca entre significante e significado

    justamente de onde Saussure parte na construo de seu signo, mas para critic-la e

    apresentar uma nova concepo na qual justamente no h nada de parecido com isto.

    Tal correspondncia, a encontramos, por exemplo, na antiga filosofia aristotlica, na

    teoria da linguagem de Port-Royal, ou em Santo Agostinho. Para estes, cabe dizer que a

    lngua uma nomenclatura, ...uma lista de termos que correspondem a outras tantas

    coisas. Esta concepo, segundo a letra do Curso, faz supor que o vnculo que une um

    nome a uma coisa constitui uma operao muito simples, o que est bem longe de ser

    verdade. O nico dado creditado verdadeiro, neste ponto, que a unidade lingstica

    uma coisa dupla, constituda da unio de dois termos (Saussure, s/d, p.79).

    Quer nos parecer ento que a biunivocidade uma caracterstica da lingstica

    antiga, ou de certas filosofias da linguagem, no esforo de estabelecer a lista de

    termos correspondentes a outras tantas coisas. justamente esta correspondncia

    que visada como objeto de crtica, e em sua negao que Saussure apresentar uma

    proposta de signo que, primeiro, una no uma coisa e uma palavra, mas um conceito a

    uma imagem acstica, sendo ambos de ordem psquica, e estando unidos em nosso

    crebro.

    At aqui, nada dito explicitamente no prprio Curso quanto ao tipo de relao

    que entretm significante e significado. Nenhuma palavra sobre sua possvel

    23 Notemos de pronto que so justamente eles que, em conjunto, fazem a articulao da autora quanto subverso lacaniana, como visto acima.

  • 39

    biunivocidade (que no seria mais a da ligao entre a palavra e a coisa, mas sim entre o

    significante e o significado). Ao apresentar o signo, no clebre esquema da elipse

    dividida em duas faces, com duas setas em direes opostas, e figurando, em uma das

    faces, o conceito, e na outra, a imagem acstica, h realmente uma passagem na qual

    pode-se supor a existncia de tal correspondncia: Esses dois elementos esto

    intimamente unidos e um reclama o outro (Saussure, s/d, p. 80), o que pode levar a crer

    que h, nessa intimidade e nesse reclame de um a outro, uma biunivocidade.

    Se recorrermos ento edio crtica de Tullio de Mauro, veremos que esta

    passagem , na verdade, uma das intervenes aparentemente modestas dos editores,

    (Saussure, 1995 p. 441). Ele nos informa que esta passagem, assim como as flechas que

    correspondem a ela no esquema do signo apresentado no Curso, assim como o uso de

    mot para designar arbor na mesma passagem, so de autoria dos editores, no estando

    presentes nas fontes manuscritas. A considerao de Mauro nos bastante

    esclarecedora:

    O resultado de tudo isso que o leitor tem a impresso que para Saussure o significante o vocbulo, o significado a imagem de uma coisa, e que um reclama o outro como sustentam aqueles que pensam que a lngua uma nomenclatura. Escorregamos assim s antpodas da concepo saussuriana (Saussure, 1995, p. 441).

    O arbitrrio do signo

    A relao entre significante e significado passa longe da biunivocidade. Ela deve

    partir primeiramente da arbitrariedade do signo que, segundo a autora, deve sua

    existncia conceitual inabilidade de Saussure de encontrar algo que justifique e

    embase a relao, suposta por ele, entre significante e significado. No entanto, a

    simplicidade na qual a autora encerra a discusso sobre o arbitrrio do signo,

  • 40

    colocando-o como ltimo recurso para manter a unidade entre significante e significado

    na ausncia de leis que rejam esta relao, no nos parece a melhor leitura possvel aqui.

    preciso colocar, primeiramente, a letra do Curso citada inclusive pela autora:

    a idia de mar no est ligada por relao alguma interior seqncia de sons m-a-r

    que lhe serve de significante (Saussure, s/d, p. 81; citado pela autora, p. 114). Saussure

    se utiliza principalmente da existncia das diversas lnguas: de um lado da fronteira

    franco-germnica, temos boeuf; do outro, temos ochs, ambos os significantes ligando-se

    a um mesmo significado (o que nos remete o significante boi em nossa lngua). a

    partir desta multiplicidade de relaes possveis entre diversas seqncias sonoras e

    diversas idias que Saussure aponta para a arbitrariedade, ou seja, para o fato de que

    nada de interno determina a correlao entre um significante e um significado dados

    num signo. O princpio de arbitrariedade no diz nada acerca da natureza da ligao

    entre o significante e o significado entendidos aqui como as duas entidades presentes

    no signo. Ele aponta para um signo, e para um significante e um significado presentes

    na montagem deste signo qualquer. Dizer que arbitrria a relao entre a idia mar e

    a seqncia de sons m-a-r no absolutamente a mesma coisa que dizer que

    arbitrria a relao entre o significante e o significado.

    Da relao entre o significante e o significado, diramos mesmo que ela

    necessria: no h significante sem significado, e no h significado sem significante.

    No por um aprisionamento do significante ordem do significado (mesmo porque o

    significado est a to aprisionado ao significante quanto este ao significado), mas

    porque o nico indcio de que algo significante e no uma simples massa sonora

  • 41

    sua ligao a um significado qualquer, ao mesmo passo que o nico indcio de que algo

    significado sua ligao com um significante qualquer24.

    Aqui o nome de mile Benveniste parece inescapvel. Em um artigo notrio,

    Nature du signe linguistique (em Benveniste, 1966), o lingista francs defender

    tambm que o signo antes necessrio que arbitrrio. Sua colocao, muito embora

    bastante aproximada da nossa, no a mesma: para Benveniste, ao que o texto indica,

    trata-se da necessidade de, uma vez posto o som boi, o meu esprito imediatamente ser

    remetido ao conceito boi. a partir da que Benveniste admitir a necessidade do

    signo: de que, numa lngua dada, um determinado som evoque necessariamente uma

    determinada idia, e reciprocamente.

    Tal colocao se justifica na medida em que, no prprio Curso, a demonstrao

    das mais frgeis. Saussure se referir principalmente diferena de lnguas distintas:

    se, de um lado da fronteira chamo o animal boi de boeuf, noutro lado de ochs, que

    perfeitamente arbitrrio cham-lo por um ou outro nome. A fragilidade da

    demonstrao reside no seguinte: o que se prova nela no a arbitrariedade entre o

    significante e o significado, mas entre o signo e o que por ele designado nas

    palavras de Benveniste, seu referente. A ligao entre significante e significado

    permanece necessria: se coloco um, o outro necessariamente se apresenta junto. O

    arbitrrio, a, se h, encontrado apenas entre signo e referente (entre nome e

    nomeado).

    Michel Arriv, considerando as colocaes de Benveniste, dir que elas so, de

    fato, incontestveis: evidente, diz Arriv, que Saussure escorregou do significado

    para o referente, e com isso caiu, sem perceber, na concepo previamente rejeitada da

    24 Sublinhamos o qualquer no sentido de sublinhar, de novo, o princpio da arbitrariedade.

  • 42

    lngua como nomenclatura (1999, p.44). Mas para Arriv a demonstrao que faz

    Benveniste no mais merecedora de crdito do que a de Saussure. Ela apela quase a

    certo misticismo: h entre eles [significante e significado] uma simbiose to estreita

    que o conceito boeuf como a alma da imagem acstica bf (Benveniste, 1966, 51,

    citado por Arriv, 1999, p.46).

    Depois de analisar alguns autores quanto existncia ou no do princpio de

    arbitrariedade, Arriv chega concluso de que: 1) as contestaes so inegveis (a de

    Benveniste, por exemplo); mas que, 2) plenamente impossvel demonstrar tanto a

    arbitrariedade, quanto a no-arbitrariedade. Saussure opta por coloc-la na medida do

    seu valor heurstico: ela serve de perfeita base para a definio da lngua como sistema,

    e ainda mais, como sistema de valores (cf. Arriv, 1999, p.51).

    H, no entanto, um detalhe, talvez anterior discusso sobre a arbitrariedade,

    que pode esclarecer um pouco a questo e reforar nossa tese da necessidade da

    ligao entre ambos. Vejamos um pequeno trecho de Nature du signe linguistique:

    Um dos componentes do signo, a imagem acstica, constitui o significante; o outro, o conceito, o significado. Entre o significante e o significado, o lao no arbitrrio; ao contrrio, necessrio. O conceito (significado) boi forosamente idntico na minha conscincia ao conjunto fnico (significante) boi. Como seria de outra forma? Juntos, os dois foram impressos no meu esprito; juntos, eles se evocam em toda circunstncia. Existe entre eles simbiose to estreita que o conceito boi como a alma da imagem acstica boi. O esprito no contm formas vazias, conceitos inominados. (Benveniste, 1966, p.51)

    Da, portanto, estamos tratando da relao entre um significante e um

    significado, um remetido ao outro por meio de um lao que parece inquebrantvel: se

    digo boi, um boi me vem cabea. Sim, mas e as experimentaes infantis com as

    palavras (a lalao na qual Lacan se inspira para sua lalangue)? Ou os neologismos

    psicticos? Ou as ditas metalinguagens cientficas? Quando digo boi para o parisiense

  • 43

    comum e para o veterinrio rural, a mesma idia de boi que vem cabea? Enfim,

    poderamos admitir que a formulao se limite dita linguagem ordinria. Mas mesmo

    com o recurso a essa limitao, sobra um ponto no muito bem explicado: que o que se

    percebe, sempre, no que o som boi equivale, seja idia boi, seja ao animal boi,

    mas sim que aquilo um boi: forma comum de se referir, no ao animal, nem ao seu

    significado, nem ao seu significante, mas sim a uma certa relao que se estabelece

    entre os trs, e que de fato os definem reciprocamente25.

    Finalmente, no mesmo texto de Benveniste, encontra-se talvez a soluo.

    Tomemos outro pequeno trecho, mais adiante no texto:

    ...a natureza do signo lingstico no em nada interessada, se a definimos como Saussure a faz, pois o prprio dessa definio precisamente de no enxergar seno a relao do significante e do significado (p. 52-53, grifos nossos)

    Pensemos um instante: se o esprito enxerga apenas a relao entre significante e

    significado, e se de outra forma sem que um se ligue ao outro no h mesmo razo

    para diz-los significante e significado (aqui temos sons, os quais cabe ao fonlogo

    estudar, por um lado; e idias, os quais cabe ao psiclogo estudar), que temos sim uma

    relao necessria: pois ora, essa relao que percebida (outro modo de dizer que

    ela, e no os relacionados, que existem para o lingista segundo a proposta saussuriana).

    ela que constituiria, afinal, o objeto da lingstica (e no da fonologia ou da

    psicologia).

    25 com certo risco que dizemos isso. Quanto relao entre o signo e seu eventual referente, Benveniste mesmo, para continuar com ele, guarda certa reserva. H, imbricado nisso, o velho problema metafsico da adequao entre a realidade e o esprito (p. 52). Para ele, o lingista faria melhor em deix-lo de lado no momento mas no futuro haver de se defrontar com o problema.

  • 44

    A operao bsica da linguagem , de fato, a montagem do signo, ou seja, o

    acoplamento, em termos muito vagos, de um som a uma idia, na formao de um

    signo. O que necessrio que haja a articulao; entre qual som e qual idia se d a

    articulao, isso dito arbitrrio. O que ocorre na verdade que significante e

    significado so os nomes dados a sons e idias enquanto articulados num signo. Fora do

    signo fora da articulao que funda a linguagem ou a lngua temos apenas sons e

    idias: as duas nebulosas to famosas de um dos esquemas do Curso (p. 131), com as

    quais, segundo Saussure, camos no terreno da fonologia pura, ou da psicologia pura.

    Da tambm que o que importa lngua ou linguagem no o prprio som, nem a

    prpria idia, os quais podemos tomar como entidades materiais em algum nvel, mas

    sim a forma que surge na sua articulao mesmo porque, para a linguagem, o prprio

    som algo que no existe: temos apenas diferenas entre sons; assim como a prpria

    idia: temos apenas diferenas entre idias. na articulao entre essas massas de

    diferenas que encontramos o lugar da linguagem.

    O valor lingstico

    O ltimo erro que apontamos no texto de Ferreira quanto ao Curso e

    concepo lingstica de Saussure , finalmente, que, no tocante teoria do valor,

    Saussure privilegia o significante. Um primeiro indcio de que no encontramos muito

    fundamento para este argumento a ausncia, no texto em questo, de qualquer citao

    saussuriana que sirva como tal e mesmo de qualquer elaborao maior por parte da

  • 45

    autora para defender essa tese. A teoria do valor no merece sua ateno por mais que

    um pargrafo. Ela , no entanto, central para o entendimento da proposta saussuriana26.

    Ao procurarmos, no texto do Curso, algo que apoiasse tal colocao, tampouco

    encontramos alguma coisa. O captulo sobre o valor divido em quatro partes: um

    primeiro no qual trata-se de demonstrar a ligao, uma vez necessria (sob pena de no

    estarmos mais falando de lingstica, entrando no terreno da fonologia, por parte dos

    sons, ou da psicologia, por parte das idias) e arbitrria (sob pena de cairmos na

    concepo da lngua como nomenclatura, ou de a entendermos, dito de outro modo,

    como uma sustncia, e no como forma) entre significante e significado. A Lingstica

    trabalha, pois, no terreno limtrofe onde os elementos das duas ordens se combinam;

    esta combinao produz uma forma, no uma substncia (Saussure, s/d, p.131).

    Esta definio ainda insuficiente. Encontramos, alguns pargrafos depois,

    certas implicaes que surgem quando entendemos a lngua como um sistema de

    valores. Primeiro, que ... uma grande iluso considerar um termo simplesmente como

    a unio de certo som com um certo conceito (Saussure, s/d, p. 132): isso leva a

    consider-lo fora do sistema do qual ele faz parte, que o determina e que em parte

    determinado por ele. Alm da articulao entre significante e significado, necessrio

    tambm que se encare esta articulao em meio s outras (ou seja, aos outros signos,

    tambm definidos pelas suas articulaes significante / significado) presentes no

    26 , mesmo, o cerne da proposta saussuriana: um sistema incorpreo e formal, de diferenas sem termos positivos, articulaes entre essas diferenas, as quais elas mesmas esto articuladas umas s outras. Esse sistema de valores funciona tal qual o sistema de valores econmicos, financeiros, monetrios: o valor muda se passo certa fronteira, se entra em considerao tal ou qual rea do sistema; no limite, qualquer mudana em qualquer ponto provoca uma mudana em todo o sistema; no h nada que, intrinsecamente, determine os valores em questo, a no ser o prprio equilbrio e a prpria dinmica interior ao sistema.

  • 46

    sistema. Assim que so necessrios aqui trs pontos de vista: o do significado ou

    conceito; o do significante; o do signo total.

    H um certo esforo de didatismo no captulo assim como em todo o Curso,

    mesmo porque se tratava realmente de um curso de Lingstica Geral, proposto no

    quadro de uma universidade, e no qual, sabemos, h sempre, aqui e ali, a necessidade de

    didatismo em detrimento do rigor. Isso demonstrvel, por exemplo, no momento em

    que anunciado que o trabalho ser feito sobre as palavras, na medida em que elas

    podem dar uma idia pelo menos aproximada da unidade lingstica27. O trabalho

    feito em cima delas, segundo o texto, poder ser tomado como vlido para as entidades

    em geral.

    Saussure passa, ento, anlise do valor sob os pontos de vista do significado,

    do significante e do signo. No nos possvel discernir, no texto, no que apoiar-nos

    para sustentar que h neste captulo um privilgio qualquer do significante, seja em

    relao ao signo, seja em relao ao significado. Os trs pontos de vista so

    apresentados como tendo igual importncia, e mais, sendo co-dependentes uns dos

    outros. H, no entanto, um ponto bastante confuso na nomenclatura do Curso a partir do

    qual, forando-se um pouco a leitura, poderamos chegar a postular o privilgio do

    significante: o que tange significao, e sua relao com o valor. Por vezes, temos a

    impresso que h sinonmia entre trs termos: valor, significao e significado. Se isso

    se provasse, no seria um passo difcil chegar a uma concepo com a qual os

    lacanianos esto bem acostumados: que se trata, na linguagem, de significantes

    articulados; esta articulao o que d um sentido a estes significantes, eles mesmos

    27 Saussure, em outro lugar que no o Curso (cf. Saussure, 2002), duvida mesmo da existncia de algo como uma palavra. Escreve ele: Mas de onde tiraram que existe uma palavra, qual deveria ser considerada em seguida por diferentes pontos de vista? (p. 24)

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    sem esteio qualquer em algo proposto como seu significado; se isso verdadeiro, um

    erro crer que h significado para alm do valor sentido que ocorre na sua

    articulao, e portanto a verdade sempre recair no sem-sentido do significante, de

    modo que ele se encontre finalmente liberto da ordem aprisionadora do significado

    ou seja, mantenedora de um status quo de significao (ou sentido, ou valor)28 .

    De Mauro comenta esta passagem, mostrando principalmente a discusso entre

    Godel e Burger sobre isso. O primeiro tomava os termos como sinnimos, chegando a

    afirmar que a inutilidade das palavras sentido, significao salta ao olhos (Saussure,

    1995, p.464). Toda a questo do significado, ento, seria engolida pelo valor, dando

    abertura para o raciocnio que acabamos de mostrar (a lngua ou linguagem como um

    conjunto de significantes articulados). No entanto, Godel mesmo baixa as armas em

    favor da concepo de Burger, de que a significao difere do significado do signo, pois

    se situa no nvel do discurso. Seria, assim, a implicao do significado de um signo no

    discurso no qual ele se encontra.

    Mesmo que De Mauro no tome a discusso como terminada, tomaramos

    tambm partido de Burger, no entanto salientando o seguinte: o valor lingstico, antes

    de ser a implicao do significado de um signo no discurso no qual ele se encontra, a

    implicao de qualquer regio da lngua seja ela significante, significado, signo,

    discurso, ou o que for com todo o resto do sistema. A implicao do significado no

    discurso apenas um dos efeitos possveis de uma concepo da linguagem fundada na

    28 Veremos abaixo que tal sinonmia de fato possvel e mesmo admitida por Saussure em seus crits. O que no se justifica, no entanto, a positivao do significante que postulada a partir disso. Se valor, sentido, significao, significado no recebem realmente uma distino forte em Saussure, mesmo em seus crits, o fato que no se pode deduzir da que temos significantes (ou seja, entes positivos) que adquirem valor.

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    negatividade de todo e qualquer elemento que se apresente interior a ela, e na

    articulao destas negatividades.

    E ainda, para alm das discordncias, nos surge outro questionamento: no ser

    precipitado falar em subverso da lingstica no caso de Lacan quando, como vimos,

    sua posio encontra (mesmo que por um problema de nomenclatura) um ponto de

    apoio (ainda que frgil) no corpo do Curso? No seria o caso de ao menos

    desconfiarmos que se trata talvez de uma leitura do Curso que, mesmo problemtica e

    em discordncia com imensa parte dos lingistas, queria-se fiel a Saussure, autorizava-

    se dele e lhe rendia homenagens?

    Ainda sobre a transferncia do psicanalista

    No nosso interesse