Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

120
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE HILANA ERLICH PSICANÁLISE E CIÊNCIA: UM SUJEITO, DOIS DISCURSOS Dissertação de Mestrado RIO DE JANEIRO, AGOSTO DE 2007.

description

Um sujeito 2 discursos

Transcript of Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

Page 1: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE

HILANA ERLICH

PPSSIICCAANNÁÁLLIISSEE EE CCIIÊÊNNCCIIAA:: UUMM SSUUJJEEIITTOO,, DDOOIISS DDIISSCCUURRSSOOSS

Dissertação de Mestrado

RIO DE JANEIRO, AGOSTO DE 2007.

Page 2: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

PPSSIICCAANNÁÁLLIISSEE EE CCIIÊÊNNCCIIAA:: UUMM SSUUJJEEIITTOO,, DDOOIISS DDIISSCCUURRSSOOSS

HILANA ERLICH

“Dissertação apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Psicanálise

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

como requisito parcial para obtenção do

Título de Mestre em Psicanálise”.

Orientadora: Sonia Alberti

RIO DE JANEIRO, AGOSTO DE 2007.

ii

Page 3: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, dedico esse trabalho, por acompanharem de modo interessado e

presente meu percurso para além do mestrado, me incentivando a insistir ali onde desponta o desejo. Agradeço por estarem sempre ao meu lado!

À minha mãe que me apresentou à psicanálise, despertando desde criança minha curiosidade pelo assunto. Também pelas conversas preciosas, pelo amor e respeito ao caminho que venho trilhando.

Ao meu pai, por ter transmitido o valor do trabalho, pelo amor e por acreditar nos meus passos e escolhas.

Ao Jack, pelo amor, leveza, companheirismo, paciência, por me fazer rir nas situações mais adversas e pela generosidade em dividir meu amor com Freud e Lacan.

À Sonia Lea, pelas palavras de incentivo, que desde os primeiros momentos do mestrado até sua conclusão, foi presença fundamental.

Aos meus irmãos, Daniel e Roberto, pela parceria e por dividirem, seja perto ou longe, os momentos da vida.

À minha avó, que nos últimos anos tem me ensinado que é preciso ter coragem. À Profa Sonia Alberti, que vem contribuindo para minha formação desde a Residência, por compartilhar seus conhecimentos, e pela orientação ao longo desse valioso percurso.

À Profa Fernanda Costa-Moura e ao Prof. Marco Antônio Coutinho Jorge, por terem aceitado participar da banca examinadora e pelas preciosas contribuições que trouxeram à minha pesquisa.

À Mara Faget, pela escuta sensível e interlocução, fundamentais na elaboração e articulação de minhas idéias.

À Profa Ana Beatriz Freire, pela disponibilidade na troca de idéias.

À minha turma de mestrado, pelas discussões enriquecedoras e pela amizade que se formou.

Aos pacientes, que, no espaço público e privado, confiam a mim suas falas, sendo o motivo maior de minha dedicação, tanto quanto da possibilidade de exercer a função de psicanalista.

iii

Page 4: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

O mistério da cousas, onde está ele? Onde está ele que não aparece

Pelo menos a mostrar-nos que é mistério? Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?

E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso? Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,

Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das cousas É elas não terem sentido oculto nenhum. É mais estranho que todas as estranhezas

E do que os sonhos de todos os poetas E os pensamentos de todos os filósofos,

Que as cousas sejam realmente o que parecem ser E não haja nada que compreender

Sim, eis o que meus sentidos aprenderam sozinhos: -

As cousas não têm significação: têm existência. As cousas são o único sentido oculto das cousas.

Fernando Pessoa (Ficções do Interlúdio:1914-1935)

iv

Page 5: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

RESUMO

A presente dissertação investiga a relação entre psicanálise e ciência através da noção

de um termo comum: o sujeito. A postulação lacaniana de que “o sujeito com o qual a

psicanálise opera é o sujeito da ciência” (1966), nos impulsiona nessa articulação, instigando

um exame mais apurado da mesma. Como definir este sujeito? O fato de Lacan apontar um

ponto de interseção desses campos permite dizer que a psicanálise é uma ciência? Qual o

lugar ocupado pelo sujeito nos respectivos campos? A fim de desdobrar estas questões,

seguiremos no primeiro capítulo o percurso trilhado por Lacan, que encontra no cogito

cartesiano o fio que lhe conduz ao sujeito de que se trata. No segundo capítulo, abordaremos a

relação entre o sujeito em questão e o conceito de simbólico, decorrendo daí a introdução dos

seguintes elementos: Outro, real, imaginário, significante e sujeito dividido. No terceiro

capítulo, articularemos as noções de sujeito, real e angústia, buscando avançar na tentativa de

afinar o que é esse sujeito para a psicanálise. Na medida em que o surgimento da psicanálise é

tributário de condições instaladas pela ciência moderna, examinaremos no quarto capítulo de

que forma a ciência moderna se constituiu, a partir das rupturas estabelecidas com o mito e a

episteme antiga. Na seqüência, situaremos o que a ciência trouxe de novidade, permitindo a

formulação do cogito e a abertura ao campo da psicanálise. Estudaremos ainda o tratamento

dado ao real no mito, ciência e psicanálise e sua relação com o sujeito. Esta pesquisa tem

como orientação fundamental as obras de Freud e Lacan, entre outros autores que abordaram

o tema em questão.

v

Page 6: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

RÉSUMÉ

Cette dissertation recherche le rapport entre la psychanalyse et la science à travers la

notion d’un terme commum: le sujet. La postulation lacanienne concernant << le sujet avec

lequel la psychanalyse opère est le sujet de la science >> (1966), nous pousse à cette

articulation et nous inscite à en faire un examen plus approfondi. Comment peut-on definir ce

sujet ? Le point d’intersection de ces champs, montré par Lacan, nous permet de dire que la

psychanalyse est-elle une science ? Quelle est la place occupée par le sujet dans les respectifs

champs ? Afin de dédoubler ces questions, nous suivrons, dans le premier chapitre, le chemim

parcouru par Lacan qui trouve dans le cogito cartésien le fil qui le conduit au sujet traité dans

ce travail. Dans le deuxième chapitre, nous aborderons le rapport entre le sujet dont nous

avons parlé ci-dessus et le concept de symbolique, ce qui mène à l’introduction des éléments

suivants : Autre, réel, imaginaire, signifiant et le sujet partagé. Dans le troisième chapitre,

nous articulerons les notions de sujet, de réel et d’angoisse, pour avancer dans l’essai

d’affiner ce que c’est ce sujet pour la psychanalyse. Dans la mesure où l’apparition de la

psychanalyse est tributaire des conditions instalées par la science moderne, nous examinerons

dans le quatrième chapitre comment la science moderne s’est-elle constituée à partir des

ruptures établies avec le mythe et l’épistémé ancienne. Ensuite, nous situerons ce que la

science a apporté de nouveau, pour permettre la formulation du cogito et l’ouverture du

champs de la psychanalyse. Nous étudierons également le traitement disposé au réel dans le

mythe, dans la science, et dans la psychanalyse et son rapport avec le sujet. Cette recherche a

comme orientation fondamentale les oeuvres de Freud et de Lacan, parmi les autres auteurs

qui ont abordé le thème en question.

vi

Page 7: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................1

CAPÍTULO I –

PSICANÁLISE E CIÊNCIA........................................................................................................7

CAPÍTULO II –

ARTICULAÇÕES SOBRE O SIMBÓLICO..............................................................................19

CAPÍTULO III –

DO SUJEITO DO COGITO AO SUJEITO DA CLÍNICA........................................................47

CAPÍTULO IV –

O QUE O SIMBÓLICO PODE FRENTE AO REAL OU O REAL COMO INTERROGAÇÃO

DO SIMBÓLICO (MITO, CIÊNCIA E PSICANÁLISE)..........................................................75

4.1- Lévi Strauss com Freud e Lacan: O mito na antropologia e na psicanálise.........................77

4.2- O Real e os Planetas: da episteme antiga à ciência moderna.................................................85

4.3- O Real e o Sujeito...........................................................................................................101

CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................107

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................................................................................110

vii

Page 8: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

1

INTRODUÇÃO

A pesquisa proposta para esta dissertação de mestrado surgiu a partir do trabalho

desenvolvido em duas instituições. São elas: Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE -

UERJ), onde fui residente em Psicologia Clínico-Institucional, no período de 2002 a 2004, e o

Posto de Saúde Prof. Edgar Magalhães Gomes – Campo Grande, Cosmos (Secretaria

Municipal de Saúde SMS-RJ), onde, durante os anos de 2002 a 2006, fiz parte da equipe de

saúde mental. Apesar de suas particularidades e distinções, o trabalho em ambas trouxe ao

cotidiano da clínica uma marca comum: o encontro entre os discursos médico e psicanalítico.

A interface entre os respectivos discursos permeou e ainda atravessa minha clínica, já que

cada vez mais se cruzam no que tange ao trabalho em instituições de saúde.

Algumas diferenças se evidenciaram quanto à condução da clínica que estes dois

discursos instauram, dentre as quais destacamos a que concerne ao lugar do sujeito. A questão

referente ao lugar do sujeito na visão da psicanálise e na medicina foi o tema da monografia

de conclusão de Residência. Para tal estudo, foi preciso situar estes campos, enquanto

discursos com objetos, fundamentos e instrumentos próprios a seu sistema conceitual. Nesta

monografia 1, o discurso médico foi enfocado, segundo a ótica de Clavreul (1983) que, em seu

livro A Ordem Médica: poder e impotência do discurso médico o aborda através de uma

leitura psicanalítica. Verificamos como resultado as seguintes constatações: Do ponto de vista

médico, circunscrito no recorte supracitado, o diagnóstico, fundamentado nos sinais e

sintomas passíveis de observação, funciona como indicador de orientação do tratamento.

Desta forma, o sujeito, reduzido a um diagnóstico descrito no manual médico, é destituído de

qualquer referência que lhe diga respeito de modo singular. Assim, se o objeto de

investigação da medicina é a doença, ela, portanto exclui não só o sujeito afetado por sua

divisão, postulado pela psicanálise, como o próprio sujeito que concebe, que passa pela noção

de indivíduo.

Em contraponto, a psicanálise, por colocar seu acento no sujeito, pode ser capaz de

transmitir sobre este um saber desconhecido por outros discursos, qual seja, o de ser marcado

pelo inconsciente. A subjetividade excluída do discurso médico é privilegiada no discurso

psicanalítico, já que é a possibilidade de articulação entre sintoma e história do sujeito. A

clínica psicanalítica sugere não haver nenhum diagnóstico, ou qualquer outro saber

1 “Psicanálise e Medicina: um cruzamento” - monografia apresentada na conclusão da Residência em maio de 2004.

Page 9: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

2

determinado, que informe mais sobre o sujeito do que sua fala. A partir da fala é que se pode

ter acesso à realidade psíquica, à posição discursiva do sujeito.

A psicanálise nasce no seio da medicina e adquire da clínica médica o ponto

fundamental de seu método. A clínica, enquanto lugar de investigação e terapêutica, é herança

da clínica médica. Destacamos que a palavra clínica vem do grego Klinés, que significa leito,

o que remete à função do divã para a psicanálise. Se, por um lado, a psicanálise se inicia a

partir da prática médica, por outro, faz uma ruptura com este discurso para instaurar um

discurso próprio, uma outra clínica. Este rompimento ocorre quando Freud percebe que seu

instrumento de saber não dá conta das manifestações de suas pacientes. Porque as histéricas

escaparam ao saber da medicina é que algum enigma se constituiu das manifestações que

apresentavam.

Desta forma pode-se dizer que a psicanálise surge dos furos do saber médico, ou seja,

de um ponto limite da medicina. Freud inaugurou com a psicanálise uma clínica, através de

um novo método para tratar do sofrimento psíquico, acrescentando um saber, ainda não

sabido. Contudo, se trouxe uma luz a esta clínica, permitindo alívio de sintomas, isto não

implicou dar conta dos furos. De outro modo, são justamente estes furos que passam a vigorar

em sua teoria e prática, uma vez que a marca da incompletude do sujeito é para o discurso

psicanalítico, uma marca absolutamente operante.

No início de sua obra, em 1895, Freud formula seu Projeto para uma Psicologia

Científica. Este Projeto, uma tentativa de estruturar uma psicologia conforme o paradigma de

ciência da época, apontava para os esforços do autor de verificar um Outro lugar para o

sujeito. Sob a forma de uma escrita minuciosa, Freud busca conferir consistência aos

processos psíquicos, representando-os como estados quantitativamente determinados de

partículas materiais especificáveis, os neurônios. O uso de termos neurológicos, com os quais

Freud descreve as idéias do Projeto, explicita a marca de sua formação e a preocupação em,

neste momento, alinhar a este saber sua proposta.

Segundo Foucault (2001:125), a medicina ganhou cunho científico por conta do

aparecimento da anatomia patológica. Ao localizar no corpo biológico a lesão, cuja

investigação e observação poderiam suscitar estudos para sua terapêutica, a medicina passa a

funcionar a partir dos mesmos pressupostos da ciência. “A ciência moderna surge quando a

observação, a experimentação e a verificação de hipóteses tornam-se os critérios decisivos,

suplantando o argumento metafísico” (Marcondes, 1998:150).

Page 10: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

3

A afirmação de que a medicina pode ser classificada como pertencente ao campo da

ciência nos convocou a prosseguir este estudo, desdobrando, no entanto, a questão inicial

entre psicanálise e medicina para o exame do que circunscreve a relação entre psicanálise e

ciência. De acordo com Lacan, o surgimento da psicanálise é tributário de condições

instaladas pela ciência moderna, cujo discurso introduziu uma marca essencial à psicanálise,

que visamos verificar com detalhes nesta pesquisa. A obra de Lacan fornece meios para

pensar a psicanálise como um discurso que, sendo ao mesmo tempo historicamente

dependente do nascimento da ciência, é, entretanto, capaz de se sustentar por seus próprios

fundamentos.

O objetivo deste trabalho é investigar a relação entre psicanálise e ciência, através da

noção de um termo comum: o sujeito. A abordagem desta questão, pelo eixo do sujeito,

encontra numa afirmação de Lacan seu pontapé inicial. Em seu texto “A ciência e a verdade”

(1966a), Lacan diz que o sujeito com o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência. Tal

postulação sugere uma aproximação importante entre os dois campos, de modo a nos instigar

um exame mais apurado desta. Como definir este sujeito? O fato de Lacan apontar para um

mesmo sujeito em ambas permite dizer que a psicanálise é uma ciência? Será que este sujeito

reconhecido pela psicanálise é também aceito pela ciência?

A fim de desdobrar estas interrogações, seguiremos, no primeiro capítulo intitulado

“Psicanálise e Ciência”, a trilha indicada por Lacan, que tem no cogito cartesiano o fio que o

guia ao sujeito de que se trata. A importância do cogito para a psicanálise refere-se ao sujeito

como também à fundação do método científico, no qual ela se inscreve. O que fica sublinhado

a partir das considerações de Lacan é a importância do cogito para a psicanálise, uma vez que,

através dele, o sujeito é inaugurado em sua vertente simbólica. É somente nessa dimensão que

algo pode ter valor de existência para o ser falante.

Essa constatação nos leva ao segundo capítulo, “Articulações sobre o Simbólico”, no

qual abordaremos a relação entre o sujeito em questão e o conceito de simbólico, tal como

pensado por Lacan, o que nos remete ao início de seu ensino e à introdução de alguns

elementos cruciais nesta articulação, tais como as noções de: Outro, imaginário, real,

significante e sujeito dividido. Desse primeiro tempo em que a questão do simbólico, fala e

linguagem foi privilegiada, Lacan extrai uma de suas grandes contribuições à psicanálise, a de

que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Do estudo da linguagem, destacamos

o termo significante, já que é dele a função de representar um sujeito para outro significante.

Page 11: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

4

Ressaltamos que o sujeito a que nos referimos é atravessado pelas dimensões do Real,

Simbólico e Imaginário, através das quais buscaremos delimitá-lo.

Após percorrer esses conceitos, retornamos ao cogito, com elementos que permitiram

uma nova leitura deste. A partir da perspectiva da psicanálise, mais precisamente da

introdução do inconsciente no cogito, Lacan (1957) o reformula: no lugar de “penso, logo

sou” - afirma: “penso onde não sou, logo sou onde não penso”, apontando assim um Outro

lugar para o pensamento que não o eu consciente.

Ainda hoje acompanhamos o debate sobre a cientificidade da psicanálise (Cezimbra,

2004). Esta polêmica pode ser bastante interessante, visto que proporciona repensar as

peculiaridades destes discursos e a possível interseção entre eles. As pesquisas que vêm sendo

desenvolvidas no campo da medicina e neurociências buscam fazer avançar o conhecimento

sob a forma de um discurso neuro-comportamental. O que se percebe ao lado destes estudos

que têm sua importância ao investigar imagens, funcionamento cerebral e circuitos

neuroquímicos, é um risco que se evidencia com a supressão do sujeito. Em nome deste

discurso, a subjetividade passa desapercebida. Isto se coloca uma vez que o específico da

psicanálise – o sujeito do inconsciente – pode sofrer um apagamento, por ser situado na visão

de alguns autores como uma localização cerebral, em detrimento do que aposta a psicanálise:

um efeito do discurso. Ao substancializar o inconsciente, perde-se de vista que a subjetividade

humana, como aponta a psicanálise, é marcada pela linguagem que é material. Não se trata de

partilhar mente e corpo. Ao contrário, a subjetividade de que se fala só pode ser enunciada a

partir de um corpo real, que também é subjetivado de modo singular por cada sujeito.

Diante disto, é fundamental que se possa conceituar tanto quanto é possível dizer deste

sujeito, que Lacan remete à psicanálise e à ciência, na medida em que têm relação direta com

a questão da linguagem, de modo a sustentar sua especificidade frente a leituras que não o

consideram tal como Freud o enunciou.

Considerando as conseqüências clínicas que o discurso psicanalítico pode acarretar,

pois que implica uma posição do analista frente ao sujeito e à direção do tratamento, cabe

avaliar como fazer valer o discurso psicanalítico no intercâmbio com outros discursos com os

quais, no âmbito da saúde mental, se entrecruza. Se não é possível substancializar o

inconsciente, de que modo sustentar os efeitos que produz? A fim de ilustrar a interface do

discurso psicanalítico com os discursos médico e pedagógico, concluímos o segundo capítulo

Page 12: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

5

com um fragmento de caso clínico, pontuando que, apesar de o sujeito ser excluído e calado

pela ciência, ele não emudece, e é a clínica psicanalítica que pode acolhê-lo.

O título “Do sujeito do cogito ao sujeito da clínica” já indica que é à passagem do

primeiro tempo de origem do sujeito ao segundo momento, o de sua inclusão na clínica, que

dedicamos a investigação do terceiro capítulo. Apesar de tratar-se do mesmo sujeito, os dois

tempos destacados guardam suas diferenças no que tange ao modo como o sujeito é neles

tomado. Se o cogito inaugura o sujeito reduzido ao significante, fato que justifica a dívida da

psicanálise ao campo da ciência, a psicanálise, contudo, ainda que o reconheça como efeito do

significante, confere a partir da clínica que o sujeito não se resume a esse. Assim, na medida

em que o sujeito só se representa parcialmente, sendo na não representação que o real pode

comparecer pela angústia que o acomete, sugerimos articular os termos sujeito, real e

angústia, a fim de avançar mais nessa tentativa de afinar o que é esse sujeito para a

psicanálise. Para tal discussão, contamos com alguns textos centrais da obra freudiana que

versam sobre o tema da angústia, como “Inibições, sintomas e angústia” (1926a), e as

Conferências XXV (1917), e XXXII (1933a) sobre angústia. Dessas leituras, foi possível

afirmar com Elia que: “a emergência da angústia é a emergência do sujeito” (2004:13), na

medida em que a angústia é uma das formas de manifestação do sujeito frente ao real. Em

outras palavras, a angústia anuncia o núcleo real do sujeito.

Se a possibilidade de abertura ao campo da psicanálise é conseqüência da produção do

cogito e esse é resultante do campo científico, indagamos: o que surge de inovador no quadro

da ciência moderna que traz como efeito a formulação do sujeito? É essa a questão que nos

instiga no quarto e último capítulo, intitulado “O que o simbólico pode frente ao real? ou O

real como interrogação do simbólico – (mito, ciência e psicanálise)”. Para pesquisar o que

veio de novo com a ciência, foi necessário estudar o que a antecedeu tanto dentro como fora

de seu campo, isto é, a episteme antiga e o mito. Apostamos que analisar alguns aspectos

particulares do mito e da episteme antiga e em relação a que pontos a ciência moderna opera

uma ruptura com esses nos permitirá circunscrever melhor como a ciência moderna se

constitui. A partir daí, teremos mais condições de examinar o tratamento dado ao real nos

campos do mito e da ciência, bem como no da psicanálise. Nosso interesse acerca do real

desponta, pois, como vimos no capítulo anterior, o real concerne ao sujeito.

Dividimos o desenvolvimento desse último capítulo em três partes: na primeira - “Lévi

Strauss com Freud e Lacan: O mito na antropologia e na psicanálise” - retomamos o artigo de

Page 13: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

6

Strauss (1949) sobre eficácia simbólica, com o objetivo de ganhar elementos na discussão

sobre o tema do mito, e verificamos como o real é abordado no mito, bem como o mito é

tomado em psicanálise; na segunda parte - “O Real e os Planetas: da episteme antiga à ciência

moderna”, investigaremos essa passagem do antigo ao moderno e em que o sujeito da ciência

e psicanálise é tributário dessas mudanças; na terceira parte do capítulo, - “O Real e o

Sujeito”, discutimos a relação entre os termos sujeito e real, situando o último como resto da

operação da ciência, que, por ser não-todo dominado, insiste e retorna afetando o sujeito. É a

psicanálise que vai oferecer uma escuta e um trabalho ao sujeito acerca disso que não se cala,

tendo como direção que o sujeito tome lugar no real.

Esta pesquisa tem como orientação fundamental as obras de Freud e Lacan, entre

outros autores que abordaram o tema da relação entre psicanálise e ciência e seu sujeito. É a

diferença que aparece no encontro entre psicanálise e ciência, mais precisamente o tratamento

de ambas para com o sujeito, que nos incita a pesquisar sobre este e os respectivos campos

nessa relação. Se psicanálise e ciência é o cenário ou contexto que nos instiga, é também

ponto de partida, pré-texto2, para uma investigação acerca da noção de sujeito. Seja como

contexto ou pré-texto, são as aproximações e afastamentos entre psicanálise, ciência e o

sujeito que lhes concerne, que debruçamo-nos na construção do que se segue em nosso texto.

2 Observação de Marco Antônio Coutinho Jorge no exame de qualificação.

Page 14: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

7

CAPÍTULO I

PSICANÁLISE E CIÊNCIA

A discussão sobre a psicanálise ser ou não uma ciência não é nova ao seu campo. Esta

questão requer um exame minucioso da relação entre ambas, uma vez que a ciência está

implicada no passo psicanalítico desde o nascimento deste. A relação entre elas vem da

origem da psicanálise que, apesar de não ter se restringido ao campo discursivo da ciência,

teve aí sua possibilidade de surgir. A psicanálise é filha da ciência na medida em que é

conseqüência da marca instaurada por ela. No entanto, apesar de derivar da ciência, não se

reduz a ela, operando uma ruptura para estabelecer sua especificidade. Dois movimentos

podem exprimir a relação de que se trata aqui, qual seja, de advir e romper. Se a psicanálise

advém da ciência, ela precisa romper com algo que marca sua filiação para valer-se de seu

nome. Desta forma, é possível delimitar pontos de aproximação e afastamento entre estes

campos que, mesmo sem compor um, compartilham elementos que atestam o fato de haver

uma interseção presente.

A afirmação lacaniana de que “o sujeito sobre quem operamos em psicanálise só pode

ser o sujeito da ciência” (Lacan, 1966a: 873) é não só o ponto de interseção por nós aqui

selecionado como também nosso ponto de partida para o estudo deste tema. De modo que a

direção colocada é a de tirar as conseqüências da postulação de Lacan, a fim de analisar a

questão que nos impulsiona. Foi a partir das contribuições deste autor que se pôde avançar

com novos elementos sobre este assunto. Ao introduzir um novo olhar neste debate, Lacan

permite afirmar o papel fundamental da ciência no surgimento da psicanálise.

Verifica-se uma diferença radical nas posições de Freud e Lacan no que tange a

relação entre psicanálise e ciência. Se para Freud, segundo Milner (1996), a ciência

representava um ponto ideal, não se pode dizer o mesmo quanto à posição de Lacan. Lacan

não acredita num ideal de ciência para a psicanálise, uma vez que para ele a ciência é

essencial à existência da psicanálise, não se colocando, portanto, como ideal. A ciência não é

exterior à psicanálise, “ao contrário, ela estrutura de maneira interna a própria matéria de seu

objeto” (Milner, 1996:31). Do ponto de vista de Lacan, se não existe um ideal de ciência para

a psicanálise, não há, portanto, para ela ciência ideal a seguir. “A psicanálise encontrará em si

mesma os fundamentos de seus princípios e métodos” (ibidem, p.31).

Page 15: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]
Page 16: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

9

“Dizemos que essa via nunca se desvinculou dos ideais desse cientificismo, já que ele é assim chamado, e que a marca que traz deste não é contingente, mas lhe é essencial. E que é por esta marca que ela preserva seu crédito, malgrado os desvios a que se prestou, e isso na medida em que Freud se opôs a esses desvios sempre com uma segurança sem retardos e com um rigor inflexível” (ibidem, p.871-72).

Tomando as palavras de Lacan, interrogamos: Em que medida pode-se dizer que a

marca da ciência é essencial à psicanálise? Tal pergunta se coloca como motor deste estudo

que pretende articular estes dois campos distintos, porém entrelaçados. A pontuação de Lacan

de ser a ciência imprescindível ao aparecimento da psicanálise nos convoca a investigar qual

marca é essencial à psicanálise. Através das formulações lacanianas, estes dois campos se

estreitam pela noção de sujeito. Seria, então, o sujeito a marca essencial de que fala Lacan?

A afirmação lacaniana de que o sujeito com que a psicanálise opera é o sujeito da

ciência aponta para o fato de que o sujeito do inconsciente, sobre o qual a operação analítica

se dá, é o sujeito da ciência. Enquanto ponto comum entre ambas, o conceito de sujeito será

tomado por Lacan como fio condutor desta articulação. É pelo viés do sujeito que vai

trabalhar a proximidade destes campos. O conceito de sujeito da ciência é, apenas em parte,

lacaniano, uma vez que a definição de ciência moderna não é dele, ainda que seja dela

decorrente a figura do sujeito que compõe sua postulação. De acordo com Milner (1996), este

conceito advém da hipótese sustentada por Lacan de um sujeito da ciência, ou seja, de um

sujeito constituído pela determinação científica. Esta hipótese implica dizer que a ciência

moderna determina um modo específico de constituição de sujeito. Se o sujeito, lançado nesta

hipótese, é aquele que Lacan, em seguida, afirma ser o mesmo sujeito da psicanálise,

colocam-se as seguintes perguntas: o que há de específico na constituição deste sujeito pelas

determinações científicas que o faz sustentar que é o sujeito da psicanálise? Por que Lacan

insiste em afirmar que é o mesmo sujeito? De que modo ele chega a sua hipótese do sujeito da

ciência?

No intuito de precisar o conceito de sujeito da ciência, Lacan destaca um momento

historicamente definido do sujeito, que considerou ser o correlato da ciência, qual seja, o

cogito inaugurado por Descartes. Este momento representa o rechaço de todo o saber. A

oposição ao saber existente se deu pelo método cartesiano fundamentado na dúvida que passa

a incidir em tudo, sendo apenas sustentável o que a ela resistisse. Na medida em que tudo

passava pela dúvida, enquanto condição metódica, como adquirir alguma certeza? Angustiado

pelo efeito da pergunta por ele instalada, era preciso a Descartes a produção de uma resposta

Page 17: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

10

que trouxesse uma ancoragem à condição subjetiva que se encontrava. Esgotando tudo o que

lhe passava pela cabeça através da dúvida, ele formula a seguinte resposta: - “só posso estar

certo de que penso, pois mesmo que disto duvide, ainda assim continuarei pensando” (Elia,

2000:21). O pensamento passa a ser assim aquilo que resiste à dúvida, tornando possível a

formulação do cogito.

O cogito cartesiano refere-se à seguinte postulação: “Cogito, ergo sum: penso, logo

sou” (Lacan, 1957:519). Conclui-se a partir daí que o ato de pensar é o que garante a

existência do sujeito já que, mesmo duvidando do pensamento, ele permanece. O pensamento

é exigível até para se duvidar. O privilégio de ser está no fato de haver pensamento. Uma vez

que há pensamento, ou seja, simbólico, linguagem, há ser. A existência do sujeito é afirmada

pelo ato de pensar. O cogito afirma o ser enquanto pensante. Ao tomar o cogito como

referência para sua definição de sujeito da ciência, portanto também da psicanálise, Lacan

sublinha a importância da dimensão simbólica do sujeito. Se Descartes afirma que o

pensamento é a garantia de existência, é Lacan quem supõe aí um sujeito. A formulação de

que há um sujeito do pensar é própria a Lacan, que se debruçou sobre o cogito, de modo a

dizer que, através dele, Descartes inventa o sujeito moderno. Lacan acrescenta à proposição

de Descartes de que existe pensar o fato de que existe um sujeito que pensa. E desta forma

demonstra a importância do cogito para que Freud tempos depois fundasse o inconsciente.

Descartes fundamentou a importância do pensamento para a existência do sujeito, e Freud

tomou este pensamento para formular sua teoria do inconsciente. O pensamento de que Freud

trata é o pensamento inconsciente por excelência, uma vez que, se ele se manifesta no sonho,

no ato falho, testemunha a divisão do sujeito. Na medida em que para a psicanálise o

pensamento é inconsciente, o sujeito do pensar é o sujeito do inconsciente. Este

desdobramento feito por Lacan aponta a condição que o cogito criou para o aparecimento da

psicanálise.

Segundo Milner (1996), a formulação do cogito faz de Descartes o primeiro filósofo

moderno. O cogito funda a ciência moderna, no sentido do moderno como uma ruptura com o

pensamento dominante até aquele momento. Se Galileu criou a ciência moderna, cujo modelo

é a física matematizada, Descartes o fez pelo viés da subjetividade. Desta forma ambos, do

lugar específico de onde trabalhavam, criaram condições para o surgimento da ciência

moderna:

Page 18: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

11

“Podemos dizer que àquilo que se produziu como fundação da ciência no sentido moderno do termo, a física moderna, empírica e matematizada (Galileu), corresponde uma elaboração filosófica que consiste em tirar as conseqüências desse ato por relação à subjetividade (Descartes)” (Elia, 2000, op.cit, p.21).

Através do cogito, Descartes inventa o sujeito moderno, chamado de sujeito da ciência

por Lacan. Assim, Lacan atribui um sujeito da ciência inaugurado por Descartes, de modo que

por sua interpretação há na fundação da ciência também a invenção de uma nova concepção

de sujeito. E na medida em que a psicanálise é moderna, uma vez que só aparece a partir do

corte inaugurado pela ciência moderna, o sujeito freudiano não pode ser outro senão o sujeito

cartesiano. O pensamento cartesiano tem função crucial tanto para a psicanálise quanto para a

ciência.

Enquanto operação introdutória da ciência moderna, a física matematizada, ao

submeter seu objeto a tal operação, o despoja de suas qualidades. De acordo com Milner, uma

teoria do sujeito que pretenda responder a tal operação da física deverá também despojar o

sujeito de toda e qualquer qualidade. Este sujeito despojado de qualidades, que segue a

determinação científica, é o sujeito da ciência:

“ele não é mortal nem imortal puro nem impuro, justo nem injusto, pecador nem santo, condenado nem salvo; não lhe convirão nem mesmo as propriedades formais que durante muito tempo havíamos imaginado constitutivas da subjetividades como tal: ele não tem nem Si, nem reflexividade, nem consciência ”(Milner, 1996, op cit, p.33).

Este é o existente que o cogito faz emergir, ou seja, um sujeito sem qualidades, cujo

pensamento que atesta sua existência também é qualquer. Este existente, chamado de sujeito

por Lacan, responde ao gesto da ciência moderna, no sentido de trazer para o sujeito as

características científicas. O pensamento sem qualidades inaugurado pelo cogito é apropriado

tanto à ciência quanto à psicanálise, e pode-se colocar que esta é a marca da ciência essencial

à psicanálise, ou seja, o despojamento de qualquer qualidade para o sujeito. Deste modo,

Freud deve à ciência não ter se tornado humanista, já que a psicanálise não trata do homem,

mas do sujeito. Esta é a marca essencial da ciência à psicanálise, uma vez que a ciência foi a

primeira a falar de coisas sem homem, ainda que pelo preço de também eliminar o sujeito.

Foi com o surgimento das ciências humanas que a ciência passa a atribuir ao sujeito

qualidades, numa tentativa de torná-lo consistente. Desta forma atestam sua impossibilidade

em tratar o real do sujeito pelo simbólico já que, para tratar de algo que diz respeito ao sujeito,

Page 19: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

12

precisam transformá-lo no que ele não admite e não é, ou seja, um indivíduo com atributos. A

psicanálise não pode ser classificada no campo das ciências humanas, pois não é com o

homem que ela opera. O homem com o qual as ciências humanas trabalham é o efeito no

sujeito da ciência de uma operação de humanização.

O sujeito de que se trata aqui sofre diversas determinações que não devem ser

desprezadas, no entanto sua questão ultrapassa características ou a contextualização social que

o envolve:

“O sujeito do inconsciente não é, em si mesmo, pobre ou rico, branco ou negro, tampouco – e aí se situa talvez o ponto mais escancarado da descoberta freudiana – homem ou mulher. É em sua relação com a alteridade, em que para ele consistem a linguagem, a família, a sociedade, enfim, todos os elementos do que Lacan denominou o Outro, que o sujeito vai sexuar-se, definir-se homem ou mulher, e definir seus demais atributos”(Elia, 2000, op cit, p. 26).

Sendo o inconsciente um pensamento sem qualidades, faz sentido que Freud tenha

colocado apenas uma regra de valor fundamental a seus pacientes: falar tudo o que vier à

cabeça. É somente através do discurso do sujeito que se pode ter notícias de seus

pensamentos, do que é da ordem do inconsciente. As manifestações inconscientes aparecem

no discurso do sujeito, revelando pensamentos ainda desconhecidos.

Através do cogito, Descartes fundou o método científico que fundamenta o discurso da

ciência e no qual também a psicanálise se inscreve:

“tornou-se possível a construção de uma linguagem conceitual dentro da qual os objetos, até então inapreensíveis, puderam adquirir existência. O cogito cartesiano inaugura uma cisão do objeto na ciência, e por conseguinte, no discurso: de um lado, o objeto real – por exemplo, a estrela no céu, – do outro o objeto construído como conceito, ou seja a simbolização do objeto, a estrela formulada no papel do astrônomo fazendo-a existir no papel e no cálculo científico, substituindo metaforicamente aquela que continua no céu” (Alberti, 2000:54).

O cogito inaugura a possibilidade de tratar os objetos pelo simbólico, através da

linguagem, falar em conceito. Fazer existir no simbólico é a única forma pela qual o ser

humano por meio da linguagem pode apreender qualquer objeto. Se o cogito atesta a

existência do ser pelo fato de haver pensamento, é porque faz valer a dimensão simbólica. A

condição de existência se dá pelo fato de passar pelo pensamento. Desta forma, privilegiando

o simbólico, o cogito faz existir o sujeito enquanto objeto do pensamento, o que é

radicalmente distinto do sujeito em sua vertente real e imaginária.

Page 20: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

13

As determinações científicas criadas por Descartes dizem respeito à existência de um

pensável e um impensável, um dizível e um indizível, um conceituável e um impossível de

conceituar. Desta forma, pode-se dizer que a ciência testemunha o fato de que há um

impossível em jogo de dar conta, ainda que se debruce sobre o estudo do pensável, dizível e

conceituável, ou seja, daquilo que pode se apreender pelo simbólico. A psicanálise tem como

referência as mesmas determinações da ciência, no entanto, diferente desta, se ocupa também

do impensável, indizível, que diz respeito ao lado real do sujeito.

Segundo Lacan, psicanálise e ciência têm no eixo do sujeito um ponto de interseção.

Vale ressaltar que dizer ser o sujeito da ciência uma hipótese lacaniana, implica colocar ter

sido no campo da psicanálise, ou seja, do lugar de psicanalista ocupado por Lacan que surgiu

esta formulação. De modo que, pensar um sujeito no campo da ciência como proposto por

Lacan, só foi possível pela trilha de seu percurso, que o levou às origens da psicanálise, e daí

à ciência, apontando esta como imprescindível ao aparecimento da psicanálise. Uma vez que

o psicanalista é aquele que privilegia o sujeito em sua intervenção, pode-se dizer que Lacan

foi por esta via verificar como a ciência o trata. Deste modo, uma pergunta que pode ter

levado Lacan a esta direção é: Sendo a psicanálise produto da ciência, como relacioná-las,

senão retornando ao discurso que lhe deu origem, interrogando aí, que lugar dá a ciência ao

sujeito do inconsciente?

Se Lacan sustenta que a ciência inaugura uma nova concepção do sujeito, disto não

decorre que este sujeito seja por ela aceito em sua operação. Ao contrário, pode-se afirmar

que, para constituir-se enquanto tal, ela precisa excluir de seu campo este mesmo sujeito por

ela inventado. Ainda que o sujeito da psicanálise seja o mesmo da ciência, daí não resultam

sobre ele operações equivalentes. A posição que o sujeito ocupa nestes discursos e a forma

como ambas operam sobre ele são fundamentais na compreensão da relação entre psicanálise

e ciência.

Ao introduzir o sujeito no centro de seu discurso, a psicanálise passa a incluí-lo em seu

campo operatório. A psicanálise subverte o sujeito da ciência, inserindo-o em seu campo de

experiência como sujeito do inconsciente. Em contraponto, a ciência realiza uma exclusão do

sujeito da cena discursiva, que resta como elemento extraído, não por acaso, mas justo para

que o discurso opere na sua forma própria. Dizer que “o sujeito sobre quem operamos é o

sujeito da ciência”, já admite em si a especificidade psicanalítica, qual seja, a de tratar do

sujeito através de uma determinada operação. A ciência, de outro modo, faz uma operação, no

Page 21: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

14

entanto não sobre um sujeito, até porque exatamente este que precisa estar ausente. A ciência

deixa de fora de sua operação o sujeito por ela gerado, de forma a se poder afirmar que a

psicanálise inclui em seu campo o excluído pela ciência:

“a psicanálise constitui um saber inteiramente derivado porém não integrante do campo científico, porquanto resulta de uma operação de “subversão” desse campo pelo viés do sujeito: Lacan afirma a existência de um sujeito da ciência, constituído no e pelo mesmo ato fundador da ciência moderna com Galileu e formulado por Descartes” (Elia, 2000, op cit, p.21).

Dizer que a psicanálise compartilha do mesmo método que a ciência é dizer de acordo

com Elia que: “tratar o real pelo simbólico é a démarche científica por excelência” (idem,

1999:42). No entanto, se a psicanálise por um lado se inscreve neste método, por outro, ela

rompe para criar um método próprio, particular a ela. Pode-se dizer que um sujeito vem

buscar análise, ali onde pela emergência do real, seu recurso simbólico falha. O real implicado

na experiência da análise exige ser tratado pelo simbólico da teoria. É a única forma de se

tratar o real, ou seja, pela via do simbólico:

“A psicanálise, ao retomar uma démarche científica, subverte o sujeito suposto e excluído, a um só tempo, pela ciência, e trabalha a partir da inclusão do sujeito no campo de sua experiência, inclusão que curiosamente se faz, não por acaso ou contingência, pela via do inconsciente: retirado da condição de excluído, condição própria ao sujeito da ciência, o sujeito da psicanálise só pode ser incluído como sujeito do inconsciente” (idem, 2000:22).

Mas, se ambas tratam o real pelo simbólico, há uma diferença em seus recortes. A

tentativa da ciência é de fazer um recorte ali onde o simbólico possa nomear os fenômenos,

conferindo a este a possibilidade de tudo abarcar, ou seja, a ciência trata do real apenas

enquanto pode ser inscrito no simbólico. Uma vez que o campo da ciência é o das

representações, o que não pode ser nomeado fica fora de seu campo. No caso da psicanálise, o

simbólico é entendido como incompleto, permitindo com que o furo real da estrutura psíquica

apareça e seja cuidado. Esta distinção é exatamente o ponto crucial que faz da psicanálise um

método particular, já que é a única que opera sobre o real neste sentido, ou seja, incluindo-o

sem tentar dar conta dele. Talvez seja possível formular que a máxima elaboração simbólica

possível que o sujeito pode fazer do real é que seu recurso simbólico lhe falta para assimilá-lo.

A operação de castração é uma operação simbólica do fato de que há um real em jogo. O

Page 22: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

15

trabalho analítico é o de constatar este furo no simbólico, esta impossibilidade constituinte do

ser falante. Este é um trabalho somente possível ao método psicanalítico, em que o analista,

marcado pela castração pode operar um efeito desta natureza, causador de trabalho no sujeito.

Elia (1999), fala de uma relação de extimidade entre os campos da ciência e da

psicanálise, considerando a noção de “êxtimo” de Lacan, no sentido de um mais além em

relação ao seu referente. Segundo Elia, a psicanálise encontra-se num lugar mais além,

exterior ao referente da ciência, porém situada no interior desta. Ainda no domínio da ciência,

a psicanálise dela se afasta num ponto por aquela inapreensível. Deste modo, sem dispensar as

referências da ciência, ou seja, dela se servindo, a psicanálise, para operar como tal, precisa

também dela prescindir.

A fim de demarcar sua especificidade que comporta uma diferença radical para com a

ciência, a psicanálise precisou inaugurar um novo campo, um outro discurso. A ciência faz

parte de um discurso constituído pela invenção do sujeito cartesiano que precisa ser ejetado da

cena para que ela opere. Se ambas se confrontam com a dimensão real, agem frente a ela de

formas diferentes. O campo da psicanálise é êxtimo à ciência, já que foi criado a partir da

captação do efeito do sujeito foracluído no próprio corpo da ciência.

Lacan conceitua a dimensão real como aquilo que é impossível de simbolizar. É assim

que se apresenta tanto à ciência quanto à psicanálise, como algo que não cessa de não se

escrever, exigindo assim algum trabalho sobre a condição que impõe. A psicanálise trata

simbolicamente o real, através da inscrição de um impossível. Inscrição esta que constitui o

discurso psicanalítico, no que supõe um furo, um limite no simbólico. Esta operação toma o

real na sua própria condição, ou seja, condição de limite para o ser falante. No caso da

ciência, ao excluir o sujeito do seu campo, não o inclui como real, como o que não cessa de

não se escrever. Incluir o real como impossível a dizer é diferente de excluí-lo. Apesar de

excluído pela ciência, o real permanece consistindo, como no caso da psicose. Este real

excluído, que não por isto permanece mudo, foi tomado por Freud em sua manifestação,

sendo possível daí criar o método psicanalítico.

Segundo Elia (1999), a psicanálise é a ciência, com a condição de que a operação de

inscrição do furo no simbólico tenha tido lugar. “Propomos que esta operação seja uma das

interpretações possíveis da castração. Assim, a psicanálise é a ciência castrada” (p.52).

Tomar o simbólico como incompleto, furado, é o que dá o norte à ética da psicanálise.

Em seu Seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-60), Lacan indica a dimensão real

Page 23: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

16

como fundamental para orientar a prática clínica do analista. Como pensar uma ética referida

a algo que se escreve para o sujeito como impossível de simbolização? Vejamos um

fragmento da clínica: P chega ao grupo de recepção de saúde mental no Posto de Saúde onde

trabalho, bastante agitado. Nos três encontros do grupo queixou-se das coisas que perturbam

sua cabeça, porém quando perguntado sobre estas dizia:- “preciso de dinheiro”. P insistia em

dizer que precisava muito de dinheiro, que, conseguindo, resolveria tudo. Pergunto como

poderíamos lhe ajudar, ao que ele responde: - “Dra, estou desesperado, não tenho dinheiro, sei

que a Sra não pode me dar. Sabe o que é? Tem um buraco no teto da minha casa e quando

chove fica tudo inundado, preciso de dinheiro para tapar este buraco”. Privilegiar o real como

referência da clínica possibilitou uma escuta da posição subjetiva de P, para além do fato

concreto que trazia. P estava inundado pelo real. Angustiado, buscava ajuda para tapar o furo.

O buraco do teto (do simbólico) esgarçado pela presença do real o dificultava até para

expressar sua história. Como simbolizar o furo colocado pelo real, para poder trabalhar e

conseguir dinheiro para ajeitar o buraco no teto da casa? A referência à dimensão da

experiência real do sujeito direciona a escuta do psicanalista. É o furo no simbólico entendido

como algo que constitui o sujeito que vai orientá-lo na condução do tratamento.

Em sua conferência XXXV, intitulada ”A questão de uma Weltanschauung”, Freud

(1933b) já falava à sua forma da incompletude do simbólico. Ele situa a psicanálise na

qualidade de ciência especializada, indicando que ela pode aderir a uma Weltanschauung

científica. Aponta que na sua visão só existem dois tipos de ciências: pura ou aplicada e

ciência natural:

“...Weltanschauung (Cosmovisión) é uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência, uniformemente, com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo”(1933:146).3

Se uma Weltanschauung supõe responder a tudo, ou seja, não inclui em si o furo, a

psicanálise não pode ser classificada como uma. No entanto, Freud encontra características na

ciência, próprias a sua constituição e que divergem da formulação exposta sobre uma

Weltanschauung, encontrando aí um lugar para a psicanálise. Freud conclui que a

3 As referências à obra de Freud foram consultadas nas edições: Brasileira - Imago e Espanhola - Amorrortu, sendo essa última privilegiada em nossa leitura e tradução.

Page 24: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

17

Weltanschauung científica não é capaz de abranger tudo, que é incompleta e não pretende ser

auto-suficiente, nem construir sistemas. Esta incompletude, que desenha a Weltanschauung

científica, pode ser considerada como um ponto do qual a psicanálise se aproxima. Este

aspecto caracteriza algum acolhimento, se podemos assim dizer, da dimensão real. Se o real

escapa a qualquer teoria, sistema, ou forma de pensamento, é porque aponta em sua condição

um limite. De modo que uma suposta completude ou uma verdade absoluta cai por terra nesta

visão. A impossibilidade é inerente à própria constituição da ciência. Por não se constituir

como uma visão de mundo, a psicanálise não pretende ser um sistema completo. Ao contrário

pretende-se incompleta, fundada no vazio, no buraco do real e, enquanto discurso do singular,

abre espaço para questionar o que se apresenta de maneira fechada.

A Weltanschauung da ciência comporta certas características que lhe são próprias. Ela

rejeita elementos que lhe são estranhos, limitando-se ao seu saber constituído até o presente.

Sustenta ser a única forma de conhecimento aquela dada pelo método de pesquisa que

consiste na observação e elaboração intelectual, destituindo assim qualquer saber derivado da

revelação, intuição ou adivinhação. Ainda que algumas diferenças sejam colocadas entre estes

campos, a psicanálise aceita a Weltanschauung científica, na medida em que a ciência traz

uma marca essencial à psicanálise, qual seja, a invenção do sujeito cartesiano, por

conseguinte, a impossibilidade de totalização.

Freud situa, nesta conferência, a relação da psicanálise com a ciência em termos de

complementação e contribuição da primeira à segunda, uma vez que a psicanálise estendeu a

pesquisa científica à área mental. De acordo com Freud, a ciência estaria muito incompleta

sem a psicanálise. Isto nos remete ao apontamento feito por Lacan sobre o sujeito da ciência.

Se a ciência, como diz Freud, fica incompleta sem a psicanálise, é porque ela exclui o

elemento que somente a psicanálise, por seu método, reintroduz. O sujeito do inconsciente,

recolocado em cena pela psicanálise, atesta um ponto limite da ciência. Isto se destaca, já que

a ciência procura evitar fatores individuais e influências afetivas, ou seja, as variáveis que

advindas do sujeito podem atrapalhar o desenvolvimento de algum raciocínio.

A ciência tem como objetivo chegar à correspondência com a realidade, no que ela

entende como sendo aquilo que existe fora do ser humano, independente deste e decisivo para

a satisfação ou decepção de seus desejos. A essa correspondência com o mundo externo real

dá-se o nome de verdade. É em busca desta verdade que se debruça toda pesquisa científica.

Ao remeter a verdade ao inconsciente, a psicanálise passa a situá-la num lugar distinto ao da

Page 25: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

18

ciência. A verdade para a psicanálise está do lado de fora da ciência, visto que a ciência se

esforça em manter aí o que é da ordem do sujeito.

Freud aponta que a ciência oferece apenas fragmentos de suas descobertas,

colecionando observações de constâncias no curso dos eventos, aos quais dá o nome de leis.

Os achados científicos permanecem como provisoriamente verdadeiros, já que podem ser

substituídos por outros a que se confira maior grau de certeza. A possibilidade de refutar

idéias, colocando-as em dúvida, levando em conta fatores inesperados, dando andamento às

pesquisas, permite uma revisão de alguns pontos para aprimoramento e progresso do trabalho.

Este método empregado pela ciência tem grande semelhança à forma de investigação proposta

por Freud:

“O progresso no trabalho científico é o mesmo que se dá numa análise. Trazemos para o trabalho as nossas expectativas, mas estas devem ser contidas. Mediante observação, ora num ponto, ora noutro, verificamos alguma coisa nova; mas, no início, os elementos não se completam. Fazemos conjecturas, formulamos hipóteses, as quais retiramos quando não se confirmam, necessitamos de muita paciência para que estejamos prontos a todas as possibilidades, renunciamos às convicções precoces, de modo a não sermos levados a negligenciar fatores inesperados... Na análise, porém, temos de prescindir da ajuda fornecida à pesquisa, mediante a experimentação” (ibidem, p.160-61).

Page 26: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

19

CAPÍTULO II

ARTICULAÇÕES SOBRE O SIMBÓLICO

De acordo com Lacan (1966a), o sujeito, enquanto marca instaurada pelo discurso

científico é fundamental à psicanálise. Isto se coloca na medida em que este sujeito, cuja

constituição Lacan atribui à determinação científica, guarda em si uma especificidade crucial

para a prática psicanalítica. O sujeito da ciência, logo, o sujeito freudiano, é o sujeito

cartesiano, uma vez que resulta da formulação do cogito. Ainda que seja tomado de formas

distintas nos respectivos discursos, já que cada qual lhe atribuirá um lugar próprio, segundo a

lógica que o constitui, o sujeito permanece em sua definição.

Considerado como referência para a definição do sujeito da ciência, Lacan atesta com

o cogito a primazia do simbólico. Ao afirmar o ser enquanto prioritariamente pensante, o

cogito privilegia o que é da ordem do simbólico, uma vez que o pensamento é estruturado

com o mesmo estofo da linguagem. Sendo assim, o objetivo deste capítulo é desdobrar,

através de elementos da teoria psicanalítica, a articulação presente entre o sujeito em questão

e o conceito de simbólico trazido por Lacan.

Levando-se em conta que, do ponto de vista da psicanálise, o pensamento de que se

trata é o pensamento inconsciente, o sujeito do pensar, suposto por Lacan, é o sujeito do

inconsciente “...o inconsciente participa das funções da idéia ou até do pensamento” (Lacan,

1953c:260). Com relação ao pensamento, Lacan diz: “Pois Freud designa por esse termo os

elementos que estão em jogo no inconsciente, isto é, nos mecanismos significantes que acabo

de reconhecer nele” (1957:520).

Em seu texto “A ciência e a verdade” (1966a), Lacan faz a ligação entre pensamento e

linguagem a partir de uma determinada leitura do cogito, onde o afirma como referido à

linguagem. Ao escrever, penso: “logo sou” (p.879), aponta que o que está entre aspas, além de

ser o conteúdo do pensamento, é uma fala. Com isto demonstra que o que funda o ser é o

dizer: “logo existo”, ou seja, o ser só é fundado pelo pensamento na medida em que se vincula

à fala. Não há ser fora da possibilidade de se dizer “logo sou”, em que se afirma a existência,

através da linguagem. O pensamento depende da fala para se fazer valer no dito, o que indica

o papel fundamental da linguagem.

A questão da linguagem foi tomada por Lacan com bastante rigor de modo que, no

desenvolvimento de seus estudos e de sua clínica, pôde formular uma de suas mais conhecidas

Page 27: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

20

descobertas: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Apesar de ter se tornado

lugar comum no vocabulário lacaniano, essa frase merece destaque em nossa pesquisa e,

principalmente, neste capítulo que pretende articular dois termos nela contidos: inconsciente e

linguagem.

Na ótica lacaniana, é no discurso da ciência, através do cogito, que o sujeito, tal qual

tomado pela psicanálise, surge em sua definição. Enquanto despojado de qualquer qualidade,

o sujeito cartesiano é puro pensamento. Se para a ciência ele nada importa, à psicanálise, ao

contrário, interessa a escuta do pensamento. São os pensamentos, sejam eles quaisquer, que, a

partir de Freud, passam a situar-se no campo do inconsciente, que fazem valer, através da fala

do analisando, a clínica psicanalítica. A dimensão simbólica do sujeito ganha espaço, desde o

cogito e pela retomada feita pela psicanálise que se debruça sobre o que é da ordem do

pensamento, fala e linguagem do sujeito.

A ciência exclui o sujeito em todas as suas vertentes, de modo que o que é da ordem

de seu simbólico, ou seja, seu pensamento, também não é levado em conta. Esse sujeito, que

pode falar de seus pensamentos, é a psicanálise que recoloca em cena no intuito de produzir

algum saber que lhe diga respeito.

Em julho de 1953, numa conferência intitulada “O simbólico, o imaginário e o real”,

realizada na Sociedade Francesa de Psicanálise, Lacan estabelece pela primeira vez os três

registros psíquicos que nodulados constituem a realidade psíquica do ser falante. Nesta data,

Lacan dava os primeiros passos na abordagem do que nomeou de tripartição “real, simbólico

e imaginário” que, ao ganhar maior consistência ao longo de seu ensino, transformou-se numa

de suas mais importantes contribuições à psicanálise.

O ponto nodal da articulação entre os três registros reside na constatação de que a

estrutura psíquica do sujeito porta uma falta que a constitui. É em torno desta falta nuclear do

psiquismo que real, simbólico e imaginário fazem sua amarração. A marca de uma falta de

ordem real no centro do psiquismo denota um impossível de ser simbolizado. Assim sendo,

tanto imaginário quanto simbólico são afetados pela marca desta falta. A sinalização de uma

incompletude afeta todo o psiquismo humano, uma vez que o registro real figura neste como

eixo central da estrutura. Se o real diz de um impossível e está no núcleo do psiquismo, então

a referência a ele se fará sempre presente. O imaginário se opõe ao real, já que o real é da

ordem do sem sentido e o imaginário diz respeito ao que é da ordem do sentido. É através da

Page 28: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

21

instância simbólica exclusiva dos seres falantes que o sujeito ganha corpo, um corpo de

significantes, como recurso para a função de simbolizar o fato de haver falta.

Foi a partir do privilégio dado à dimensão simbólica que Lacan iniciou seu ensino em

1953. Nesse ano, num discurso proferido em Roma, fez questão de chamar a atenção dos

analistas para a importância das funções da fala e da linguagem, deixadas de lado pelos pós-

freudianos, percebendo que, por serem desprezadas, traziam conseqüências para a clínica

psicanalítica. Como campo central da psicanálise, a fala e a linguagem, segundo Lacan, teriam

caído em abandono desde Freud, de modo que acreditava ser fundamental retomá-las como

tema em seu discurso. Preocupado em apontar à comunidade psicanalítica os rumos que ela

seguia, visto que a prática dos pós-freudianos voltava-se para uma psicanálise ortopédica, a

proposta de Lacan era de reconduzir a experiência psicanalítica a seus fundamentos, ou seja, à

fala e à linguagem, na tentativa de conceituá-las. “Se a psicanálise pode tornar-se uma ciência

– pois ainda não o é –, e se não deve degenerar em sua técnica – o que talvez já seja um fato –

devemos resgatar o sentido de sua experiência” (Lacan, 1953c, op cit, p.268).

O movimento de retomada da fala e da linguagem como pontos cruciais da teoria

psicanalítica foi também um retorno à clínica, enquanto local privilegiado do aparecimento da

psicanálise a partir da fala das pacientes de Freud. Ao atender o pedido de suas pacientes

histéricas, que preferiam falar a que lhes falassem, Freud priorizou a fala dessas mulheres,

dando-lhe um lugar destacado. É a fala do sujeito que funda a psicanálise, por conseguinte,

aquilo que lhe constitui o fundamento, o alicerce. Assim, Lacan ressalta a fala do analisando

como meio de que o analista dispõe para tratá-lo, visto que o discurso revela o lugar de onde o

sujeito fala. Define da seguinte maneira o método psicanalítico:

“seus meios são os da fala, na medida em que ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui a emergência da verdade no real”(ibidem, p.259).

No intuito de salientar a função da fala na análise, aponta que toda fala pede uma

resposta, sublinhando assim o caráter de endereçamento inerente a ela, ou seja, o fato de que

toda fala é dirigida a um Outro, comportando a noção de alteridade, ainda que se esteja

falando sozinho. É o ouvinte a quem a fala se endereça que a interpreta, isto é, que a ela dá

sentido. Assim, pode-se dizer que é o analista quem interpreta a fala endereçada pelo paciente,

sendo no discurso deste que sua intervenção opera. A função da linguagem considerada

Page 29: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

22

primordial para a psicanálise não é a informação, mas a evocação. O que se busca na fala é a

resposta do Outro. É preciso ressaltar que o analista não é idêntico ao Outro, ainda que o

sujeito possa atribuir-lhe este lugar, o que exige do analista um manejo da transferência.

Pode-se dizer que um sujeito busca análise por apostar que o analista detém o saber sobre algo

que lhe falta. O sujeito supõe que, se ele nada sabe, alguém deve saber, o que indica a própria

suposição de estrutura do inconsciente. A atribuição ao analista de um saber do qual ele,

sujeito, não sabe, caracteriza a transferência cujo pivô Lacan nomeou de sujeito suposto saber.

O sujeito se dirige ao analista acreditando que é ele quem sabe, desconhecendo, deste modo,

que o saber que não se sabe mora em Outro lugar. Embora seja o analista que lhe responda,

ele assim o faz através daquilo que do Outro pode recolher.

É a partir da articulação que faz Lacan entre linguagem e transferência, que se pode

destrinchar melhor o lugar delicado em que o analista é convocado. Segundo Lacan, havendo

linguagem, a transferência vai aparecer, pois o próprio funcionamento da linguagem coloca de

um lado o emissor e de outro um ouvinte. O analista ficaria no lugar do ouvinte, a quem a fala

do analisando se dirige. A transferência estabelecida significa atribuir a alguém este lugar de

ouvinte, autorizando que dê sua interpretação daquilo que escuta.

Apesar de ser colocado pelo sujeito num lugar de atribuição de saber, não é desta

posição que o analista deve responder. Há uma particularidade no seu trabalho que diz

respeito ao manejo da transferência:

“A função do analista é sustentar o lugar de não saber, já que somente daí é que se pode operar mudanças no sujeito falante. Ainda que saiba que o analisando lhe supõe um saber é ao inconsciente do sujeito que ele, analista supõe a verdade. Portanto, é preciso recolher e acolher a demanda do sujeito que lhe faz esta suposição para que a transferência estabelecida seja motor do trabalho”.(Erlich, 2005:6).

Como indica Lacan, quando o analista é convocado pelo sujeito, trata-se de exercer

uma função:

“A partir daí, surge a função decisiva de minha própria resposta, e que não é apenas, como se diz, a de ser aceita pelo sujeito como aprovação ou rejeição de seu discurso, mas realmente a de reconhecê-lo ou aboli-lo como sujeito. É essa a responsabilidade do analista, toda vez que intervém pela fala”( Lacan, 1953c, op.cit, p.301).

Page 30: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

23

Podemos retomar a definição de Anna O., paciente de Breuer: a psicanálise é uma

“talking cure”, ou seja, uma cura que se dá pela palavra. Dessa forma, com Anna O.,

sublinhamos a fala como essencial ao processo analítico, uma vez que é por meio dela que o

paciente pode rememorar sua história, reordenando-lhe uma amarração. “É justamente essa

assunção de sua história pelo sujeito, no que ela é constituída pela fala endereçada ao outro,

que serve como fundamento ao novo método a que Freud deu o nome de psicanálise” (ibidem,

p.258).

Considerando que cada sujeito é sujeito da sua história particular, cada qual será

marcado por um determinado texto. É com este texto que pode ser falado em análise que o

paciente chega a suas sessões. No entanto, há parte do texto que falta ao sujeito e Lacan

(1953c) a definiu como: “O inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual,

que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente”

(p.260). Com esta definição, Lacan aponta para a falta constitutiva do psiquismo sob cuja

órbita estrutura-se o inconsciente. Este capítulo que está em branco, que falta ao acesso do

sujeito, pode ser em parte resgatado, já que se encontra escrito em outro lugar. Lacan aponta

alguns destes lugares como: o corpo enquanto núcleo do sintoma histérico, documentos,

arquivos, lembranças infantis, além de tradições que veiculam a história particular de cada

sujeito. Em suas palavras: “o que ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é

sua história” (ibidem, p.263). Pode-se colocar então que o inconsciente é um texto próprio a

cada sujeito, portanto, com determinações particulares a cada um. Enfim, um texto tramado

por significantes, cujo lugar só pode ser o simbólico.

A partir dos estudos de Lacan, a introdução do terceiro termo, ou seja, do Simbólico,

permitiu a formulação de que a relação estabelecida no campo psicanalítico não é dual. Isso se

coloca porque não se trata da relação entre paciente e analista, mas de ambos numa

interlocução com o Outro. O conceito de Outro diz respeito a este lugar de exterioridade em

relação ao sujeito, habitado pela linguagem, portanto pelo inconsciente. Ao se estruturar como

linguagem, o inconsciente aparece na fala pontuando por esse Outro discurso, uma

interrupção. O Outro é um termo central na teoria lacaniana, posto que por anteceder o

sujeito, é imprescindível para a sua constituição. O analista instrumentaliza o sujeito a falar

com o Outro. Com isso, dizemos que a interpretação do analista opera um efeito no sujeito

por apontar-lhe algo que diz respeito a uma verdade sobre a qual não sabe. Nesse sentido, “O

Page 31: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

24

sujeito vai muito além do que o indivíduo experimenta “subjetivamente”: vai exatamente tão

longe quanto a verdade que pode atingir... essa verdade de sua história...”(ibidem, p. 266).

É no retorno à obra de Freud que Lacan passa a sedimentar, com mais elementos, seu

ensino, que tem na letra freudiana sua base. É no texto freudiano que o estudo de Lacan

começa, como é também no relato do texto do analisando que algum trabalho pode se dar,

uma vez que é aí que algo de sua verdade pode aparecer. Dessa forma, diz-se também que um

ato falho, só é falho do ponto de vista do eu, na medida em que rompe com o saber que já se

sabe. Contudo, ao revelar uma verdade do sujeito, pode ser lido como um discurso bem-

sucedido. Podemos dizer que o que Lacan fez foi conceituar aquilo que já se encontrava de

forma embrionária, nos escritos de Freud, o que lhe permitiu desenvolver a partir de sua

leitura as contribuições que trouxe à psicanálise. Afinal, como ele mesmo diz, sua única

invenção de fato foi o objeto a.

A tese de que a linguagem estrutura o inconsciente, isto é, de que a outra cena que

determina o sujeito é feita de linguagem, tornou possível a compreensão de resoluções de

questões e sintomas pela via da análise. Isso se coloca visto que, se o sintoma, por exemplo, é

da ordem do inconsciente, então ele se estrutura como uma linguagem, de modo que é através

da linguagem que pode se desfazer. As modulações do discurso que se dão através das

operações de linguagem velam e revelam, ao mesmo tempo, o desejo do sujeito.

Considerando que o trabalho de análise se dá a partir daquilo que pode ser tratado pela

vertente simbólica do sujeito, ou seja, do que é possível colocar por meio da linguagem, é

também por meio dessa que o que é da ordem do desejo do sujeito pode vir à tona:

“Pois a descoberta de Freud é a do campo das incidências, na natureza do homem, de suas relações com a ordem simbólica, e do remontar de seu sentido às instâncias mais radicais da simbolização no ser. Desconhecer isso é condenar a descoberta ao esquecimento, a experiência à ruína” (ibidem, p.276).

A linguagem para Lacan é não só o tema com que impulsiona seu ensino como

também o que ele eleva ao estatuto de lei que rege o psiquismo humano. A lei de que se trata

é a lei do Outro, enquanto determinante para o sujeito, na mesma proporção em que aponta

para o lugar onde o desejo habita. Assim, a lei do ser falante é a lei do desejo, que só pode

aparecer através da mediação simbólica, manejada pela linguagem, o que coloca a

indissociável relação entre desejo e linguagem. “A linguagem é permeada pelo desejo e o

desejo inconcebível sem a linguagem, e feito da própria matéria-prima da linguagem”

Page 32: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

25

(Fink,1998:73). Dizer que o desejo é o desejo do Outro implica situar, num lugar exterior ao

sujeito, o desejo que lhe afeta, de onde advém sua lei. A linguagem tem um funcionamento

automático, operando independente do sujeito. No entanto, requer leis, regras, operações,

construções que aparecem na modulação do discurso do sujeito. A linguagem como lei remete

ao simbólico, ao passo que somente através das palavras é que o homem faz valer sua lei. A

lei que superpõe a cultura ao reino da natureza é da ordem da linguagem, como no caso das

estruturas de parentesco. Aqui se introduz o complexo de Édipo enquanto orientador de uma

certa lógica subjetiva, fazendo reconhecer em seus efeitos a estrutura da linguagem, que

mesmo que não toda, coloca limites, impossibilidades para o sujeito. Dessa forma, a proibição

do incesto aparece como eixo subjetivo, na medida em que interdita certos objetos ao sujeito,

fazendo valer a impossibilidade, logo, a lei, que é a da linguagem.

Segundo Lacan: “É no nome do pai que se deve reconhecer o suporte da função

simbólica que, desde o limiar dos tempos históricos, identifica sua pessoa com a imagem da

lei” (1953c:279).

A importância atribuída à linguagem justifica-se por sua relação com as formações do

inconsciente. Isso se coloca já que, uma vez estruturadas pela linguagem, é através desta que

as formações do inconsciente se manifestam. Desse modo, no primeiro tempo de seu ensino,

Lacan inaugura a primazia do registro simbólico, campo da linguagem, instância estruturada

pelo significante. De seu ponto de vista, o mundo das palavras cria o mundo das coisas, na

medida em que, através da linguagem, um objeto pode existir no simbólico. Isso não significa

que a linguagem abarque tudo, mas que é apenas na dimensão do simbólico que algo pode ter

valor de existência para o ser falante. O universo humano é o universo simbólico.

Tendo em vista ser no campo do simbólico que algum trabalho pode se dar, então é aí

que a análise pode se desenrolar. Para Lacan, o que está em jogo numa análise é o problema

da relação no sujeito entre a fala e a linguagem. Há uma diferença entre fala e linguagem,

sendo que é à questão da linguagem enquanto estrutura que Lacan vai se dedicar. A fala pode

ser definida como a forma com que cada sujeito vai utilizar-se da linguagem.

Lacan (1957) aponta três paradoxos dessa relação: O primeiro aparece na loucura,

onde há uma fala que recusa a fazer-se reconhecer, aparecendo como obstáculo à

transferência. Além disso, há formação de delírio, podendo ser de natureza fabulatória,

cosmológica, idealista, etc... Enfim, seu efeito é de objetivar o sujeito numa linguagem

estanque, sem relativização, sem dialética, o que indica um comprometimento da dimensão

Page 33: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

26

simbólica. De modo que fica no lugar de objeto; o sujeito é mais falado do que fala. O

segundo paradoxo trata dos sintomas, inibições e angústias na economia das diferentes

neuroses. O que ocorre aqui é que a fala é expulsa do discurso concreto que ordena a

consciência, sendo recalcada. O terceiro diz respeito ao sujeito que perde seu sentido nas

objetivações do discurso, ficando excluído o que é da ordem da subjetividade. A referência

dada por Lacan aqui é do homem moderno, cuja marcação da ciência ejeta o que é da ordem

do sujeito (p.283).

Dizemos que aquilo que está fora da possibilidade de ser abarcado pelo registro

simbólico tem lugar no real. E a experiência psicanalítica aponta esta marca no que tange ao

psiquismo humano, uma vez que não é possível simbolizar tudo. Isso implica, como vimos,

dizer que o inconsciente comporta em si uma falta constitutiva. Se o inconsciente, segundo

Lacan, é estruturado como uma linguagem, seguindo esse raciocínio, podemos dizer com

Jorge que, “ele é não-todo estruturado como uma linguagem” (2004:142), já que é marcado

pelo que é da ordem do real. Portanto, a parte do inconsciente estruturada, assim se apresenta

no simbólico como linguagem em torno de uma falta originária de um objeto que desde

sempre está perdido. É em torno dessa falta que o inconsciente se estrutura no simbólico

como uma linguagem. A própria palavra estruturada já aponta uma redundância, uma vez que,

para a psicanálise, a estrutura é a linguagem:

“Dito de outro modo, o inconsciente é um saber, um saber articulado em torno de uma falta de saber instintual – este bem poderia ser um dos nomes do objeto a, objeto faltoso e, por isso mesmo, causa do desejo – mas um saber não-todo que, dessa falta, só faz reconstituir a dimensão de seu enigma” (ibidem, p.141-42).

A afirmação de ser o inconsciente estruturado como uma linguagem se coloca na

medida em que ele se apresenta, na clínica, através de suas formações, tais como sonhos, atos

falhos, sintomas, etc... É, portanto, por meio delas que se pode ter acesso ao inconsciente. No

entanto, seu núcleo, enquanto real, é inabordável pelo simbólico. O que é da ordem do real

também comparece na clínica, quando o sujeito fica sem palavras. O sujeito só tem notícias

do furo real, pelo simbólico, quando este falha enquanto repertório possível para o sujeito

fazer face ao sem sentido. Entretanto, é somente pelo recurso simbólico que o sujeito pode

tangenciar o real e tratá-lo.

A primazia dada ao registro simbólico no primeiro tempo do ensino de Lacan está em

consonância com a importância que atribuía à linguagem e à fala na análise, já que, através

Page 34: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

27

delas, o psicanalista recebe seu material, seu instrumento e seu enquadre. É somente na fala,

no discurso do sujeito, que seu desejo pode se revelar. A constatação de que o que é da ordem

do inconsciente se apresenta no discurso, levou Lacan à seguinte colocação: “...para-além da

fala, é toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente”

(Lacan, 1957 op cit, p.498).

Se as manifestações inconscientes aparecem no campo da fala do sujeito, é porque têm

a linguagem como estrutura. Se o inconsciente se estrutura como uma linguagem, é por meio

desta que se pode ter acesso às suas manifestações, portanto é através da escuta que o

psicanalista o reconhece. O analista pede que o sujeito associe livremente para que, na sua

fala, possa aparecer o que é estruturado como linguagem, ou seja, o que é da ordem do

inconsciente.

A linguagem precede a existência do sujeito, isto é, ela já está lá antes do sujeito vir a

sê-lo. Dessa forma, já há para ele um lugar inscrito na rede simbólica, que demarca um lugar

subjetivo a ser ocupado. O nome próprio é um exemplo de inscrição simbólica que advém do

Outro como marca para o sujeito. O valor atribuído à linguagem propiciou com que se

tornasse objeto científico, através dos estudos inaugurados pela lingüística.

Segundo Lacan, a linguagem não é imaterial, mas um corpo estruturado. No intuito de

se aprofundar quanto a essa estrutura, Lacan foi buscar na lingüística os elementos que

pudessem lhe servir para fundamentar sua tese de ser o inconsciente estruturado como uma

linguagem. Assim, destaca o seguinte algoritmo inaugurado e formalizado por Ferdinand de

Saussure que marca a etapa moderna da ciência lingüística:

“S - significante” (ibidem, p.500). s - significado

O destaque desse algoritmo, por Lacan, se dá na medida em que para a psicanálise seu

valor está apenas na pura função do significante. Assim, foi na função do significante que

Lacan salientou aquilo que de fato é fundamental à disciplina psicanalítica. A fim de retificar

o paralelismo postulado por Saussure entre significante e significado, Lacan marca que é

preciso livrar-se da ilusão de que o significante atende à função de representar o significado.

Ao contrário de Saussure que dizia que o significante serve para exprimir o significado, Lacan

sustenta que o primeiro atua sobre o segundo, criando-o.

Page 35: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

28

Com o propósito de ilustrar essa diferença em relação a Saussure, Lacan exemplifica a

forma incorreta da função do significante, através do desenho: uma árvore no lugar do

significado; acima dela, no lugar do significante, a palavra “árvore”, apontando que a função

do significante não é a de nomear um objeto, nem representá-lo simbolicamente. A forma

correta que utiliza para designar a função do significante se dá através da ilustração de duas

portas semelhantes e contíguas, sendo que acima de uma se encontra o significante “Homens”

e, acima da outra, o significante “Damas”. O que extrai desse exemplo é a função do

significante que, ao precipitar um sentido na imagem das portas, as transforma em sanitários,

criando assim um novo significado, demonstrando que de fato o significante inventa o

significado, sendo o primeiro que determina o segundo.

O que a psicanálise trabalha na sua relação com a estrutura da linguagem, ou seja, com

o algoritmo saussuriano, é notadamente o significante, na medida em que esse aponta algo

relacionado ao sujeito. O significante é aquilo que da linguagem remete a um sujeito. Assim,

é à primazia do significante que Lacan dá relevo, no tocante ao sujeito, uma vez que,

enquanto que no inconsciente o significado é abolido, é do significante a função de

representar o sujeito para outro significante.

A linguagem é o terceiro ausente e ao mesmo tempo presente tanto na relação analítica

quanto em toda relação humana. É Outro, que não o paciente-analista, apontando para a

dimensão de alteridade, que se presentifica na fala do sujeito. O Outro também diz respeito ao

lugar em que o inconsciente é discurso; o Outro que no seio do sujeito o agita, portanto, Outro

do desejo enquanto inconsciente. O conceito de Outro (grande Outro) de Lacan concerne a

uma dimensão de exterioridade em relação ao sujeito cuja função lhe é determinante. O

inconsciente se produz na transferência e aparece no discurso de um sujeito na direção do

analista, transcendendo os dois. O inconsciente se impõe enquanto Outro.

No que concerne ao analista, este se encarrega de recolher o significante que vem do

Outro com sua escuta para transmiti-lo ao analisando. Só é possível dizer do significante, ou

seja, constatar sua função, a partir de seus efeitos. De modo que é o efeito no sujeito que

informa ao analista se o que ele recolheu do Outro fez função de significante. Uma vez que é

não-todo, pode se abrir a pluralidade de sentidos, passando, portanto, a exercer uma função:

Page 36: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

29

“O inconsciente não se encontra num suposto mais-além da linguagem, nem em qualquer profundeza abissal ou oculta; ele se acha nas palavras, apenas nas palavras e é nas palavras enunciadas pelo sujeito que ele pode ser escutado. Estruturado como uma linguagem é nela que o inconsciente se acha profundamente enraizado” (Jorge, 2002a:80).

De acordo com Lacan (1957), a concepção do significante pode se referir à palavra, à

frase, ao fonema, a tudo, enfim, que se defina segundo sua estrutura, designada pelo

significante lingüístico. A estrutura do significante está no fato de ser articulado, ou seja, de

estar remetido à cadeia significante, onde um puxa o outro. Isso implica duas condições

estruturais no que tange à sua determinação. A primeira trata da sua composição ser regulada

nos moldes da lei dessa ordem fechada, de acordo com uma cadeia, ou seja, anéis cujo colar

se fecha no anel de outro colar. A segunda diz respeito à redução de suas unidades a

elementos diferenciais. Esses elementos são os fonemas, que representam a unidade mínima

sonora da língua. Sua importância reside na questão da binariedade do significante (S1-S2),

condição inerente à sua definição:

“Lacan formula que o significante surge num par e dá o exemplo do par noite /dia e do par homem/ mulher; estes exemplos ilustram... que, não apenas a coisa está inteiramente ausente da representação significante, mas também que o outro significante, ausente, é o que está ato contínuo sendo referido pelo primeiro. Vê-se que o que está em jogo, para Lacan, em sua definição do significante é a rigor uma visão que enfatiza o caráter puramente diferencial do significante, decalcado por ele da concepção saussuriana do signo: o significante enquanto tal não é jamais senão um-entre-outros, referido a esses outros, não é senão a diferença para com os outros”(Jorge, 2002a:82).

Lacan (1957) designa por letra o suporte material que o discurso toma da linguagem.

Pode-se dizer que a letra mantém uma relação de extimidade com o significante, isto é, se de

um lado ela está presente em sua estrutura, de outro, mantém-se fora, não sendo possível

apreendê-la. A letra sozinha, isolada, não permite nenhuma simbolização, é da ordem do real.

Por exemplo, a letra “a”, desarticulada, não significa nada, no entanto, ao se ligar a outras

letras, pode vir a produzir algum sentido. A questão da letra remete pensar na relação entre

real e simbólico, uma vez que, sendo o simbólico não-todo, tudo o que a ele se refere, como o

significante, vai apresentar esta face de incompletude. Assim, seria possível arriscar dizer que

a letra é a face da linguagem que, ao mesmo tempo em que permite que se formem

significantes, mantêm-se fora deste em sua vertente real? Se o significante é o que representa

Page 37: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

30

o sujeito, portanto, no simbólico, a letra permanece do seu lado real, não abordável. A letra é

aquilo que esvazia o significante, ou seja, separa-o de sua função de significar:

“Se Lacan chama atenção para o aspecto literal do significante, é porque a letra é o significante em sua materialidade, isto é, por ser irredutível às formações significantes, ela funciona como um operador assemântico que engendra a significação” (Freire, 1996:30).

Neste momento não vamos nos deter na questão da letra, deixando-a como um

apontamento importante a ser desenvolvido com mais cuidado, no que respeita à questão da

linguagem. No que se refere ao significante, o que Lacan sublinha não tem a ver com o fato de o

sujeito reconhecê-lo, mas com a possibilidade de, ao utilizar-se de uma língua, dizer algo

completamente diferente do que ela diz. Com isso aponta para o fato de que o significante

pode surtir no sujeito um efeito de surpresa, de chiste, posto que pode remeter a alguma coisa

diferente do óbvio, causando assim algum impacto, por vacilar significações estabelecidas. O

significado torna-se um efeito do significante.

A teoria do significante é, com Lacan, uma exigência de fundamentação teórica da

psicanálise, cuja definição exige a suposição do sujeito. Freud não postula esta exigência, no

entanto, ao operar com ela, permitiu a Lacan seu reconhecimento.

A obra de Lacan tem esta marca de apontar para a importância de se reconhecer, nos

textos que fundam a psicanálise, a verdade da descoberta freudiana. Se o ensino de Lacan se

impôs na direção de re-visitar o texto freudiano foi porque somente a partir dos elementos que

lá se encontram é que seria possível retificar os rumos trilhados pela psicanálise, apontados

por Lacan como destoantes da proposta original.

Segundo Lacan, o algoritmo saussuriano S/s define a tópica do inconsciente e, uma

vez que sua função opera, num segundo momento é possível dizer que ali algo do lugar do

inconsciente manifestou-se. O que se extrai como desenvolvimento desse algoritmo que

aponta para a incidência do significante no significado, ajusta-se à seguinte formulação:

“ f(S) I ” (Lacan, 1957 op cit, p.518). s em que, sendo I= um, lê-se: A função do significante é tal que sempre no lugar do

significante, seja ele qualquer, sua função será de determinar o significado. Qualquer que seja,

Page 38: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

31

o significante tem como função agir sobre o significado. O que implica dizer que o

significado é determinado pelo significante. Entre eles há uma barra que os separa, enquanto

ordens distintas, designando a resistência à significação, ou seja, o fato de que o significante

não se reduz a representar o significado. A partir da presença do significante no significado,

mais precisamente dos elementos da cadeia significante horizontal e de suas contigüidades

verticais, pôde-se verificar os mecanismos de duas estruturas fundamentais: metonímia e

metáfora. Lacan recorre a estas duas figuras de linguagem, a fim de nomear a função que o

significante desenha na linguagem. Freud já havia nomeado essas operações através dos

mecanismos do deslocamento, em que ocorre o transporte da significação (metonímia), e a

condensação, em que, pela superposição dos significantes, ganha campo a metáfora.

Na estrutura metonímica temos a seguinte formulação:

“ f (S...S’) S = S (–) s ” (ibidem, p.519).

em que se lê, em termos psicanalíticos, que é a conexão do significante com outro

significante, ou seja, da cadeia significante horizontal que permite a supressão mediante a

qual o significante instala a falta do ser na relação de objeto, o que promove a possibilidade

do desejo. Ao se inscrever na relação do ser com o objeto, a falta aponta que nenhum objeto

pode completar o sujeito. A metonímia é uma operação da linguagem na qual a parte é tomada

pelo todo, ou seja, o todo é representado por apenas uma de suas partes. Uma ilustração

conhecida desse mecanismo aparece com a conexão dos significantes “trinta velas”, em que o

significante “navios”, ao ser elidido, passa a ser representado pelas velas.

Dessa forma, o “navio”, enquanto todo, fica esvaziado, sendo representado por uma de

suas partes, nesse caso “velas”. O sinal – colocado entre parênteses representa um menos do

significado, uma vez que, ao reduzir o significado “navio” a trintas velas, ele não é como um

todo representado. Assim a falta é instalada pelo significante enquanto não-todo. A ligação do

navio com a vela está no significante, ou seja, é na seqüência que vai de palavra em palavra

que a metonímia se apóia. O sinal atesta a manutenção da barra que resiste à significação,

marcando a irredutibilidade da relação do significante com o significado. Isso ocorre por duas

razões: primeiro que sua função é a de determinar o significado e segundo que só em parte

pode representá-lo.

Page 39: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

32

A estrutura metafórica segue esta demonstração:

“ F (S) S = S (+) s ” (ibidem, p.519).

S

Ela indica que é na substituição do significante por outro significante que se produz um efeito

de significação, ocorrendo o surgimento de um novo significado, portanto o sinal +. Lacan

recorre ao seguinte verso de Victor Hugo, para exemplificar a metáfora: “Seu feixe não era

avaro nem odiento...”(ibidem, p.510), em que o significante “feixe” remete ao personagem

Booz, substituindo-o assim na cadeia significante, através do que aponta o pronome “seu”. A

metáfora é uma operação que brota entre dois significantes, um substituindo o outro e

assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o outro permanece oculto, porém em

conexão com o resto da cadeia. A metáfora se apóia na fórmula de uma palavra por outra. O

sinal + atesta a transposição da barra de resistência, portanto a emergência da significação. A

transposição aponta justamente a passagem do significante para o significado.

Apesar de tomar emprestada da lingüística a formulação de Saussure, ao trazer seu

algoritmo para o campo psicanalítico, foi preciso imprimir-lhe uma mudança. Isso porque,

sendo o sujeito aquilo que de fato interessa à psicanálise, é preciso incluí-lo sempre na cena.

Em se tratando das relações da psicanálise com outros campos, como a ciência e a lingüística,

aquela preserva, frente a estas, a especificidade de operar com o sujeito. Dessa forma, se, na

postulação de Saussure, o sujeito está excluído, foi preciso a Lacan inseri-lo exatamente aí

onde o que é da ordem do inconsciente se expressa, através do significante. Sendo assim,

Lacan estabelece uma proximidade entre sujeito e significante, dando consistência à sua

teorização.

A partir do momento em que Lacan leva o sujeito em consideração junto ao algoritmo

saussuriano, aponta que: o significante é o que representa um sujeito para outro significante,

donde se vê a íntima relação entre ambos. Se o sujeito só pode se fazer representar através do

significante é porque mesmo constituído por real-simbólico-imaginário, somente a nível

simbólico é que se faz representar. Isso se coloca, já que o real do sujeito aparece pela falta

marcada no simbólico, ou por outra, pela impossibilidade de simbolização, não sendo

possível, portanto, ter acesso a esta vertente.

Do ponto de vista da psicanálise, o sujeito é representado através do significante para

outro significante. Assim, a representação de um sujeito depende do significante destacado

Page 40: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

33

por outro significante nele. Neste sentido, pode-se dizer que cada sujeito será representado por

um determinado significante para outro significante, sendo que sua representação não lhe

pertence, e sim a outro. Isso aponta que é o outro, também enquanto significante, que

interpreta o sujeito. Um sujeito será representado de forma particular através de um

determinado significante que o representa também para outro determinado significante, num

determinado momento.

Assim, pode-se dizer que não existe uma representação única e total de um sujeito,

tendo em vista que sua representação será o resultado do efeito de um significante em outro

significante, a cada transferência que estabelecer. Enquanto referido à ordem simbólica, o

significante é não-todo, como se vê na metonímia; ele não diz tudo do sujeito, representando-

o apenas parcialmente. Daí a formulação lacaniana do sujeito barrado, na medida que nenhum

significante basta para representá-lo integralmente. O sujeito, desse modo, está sujeito ao

significante. Ele é intervalar, pontual e aparece no “entre” dos significantes:

“A psicanálise, ao contrário, tendo o real encravado no coração de sua prática, é a experiência mesma da impossível totalização do sentido - sentido que abriga no seu cerne o não sentido, essa região de heterogeneidade e diferença a impedir, tornar impossível, qualquer coisa da ordem de uma totalização” (Souza, 1996:13).

O sujeito, tal como definido pela psicanálise é inaugurado pelo cogito, na medida em

que ele implica uma destituição subjetiva, cuja origem está na experiência feita por Descartes

de um despojamento do saber. A destituição subjetiva por ele vivenciada veio como efeito da

dúvida que, ao ser utilizada enquanto método, permitiu o questionamento de todo o edifício

de idéias estabelecidas. Como conseqüência, Descartes sofreu um esvaziamento,

descentramento da imagem que o definia como sujeito. Isso ocorreu, já que era esse saber

existente que conservava a constituição dessa unidade, conferida por uma consistência

imaginária.

No momento em que o lugar de identidade sofre um abalo, essa imagem se desfaz por

um instante, não mais sustentando uma síntese. Se o que a sustentava ligava-se ao saber, então

por um momento desse processo, através da dúvida, ao cair o saber, eis que surge o sujeito na

sua certeza de sujeito pensante. Descartes procurava algo que pudesse lhe trazer garantias, no

entanto descobre que somente a cada vez em que o pensamento se presentifica é que pode

afirmar sua existência. Quanto a isto não havia dúvida.

Page 41: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

34

O valor do cogito para a psicanálise não está na dúvida, enquanto instrumento tal qual

funcionou para Descartes, mas no efeito de sujeito que esta acarreta. Trata-se do sujeito que se

funda num para além da consciência, que encontra sua ancoragem no momento evanescente e

pontual em que duvida. Despojado de garantias, atributos e significações, só pode se

constituir, como resíduo, na dúvida, na incerteza do saber, no intervalo entre dois

significantes, num instante. Este instante de interrogação, em que algo da verdade do sujeito

aparece e causa uma ruptura com o que antes já estava estabelecido, é o que Lacan nomeia de

sujeito do inconsciente. Trata-se de um intervalo, cuja pontualidade da manifestação acarreta

uma desorganização da estrutura consistente do eu. A desfiguração da imagem instalada por

esse momento de aparição de sujeito provoca imediatamente uma operação que busca a

configuração, a constituição de uma síntese que reorganize o saber. E, como efeito desta

tentativa de compor uma unidade surge aquilo que Freud nomeou como o lugar do eu.

Como exemplo, podemos pensar no ato falho que, enquanto manifestação do sujeito

do inconsciente, ao ser escutado, introduz uma nova significação, fazendo corte no saber

existente do eu, logo, convocando ao trabalho. Esta experiência causa estranheza ao eu, que se

surpreende com o aparecimento de algo que aponta, neste primeiro momento, um sem sentido

na sua rede construída de sentido. Lacan provoca: “Qual é, pois esse outro a quem sou mais

apegado do que a mim, já que, no seio mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é

ele que me agita?” (Lacan, 1957, op cit, p.528).

Segundo Alberti (1999), o eu descentrado por Freud de um lugar soberano do

psiquismo ressurge no movimento da história psicanalítica, ou pela nomenclatura “ego”,

readquirindo o lugar no centro da esfera imaginária, tal como proposto pela psicanálise pós-

freudiana, ou como sujeito barrado, tornando-se um dos termos da fantasia. O eu que

abordamos aqui é aquele que o cogito faz surgir, que nomeamos ou de sujeito barrado ou de

eu dividido entre saber e verdade. A parte desta divisão do eu que diz respeito à verdade

refere-se ao que chamamos de sujeito do inconsciente.

Pode-se dizer que o sujeito do inconsciente e o eu são operações que se dão na

linguagem, guardadas suas particularidades. Na visão de Descartes, o eu é identificado à

consciência. A noção de o eu ser em sua maior parte inconsciente adveio com Freud. Através

do cogito, o eu conclui que existe, toda vez que diz: “eu penso”. É preciso repetir estas

palavras para convencer-se disso. Assim, tal como o sujeito do inconsciente, o eu também

aparece numa formulação linguajeira, num instante.

Page 42: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

35

O que Lacan extrai do cogito é a noção da divisão subjetiva, em que o sujeito marcado

por um saber surpreende-se com a aparição de um saber não sabido. Conclui-se daí que o

sujeito da ciência nomeado por Lacan equivale ao que estamos chamando de eu dividido entre

saber e verdade. No entanto, se Lacan diz tratar-se do mesmo sujeito, completamos ao situar

uma diferença crucial: ao incluir a parte da divisão do sujeito, cujo sujeito do inconsciente

aparece para revelar uma verdade, a psicanálise se distingue da ciência. Ainda que a ciência

tenha inaugurado o sujeito dividido, dele ela nada quer saber, excluindo o que é específico à

psicanálise.

Considerando o sujeito do inconsciente como o que porta uma verdade, a psicanálise

passa a situar o campo do simbólico como não-todo. Isso se coloca, na medida em que este

sujeito só pode aparecer enquanto furo, numa estrutura que não é totalizadora, ou seja, é

incompleta. O saber do eu dividido é incompleto, o que possibilita espaço para o não-saber

advir. Diante da constatação deste furo, o eu busca tamponá-lo, na tentativa de sustentar uma

imagem inteira, uma unidade que vele o furo. Esta operação diz respeito à dimensão

imaginária do eu:

“O eu não é o sujeito e ambos são, de fato, absolutamente heterogêneos, pois o eu (corpo próprio) se forma a partir da matriz imaginária produzida no estádio do espelho como um verdadeiro rechaço da pulsão (corpo espedaçado). O eu é essencialmente imagem corporal, ao passo que o sujeito é efeito do simbólico, do Outro, da linguagem.” (Jorge, 2002a, op.cit, p.23).

O processo de destituição subjetiva implica uma queda desta vertente do eu que se

pretende total, de modo que o saber que o sustentava cai, fazendo aparecer a verdade da

divisão. Este saber é um saber egóico, em outras palavras, saber sabido, que muitas vezes

aponta o engano do sujeito.

No intuito de obter um contraste na articulação com o sujeito do inconsciente, o

conceito de eu neste capítulo será privilegiado em algumas passagens em sua dimensão

imaginária. Se o primeiro porta um não sentido frente ao segundo, o eu na vertente

imaginária, ao contrário, busca conferir sentido. No entanto, ressaltamos que o eu não se

reduz ao imaginário, sendo também atravessado pelos registros, real e simbólico. Uma vez

que se pretende investigar acerca do conceito de sujeito do inconsciente, introduzido pelo

pensamento psicanalítico, faz-se necessária sua articulação com o conceito de eu nessa teoria,

de modo que não é possível pensá-lo dissociado deste. Assim, sugerimos, para o próximo

Page 43: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

36

capítulo, o aprofundamento do conceito de eu, a partir da leitura dos textos de Freud e Lacan

sobre o assunto.

Ainda que o termo inconsciente já se fizesse presente antes do surgimento da

psicanálise, foi somente a partir da descoberta freudiana que ele ganhou novo status. Segundo

Freud (1917), o narcisismo universal dos homens sofreu três golpes importantes. O primeiro

se deu a partir das pesquisas de Copérnico, no século XVI, e sua descoberta de que não era a

terra o centro do universo, mas o sol. O segundo golpe tem o nome de Charles Darwin como

referência, já que foi graças às suas pesquisas que se verificou a ascendência animal do

homem. Os golpes cosmológico e biológico antecederam o terceiro advindo com Freud e sua

concepção de inconsciente, marcando o golpe psicológico.

A descoberta freudiana atesta o fato de que “o eu não é o senhor de sua própria casa”

(Freud, 1917:135). Isso implica dizer que ali onde o eu se pensa único no comando dos

processos psíquicos, equivoca-se, uma vez que os processos inconscientes determinam sua

morada. Freud destrona o eu do lugar de unidade e saber, como considerado por Descartes,

para outro, do conflito e da divisão. A consciência e a razão são derrubadas de seu lugar de

verdade, passando a representar o lugar do engano. A subjetividade deixa de ser entendida

como um todo unitário, identificado à consciência, para ser uma realidade dividida entre os

sistemas consciente e inconsciente. Numa passagem deste mesmo artigo, Freud comenta o

que se verifica em algumas neuroses:

“Os pensamentos emergem de súbito, sem que se saiba de onde vêm, nem se possa fazer algo para afastá-los. Esses estranhos hóspedes parecem até ser mais poderosos do que os pensamentos que estão sob o comando do eu. Resistem a todas os recursos de coação utilizadas pela vontade, permanecem imutáveis pela refutação lógica, indiferentes frente às afirmações contraditórias da realidade. Ou os impulsos surgem, como se fossem de alguém estranho, de modo que o eu os rejeita; mas, ainda assim, os teme e adota medidas preventivas contra eles. O eu diz para consigo que isto é uma doença, uma invasão estrangeira e aumenta sua vigilância, mas não pode compreender por que se sente paralisado de uma maneira tão rara” (ibidem, p.133).

A subjetividade à luz da psicanálise é essencialmente clivada, e o inconsciente,

enquanto verdade desconhecida pelo eu, é o que a constitui fundamentalmente. Em seu texto

“A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud” (1957), Lacan fala da

subjetividade, lançando a seguinte questão: “O lugar que ocupo como sujeito do significante,

em relação ao que ocupo como sujeito do significado, será ele concêntrico ou excêntrico?”

Page 44: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

37

(p.520). Poderíamos dizer que, através desta interrogação, Lacan aponta para a divisão do

sujeito?

Apesar de introduzir esta pergunta, Lacan não indica o que quer dizer com estes

termos. Assim, na tentativa de abordar o sujeito a partir dos termos significante e significado,

lançamos a hipótese de pensar o sujeito do significante, referido ao momento em que o

inconsciente surge num intervalo, apontando uma verdade, fazendo vacilar as bases do eu.

Quanto ao sujeito do significado, propomos uma aproximação com a noção de eu, em sua

vertente imaginária, na medida em que através desta, busca dar sentido, consistência ao

sujeito do significante. O eu em sua vertente imaginária aponta para esse lugar de identidade,

reconhecimento, constituído pelas qualidades que o sujeito atribui a si mesmo enquanto um

saber. É um lugar em que imaginariamente o sujeito acredita saber tudo de si, porém a

emergência do inconsciente aponta o furo que esta vertente tenta tamponar.

A destituição subjetiva promovida pelo cogito faz aparecer a noção de divisão do

sujeito entre saber e verdade. Uma vez que interroga a certeza do saber estabelecido, o cogito

faz surgir a verdade disjunta do saber:

“Esse fio (cogito) não nos guiou em vão, já que nos levou a formular, no fim do ano, nossa divisão experimentada do sujeito como divisão entre o saber e a verdade, acompanhando-a de um modelo topológico: a banda de Moebius, que leva a entender que não é de uma distinção originária que deve provir a divisão em que esses dois termos se vêm juntar” (Lacan, 1966a, op.cit, p.870).

Se o sujeito, do ponto de vista da psicanálise, divide-se entre saber e verdade, como

situá-lo a partir desses termos? Lacan aponta que é em virtude da relação de um significante

com outro significante, que resulta a emergência do sujeito,

“... no instante mesmo em que S1 intervém no campo já constituído dos outros significantes, na medida em que eles já se articulam entre si como tais, que ao intervir junto a um outro, do sistema, surge isto, S/, que é o que chamamos de sujeito como dividido” (Lacan, 1969-70:13).

A articulação dos elementos S1 e S2 é fundamental no que tange à questão do sujeito

para a psicanálise. No próprio desenvolvimento que faz Lacan dessa problemática, começa

falando de um e chega a outro, apontando a indissociável relação desses. No que tange a S1

diz: “Ele intervém numa bateria de significantes que não temos direito algum, jamais, de

considerar dispersa, de considerar que já não integra a rede do que se chama um saber”

Page 45: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

38

(ibidem, p.11). Esse saber, constituído pela associação da bateria de significantes, é o que

Lacan chamou S2. Trata-se do saber do Outro, que aparece enquanto encadeado por

significantes, num conjunto que é faltoso. E, como efeito dessa organização que dá lugar ao

saber, surge o eu.

A fim de articular a questão do saber e da verdade, precisamos lançar mão daquilo que

Lacan nomeou de A (o campo do grande Outro). O Outro, como citamos anteriormente, diz

respeito ao que é da ordem da linguagem, portanto, ao lugar do significante. Ambos se dão

num segundo momento à linguagem, na medida em que só podem se constituir nela.

De um modo radical, podemos dizer que o que existe é a linguagem, sendo o sujeito

uma operação nela. O sujeito não se identifica com o Outro, porém precisa dele para aparecer.

Constatar que a linguagem fala em “mim” é privilegiá-la frente ao sujeito. É formular que o

discurso não é meu, mas sou dele o efeito. Isso aponta a alteridade da linguagem, uma vez que

ela não é propriedade do sujeito, ainda que apareça em sua fala:

“A linguagem funciona. A linguagem “vive” e “respira”, independentemente de qualquer sujeito falante. Os falantes, para além de simplesmente usarem a linguagem como instrumento, também são usados por ela; eles são os joguetes da linguagem e são ludibriados por ela. A linguagem tem vida própria” (Fink,1998, op.cit, p.32).

Dizer que o inconsciente é o discurso do Outro implica uma referência à fala do

sujeito, no entanto, não como sendo sua, já que o Outro diz respeito a esta exterioridade que o

determina, enquanto lugar de alteridade do significante. Essa exterioridade do simbólico em

relação ao homem é a própria noção do inconsciente. De modo que o sujeito é determinado

por marcas que advêm do Outro, independente de sua vontade, ele já nasce banhado na

linguagem, recebendo dela suas representações.

No discurso do Outro, há um lugar simbólico predeterminado para o sujeito vir a

ocupar, antes mesmo de seu nascimento. “Que a via aberta por Freud não tem outro sentido

senão o que retomo – o inconsciente é linguagem -, isso que é agora aceito já o era então para

mim, como se sabe” (Lacan, 1966a, op. cit, p.881).

O Outro recebe assim este nome, na medida em que nunca é o mesmo, não tem

identidade definida, é pura alteridade. É preciso marcar que não existe nada para além da

linguagem, ou seja, não há metalinguagem. O que implica dizer que não há outro campo para

o sujeito falante, distinto do campo da linguagem. Sendo assim, se é na fala do sujeito que sua

Page 46: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

39

verdade aparece, é porque se encontra nas palavras, e surpreende a cada vez que surge. A

verdade se funda no fato de ser transmitida na fala. Diante disso, pode-se colocar que não há o

verdadeiro sobre o verdadeiro. A verdade não existe toda, mas somente aquela que desponta

no discurso e, conforme as leis da linguagem, ela também é não-toda.

Se o sujeito do significante fura o sujeito do significado, ele o faz numa cadeia

integrada e como conseqüência desfaz momentaneamente uma imagem, sustentada pelo

saber, de modo que isso denuncia a presença da dimensão imaginária no eu. Porém esta

vertente, no que tange ao eu, nodula-se com o simbólico, ou seja, com a rede tecida de

significantes e com o real.

O sujeito do significante, por aparecer através do significante, presentifica o registro

simbólico. No entanto, retomando a questão lançada por Lacan, ele apresenta-se numa

excentricidade quanto ao sujeito do significado, apontando um fora do saber, um não saber

cuja verdade habita. Diante desta face de alteridade, excentricidade, cuja experiência informa

sobre o sujeito do significante e de sua representação ser parcial, poderíamos dizer, no que

tange sua nodulação, que ela se dá na articulação entre as dimensões simbólica e real?

Se a única forma com que o sujeito pode ser representado é através do significante

para outro significante, num intervalo pontual, então, neste momento ele aparece. No entanto,

logo em seguida o sujeito desaparece, deixando a marca de sua evanescência. Sendo assim, o

sujeito não pode ser apreendido como tenta fazer, através da dimensão imaginária, o sujeito

do significado. De modo que o sujeito irrompe num estalo, e só aí é representado, pode-se

concluir que ele não pode ser representado em sua totalidade. Sendo sua representação apenas

parcial, isto aponta para o núcleo real, para o irrepresentável do sujeito. Diante disso,

questionamos: seria o vazio da dimensão real o lugar do sujeito prioritariamente?

Enquanto constituído pela linguagem, na rede tecida pela cadeia significante, o saber

por este aspecto diferencia o simbólico de sua parte que lhe escapa. Para a psicanálise o saber

diz respeito à parte estruturada do inconsciente, no entanto, enquanto não-todo, ele também

comporta um ponto que é de não-saber, que abre espaço para o aparecimento da verdade.

Tanto o saber quanto a verdade são veiculados pela linguagem:

“Acreditamos que podemos compreender a afirmação lacaniana de que o sujeito da psicanálise implica, em sua práxis, o sujeito da ciência como dizendo respeito ao fato de o sujeito ser efeito do significante – mesmo que aí ele se faça representar em um ponto de evanescência, já que não há nessa cadeia nenhuma significação que possa responder por ele” (Freire, 1996, op.cit, 43).

Page 47: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

40

Diante disso, pode-se dizer que o sujeito que surge no discurso científico, tal qual

formulado através do cogito cartesiano, é essencial à psicanálise, na medida em que esse

sujeito não é outro senão o sujeito do significante. O sujeito do significante é aquele que

aparece num instante pontual, abalando através do não sentido que porta a consistência de

sentido que estrutura o eu na sua dimensão imaginária. Na ótica lacaniana, a ciência inaugura

o sujeito em sua vertente simbólica, ou seja, podendo ser representado parcialmente pelo

significante. E é com esse sujeito que a psicanálise opera, incluindo-o em todas as suas

vertentes.

Em 1957, Lacan trabalha a questão do sujeito a partir de uma operação de subversão

no cogito cartesiano, operação esta que se faz pela inclusão do inconsciente. O cogito aponta

o pensamento como garantia do ser, porém o pensamento, ao qual o cogito cartesiano se

refere, é o pensamento consciente. Assim sendo, limita a existência do sujeito ao campo da

consciência, atribuindo à parte do eu consciente o ato de pensar. Se Descartes deu o passo de

formular o cogito, foi Lacan quem tirou as conseqüências para pensar o sujeito.

É preciso destacar que Lacan em alguns momentos de sua obra trabalhou a formulação

do cogito, no entanto, neste capítulo, vamos nos limitar apenas ao que propôs em 1957,

registrando que não foi sua última palavra sobre a questão.

A virada que Lacan dá no cogito, em 1957, é formulada da seguinte maneira: “penso

onde não sou, logo sou onde não penso” (p.521). Ao introduzir o que é da ordem do

inconsciente no cogito, aponta uma separação entre ser e pensar, como se dando em lugares

distintos. A experiência psicanalítica se opõe ao cogito na medida em que atribui o que é da

ordem do pensamento ao Outro que determina o sujeito. Diante disso, interrogamos: Se o

pensamento tem lugar no Outro e o ser encontra-se separado desse, portanto fora do

simbólico, pode-se dizer que o lugar do ser é da ordem do real?

“Os conteúdos do inconsciente não nos fornecem, em sua enganosa ambigüidade decepcionante, nenhuma realidade mais consistente no sujeito do que o imediato; é da verdade que eles extraem sua virtude, e dentro da dimensão do ser: Kern unseres Wesen, termos que são de Freud”(ibidem, p.522).

Em outro fragmento prossegue: “Kern unseres wesen, o âmago de nosso ser: não é tanto a isto que Freud nos ordena visar, como fizeram muitos outros antes dele através do vão adágio do “Conhece-te a ti mesmo”; são as vias que a ele conduzem que ele nos dá para revisar.Ou melhor, o isto que ele nos propõe atingir não é o que possa ser objeto de

Page 48: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

41

um conhecimento, mas isto - acaso ele não o diz?- que constitui meu ser, e sobre o qual ele nos ensina que eu testemunho tanto ou mais em meus caprichos, minhas aberrações, minhas fobias e meus fetiches quanto em meu personagem vagamente policiado”(ibidem, p.530-31).

Segundo Lacan, o ser é anterior à constituição do sujeito, assim como o Outro, de

modo que: “... a neurose é uma questão que o ser coloca para o sujeito, lá onde ele estava

antes que o sujeito viesse ao mundo” (ibidem, p.524). Sendo o sintoma o que aponta a

natureza de uma neurose, podemos através dele ter uma indicação do ser. Isso se coloca uma

vez que, por ser estruturado como uma linguagem, portanto, não-todo, algo do sintoma resiste

à significação, presentificando na clínica o real da estrutura. Daí a postulação de que: “O

sintoma é o que muitas pessoas têm de mais real”, usada por Jorge (2004) como título de um

artigo. Enquanto incompleto, como vimos, o simbólico, estruturado como uma linguagem

funciona como instrumento na travessia de uma análise, na direção de desvendar o sintoma,

para dar acesso ao impossível do real. Se de um lado o sintoma pode ser desenrolado numa

análise linguajeira, por outro, ele testemunha o real em jogo para o sujeito:

“Trata-se aqui daquele ser que só aparece no lampejo de um instante vazio do verbo ser, e eu disse que ele formula sua questão ao sujeito. Que significa isso? Ele não a coloca diante do sujeito, pois o sujeito não pode vir para o lugar onde ele a coloca, mas coloca-a no lugar do sujeito, ou seja, nesse lugar, ele coloca a questão com o sujeito, tal como se enuncia um problema com uma caneta e como o homem de Aristóteles pensava com sua alma” (Lacan, 1957, op.cit, p.524).

Lacan afina sua subversão com a postulação: “O que cumpre dizer é: eu não sou lá

onde sou joguete de meu pensamento; penso naquilo que sou lá onde não penso pensar”

(ibidem, p.521). A introdução da negativa no cogito reformula sua postulação que afirma que

eu penso e sou. O eu não pode se afirmar no pensamento, porque não é ele quem pensa, posto

que o pensamento que pensa ser seu tem lugar no Outro. Aquilo que o eu pensa ser, ou seja,

aquilo que pensa ser legítimo, se dá no Outro. Diante disso, Lacan vem marcar que não penso

e não sou, sublinhando assim o engano do eu.

Se o que move o sujeito, determinando suas ações, o habita sem que ele saiba, assim o

faz de modo imperativo e inconsciente. Disso o sujeito nada sabe e aí não pode afirmar seu

ser. Lacan interroga: “O que assim pensa em meu lugar será, pois, um outro eu?” (ibidem,

p.527).

Page 49: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]
Page 50: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

43

Essa é a herança científica recebida pela psicanálise, uma vez que a ciência privilegia

o registro simbólico em sua operação. Se podemos dizer que a psicanálise é filha da ciência, é

na medida em que a ciência inaugura o sujeito em sua vertente simbólica, isto é, possibilita

apreender o sujeito enquanto objeto, através do significante que o representa, apesar de no

mesmo golpe excluí-lo de sua operação. A psicanálise, ao introduzir esse mesmo sujeito na

sua cena, passa a operar com ele, fazendo valer seu simbólico, pelo viés do significante.

Apesar de excluído e calado pela ciência, o sujeito não deixa de se manifestar, de

modo que, justo por isso, se fez possível à psicanálise reconhecê-lo e acolhê-lo. Concluiremos

este capítulo com um fragmento de caso clínico que ilustra o acolhimento do sujeito em sua

singularidade, ali onde somente a psicanálise, a partir de seu discurso, pode fazê-lo,

considerando que para outros discursos ele não se insere como tal. Dizemos com outros

discursos, especificamente o discurso médico e pedagógico, uma vez que, no que tange a este

atendimento, a interface destes com o discurso psicanalítico foi uma constante.

Trata-se de um menino de nove anos, chamado aqui de Diogo, que chegou,

encaminhado por uma neurologista, ao serviço de Saúde Mental do Posto de Saúde da rede

pública do Município do Rio de Janeiro, onde trabalho. Nosso primeiro contato, em fevereiro

de 2005, ocorreu no grupo de recepção que funciona como o dispositivo de porta de entrada

do serviço. Diogo vem trazido pela mãe que relata haver já dois meses ter ele parado de falar.

A neurologista, primeira profissional a quem a mãe procurou, solicitou uma bateria de exames

e o encaminhou ao serviço de saúde mental.

A mãe de Diogo fala no grupo de recepção da dificuldade em lidar com o filho que

está muito agitado e não lhe obedece mais, o que ficou visível durante a reunião. Segundo a

mãe, Diogo sempre falou normalmente, mas perdera a fala a partir de um episódio de surto da

tia, irmã da mãe. Nesse episódio presenciado pelo menino, a tia ameaçou a mãe com uma

tesoura, dizendo que iria matá-la. Desde então, o menino perdeu o apetite, ficou muito

agitado, não conseguia dormir, além de perguntar muitas vezes à mãe se ela iria morrer. A

partir daí, passou a ter dificuldade de se desligar da mãe, em seguida, parou de falar.

Em entrevistas, a mãe relata que aos seis anos Diogo perdera o pai, vitimado por um

enfarte. Ele era muito ligado ao pai, e sua mãe conta que na época o menino chorou, ficou

triste, mas não reparou alterações em seu comportamento. Depois desse episódio, perdera o

avô que levou um tiro, e também se separou da irmã, quando esta casou e mudou-se de casa.

Essas diversas perdas e separações parecem ter vindo à tona, quando sua mãe foi ameaçada de

Page 51: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

44

morte. Pode-se entender que a necessidade de tê-la por perto o tempo todo apontava o medo

que tinha de perdê-la. A mãe, por sua vez, sem entender o que tinha acontecido, questionava

se o filho era maluco. Ficava muito angustiada de não conseguir se comunicar com ele.

Diogo só entrava na sala, acompanhado pela irmã que o trazia. Nas sessões, gostava de

repetir a mesma brincadeira, pegava a bola e começava a jogá-la para mim e para a irmã,

passando a bola. Durante muitas sessões passamos a bola e da bola fomos também passando à

palavra... .Diogo começa a emitir sons incompreensíveis, mas endereçados junto da bola que

jogava vezes para a irmã, vezes para a analista. Devolver a bola a Diogo é uma forma de

construir um laço, dando-lhe também a palavra, pela via da aposta. Aos poucos começou a

balbuciar algumas palavras, de forma desarranjada ainda. Na medida em que o movimento de

passar a bola na transferência, foi propiciando a passagem à fala, podemos dizer que aquela

estava no lugar daquilo que causa, ou seja, o objeto a.4 Referindo-se ao objeto a, Lacan

(1966b) diz: “Este objeto é aquele que fazemos sair de seu lugar através da psicanálise como a

bola que escapa à confusão para se oferecer à marca do gol” (p.51).

É possível pensar que, apesar da irrupção de real que o deixou sem palavras, Diogo

vem podendo, pela via transferencial, dar um contorno simbólico ao que não tem palavras.

Apostar que Diogo tem algo a dizer do seu jeito, acolher a forma como chega as sessões e

como nelas pode permanecer foi a chance de acolhê-lo, do modo que pôde expressar o

sofrimento por que vem passando. Numa de suas sessões, encostou o dedo indicador no braço

e me perguntou: “a Vanice?“. A irmã me diz que ele perguntava se eu iria dar vacina.

Pergunto: você quer tomar vacina para quê? Ele põe a mão no coração e diz: dor.

A agitação de Diogo, que manifestava sua angústia, dor trazia incômodo não só a sua

mãe como também aos profissionais de sua escola. Um dia, a diretora disse à mãe de Diogo

que não seria mais possível mantê-lo na escola, já que não parava quieto na sala, além de

pular o muro da escola até a linha do trem por diversas vezes, colocando-se em risco. Não era

possível diante de tantos alunos dar atenção particularizada a ele. Por outro lado, era

fundamental preservar este laço. Em conversa com a diretora, encontramos a solução de ele

ficar na sala o tempo que agüentasse e, quando começasse a ficar muito agitado, ficaria na

sala com ela. Assim ocorreu durante alguns meses, mas a diretora não mais pôde sustentar

esta estratégia, já que tinha muitas tarefas fora de sala, não disponibilizando tempo para um só

4 Observação de Marco Antônio Coutinho Jorge no exame de qualificação.

Page 52: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

45

aluno, que lhe demandava atenção e não lhe obedecia. Nesta época, me disse que seria melhor

ver uma outra escola, com classe especial.

A neurologista que o tinha encaminhado saiu de licença, por problemas de saúde,

portanto não pude contar com a avaliação dos exames que indicou. A idéia de lançar mão de

alguma medicação atravessava o tratamento, pois seria uma tentativa de amenizar-lhe o nível

de angústia, ajudando-o junto com a análise, na manutenção de seus laços sociais. A diretora

num discurso muito alarmista apontava o remédio como solução mágica. A mãe, por outro

lado, falava das melhoras de Diogo, mas também me perguntava se a medicação poderia

ajudá-lo. No entanto, em poucos meses, Diogo apresentava mudanças importantes: passou a

comer, a dormir e começou a emitir sons. Ao lado disso, não havia psiquiatra no município

que pudesse acompanhá-lo, uma vez que alegavam não saber medicar crianças. Os serviços

próprios a essa clientela não dispunham de vaga. Como sairia de férias, deixamos para

resolver essa questão no meu retorno.

Na volta das férias, a mãe chega dizendo que o tio não agüentou a agitação de Diogo e

o levou a um psiquiatra da rede particular de saúde. A primeira coisa que Diogo fez quando

entrou na sessão foi colocar a mão na barriga e depois na boca, fazendo gesto de vômito. A

mãe relata que lhe foram prescritas cinco medicações e que ele tem vomitado muito desde

então. Conversamos sobre essa questão e resolvemos que seria melhor encaminhá-lo a um

serviço da rede, já que precisava ser acompanhado de perto. O único lugar que se

disponibilizou a atendê-lo foi o Caps infantil Pequeno Hans. Lá, foi avaliado e, como

conseqüência houve a diminuição dos remédios.

Apesar da medicação, Diogo continuava agitado na escola, preocupando muito a

diretora que demandava à analista a melhora urgente do menino. Como o discurso

psicanalítico pode ajudar a sustentar a dimensão subjetiva do sujeito na interface com outros

discursos? Tal interrogação permeou o atendimento, já que o encontro com o discurso

pedagógico foi uma constante. Foi preciso um trabalho delicado com a diretora da escola, de

modo a escutá-la e orientá-la, além de trocar impressões no acompanhamento do caso. Uma

outra medida que pensamos para que pudesse continuar indo à escola foi que sua mãe o

acompanhasse, diminuindo, assim, bastante sua angústia.

Este pequeno fragmento foi selecionado no intuito de apontar que, mesmo medicado,

ou seja, acolhido pelo discurso médico e pelo discurso pedagógico, a dimensão subjetiva não

foi tamponada, de modo que se fez necessária a interlocução com os profissionais, a fim de

Page 53: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

46

sustentar o tempo de trabalho do sujeito tal como se apresentou. Esse sujeito, mesmo sem

palavras, não desistiu de “falar” e demonstrar pela angústia o tamanho do sofrimento que

experimentava. De modo que podemos colocar que, por mais que seja capturado por diversos

discursos que não acolham a dimensão do sujeito atravessado pelo real, simbólico e

imaginário, o sujeito aparece ou escapa e, ao não se permitir ser enredado nesse enredo que só

o exclui, permanece manifestando-se para quem puder reconhecer e escutar. É claro que se a

medicação fez sua função, e a escola, enquanto referência para manutenção dos laços do

sujeito também fez efeito, por outro lado, não dão conta daquilo que é da ordem do real do

sujeito. A clínica psicanalítica enquanto clínica que acolhe o que é da ordem do real do

sujeito, sob cujo efeito ele fica sem palavras, uma vez que lhe falta representação para lidar

com o que escapa ao simbólico, é a única que, ao incluir o real na cena, inclui o sujeito e sua

manifestação, seja ela qual for sem tamponar essa dimensão já que é disto que se trata de

tratar, ou seja, de tratar o real pelo instrumento do simbólico. É uma clínica que exige tempo e

trabalho, em outras palavras, trabalho num tempo de elaboração particular a cada sujeito.

Page 54: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

47

CAPÍTULO III

DO SUJEITO DO COGITO AO SUJEITO DA CLÍNICA

Esse capítulo se destina a pensar a passagem do sujeito tal como surgido na

formulação do cogito à sua aparição na clínica psicanalítica. Os dois tempos que se destacam

aqui apontam para dois momentos do sujeito, que, apesar de ser o mesmo, é neles tomado de

forma bastante diferente. De seu ponto de origem à sua inclusão na clínica, uma mudança de

posição em relação ao olhar sobre esse sujeito teve lugar. Do momento do cogito ao da

clínica, houve um giro quanto à perspectiva do sujeito, protagonizado por Freud. Não se trata

de pensar essa passagem no sentido de uma evolução, mas de reconhecer que somente a partir

do segundo tempo, o da clínica, é que se pode determinar o tempo anterior. Isso se coloca na

medida em que, ao imprimir sua diferença com relação ao sujeito, criando condições

operacionais sobre ele, a psicanálise pôde no mesmo gesto valer-se do cogito para romper e ir

além. É no reconhecimento que faz do sujeito para além do significante, mas como efeito

dele, que a psicanálise inaugura um método de tratamento.

É do ponto de vista da psicanálise que nos debruçaremos sobre esses dois momentos

do sujeito, a fim de acompanhar essa passagem, no que concerne especialmente à clínica

psicanalítica, isto é, investigando do lugar da clínica o que é esse sujeito. Considerando que,

no tempo do cogito, o sujeito veio à tona na seqüência de um instante de angústia, ou seja,

que o fator angústia está presente desde o nascimento do sujeito, apresentando-se também na

clínica e indagando Freud, escolhemos tomá-la como ponto comum e central no tocante à

noção de sujeito. É na articulação do conceito de sujeito com os termos angústia e real que

apostamos avançar nessa problemática, na tentativa de melhor delinear o que é o sujeito para

a psicanálise.

A primeira formulação do conceito de sujeito surge no campo filosófico com

Descartes, que o formula numa correspondência ao diálogo científico (Galileu), campo que

ofereceu condições para seu advento. No campo da psicanálise, raramente encontramos

passagens no texto freudiano que explicitem o sujeito como conceito, segundo Elia (2004),

podemos dizer que é um conceito lacaniano. Contudo, o sujeito aparece no texto freudiano na

categoria do Ich. De acordo com Quinet (2000), o Ich está referido em algumas passagens de

Freud ao eu e em outras ao sujeito como, por exemplo, no caso da Ichspaltung:

Page 55: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

48

“Com efeito, a expressão sujeito do inconsciente não é encontrada nos textos de Freud, menos ainda nos textos dos pós-freudianos. Mas não é apenas a expressão que constitui a novidade do que é próprio a Lacan; é também, e sobretudo, o que ela implica quanto à posição do inconsciente e, daí pra frente, quanto ao estatuto do discurso analítico” (Baas e Zaloszyc, 1996:19).

A partir de Lacan, pode-se dizer que a categoria de sujeito em psicanálise é uma

categoria moderna, na medida em que é contemporânea ao aparecimento da ciência moderna,

com o cogito cartesiano. Ao colocar em dúvida tudo o que pensava, Descartes passou a se

perguntar sobre o que poderia garantir a existência das coisas, inclusive sua própria

existência. O que garantia que ele mesmo e o mundo não eram uma ilusão? De princípio,

descarta os cinco sentidos como uma via verdadeira para responder à pergunta, já que para

ele, visão, tato, olfato, enfim, os sentidos eram enganadores. Através do processo de tudo

duvidar, foi levado a se deparar com a falta daquilo que buscava: as garantias. Esse momento

de suspensão, de falta de resposta e garantia é o instante da angústia, que trouxe como efeito a

formulação do cogito. É no exercício da dúvida que encontra uma certeza, qual seja, a de estar

duvidando, o que afirma o ato de pensar. O cogito passa a garantir o sujeito do pensar,

chamado por Descartes, de acordo com Elia (2004) de res cogitans (substância pensante), em

oposição a res extensa (substância material), atestando a existência do sujeito em sua vertente

simbólica. É no campo da filosofia com Descartes que, pela primeira vez, voltou-se o saber

para o sujeito, à subjetividade.

O cogito inaugura e revela o sujeito reduzido ao significante, única forma como pode

se representar. Da apresentação da formulação: “penso, logo sou”, se extrai que o eu existe

porque pensa. O eu é aquele que pensa no cogito, sendo assim reduzido ao significante

pensar. Assim, através daquilo que pensa, o eu (sujeito) será representado para outro

significante, ficando redutível a esse. Na medida em que é o significante que pode representar

o sujeito, sendo esse reduzido pelo primeiro, é possível deduzir como fez Descartes, que o

sujeito é um determinado significante, num determinado momento. No entanto, o que a

psicanálise vai apontar é que o sujeito não se reduz à representação significante e é na não

representação que a angústia pode emergir:

“Não é anódino que o sujeito apareça em um momento que poderíamos qualificar de momento de angústia na história do pensamento. A aparição do sujeito no cenário do pensamento se fez através da angústia e da incerteza em relação ao que se dera até então como um mundo mais ou menos compreensível para o entendimento do homem. Não se trata de dizer que não tenha havido crises no

Page 56: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

49

pensamento até esse momento, mas de saber discernir a magnitude dessa crise em particular – o advento da ciência moderna e sua separação da filosofia – a fazer a verificação precisa de seu valor de corte maior” (idem, 2004:13).

O momento de angústia que fez o sujeito aparecer foi aquele vivido por Descartes.

Diante da queda das certezas estabelecidas, a angústia, funcionando como motor, o fez criar o

método que o levou ao cogito. Considerando que, desde seu nascimento, o sujeito está em

relação com a angústia, interrogamos: o que se pode verificar da relação entre essas duas

formas de emergências?

A fim de examinar a questão colocada, utilizaremos elementos trazidos por Freud e

Lacan, uma vez que podem nos instrumentalizar no desenvolvimento da mesma. O cogito

lança o sujeito em sua vertente simbólica, reduzindo-o ao significante. O sujeito é recortado

pelo significante como se verifica no caso a seguir: N busca análise para sua filha que,

segundo ela, está deprimida, desmotivada, principalmente com os estudos, o que preocupa N

em particular. Relata que entende que a filha esteja assim, pois percebe que os pais estudam,

trabalham e nunca conseguem nada, o que segundo N deve instaurar na filha um

questionamento do porquê e para que estudar se não há resultados. Ao falar daquilo que

nomeia como seus insucessos, N diz:- “eu sou um fracasso, nunca nada deu certo para mim,

mas gostaria que fosse diferente para minha filha”. Essa vinheta ilustra, a partir do discurso de

N, sua redução enquanto sujeito a um dos significantes que podem representá-la, nesse caso,

identifica-se com o significante fracasso. Tal identificação traz conseqüências ao sujeito.

Nessa entrevista específica, o significante fracasso representou-a como sujeito. É por conta

dessa redução que a psicanálise tem condições de operar com esse sujeito, na medida em que

opera sobre seu discurso, denunciando o que se inaugura na ciência, ou seja, o sujeito

resumido ao significante. Todavia, se o sujeito da psicanálise é sujeito do pensamento

inconsciente, esse pensamento não o identifica de modo absoluto e por isso o sujeito pode ter

muitas identificações, que são numa análise desfolhadas. “Da análise, espera-se que o sujeito

conheça os significantes primordiais que o determinaram em sua história e em sua vida a

partir da decifração do inconsciente, para que possa deles se desalienar escapando de seu

poder de comando” (Quinet, 2000:45). Ou conforme Baas e Zaloszyc:

“Na medida em que a palavra é o intermediário único da sua experiência, a psicanálise tem a ver com a existência do significante e de seus efeitos, e o sujeito, na experiência analítica, não é de forma alguma prévio, mas suposto e assujeitado

Page 57: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

50

ao significante, onde encontra suas identificações e do qual é um efeito” (op. cit, 1996:1).

A partir da escuta do discurso de seus pacientes, Freud estabeleceu uma relação entre

inconsciente, sujeito e palavra falada. É na fala que o inconsciente, estruturado como uma

linguagem, poderá emergir, através dos significantes que compõem seu material, que, por não

portarem em si um sentido constituído, se definem como constituintes desse, sendo então,

aqueles que fazem significar:

“...de todas as formas pelas quais a estrutura simbólica, significante, da linguagem pode se atualizar em um ser falante, a fala é a única que permite, por seu modo encadeado, diacrônico, como discurso desdobrado no tempo em uma seqüência de palavras, que o plano do significante seja destacável da significação. A fala, por ser uma cadeia de palavras, permite o divórcio entre significante e significado, necessário para evidenciar a primazia material do esqueleto significante sobre o revestimento muscular que são as significações produzidas pelo primeiro” (Elia, 2004, op. cit, p.22).

No cogito, o que diz respeito ao sujeito que está para além do simbólico, ou seja, em

exterioridade ao pensamento, é desprezado, já que o sujeito se resume a um ser do pensar. Em

contraponto, apesar de operar com o sujeito limitado ao significante, a psicanálise o reconhece

para além desse, inclui-o em seu campo como um sujeito nodulado pelos três registros.

Segundo Baas e Zaloszyc, a tese lacaniana visa a

“reconhecer o sujeito como o que não tem identidade, ou melhor, como essa própria falta, cuja afirmação é exigida pela lógica, a posição do inconsciente. Lacan escreve (sujeito barrado do desejo) para indicar essa não-identidade fundamental, a impossível identificação do sujeito a si próprio” (op.cit,1996:19).

É na medida em que o real incide no simbólico, marcando uma falta no Outro, que

dizemos que não há nesse lugar nenhum sentido capaz de conferir uma identidade ao sujeito,

ou seja, falta um significante que o represente de forma absoluta:

“O sujeito como efeito da articulação significante é o sujeito do pensamento inconsciente, que Lacan identifica com o sujeito como descreve Descartes. É o ponto em que Freud e Descartes convergem. Em Descartes, a certeza do sujeito é apreendida através da dúvida e, para Freud, como vimos, a dúvida que aponta o lugar de um branco, que surge no pensamento, nos fornece a certeza de que aí se

Page 58: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

51

encontra o inconsciente como pensamento ausente (da consciência). Descartes parte do pensamento e chega na existência; Freud parte do pensamento inconsciente e chega no desejo” (Quinet, 2000, op. cit, p.13-14).

No que tange à relação do sujeito ao significante, podemos dizer que, se apenas o

significante pode representar o sujeito, na falta desse, o sujeito, apesar de não se representar,

se manifesta; ali onde faltam palavras, emerge seu lado real. Uma vez que o real é sem

palavras, apontando assim o simbólico como não-todo, no momento que vem à tona, deixa o

sujeito em seus moldes, sem palavras, sem representação. Na falta de palavras, o sujeito

emerge revelando a invasão do real, o que lança a questão: estaria a angústia manifestando a

vertente real do sujeito?

Em seu texto intitulado “Inibições, sintomas e angústia”, Freud (1926a) levanta o

problema da angústia como ponto principal, trazendo novas considerações acerca do tema. No

lugar da primeira teoria da angústia, considerada como produto de uma transformação da

libido acumulada, da excitação não descarregada, Freud passa a pensá-la como reação a

situações de perigo. “A angústia surgiu originalmente como uma reação a um estado de perigo

e é reproduzida sempre que um estado dessa espécie se repete” (p.127). Ele abandona aqui a

teoria que por tanto tempo sustentara. Strachey (1959) coloca na introdução do texto que, na

Carta 75 (1897) de sua correspondência com Fliess, Freud já era tomado por dúvidas sobre a

relação que construía entre angústia e libido, apontando assim que desde então o que pôde, em

1926, afirmar já se esboçava de alguma forma. Outro aspecto mencionado por Strachey

refere-se ao fato de que no texto de 1926a, apenas no que tange à neurose de angústia, Freud

ainda sustenta a primeira teoria. No entanto, segundo o editor, em 1933a numa conferência

sobre o assunto, ele de vez a deixa de lado também no tocante à neurose de angústia. Com a

queda da primeira teoria da angústia e a partir da nova distinção entre angústia automática e

angústia sinal não houve mais motivos para conservar a diferença entre angústia neurótica e

angústia realística. No que tange ao aumento de excitação e excesso, vale registrar que houve

alguns avatares na obra de Freud, que dizem respeito a sua teorização em relação à pulsão de

morte, a um mais além do princípio do prazer, todavia não exploraremos esse ponto aqui.

Segundo Freud, a angústia pode surgir de duas formas: como reação direta e

automática face a uma situação traumática, análoga ao nascimento, cuja essência é a

experiência de desamparo do eu, frente ao acúmulo de excitações externas ou pulsionais com

as quais não consegue lidar, ou como sinal de perigo que anuncia a iminência do trauma,

Page 59: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

52

resposta do eu à ameaça de ocorrência de uma situação traumática. Nesse caso, ao imaginar a

situação, o eu antecipa o trauma, a fim de reduzir a experiência aflitiva a um mero sinal,

encontrando assim um meio de evitar o perigo. A essas duas formas, Freud nomeou

respectivamente, angústia automática e angústia sinal. Considerando a relação entre perigo e

angústia, questionamos com Freud: Qual o perigo que pode despertar a angústia ou que ela

anuncia como alerta ao eu?

O caminho que seguiremos no desenvolvimento dessa questão é aquele indicado e

trabalhado por Freud no artigo de 1926a, em que recorre ao caso clínico do pequeno Hans, a

fim de ilustrar e destrinchar, com alguns fragmentos, a questão da angústia articulando-a às

noções de sintoma e inibição. Trata-se nesse caso de uma fobia histérica infantil. O pequeno

Hans recusava-se a andar pela rua porque se angustiava frente a cavalos. Freud destaca que o

menino sofria não de uma angústia indeterminada de cavalos, mas de uma angústia bem

definida de que o cavalo ia mordê-lo. “Essa idéia, na realidade, esforçava-se por retirar-se da

consciência e ser substituída por uma fobia indefinida, na qual somente a angústia e seu

objeto ainda apareciam” (p.97).

O que dessa apresentação constitui o sintoma de Hans? Segundo Freud: “Um sintoma

é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado latente, é

uma conseqüência do processo de recalque” (1926a:87). O recalque ocorre quando o eu se

recusa a associar-se a um investimento pulsional provocado no isso. Por meio do recalque o

eu impede que a idéia que é veículo da pulsão se torne consciente. A idéia, portanto, persiste

como uma formação inconsciente. Se o recalque incide sobre a idéia, qual o destino do

impulso pulsional a ela ligado, que ativado no isso buscava satisfação? Freud aponta que a

pulsão obteve uma resposta indireta. Ocorre que quando o eu se opõe a um processo pulsional

do isso, pode apenas com um sinal de desprazer alcançar ajuda do princípio de prazer que

regula o aparelho psíquico, a fim de chegar a seu objetivo. Isso se torna possível em virtude

da vinculação do eu com o sistema perceptual, cuja função está ligada à manifestação da

consciência, que recebendo excitações de fora e de dentro do psiquismo que a alcançam por

meio das sensações de prazer e desprazer, busca orientar o curso dos fatos psíquicos no

sentido do princípio de prazer. Assim, o eu retira seu investimento (pré-consciente) do

representante pulsional (idéia) a ser recalcado e a utiliza para despertar angústia, sentida como

desprazer. Uma vez que o eu consegue, com a ajuda do princípio de prazer, inibir o

pretendido processo excitatório do isso, o prazer esperado da satisfação se transformará em

Page 60: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

53

desprazer, angústia. Uma vez despertada a angústia, o recalque é colocado em marcha, a fim

de resolver o perigo anunciado.

Quando o eu recorre ao sinal de desprazer e atinge seu propósito de sufocar por inteiro

o impulso do isso, fica-se sem saber o que ocorreu. Só se pode descobrir algo sobre o ocorrido

nos casos em que o recalque falha em maior ou menor grau, pois surgirá o sintoma. Pode-se

então dizer que o sintoma surge como uma formação entre a pulsão e uma nova idéia

substituta. Apesar do recalque, a pulsão pode encontrar no sintoma um substituto mais

deslocado, não reconhecível como satisfação. No lugar de derivado e substituto da moção

pulsional que, por efeito do recalque, teve seu destino alterado, o sintoma executa o papel da

primeira, renovando suas exigências de satisfação, obrigando o eu a dar o sinal de desprazer e

a colocar-se numa posição defensiva:

“Embora o ato de recalque demonstre a força do eu, ao mesmo tempo revela sua impotência e quão impenetráveis à influência são os impulsos pulsionais do isso, pois o processo psíquico que se transformou em um sintoma devido ao recalque mantém agora sua existência fora da organização do eu e independentemente dele” (ibidem, 1926a:93).

Apesar do recalque, a pulsão insiste continuamente na busca de satisfação o que exige

do eu um dispêndio permanente de energia, a fim de manter sua ação defensiva. A proteção

do recalque é vista na clínica pelo fenômeno da resistência. A pesquisa de Freud no texto

segue a direção de desvendar, no caso Hans, qual o impulso recalcado (a que satisfação

renunciou), seu sintoma-substitutivo e o motivo do recalque. Aponta que Hans encontrava-se,

na época do tratamento, na atitude edipiana ciumenta e hostil em relação ao pai, a quem

também amava, salvo quando a mãe era causa da desavença. Há, portanto, um conflito devido

à ambivalência de afetos dirigidos à mesma pessoa. Freud sublinha que a fobia do menino

deve ter sido uma tentativa de solucionar esse conflito. De acordo com Freud, o impulso que

sofreu efeito do recalque foi um impulso hostil dirigido ao pai, equivalente ao impulso

assassino do complexo de Édipo. Se Hans estava apaixonado pela mãe e por isso queria

livrar-se do pai, é natural que temesse a vingança dele e daí ficasse com medo. O que

transformou sua reação emocional em neurose foi a substituição do pai por um cavalo. Esse

deslocamento, que para Freud pode ser denominado sintoma, permitiu uma solução ao

conflito. A escolha de um cavalo como causador de angústia foi determinada, segundo Freud,

pelo fato de Hans brincar de cavalos com o pai. Na medida em que o cavalo era um

Page 61: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

54

deslocamento do pai, o medo de ser mordido era, portanto, algo que se referia ao pai. Freud

situa que o impulso hostil contra o pai fora recalcado pelo processo de ser transformado em

seu oposto. No lugar da agressividade por parte do paciente para com o pai, surgiu

agressividade do pai para com o paciente, sob a forma de medo de vingança:

“Pequeno Hans desistiu de sua agressividade para com o pai temendo ser castrado. A angústia de que um cavalo o mordesse pode, sem nenhuma força de expressão, receber o pleno sentido da angústia de que um cavalo arrancasse fora com os dentes seus órgãos genitais - o que o distinguia de uma fêmea” (ibidem,1926a:103).

É na vivência da ameaça de castração que o perigo é anunciado pela angústia, ou seja,

a angústia sinaliza o perigo que significa perder algo valioso. No caso de Hans, é a ameaça de

perder seu órgão genital que o faz abrir mão do projeto edipiano.

O desenvolvimento sexual da criança, segundo Freud, avança até a fase fálica,

contemporânea ao complexo de Édipo, na qual o órgão genital masculino assume papel

principal, frente ao feminino. De acordo com as observações de Freud, é por conta da

manipulação que se pode perceber que o interesse do menino volta-se nessa época para o

pênis; ele descobre que os adultos o desaprovam e ameaçam tirá-lo. Acontece muitas vezes do

motivo da ameaça ser menos por estar mexendo e mais por molhar a cama, o que acarreta

trabalho para quem limpa. “é minha opinião ser essa ameaça de castração o que ocasiona a

destruição da organização fálica da criança” (1924:183). No entanto, apesar de temerem

perder o pênis, Freud salienta que os meninos não são de fato castrados por estarem

apaixonados por suas mães, na fase do Édipo: “não se trata de a castração ser ou não ser

realmente efetuada; o que é decisivo é que o perigo ameaça de fora e a criança acredita nele”

(1933a:80).

Segundo Freud, o menino não cede de suas brincadeiras como uma reação imediata,

pois num primeiro momento não acredita na ameaça. “A observação que finalmente rompe

sua descrença é a visão do órgão genital feminino... Com isso, a perda de seu próprio pênis

fica imaginável e a ameaça de castração ganha seu efeito adiado” (op.cit. 1924:183). A partir

da percepção da diferença sexual o menino passa a acreditar que pode perder seu órgão

valioso, de modo que, quando sofre a ameaça de castração, relembra ou é despertado da real

possibilidade de perda, visto que para ele a menina já o perdeu. A masturbação para Freud

constitui apenas uma descarga da excitação pertinente ao complexo de Édipo que oferece para

a criança duas possibilidades de satisfação, ativa e passiva, nas quais: “certamente o pênis

Page 62: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

55

devia desempenhar uma parte nela, pois as sensações em seu próprio órgão eram prova disso”

(ibidem, 1924:184). A ameaça de castração, que nesse momento é significada pela ameaça de

perder o pênis, ocasiona a destruição do complexo de Édipo:

“Se a satisfação do amor no campo do complexo de Édipo deve custar à criança o pênis, está fadado a surgir um conflito entre seu interesse narcísico nessa parte de seu corpo e a catexia libidinal de seus objetos parentais. Nesse conflito, triunfa normalmente a primeira dessas forças: o eu da criança volta as costas ao complexo de Édipo” (ibidem,1924:184).

Ocorre então que os investimentos de objeto são abandonados e substituídos por

identificações: “A autoridade do pai ou dos pais é introjetada no eu e aí forma o núcleo do

supereu, que assume a severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto,

defendendo assim o eu contra o retorno do investimento libidinal do objeto” (ibidem,

1924:184). Freud ainda sublinha que as tendências libidinais são, em parte, dessexualizadas e

sublimadas e, em parte, inibidas em seu objetivo, transformadas em impulsos de afeição.

Constatamos assim ter sido a angústia de castração a força motriz do recalque.

Segundo Freud, foi a idéia de ser castrado pelo pai que sofreu efeito do recalque e aparecia

por distorção pela idéia substituta de ser mordido por um cavalo. “Foi a angústia que produziu

o recalque e não como eu anteriormente acreditava, o recalque que produziu a angústia” (op.

cit,1926a:104). O motor da defesa do eu é o complexo de castração, que tenta desviar as

tendências do complexo de Édipo. O eu se vê exigido a trabalhar por conta do perigo que

sente e lhe causa angústia, perigo esse de ordem pulsional. Uma exigência pulsional não é em

si perigosa, mas passa a ser um perigo interno porque sua satisfação provocaria um perigo

externo, o da castração.

Ao levar em consideração as três neuroses, fobia, histeria de conversão e neurose

obsessiva, Freud (1926a) coloca: “O ponto de arranque das três neuroses é a destruição do

complexo de Édipo, e em todas, o motor de oposição do eu é angústia de castração. Porém é

somente na fobia que essa angústia aflora e é reconhecida” (p.117). No caso de fobias: “o eu

deve proceder contra um investimento de objeto libidinal que provém do isso – um

investimento que pertence ou ao complexo de Édipo positivo ou negativo – porque acredita

que lhe ceder lugar acarretaria o perigo de castração” (ibidem, p.118). É por conta do

mecanismo de projeção que na fobia há substituição de um perigo interno pulsional por outro

externo e perceptual. “A vantagem disto é que o indivíduo pode proteger-se contra um perigo

Page 63: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

56

externo, dele fugindo e evitando a percepção do mesmo, ao passo que é inútil fugir de perigos

que surgem de dentro” (ibidem, p.120).

“Dissemos que logo que o eu reconhece o perigo de castração dá o sinal de angústia e inibe através da instância do prazer-desprazer o iminente processo de investimento no isso. Ao mesmo tempo forma-se a fobia. E agora a angústia de castração é dirigida para um objeto diferente e expressa de forma distorcida, de modo que o paciente teme, não ser castrado pelo pai, mas ser mordido por um cavalo ou devorado por um lobo. Essa formação substitutiva apresenta duas vantagens óbvias. Em primeiro lugar, evita um conflito devido à ambivalência, pois o pai é também um objeto amado e em segundo, permite ao eu deixar de gerar angústia, pois a angústia que pertence a uma fobia é condicional; ela só surge quando o objeto dela é percebido – e com razão, visto que é somente então que a situação de perigo se acha presente” (ibidem, p.119).

No caso da menina, na comparação com o sexo oposto, a falta do pênis é entendida

como resultado da castração, ou seja, ela o possuía numa época anterior e depois o perdeu; a

menina sente que foi injustiçada, donde decorre o que Freud nomeou inveja do pênis: “Dá-se

assim a diferença essencial de que a menina aceita a castração como um fato consumado, ao

passo que o menino teme a possibilidade de sua ocorrência” (op.cit, 1924:186).

“Enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido através do complexo de castração. Essa contradição se esclarece se refletimos que o complexo de castração sempre opera no sentido de seu conteúdo: ele inibe e limita a masculinidade e incentiva a feminilidade” (Freud, 1925:275).

A percepção da diferença sexual abre a porta na menina para o complexo de Édipo, na

medida em que ela entra no Édipo em função da castração. Referindo-se ao Édipo na menina,

Freud diz: “raramente ele vai além de assumir o lugar da mãe e adotar uma atitude feminina

para com o pai” (op.cit, 1924:186). A renúncia ao pênis acompanha a tentativa de uma

compensação. “Ela abandona seu desejo de um pênis e coloca em seu lugar o desejo de ter um

filho; com esse fim em vista, toma o pai como objeto de amor” (op.cit, 1925:274). O

complexo de Édipo na menina inicia-se no desejo do pênis, depois a sua renúncia, deslizando

para o desejo de receber do pai um bebê como presente.

Considerando a angústia de castração como motor do eu para efetuar o recalque, surge

para Freud uma questão no que tange a esse processo em meninas, pois embora reconheça

Page 64: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

57

nelas uma organização fálica e um complexo de castração, como se pode falar em angústia de

castração ali onde a castração já se deu? Essa pergunta nos leva a questionar se o que está em

jogo na angústia de castração se resume à ameaça de perda do órgão genital em sua

representação anatômica, ou o pênis estaria representando algo para, além disso?

Pode-se colocar que é na fase fálica ou genital, a partir da percepção da diferença

sexual, que a angústia pode em sua emergência ser pela primeira vez representada, isto é, ser

vinculada a um objeto, o que permite a Freud por conta desse momento definir angústia como

angústia de castração. Esse objeto encontra sua imagem no órgão sexual masculino, enquanto

representante de algo precioso para o sujeito, no caso o menino, sob cuja ameaça de perda,

emite o sinal de angústia. “... a angústia de castração constitui o medo de sermos separados de

um objeto valioso...” (op.cit, 1926a:130). Freud relaciona a angústia de castração à ameaça de

perda: “A castração pode ser retratada com base na experiência diária das fezes que estão

sendo separadas do corpo ou com base na perda do seio da mãe no desmame” (ibidem, p.123).

A ameaça de castração é o representante da angústia de castração, ou seja, a possibilidade

da perda do objeto é o que representa a angústia, disparando-a. O pênis é o primeiro

representante da angústia de castração, pois só retroativamente podemos situá-la em

diferentes fases libidinais, ou seja, representá-la por diferentes objetos como seio, fezes,

separação da mãe e o nascimento. Isso se torna possível, pois não se trata do pênis em si e sim

daquilo que ele representa que adquire a mesma significação no deslocamento para outros

objetos e situações. A fim de desdobrar melhor essa colocação retomaremos o caso Hans para

perguntar: O que estava em jogo na relação de Hans com o pênis a ponto de ceder de seu

desejo diante da emergência da angústia? Qual o perigo de perdê-lo? Enquanto objeto que,

num primeiro momento, pôde ser ligado ao afeto de angústia como determinante, o pênis não

se reduz a uma realidade corporal, mas ocupa principalmente valor simbólico. A alternativa

com que se deparam os sujeitos na fase fálica a partir da diferença entre os sexos cabe nos

termos: ter o falo ou ser castrado. A oposição não está na anatomia feminina e masculina, mas

na presença ou ausência de um termo. Apesar de não ser o falo, ao pênis é atribuído

prevalência enquanto símbolo diferencial, implicando conseqüências psíquicas. Para Hans, o

pênis foi na vivência do complexo de castração, o representante do falo, o que fez com que na

partilha dos sexos ficasse do lado de “quem tem”. Freud aponta que o interesse narcísico pelo

pênis é que fez Hans abandonar o Édipo infantil. Isto permite observar que o órgão nesse

momento conferia a Hans uma unidade egóica, isto é, uma imagem de completude. A

Page 65: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

58

equivalência do pênis ao falo permitiu com que, ao se deparar com a castração, optasse pela

integridade narcísica. Se o falo é o significante do desejo, é por isso o representante da falta,

de modo que ter, ou não, o falo não elimina o fato de que há falta. Segundo Laplanche e

Pontalis (1983): “o que caracteriza o falo e se encontra nas suas diversas metamorfoses

figuradas é ser um objeto destacável, transformável – e neste sentido, objeto parcial” (p.227).

Assim, pode-se dizer que a castração, a falta de objeto que pode tanto causar angústia quanto

desejo, é a experiência que ameaça o sujeito, posto que o coloca em face de sua condição

humana de desamparo. No caso da menina, o determinante da angústia é a ameaça de perder o

amor do objeto. Essa intimidação se coloca, pois o objeto do qual teme perder o amor é

colocado no lugar do objeto a, de modo que perdê-lo a colocaria em estado de desamparo. O

objeto parcial representa uma proteção da vivência de desamparo, anunciada quando da

ameaça de perda. Em ambos, na menina e no menino, a vivência do complexo de castração é

concomitante ao nascimento do supereu, na medida em que é através dessa instância que a

ameaça se dá: “Expressando-o de modo mais geral, o que o eu considera como sendo o perigo

e ao qual reage com um sinal de angústia consiste em o supereu dever estar com raiva dele ou

puni-lo ou deixar de amá-lo”. (op.cit, 1926a:132). E dessa forma: “Vemos agora que não há

perigo algum em considerarmos a angústia de castração como a única força motora dos

processos defensivos que conduzem à neurose” (ibidem, p.135).

A associação entre castração e desamparo, permite dizer que o perigo que a angústia

sinaliza é o perigo da situação traumática de desamparo. É possível fazer uma equivalência

entre o que Freud nomeia como trauma e o real de Lacan, ou seja, um momento em que o

sujeito é invadido por algo frente a que não tem recurso simbólico, diante do que surge a

angústia como transbordamento de afeto do sujeito. “... a angústia tem uma função biológica

indispensável a cumprir como reação a um estado de perigo...” (ibidem, p.127). Enquanto

função, pode-se pensar na angústia como último recurso do sujeito face a uma situação

traumática, de vez que o real por ela anunciado, desperta o desprazer, porém já como anteparo

ao insuportável. A angústia então é uma das formas de manifestação do sujeito frente ao real.

Dessa forma, é possível com Elia afirmar que a relação do sujeito à angústia é de

equivalência, isto é: “a emergência da angústia é a emergência do sujeito” (op.cit, 2004:13),

na medida em que a angústia anuncia a vertente real do sujeito, indicando que o sujeito não se

reduz ao significante.

Page 66: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

59

A colocação de que: “O eu é a sede real da angústia” (Freud, 1926a, op.cit, p.89),

salienta a intimidade entre sujeito e angústia, situando no eu o lugar da angústia como

manifestação do real. Segundo Freud, a angústia se manifesta como um estado afetivo de

caráter desprazeroso que se faz acompanhar de sensações físicas, geralmente ligadas a órgãos

respiratórios e ao coração, onde os processos de descarga desse fenômeno se dão. Os atos de

descarga e sua percepção permitem considerar que a angústia aparece no próprio corpo: “De

conformidade com nossos pontos de vista gerais, devemos estar inclinados a pensar que a

angústia se acha baseada em um aumento de excitação que, por um lado, produz o caráter de

desprazer e, por outro, encontra alívio através dos atos de descarga” (ibidem, p.126). O relato

fisiológico não é o bastante para Freud que une às sensações de angústia e suas inervações,

um fator histórico, formulando o estado de angústia como reprodução de alguma experiência

cujas condições levaram ao aumento de excitações e à descarga, gerando seu caráter

específico de desprazer. Sendo a angústia uma reprodução, é sempre reação a um perigo

anterior, ou seja, já vivido, a que ela remonta. Em outras palavras, qualquer angústia é

secundária ao trauma primordial. Freud observa que: “No caso dos seres humanos, o

nascimento proporciona uma experiência prototípica desse tipo, e ficamos inclinados a

considerar o estado de angústia como uma reprodução do trauma do nascimento” (ibidem,

p.126).

Se Freud lança mão de um momento primeiro, isto é, do ato de nascer, como

originário da angústia para pensar sua emergência, em que medida o faz? Por que o

nascimento é considerado o protótipo do trauma?

“No ato do nascimento há um verdadeiro perigo para a vida. Sabemos o que isso significa objetivamente; mas num sentido psicológico nada nos diz absolutamente. O perigo do nascimento não tem ainda qualquer conteúdo psíquico. Não podemos possivelmente supor que o feto tenha qualquer espécie de conhecimento de que existe a possibilidade de sua vida ser destruída. Ele pode somente notar uma enorme perturbação na economia de sua libido narcísica. Grandes somas de excitação nele se irrompem, produzindo novas espécies de sensações de desprazer, e muitos órgãos adquirem maior investimento, prenunciando assim o investimento de objeto que logo se estabelecerá” (ibidem, p.128).

Freud então faz referências ao livro de Otto Rank, The trauma of Birth, em que o autor

sustenta a hipótese de que o afeto de angústia é conseqüência do fato do nascimento ser um

trauma, de modo que toda angústia é uma tentativa de descarga, de ab-reagir o trauma do

Page 67: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

60

nascimento, ou seja, uma reação tardia de liberação da energia estrangulada, consistindo sua

técnica terapêutica em superar esse trauma. No entanto, se, num primeiro momento, as idéias

de Rank contribuíram para o pensamento freudiano, foi somente na rejeição e desconstrução

dessa teoria que Freud avança, considerando o nascimento para além de um primeiro

momento no sentido cronológico, mas como paradigma para pensar o traumático. “O

nascimento foi encarado como sendo o protótipo de todas as situações ulteriores de perigo...”

(ibidem, p.151). Assim, no que tange à clínica da psicanálise, não se trata de retornar ao

momento do nascimento para obtenção da cura, ainda que a regressão tenha lugar nesse

tratamento, não é essa sua concepção. A direção que se coloca é de acolher o trauma que se

impõe ao sujeito, incluindo-o na cena, de modo a proporcionar o trabalho de elaboração.

Diferente de Rank, Freud não acredita que o momento do nascimento imprima

qualquer inscrição psíquica no bebê, senão sensações tácteis e acúmulo de excitações

relacionadas a esse processo. Segundo Rank, há uma analogia entre a reação de angústia

posterior e o trauma que interrompeu o momento de felicidade intra-uterina, de modo a

justificá-la exclusivamente por esses termos. De acordo com Freud, essa teoria não pode ser

sustentada e é contrariada em situações como:

“Quando, por exemplo, uma criança é deixada sozinha no escuro, seria de esperar-se que ela, de conformidade com seu ponto de vista, recebesse de bom grado o reestabelecimento da situação intra-uterina; contudo, é precisamente em tais ocasiões que a criança reage com angústia. E se isto for explicado afirmando-se que a criança está sendo lembrada da interrupção que o evento do nascimento causou em sua felicidade intra-uterina, torna-se impossível fechar os olhos por mais tempo ao caráter exagerado de tais explicações” (ibidem, p.129).

O trauma se delineia como aquilo que se repete e que não se escreve jamais para o

sujeito. É como o que não cessa de não se inscrever que o real do trauma comparece para o

sujeito, sendo a angústia sua manifestação afetiva, ou seja, o que aparece referente à economia

psíquica. Na medida em que o real não se inscreve, o que se apresenta para o sujeito tal como

no nascimento é esse acúmulo de excitação que causa desprazer. A angústia, revelando a falta

de ligação simbólica, de inscrição, convoca o sujeito a buscar alguma associação,

representação para dar contorno a esse real. Se o real não se inscreve, qual a inscrição que

marca o sujeito para que dê o sinal frente ao trauma? É possível dizer que a não inscrição já se

configura como uma inscrição, ou seja, que o real se inscreve como falta, de modo que é na

iminência de uma situação que remete ao desamparo que o sinal de angústia advém. Nas

Page 68: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

61

palavras de Freud: “É fácil dizer que o bebê repetirá sua emoção de angústia em toda situação

que recorde o evento do nascimento. O importante é saber o que recorda o evento e o que é

recordado” (ibidem, p.128). Se não há inscrição no nascimento, o que dá notícias do trauma

ao sujeito, ao que associa que remete a um perigo que recorda o trauma?

A indicação dada por Freud para se pesquisar essa interrogação encontra-se no exame

das ocasiões em que crianças de colo, ou um pouco mais velhas, sentem angústia. A criança

de colo deseja a presença da mãe, pois sabe através da experiência que ela satisfaz suas

necessidades. Assim, o perigo que se configura, e do qual deseja se proteger, diz respeito à

não satisfação da crescente tensão devida à necessidade, da qual as quantidades de estímulo se

elevam, causando desprazer. Com isso, registra-se a vinculação entre angústia e insatisfação,

de forma que a segunda desperta a primeira. A criança depende absolutamente da mãe para

efetuar sua satisfação, o que aponta a falta do objeto mãe como perigoso. Tanto a situação da

criança de colo como o nascimento despertam a reação de angústia, na medida em que, em

ambas, há um acúmulo de estímulos que precisam ou ser dominados psiquicamente ou

descarregados, ou seja, há um excesso nesses dois momentos que invade o sujeito, diante do

qual o sujeito se vê sem recurso para lidar:

“Quando a criança houver descoberto pela experiência que um objeto externo perceptível pode pôr termo à situação perigosa que lembra o nascimento, o conteúdo do perigo que ela teme é deslocado da situação econômica para a condição que determinou essa situação, a saber, a perda do objeto” (ibidem, p.130).

As palavras de Freud apontam para uma possível simbolização de que no a posteriori

o sujeito lança mão a fim de dar um contorno com palavras ao que antes, por não ter inscrição

simbólica, apresentava-se como excesso, deixando o sujeito a mercê do desprazer. O cenário

psíquico do sujeito passa a configurar-se de outra forma quando o momento da situação

econômica de transbordamento dá lugar à perda do objeto como determinante da angústia, na

medida em que, nesse segundo tempo, o sujeito encontra uma representação como recurso. A

situação da criança como feto é substituída para ela por uma relação de objeto psíquica com a

mãe. “Mas não nos devemos esquecer de que durante sua vida intra-uterina a mãe não era um

objeto para o feto, e que naquela ocasião não havia absolutamente objetos” (ibidem, p.131). A

introdução de um objeto na relação com a criança permite que uma operação simbólica ganhe

lugar, no sentido de nomear, ligar o determinante da angústia a um objeto presente, real. Essa

passagem é marcada pela possibilidade de enlaçamento, inexistente no tempo que o antecedia.

Page 69: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

62

Se o tempo do nascimento é marcado como um momento em que não há relação objetal

estabelecida, isto é, há ausência de objeto, mesmo que aí a separação da mãe seja o

determinante da mais antiga angústia, ela só é assim significada num momento posterior. Isso

implica dizer que só é possível construir em análise a situação de desamparo primordial,

enquanto situação mítica, porém, constituinte do sujeito, num segundo momento em que a

perda de um objeto parcial, no caso a mãe, falta, revelando o que é central no psiquismo

humano.

O que se verifica com essa exposição é uma tentativa de circunscrever o real

traumático do nascimento, ou seja, o momento da falta de objeto, do desamparo, através da

simbolização possível que o momento seguinte instaura pelo estabelecimento de uma relação

objetal. Dessa forma, o perigo anterior, protótipo da origem da angústia, dá lugar a outro

perigo, possível agora de ser representado, a partir da experiência com um semelhante. De

acordo com Freud, é a ausência da mãe, ou figura que cuida do bebê, que agora constitui o

perigo para a criança de colo, portanto, determinante da angústia. A mãe passou a ocupar o

lugar de um objeto na relação com a criança, o que permite uma simbolização. É só no a

posteriori, já numa relação objetal estabelecida, que se pode significar a experiência de

desamparo.

Freud aponta que cada período da vida do sujeito tem seu determinante de angústia, ou

seja, o objeto sinalizador do perigo da angústia vai se deslocando. Pode ocorrer de

determinantes distintos persistirem lado a lado, de modo que o eu reaja com angústia numa

fase ulterior à apropriada. “O perigo de desamparo psíquico é adequado ao período de

imaturidade do eu; assim como o perigo da perda do objeto à falta de autonomia dos

primeiros anos da infância, o perigo de castração à fase fálica, e a angústia frente ao supereu

ao período de latência” (ibidem, p.134).

No entanto, é preciso destacar que, se essa operação de simbolização foi realizada, ela

não tampona o fato de que o objeto de que se trata não é a mãe, e sim aquele desde sempre

perdido. A emergência da angústia se dá quando, na perda do objeto parcial, se coloca para o

sujeito a inexistência do objeto. A leitura de uma equivalência entre ambos foi feita por

alguns psicanalistas pós-freudianos, o que levou Lacan a sinalizar o objeto causa de desejo

não como objeto mãe, mas como objeto perdido, objeto a:

“O significado da perda de objeto como determinante da angústia se estende consideravelmente além desse ponto, pois a transformação seguinte da angústia, a

Page 70: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

63

saber, a angústia de castração, que pertence à fase fálica, constitui também medo de separação e está assim ligada ao mesmo determinante” (ibidem, p.131).

Segundo Freud, a angústia tem uma relação com a expectativa, na medida em que é

angústia ante algo. Também afirma: “tem um caráter de indeterminação e ausência de objeto”

(ibidem, p.154), de modo que é diante da falta do objeto ou da ameaça de perdê-lo que

emerge, uma vez que essa falta remete ao desamparo fundamental, que se encontra na ordem

da constituição do sujeito. Todo encontro e toda perda de objeto presentificam a falta para o

sujeito, já que todo objeto é parcial em sua satisfação para o sujeito, portanto, aponta para o

fato de que não há o objeto total.

É por conta dessa marca da falta de objeto, característica da condição de desamparo de

todo sujeito falante, que o movimento de busca por objetos o impulsiona a fim de que possa

com esses objetos estabelecer algum laço afetivo, social, posto que precisa dessa rede para

sobreviver. No entanto, como o sujeito procura algo que não sabe que está desde sempre

perdido, imaginariamente pode crer na completude do objeto, ou seja, de que há um objeto a

ser encontrado que vai lhe satisfazer totalmente. É essa ilusão que cai no encontro com os

objetos parciais. Na medida em que o objeto da angústia aparece pela falta, isto é, como

objeto a, quando o sujeito encontra um objeto a que refere sua angústia, sua reação já se

configura sob a forma de medo.

Uma nota se faz necessária a fim de esclarecer a articulação entre os termos: objeto a,

falta e falo. Segundo Alberti: “Para Lacan, o que é fundante para o sujeito neurótico é o

Nome-do-Pai, que, no matema da constituição do sujeito neurótico, barra o desejo da mãe

(NP/DM)” (1999:119). Pode-se dizer que a operação de inscrição do Nome-do-Pai é fundante,

já que ao inscrever o falo, portanto a falta que é fálica permite ao sujeito o acesso ao desejo,

ou seja, abre a possibilidade de o sujeito se fundar na condição de sujeito desejante. Na

medida em que a criança vive suas primeiras relações com a figura materna, é no desejo da

mãe que está localizada no início de sua vida como objeto. Nesse momento, a mãe é aquela

com quem o bebê se satisfaz. Até a barra do pai se inserir não existe sujeito desejante, pois o

bebê encontra na mãe sua satisfação. Com isso, dizemos que a relação da mãe com o bebê

está nesse tempo revestida pelo imaginário de completude, posto que a falta ainda não se

inscreveu. Do lugar de agente da castração, o pai tem a função de barrar o desejo da mãe pelo

objeto bebê, entrando como terceiro nessa relação, proibindo ao bebê o acesso ao gozo com a

mãe, como também a mãe com o bebê como objeto de gozo. Isso se dá na medida em que o

Page 71: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

64

pai aponta para a mãe algo que ela deseja e que o bebê não pode lhe dar. O pai barra a mãe

para o bebê, que até esse momento é objeto de seu desejo. É quando a mãe não está presente

que a criança é levada a pensar que há um terceiro nessa relação até então dual. A entrada do

pai pontua para o bebê que ele, pai, é quem tem aquilo que a mãe deseja, passando a ser então

o detentor do objeto. Assim, o bebê conclui que, se a mãe não está com ele, é porque está com

o pai. Quando o bebê chora e a mãe não vem, isto é, quando não é atendido por ela, é como se

o bebê pensasse que alguém tem alguma coisa que ela quer e que ele, bebê, não tem. Isso

implica o reconhecimento pelo bebê de sua falta e da falta da mãe, pois ele não tem aquilo que

ela deseja e na medida em que ela procura isso em outro lugar é porque à ela também falta. O

sujeito então se vê castrado e percebe a castração da mãe.

Como conseqüência, o bebê constrói um personagem que tem algo que nem ele nem a

mãe têm; esse alguém é o pai. Assim, ao pai é atribuído o falo. Isso nos permite sublinhar a

relação entre falta e falo, já que enquanto o falo não se inscreve pela metáfora paterna, isto é,

essa operação simbólica da qual o pai enquanto função é o agente, não se inscreve a falta que

é fálica. O significante Nome-do-Pai incide de forma a apontar que há falta no Outro, no

discurso (nesse caso o Outro é a mãe), ao inscrever o falo através da falta como objeto que

não se tem, portanto, que se deseja. O sujeito do desejo nasce da própria falta:

“A releitura de Lacan da obra de Freud mostra que muito antes ainda de descobrir a falta ou a existência do órgão no seu semelhante, a criança, desde o momento em que percebe não poder satisfazer à mãe, ou seja, desde o momento em que se dá conta da presença de alguém com quem a mãe procura satisfazer-se – normalmente o pai – percebe que lhe falta alguma coisa. Toda vez que a mãe não a procura para preencher essa falta, a castração logo se presentifica” (idem, 1999:147).

O falo será o representante da falta, na medida em que só aparece como objeto de

desejo quando o sujeito se depara com algo que não tem. A psicanálise nos ensina que o falo é

o objeto que se quer ter, mas que nenhum sujeito, seja mulher ou homem, o detém. O engano

do sujeito neurótico é acreditar que alguém tem o falo. Entre o objeto causa de desejo e o

objeto de desejo há uma diferença que merece ser mencionada. O objeto a, objeto causa de

desejo é aquilo que cai do Outro quando o significante Nome-do-Pai se inscreve nele, é o

objeto perdido que vai mover o sujeito a desejar, a buscar o que falta, ainda que sua busca seja

vã, já que de partida esse objeto é para sempre inalcançável. Quando se inscreve como barra,

o Nome-do-Pai opera a castração no Outro, produzindo um objeto perdido, nunca mais

Page 72: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

65

recuperável. O Nome-do-Pai opera assim a separação do bebê com a mãe, fazendo com que o

Outro se estruture segundo as leis da castração, isto é, como não-todo.

Pode-se pensar em dois tempos da relação mãe-bebê. No primeiro, o bebê chorava e a

mãe vinha lhe atender, resultando na baixa de excitação e no prazer com essa. O segundo é

marcado pela entrada do pai, aquele que é uma exceção à regra, posto que tem o que ninguém

mais tem e que a mãe quer. A entrada do pai é o momento em que se inscreve o objeto do

desejo do sujeito, isto é, o falo. É aqui que o bebê se dá conta de que teve a mãe e agora já não

tem mais, porém quando tinha não sabia. Só quando repara que já não é mais objeto de desejo

da mãe, que percebe que um dia o fora.

É a inscrição da metáfora paterna que permite a partir da barra do desejo da mãe que o

bebê se torne sujeito desejante e não só objeto do desejo da mãe. Ao mesmo tempo se

inscreve o objeto perdido, objeto que cai e estará para sempre perdido porque agora a mãe não

se volta mais para o bebê. Como efeito, o bebê passa a desejar ter aquilo que lhe falta, e, ao

crer que o pai tem o objeto de desejo, passa a desejar ser como o pai, implicando uma

identificação simbólica com a figura paterna, a fim de ter como o pai aquilo que lhe falta.

Quando a mãe da satisfação cai para sempre como objeto perdido, o bebê passa a desejar a

mãe, porém na referência de ser a mulher do pai, pois identificado com o pai, agora o bebê

quer aquilo que o pai deseja. Há, portanto uma diferença crucial no que tange à posição

psíquica do sujeito que antes tinha a mãe e agora passa a desejá-la. O bebê deseja o falo,

aquilo que só o pai tem na busca de recuperar um tempo perdido. A partir daí, o falo

representará aquilo que o sujeito não tem, mas quer ter, ou seja, o significante do desejo. Isso

indica que, para a criança completar a operação de castração do Outro, que implica em

separar-se da mãe, precisa crer que o pai tem o objeto de desejo da mãe. É preciso sublinhar

que a operação descrita ocorre na neurose, já que na psicose o Outro não é barrado e goza do

sujeito. Quando o Nome-do-Pai não se inscreve no simbólico, quando fica foracluído como na

psicose, a criança percebe-se como objeto de gozo da mãe e não como objeto de desejo.

Voltando à questão da angústia, Freud refere-se a ela como sinal de salvação, pois ao

anunciar o perigo, permite com que algum movimento no sentido de proteção do eu tenha

lugar. Enquanto produto, resultado do desamparo psíquico, a angústia revela ao sujeito a

condição inerente ao ser humano. O eu pode sentir-se desamparado seja frente a um perigo

real ou face à exigência pulsional constantemente crescente, quando não encontra recursos

para manejar. Referindo-se ao que uma pessoa sente na angústia neurótica, Freud (1933a) diz:

Page 73: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

66

“Aquilo que ela teme é, evidentemente sua própria libido. A diferença entre essa situação e a

da angústia realística reside em dois pontos: que o perigo é um perigo interno, ao invés de

externo, e que esse perigo não é conscientemente reconhecido” (p.78).

Há duas reações possíveis face ao perigo, quais sejam, uma reação afetiva, através da

irrupção de angústia, e uma reação protetora. As reações podem seguir uma forma apropriada,

isto é, uma dando sinal de angústia para que a outra surja, ou pode ocorrer que a angústia

paralise o sujeito, impedindo seu movimento. Na conferência XXV sobre a angústia, Freud

(1917) aponta o estado de preparação para o perigo que se manifesta através de um aumento

da atenção sensória e tensão motora como uma reação pertinente, na medida em que pode ser

uma vantagem à percepção do sujeito. Sua ausência pode ser responsável por graves

conseqüências. Dessa preparação decorre a ação motora, a fuga ou defesa ativa aliada à

angústia. “Por conseguinte, o estado de preparação para a angústia parece-me ser o elemento

adequado daquilo que denominamos geração de angústia, o elemento inadequado”(p.359-60).

Segundo Freud, o significado de uma situação de perigo consiste na estimativa do

sujeito quanto à sua própria força em comparação à magnitude do perigo e no reconhecimento

de sua condição de desamparo face ao perigo. Diante disso, é possível fazer uma sutil

distinção entre uma situação traumática e uma situação de perigo. O determinante da

expectativa configura uma situação de perigo, o sinal da angústia coloca o sujeito na posição

de espera e previsão do trauma, o que permite, se possível, um movimento no sentido de sua

autopreservação. O sinal anuncia que uma situação de desamparo virá, de modo que o sujeito

se comporta como se o trauma já tivesse chegado. A angústia é assim de um lado uma

expectativa de um trauma, de outro uma repetição dele. Essa constatação aponta para a

relação entre angústia e repetição, à qual se pode aliar o trauma, enquanto repetição do que

não se inscreve:

“Assim os dois traços de angústia que notamos têm uma origem diferente. Sua vinculação com a expectativa pertence à situação de perigo, ao passo que sua indeterminação e falta de objeto pertencem à situação traumática de desamparo - a situação que é prevista na situação de perigo” (Freud, 1926a, op.cit, p.155-56).

O perigo aponta uma situação reconhecida, lembrada e esperada de desamparo, e a

angústia é a reação original ao desamparo no trauma, reproduzida na situação de perigo como

sinal de ajuda:

Page 74: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

67

“Mas o que é de importância decisiva é o primeiro deslocamento da reação de angústia de sua origem na situação de desamparo para uma expectativa dessa situação – isso é, para a situação de perigo. Depois disso vêm os deslocamentos ulteriores, do perigo para o determinante do perigo – perda do objeto e das modificações dessa perda com as quais já nos familiarizamos” (ibidem, p. 156)

Essa colocação aponta para o recurso simbólico presente no sujeito como uma forma

de lidar com as situações de perigo que remetem ao desamparo, visto que nos deslocamentos

pode encontrar um objeto cuja representação permita amarrar o que se apresenta sem ligação.

Partindo da constatação de que a vivência da perda do objeto, de uma separação, é por

si só reconhecidamente dolorosa, Freud (1926a) interroga o que determinaria uma reação de

angústia, levando em conta que também a dor e o luto são reações possíveis em face da perda

do objeto. Apesar de posta a pergunta, Freud não tem a pretensão de respondê-la nesse artigo,

mas esboçar algumas conjeturas, e para tal lança mão da relação entre a mãe e a criança. Uma

situação traumática configura-se na ausência do objeto, no caso da mãe, porém isto se dá se

na época a criança sentir que a mãe é a única pessoa que pode satisfazer suas necessidades, o

que, na falta dela, coloca a criança imersa em desamparo. Se a necessidade em relação à mãe

não estiver presente, a situação configura-se como perigosa. Assim, pode-se dizer que o

primeiro determinante da angústia que o eu introduz é a perda da percepção do objeto que é

equacionada com a perda do próprio objeto. Mais adiante, o sujeito aprende que o objeto pode

estar presente, porém aborrecido com ele, então a perda do amor do objeto torna-se o novo

perigo mais duradouro e determinante da angústia. O que formulamos a partir daí é que o que

se perde com o objeto, que é angustiante para o sujeito, é o amor que ele investia e que

recebia, que de alguma forma relacionava-se a um amor que amparava o sujeito em sua

condição de desamparo.

Há uma diferença importante no que tange à situação do nascimento e a de sentir falta

da mãe. Este aspecto relaciona-se com o fato de que, no nascimento, não havia objeto,

portanto, não se podia sentir falta, a angústia era a única reação que ocorria face ao

desamparo. Nas situações que se seguiram, a criança encontra na mãe um objeto que pode

satisfazê-la, recebendo ela assim, sempre que sente necessidade, um intenso investimento. Há

uma expectativa pelo objeto que pode pôr fim à insatisfação, de vez que, quando se espera e

ele não aparece, uma forte reação de angústia advém.

De acordo com Freud, uma situação perigosa envolve características como separação,

perda de um objeto amado, perda do amor do objeto, perigo da castração e a perda do amor do

Page 75: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

68

supereu, que presentificam o trauma, na medida em que conduzem a uma vivência de

desamparo. A angústia se apresenta para o sujeito quando a operação de castração não tem

lugar, ou seja, quando não opera no sujeito o fato de que aquilo que ele acha que pode perder,

nunca de fato teve. Ao passo que o sujeito faz operar a castração, pode dar outro destino à

angústia. A operação de castração é a de fazer valer o fato de que não há objeto total para

satisfazer o sujeito, de modo que sua satisfação será sempre parcial com os objetos parciais

que encontrar.

Considerando a inexistência do objeto para o sujeito, podemos dizer que todo e

qualquer objeto que o sujeito encontre na vida mantém a característica de parcialidade, ou

seja, é parcial em sua satisfação, comportando a dimensão de falta, de incompletude ao

sujeito. Ainda que o sujeito imaginariamente acredite que encontrou o objeto, vai se deparar

com a falta que o habita, já que todo objeto só pode ser parcial, portanto, anuncia a falta do

objeto total. A reação de angústia frente à perda de um objeto que só pode ser parcial traz à

tona com toda a sua intensidade, para além da dor da perda, o fato de que em se tratando do

objeto, esse, não há. É justamente por conta dessa condição de desamparo que o constitui e

que imprime a falta, que o sujeito permanece durante o percurso de sua vida na posição de

quem busca. No entanto, enganado na procura do objeto, o sujeito nesse movimento

desconhece a inexistência dele. É na experiência de um desencontro ou da perda do objeto

parcial que o sujeito tem notícias da falta que o determina, portanto, a chance de fazer algo

com isso.

Segundo Freud, a dor é a reação real à perda do objeto, enquanto a angústia é a reação

ao perigo que essa perda acarreta que se encontra na representação da perda do próprio objeto.

“...angústia vem a ser uma reação ao perigo de uma perda do objeto” (ibidem, p.158), o que

assinala o fator de ameaça presente no tocante à angústia. O luto tem como função convocar o

sujeito desolado a fazer o trabalho de desinvestir no objeto, isto é, retirar dele a libido, a fim

de que possa separar-se, já que não existe mais. A separação de um objeto é dolorosa, pois

antes ele satisfazia o sujeito e agora não mais, exigindo que se retire o investimento,

expectativa, desfazendo o laço. As reações de luto, dor e angústia não se dão separadas, ao

contrário, muitas vezes encontram-se presentes num mesmo sujeito em determinada situação

de perda. Retomando nossas considerações acerca do cogito com Descartes, dizemos que a

angústia por ele experimentada o convocou à busca de algum significante que pudesse dar

Page 76: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

69

contorno ao vazio instaurado a partir da falta de resposta. A formulação do cogito teve como

função amarrar com palavras a invasão do sem palavras que a angústia presentificou. No

entanto, isso só foi possível num a posteriori, revelando que o simbólico, por ser não-todo,

falha. É quando falta a amarração pelas palavras que se tem notícias do real do sujeito, o que

permite formular a angústia como a apresentação do que não se amarra. Enquanto uma das

formas de manifestação do sujeito é o afeto que surge frente ao real, que, sem véu, não

engana:

“O postulado fundamental da psicanálise diz que a estrutura do sujeito se organiza a partir de um furo. Esse furo organizador na estrutura é correlato ao conceito do objeto perdido, o que implica que aquilo que poderia dar satisfação ao sujeito é perdido desde sempre como condição necessária ao desejo, que por definição é insatisfeito” (Quinet, 2000,op.cit, p.87).

Na medida em que o desamparo, a falta do objeto é central e constituinte de todo ser

falante, cada sujeito será convocado a se posicionar frente ao furo, lançando mão de alguma

amarração a título de tornar possível o viver. Freud (1926a) faz referência a duas maneiras de

circunscrever o real, quais sejam, a inibição e o sintoma, os quais na relação com a angústia,

apresentam-se como formas de amarrá-la.

O conceito de inibição é definido como expressão de uma restrição de uma função do

eu. As inibições do eu, seja na relação sexual, no ato de comer, no trabalho e locomoção

representam o abandono de uma função porque sua prática produz angústia. “O eu renuncia a

essas funções, que se acham dentro de sua esfera, a fim de não ter de adotar novas medidas de

recalque – a fim de evitar um conflito com o isso” (op.cit, 1926a:86). As inibições também

servem à finalidade da autopunição, como ocorre nos casos em que o eu fica proibido pelo

supereu de ter êxito em alguma atividade. Assim, o eu desiste da função para evitar conflito

com o supereu. O sujeito inibido em sua ação fica numa posição defendida e prevenida, na

tentativa de evitar conflitos, pagando com isso o preço de renunciar a suas funções. Freud

também aponta que a inibição, além de funcionar como medida de proteção, pode ser

resultado de um empobrecimento de energia, quando o eu se vê numa tarefa psíquica que

demande um dispêndio de energia maior, como no caso do trabalho de luto.

O sintoma é assim nomeado quando uma função do eu passa por alguma modificação

ou quando nova manifestação surge desta. Ele é produto do recalque e surge como substituto

de uma satisfação pulsional, constituindo uma via indireta desta. De sua relação com a

Page 77: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

70

angústia, Freud diz: “...se criam sintomas a fim de evitar uma situação de perigo cuja

presença foi assinalada pela geração de angústia. Nos casos que examinamos, o perigo em

causa foi o de castração ou de algo remontável à castração” (ibidem, p.122).

Enquanto formas de amarração, a inibição e o sintoma são arranjos onde o eu é

removido da situação de perigo. Se, de um lado, sinalizam tentativas de fuga do eu, de outro,

apontam essa impossibilidade visto que o eu não pode fugir de si mesmo. Assim, é quando a

angústia emerge e sinaliza que o enlace não costura totalmente, bem como, quando alguma

questão se coloca para o sujeito, que temos notícias da existência do furo, e aí se pode escutar

isso que não se cala. O que a análise propõe é que o sujeito, ao incluir o furo como marca,

possa encontrar outra forma de amarração, sem precisar restringir-se a formações

sintomáticas.

Foi na apresentação disso que insiste que, a partir da clínica, o sujeito se fez escutar

por Freud. Para além do espaço físico, a clínica enquanto dispositivo não é o único lugar em

que o sujeito do inconsciente se manifesta, mas é aquele que tem condições de operar com

esse, logo onde algum saber pode ser produzido. Através do método psicanalítico, Freud foi

estabelecendo um dispositivo que requer a função operante do analista a fim de realizar o

trabalho de acesso ao saber inconsciente. Esse dispositivo refere-se à associação livre que,

através da repetição e da transferência, introduz na experiência da psicanálise as condições da

produção das formações inconscientes, isto é, atos falhos, sonhos, lapsos, sintomas e chistes.

Solicitar ao analisando que diga tudo o que vier à cabeça, sem emprestar qualidades ao seu

dizer, é uma tentativa de criar pela fala uma via para a emergência do sujeito do inconsciente.

No que o analisando vai falando, pode se surpreender com algo que escapa. De acordo com

Elia (2004), o conceito de sujeito irrompe na experiência e se impõe ao trabalho teórico do

analista, exigindo dele elaboração. O processo de análise é condição, caminho ao que é

específico do sujeito do inconsciente. “O saber sobre o sujeito não está ao alcance de todos, e

não estará ao alcance de ninguém que não queira se dar ao trabalho psicanalítico” (op.cit,

p.10).

Freud verificou que os processos inconscientes determinam o sujeito, permitindo que

se formule um inconsciente do qual se está sujeito. Apesar da relação entre sujeito e

inconsciente, é preciso sublinhar que não se equivalem. Supor um sujeito do inconsciente é

diferente de dizer que o sujeito é o inconsciente. Nesse trabalho enfocamos o termo sujeito de

duas maneiras. Uma, aponta para o sujeito entendido pelo viés da psicanálise, qual seja,

Page 78: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

71

dividido entre saber e verdade, marcado pelos funcionamentos inconsciente e consciente. A

outra se refere ao inconsciente propriamente dito, donde age um sujeito suposto, animado pelo

desejo.

Tal como inconsciente e sujeito não se identificam de todo, o mesmo ocorre entre

inconsciente e recalque. O recalcado é parte do inconsciente, porém o inconsciente vai além

dele. Segundo Freud, é possível chegar a um saber do inconsciente depois que sofreu tradução

ou transformação para algo consciente, aparecendo assim distorcido. A temática do

inconsciente em Freud permeia grande parte de sua obra, mas é num dos textos que compõem

os artigos sobre metapsicologia, intitulado “O inconsciente” (1915) que se dedica mais

detalhadamente ao assunto, destacando o engano da equivalência entre psíquico e consciente.

A metapsicologia em Freud é a descrição de um processo psíquico sob os pontos de vista

tópico, econômico e dinâmico, o que corresponde à localização em instâncias, distribuição de

investimentos e conflito das forças pulsionais.

O reconhecimento de que os dados da consciência apresentam lacunas aponta para o

fato de que, em certos momentos, o conteúdo da consciência é reduzido. Daí se explica a

estranheza quanto aos pensamentos, conclusões que repentinamente vêm à cabeça, bem como

lembranças ocultas. Além disso, há atos psíquicos que só podem ser explicados pela

pressuposição de outros atos, que a consciência desconhece, como sonhos e sintomas, que em

conjunto permitem afirmar que os processos psíquicos são inconscientes em si mesmos.

“Assim sendo, devemos adotar a posição segundo a qual o fato de exigir que tudo quanto

acontece no psiquismo deve também ser reconhecido pela consciência, significa fazer uma

reivindicação insustentável” (p.163).

Os fenômenos lacunares são indicadores da realidade do inconsciente, referindo-se às

formações do inconsciente que, ao irromperem, produzem uma descontinuidade no discurso

consciente. A fala do sujeito é ultrapassada por outra fala que se impõe, causando

esquecimento, troca de nome, lugar, cujo sentido escapa. Esse atropelamento de uma fala por

outra indica algo agindo no sujeito, que causa estranheza apesar da paradoxal familiaridade

que comporta. A lacuna aparece presentificando uma ausência, apontando que, no lugar de

um esquecimento, há uma falta, o que indica que o que se deseja rememorar está inscrito em

outro lugar. No entanto, a lacuna não está vazia, mas ocupada por um nome que não está

presente, impedindo que outro venha em seu lugar. Quanto a essa divisão Freud coloca:

Page 79: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

72

“Todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei como ligar ao resto de

minha vida psíquica devem ser julgados como se pertencessem a outrem” (ibidem p.166).

A apresentação do aparelho psíquico formulado em três sistemas nomeados,

respectivamente, inconsciente, pré-consciente e consciente, constitui a primeira tópica,

freudiana, que mais tarde dará lugar à segunda tópica definida pelos conceitos de eu, isso e

supereu. Aos sistemas correspondem os estados de um ato psíquico. O inconsciente é situado

como um sistema que se contrapõe a outro sistema pré-consciente / consciente, que é em parte

inconsciente, mas não é o inconsciente, delimitando-se como outro lugar psíquico. Pode-se

dizer que um ato psíquico geralmente passa por duas fases no tocante a seu estado, entre as

quais se interpõe um tipo de teste (censura). Na primeira fase, o ato psíquico é inconsciente e

pertence ao sistema inconsciente. Ao tentar passar para a consciência, o ato psíquico pode, ou

não, conseguir atravessar a censura. Se for rejeitado, permanece inconsciente, e diz-se que foi

recalcado. Se atravessar o teste, entra na segunda fase, no consciente. Mesmo sendo capaz de

tornar-se consciente, ainda não o é, o que permite denominar de pré-consciente sua condição.

Apesar da topografia, Freud registra que não se trata de localizar anatomicamente os

sistemas, mas de considerar localidades a título de pensar nas operações, mecanismos que

podem reger o psiquismo. Sublinhamos esse apontamento, visto que muitas leituras não

tomam o inconsciente em sua articulação com a linguagem, reduzindo-o a uma localização

cerebral. Na tentativa de substanciá-lo, faz-se uma correspondência entre lugar psíquico e

lugar anatômico, eliminando assim o que diz respeito ao sujeito. Freud (1915) enfatizou que o

inconsciente não se relacionava a uma substância de ordem cerebral, corpórea, apesar de

concebê-lo como lugar psíquico. Ainda que mencione que pesquisas consideravam a

vinculação entre a atividade psíquica e funções do cérebro, ele mesmo contesta que ainda

pouco se sabe, lembrando que tentativas de localização dos processos psíquicos como

conceber idéias armazenadas em células nervosas e excitações que percorrem fibras nervosas

fracassaram:

“O mesmo fim aguardaria qualquer teoria que tentasse reconhecer, digamos, a posição anatômica do sistema consciente. – atividade consciente da alma – como estando situada no córtex, e localizar os processos inconscientes nas partes subcorticais do cérebro. Verifica-se aqui um hiato que, por enquanto, não pode ser preenchido, e não constitui tarefa da psicologia preenchê-lo. Nossa topografia psíquica, no momento, nada tem a ver com a anatomia; refere-se não a localidades anatômicas, mas a regiões do aparato psíquico, onde quer que estejam situadas no corpo” (ibidem, p.170).

Page 80: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

73

O inconsciente não é uma coisa ou lugar anatômico, mas uma determinação impressa

por uma lei de articulação própria. O que o define é o modo pelo qual opera, sobre cuja

pesquisa Freud se debruçou. Seu núcleo consiste em representantes pulsionais que buscam

descarregar sua energia (investimento), o que implica reconhecer que são carregados de

desejo. As leis que regem o funcionamento do inconsciente diferem do sistema consciente. No

inconsciente, os impulsos pulsionais existem lado a lado sem se influenciarem mutuamente,

mesmo que haja entre eles contradições, ambivalências. Assim, quando dois desejos

incompatíveis do ponto de vista da consciência são ativados, a nível inconsciente se

combinam para alcançar uma finalidade intermediária, de modo que não se elimina um pelo

outro. Não há lugar para a negação e dúvida no inconsciente, visto que só aparecem pelo

trabalho da censura entre o inconsciente e o pré-consciente.

O processo primário é o modo de funcionamento do sistema inconsciente,

caracterizado pelos mecanismos de deslocamento e condensação. No deslocamento, uma idéia

pode ceder à outra todo o seu investimento, isto é, desloca sua energia para outra idéia e, na

condensação, apropria-se do investimento de várias outras idéias, condensando-as. Aqui a

energia psíquica é móvel e tende a se escoar livremente, passando de uma representação a

outra, buscando descarga rápida e direta. No processo secundário que domina o pré-

consciente-consciente, a energia é ligada e a descarga retardada, possibilitando escoamento

controlado. Os processos citados são correlativos aos princípios do prazer e da realidade, ou

seja, enquanto os processos inconscientes buscam a satisfação pelo caminho mais rápido, os

processos conscientes são obrigados a desvios e adiamentos da satisfação. Outra propriedade

do sistema inconsciente é a ausência de temporalidade, seus processos não são ordenados

temporalmente e não se alteram com sua passagem, sendo exclusiva do consciente a

referência ao tempo.

Freud aponta que há idéias conscientes e inconscientes. No entanto, em relação à

pulsão, nunca pode tornar-se consciente apenas a idéia que a representa. Mesmo no

inconsciente a pulsão só se representa por uma idéia. Se a pulsão não se liga a uma idéia, ou

não se manifesta como um estado afetivo, não teremos notícias dela. No tocante às emoções e

afetos, Freud exclui a possibilidade do atributo inconsciente. Ainda que o impulso afetivo

original seja inconsciente, o afeto sempre se tornará conhecido pela consciência. Contudo, em

virtude do recalque, ocorre uma ruptura entre a idéia e o afeto a ela vinculada, sofrendo cada

qual vicissitudes isoladas e diferentes. O afeto pode seguir três caminhos: pode permanecer

Page 81: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

74

todo ou em parte como é, pode ser transformado num afeto qualitativamente diferente,

sobretudo em angústia, ou pode ser impedido de desenvolver-se. O recalque pode inibir que

uma pulsão transforme-se numa manifestação de afeto, o que é sua finalidade. Dessa forma,

para que o afeto chegue à consciência deverá ligar-se a outra idéia substitutiva, sendo

considerado então manifestação dela. Pode-se dizer que o objetivo da análise é levantar o

recalque a fim de operar a desmontagem do sintoma.

Page 82: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

75

CAPÍTULO IV

O QUE O SIMBÓLICO PODE FRENTE AO REAL?

OU O REAL COMO INTERROGAÇÃO DO SIMBÓLICO

(MITO, CIÊNCIA E PSICANÁLISE)

A descoberta do inconsciente freudiano se deu num momento posterior ao surgimento

da ciência moderna que, segundo Lacan, criou condições para o aparecimento da psicanálise.

Assim, de que forma o sujeito, tal como postulado em psicanálise, estaria colocado na ciência,

antes do tempo em que Freud a ele pôde atribuir sua marca inconsciente? Ainda que não tenha

sido inaugurado como sujeito do inconsciente, já que da verdade do sujeito a ciência desde

sempre nada quer saber, é nesse campo que a noção de sujeito dividido entre saber e verdade

surge pela primeira vez. É a ciência que funda o sujeito como efeito do significante, fato que

justifica a dívida da psicanálise a esse campo. Contudo, se é no campo da ciência que surge o

sujeito por ela descartado, não seria já o sujeito da ciência conseqüência de algo que se

estabeleceu no próprio campo que lhe deu origem? Em outras palavras, o que veio com a

ciência, o que insere como novidade no discurso vigente no mundo e que teve como resultado

a produção do sujeito do cogito, por conseguinte a abertura à psicanálise?

A ciência a que nos referimos aqui é a moderna, visto que é a partir dela que o sujeito

do cogito é concebido. A emergência desse sujeito sem qualidades, que não tem duração, que

só aparece em ato, é conseqüência do que foi instaurado pela ciência.

Pretende-se desenvolver a questão colocada, destacando alguns aspectos trazidos pela

ciência, de modo a analisar em que medida têm relação com o surgimento do sujeito. No

entanto, analisar o novo da ciência requer investigar com o que ela rompe tanto dentro de seu

campo, quanto ao que antecedeu a este. Referimo-nos respectivamente à episteme antiga e ao

mito.

Seguindo a argumentação dessa pesquisa, utilizaremos os conceitos de real e

simbólico, já que concernem ao sujeito em questão. Apesar desses elementos não serem

utilizados na ciência, posto que têm seu fundamento no campo psicanalítico, a própria

psicanálise com Lacan permite reconhecê-los como embriões da ciência. Esse capítulo visa

examinar o real em jogo no mito, ciência e psicanálise, mais especificamente o lugar dado a

esse e a forma como é tratado pelos respectivos campos, numa articulação, contraponto, ao

simbólico, considerando esse último a única via possível para abordar o real.

Page 83: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

76

De acordo com Marcondes (1998), os diferentes povos da Antiguidade, tais como

babilônicos, chineses, indianos, egípcios, persas e hebreus, tiveram visões próprias da

natureza e maneiras diversas de explicar os fenômenos e processos naturais. No entanto,

somente os gregos fizeram ciência, coincidindo o surgimento dessa com a emergência do

pensamento filosófico, o que permite reconhecer na cultura grega o princípio do pensamento

filosófico-científico. Ponto de partida que merece um exame mais aprofundado, o que não

poderemos fazer aqui no momento, mas que nos serve para avançar sobre a questão do

surgimento do conhecimento científico na Grécia por volta do século VI a.C, caracterizando-

se por uma forma específica de o homem tentar entender o mundo que o cercava, o real.

Anteriormente ao pensamento filosófico-científico, prevalecia na cultura grega o

pensamento mítico que consistia em uma forma de explicar aspectos da realidade humana,

como a origem do mundo, funcionamento da natureza, através de um discurso fictício,

imaginário. Marcondes (1998) situa o mito como fruto de uma tradição cultural. “As lendas e

narrativas míticas não são produto de um autor ou autores, mas parte da tradição cultural e

folclórica de um povo. Sua origem cronológica é indeterminada e sua forma de transmissão é

basicamente oral” (p.20). Por ser parte da cultura, o mito configura a visão de mundo dos

indivíduos, isto é, opera como lentes através das quais os sujeitos enxergam e vivenciam sua

realidade, pressupondo adesão e aceitação de todos. Dessa forma, não se questiona ou discute

o mito, que permanece como visão global, excluindo outras perspectivas a partir das quais ele

poderia ser interrogado. “O mito não se justifica, não se fundamenta, portanto, nem se presta

ao questionamento, à crítica ou à correção” (ibidem, p.20). O apelo ao mistério, ao

sobrenatural, à magia é um dos elementos centrais no pensamento mítico. São os deuses,

espíritos, o destino que governam a natureza, a sociedade, isto é, as causas dos fenômenos

naturais e o que acontece aos homens, tudo é comandado por uma realidade exterior ao

mundo humano e natural, os quais somente os sacerdotes, magos são capazes de interpretar,

mesmo que parcialmente. Eles funcionam como intermediários entre o mundo humano e o

divino.

Segundo Vernant (1957) “A lógica do mito repousa nesta ambigüidade: operando

sobre dois planos, o pensamento apreende o mesmo fenômeno, por exemplo, a separação da

terra das águas, simultaneamente como fato natural no mundo visível e como geração divina

no tempo primordial” (p.355).

Page 84: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

77

O interesse pelo mito se liga à relação que mantém com a ciência, mas também à

psicanálise, já que o sujeito pode fazer uso dele em suas construções. Consideremos a seguir

algumas contribuições de Lévi Strauss e da psicanálise acerca do tema.

4.1. Lévi Strauss com Freud e Lacan: O mito na antropologia e na psicanálise.

Segundo Lévi-Strauss (1955):

“Alguns pretendem que cada sociedade exprime, nos mitos, sentimentos fundamentais, tais como o amor, o ódio ou a vingança, que são comuns a toda a humanidade. Para outros, os mitos constituem tentativas de explicação de fenômenos dificilmente compreensíveis: astronômicos, meteorológicos, etc.” (p.238).

A fim de ganhar elementos no desenvolvimento do tema, retomemos o capítulo de

Antropologia Estrutural sobre a eficácia simbólica (Lévi-Strauss,1949), no qual o autor

retoma a narrativa de um texto de caráter mágico-religioso em torno da cura operada pela

figura do xamã que é solicitada para ajudar a parteira num parto difícil ocorrido na tribo

indígena dos “Cuna” no Panamá.

A classificação Cuna distingue três tipos de médicos indígenas nomeados: nele,

inatuledi e absogedi. O xamã é considerado um médico da categoria nele, como aponta

Strauss: “Empregamos até aqui, em lugar de nele, o termo xamã” (p.216). Ainda referindo-se

ao xamã, diz: “... o talento do nele é considerado como inato, e consiste numa visão que

descobre imediatamente a causa da doença, ou seja, o lugar do arrebatamento das forças

vitais, especiais ou gerais, pelos maus espíritos” (ibidem, p.217). Sua intervenção consiste em

invocar os espíritos protetores para encarnarem, por seu apelo, nas imagens sagradas,

esculpidas, de modo que possa lhes conduzir à morada de “Muu”, potência responsável pela

formação do feto. “O parto difícil se explica, efetivamente, porque Muu ultrapassou suas

atribuições e se apoderou do purba ou alma da futura mãe” (ibidem, p.216). Para essa tribo,

cada parte do corpo, cada órgão tem uma alma correspondente. A alma do útero é

considerada, na ocasião, a responsável pela desordem patológica. “Muu aparece aí como um

fator de desordem, uma “alma” especial que capturou e paralisou as outras “almas” especiais,

e destruiu assim a cooperação que garantia a integridade do “corpo principal” (ibidem, p.219).

O canto que o xamã entoa consiste na busca da “alma” perdida, cujo conjunto compõe a força

vital, que será restituída após alguns rituais como: vitória sobre animais ferozes, torneio entre

Page 85: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

78

o xamã e os espíritos protetores contra esta potência com a ajuda de chapéus mágicos e uso de

plantas medicinais. Vencida, a potência liberta a alma da doente, o parto se dá e o canto

termina. “O combate não foi empenhado contra a própria Muu, indispensável à procriação,

mas somente contra seus abusos” (ibidem, p.216). Assistido por seus espíritos protetores, o

xamã empreende uma viagem ao mundo sobrenatural para arrancar a alma do espírito

maligno, assegurando a cura da parturiente que, além de ter tido a alma capturada, sofria de

febre, fraqueza e enfraquecimento de visão. Para atingir Muu, o xamã e seus assistentes

devem seguir a rota do caminho de Muu, que, segundo Strauss, aparece no texto como: “o

caminho de Muu e a morada de Muu, não são, para o pensamento indígena, um itinerário e

uma morada míticos, mas representam literalmente a vagina e o útero da mulher grávida”

(ibidem, p.217), onde o xamã travará seu combate.

O xamã não toca o corpo da parturiente nem lhe administra remédios. O canto é

constituído de uma manipulação psicológica do órgão doente de onde a cura é esperada.

Determinadas representações psicológicas são evocadas para combater perturbações

fisiológicas. Trata-se de conduzir a doente, cuja sensibilidade está exacerbada pelo sofrimento

e cuja percepção do real está diminuída, a reviver uma situação inicial. “A cura começa, pois,

por uma história dos acontecimentos que a precederam” (ibidem, p.223). A técnica da

narrativa visa reconstituir a experiência real de dor e incompreensão da parturiente, de forma

que o mito trata de substituir os protagonistas que descrevem um complicado percurso de uma

anatomia mítica, que corresponde menos à estrutura real dos órgãos genitais que a uma

geografia afetiva. Nas palavras de Lévi-Strauss:

“Vai-se, pois, passar da realidade mais banal ao mito, do universo físico ao universo fisiológico, do mundo exterior ao corpo interior. E o mito, desenvolvendo-se no corpo interior, deverá conservar a mesma vivacidade, o mesmo caráter de experiência vivida à qual, graças ao estado patológico e a uma técnica obsidente apropriada, o xamã terá imposto as condições” (ibidem, p.223).

O canto tem por finalidade principal descrever e nomear as dores à doente, visando

com isto que sejam apreendidas pelo pensamento. “A cura consistiria, pois, em tornar

pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espírito as

dores que o corpo se recusa a tolerar” (ibidem, p.228). Em outras palavras, é uma tentativa de

buscar uma representação simbólica a uma situação real. A fim de justificar a eficácia da

mitologia do xamã diz: “Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade objetiva,

não tem importância: a doente acredita nela, e é membro de uma sociedade que acredita”

Page 86: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

79

(ibidem, p.228). Do ponto de vista da psicanálise, pode-se colocar que, justamente por não

corresponder a uma realidade objetiva, a mitologia do xamã tem eficácia, pois a doente e a

sociedade, para além de lhe darem crédito, não a questionam, de modo que ela passa a

funcionar como verdade. Diante disso, afirmamos que não há outra realidade senão a

psíquica, ou seja, o que ganha valor de realidade é determinado pela posição subjetiva do

sujeito que é marcada pelo discurso do qual participa. O xamã oferece à parturiente uma

representação para sua vivência real e dolorosa baseada em seu sistema mitológico. Os

espíritos protetores, malfazejos e outras representações fundamentam um sistema coerente da

concepção indígena do universo. Os elementos estranhos são as dores, que, por apelo ao mito,

o xamã vai reintegrar num conjunto sobre o qual os elementos se apóiam.

O xamã oferece uma linguagem à doente a partir dos símbolos que compartilham, na

qual podem exprimir estados não-formulados, isto é, que ainda não foram simbolizados,

elaborados. De acordo com Lévi-Strauss (1949), a possibilidade de expressão verbal permite

ordenar de modo inteligível uma experiência real, provocando desbloqueio do processo

fisiológico, reorganizando-o num sentido favorável. As representações evocadas pelo xamã

permitem simbolizar algo que até então não tinha representação, determinando assim uma

modificação das funções orgânicas. Vale sublinhar que a explicação e o entendimento do

vivido real estão remetidos diretamente à cultura indígena, compartilhada por todos da tribo.

É a um mito coletivo que a doente vai ser remetida, recebendo-o como tradição.

Em seu texto “Tratamento psíquico” Freud (1890) descreve diversas curas milagrosas,

baseadas na fé, divindades, crença, que a princípio não têm explicações, soam como mágicas.

Freud já percebera que o efeito das poções curativas, fórmulas mágicas dos sacerdotes,

passava pela palavra, via influência daquele a quem se procurava, ressaltando assim a

importância da transferência. Para Lévi-Strauss (1949), não há razão de duvidar da eficácia de

certas práticas mágicas. No entanto, sua eficácia implica a crença da magia que se apresenta

sob três aspectos complementares e indissociáveis: “a crença do feiticeiro na eficácia de suas

técnicas; em seguida, a crença do doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder

do próprio feiticeiro; finalmente, a confiança e as exigências da opinião coletiva” (p.194). Na

medida em que não se interroga o mito, ele passa a operar como uma verdade inabalável.

Referindo-se ao sistema xamanístico, Lévi-Strauss diz: “Diversamente da explicação

científica, não se trata, pois, de ligar estados confusos e inorganizados, emoções ou

Page 87: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

80

representações, a uma causa objetiva, mas de articulá-los sob forma de totalidade ou sistema”

(ibidem, p.211).

Ao xamã é atribuído tanto pela coletividade como por ele próprio um saber, sendo

desse lugar que ele intervém pela via de um saber-fazer. Enquanto a paciente do xamã é seu

objeto de intervenção, ou seja, é ele que fala o que aconteceu e dá a solução para seu

sofrimento, ao analisando, em contrapartida, é dado lugar de sujeito. A ele é pedido que fale

livremente o que lhe vier à cabeça e é no discurso que algo referente a sua verdade pode

aparecer, sempre de modo parcial. Se o xamã acredita ter a verdade da paciente, no caso do

analista, é ao inconsciente que se atribui uma verdade particular a cada sujeito.

Tendo em vista que somente onde há endereçamento e suposição de saber pelo viés da

transferência é que algo da ordem da eficácia pode se dar, entende-se que os termos

transferência e eficácia são indissociáveis. Se as intervenções do xamã e do psicanalista

produzem eficácia, pode-se dizer que ambas se dão a nível simbólico? Segundo Lévi-Strauss,

a eficácia simbólica consistiria numa propriedade indutora de transformações psíquicas e

orgânicas do estado do paciente vindas de fora. No entanto, a eliminação de sintomas, alívio

momentâneo e mesmo curas milagrosas conferem uma determinada eficácia simbólica

diferente de como propõe a psicanálise. Para a psicanálise, a eficácia simbólica é específica ao

seu campo, na medida em que opera a partir de um simbólico furado pelo real, implicando,

portanto, efeitos no sujeito. No mito, por sua vez, pode-se dizer que se por um lado há uma

eficácia que implica na articulação do simbólico já que se dá por meio da linguagem, por

outro há um simbólico que se pretende sem furos, já que está entrelaçado ao imaginário que

lhe confere toda sorte de significações, oferecendo uma representação ao real em jogo. Com

isso, dizemos que o mito dispõe sempre ao sujeito alguma explicação para o inexplicável,

buscando assim tamponar a dimensão da falta. A eficácia simbólica para a psicanálise diz

respeito a um trabalho que inclui o sujeito do inconsciente, considerando que é pela via do

discurso sob transferência que o que é da ordem do desejo pode aparecer, se oferecendo à

elaboração. A eficácia a nível simbólico implicará então a mudança de posição subjetiva do

sujeito, o que pode trazer consigo alívio de sintomas:

“Apesar de tanto o xamã quanto o psicanalista trabalharem a partir do referencial da linguagem, se situam nela de modos diferentes. No caso do xamã, é possível indicar um trabalho pelo viés imaginário, já que ambos ele e a tribo lhe supõem verdadeiramente um saber-poder. Assim, uma vez o sujeito do inconsciente excluído da cena, prevalecendo o registro imaginário sob o simbólico no tratamento do real, não se pode falar em castração. E é justo este, o ponto central

Page 88: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

81

da clínica psicanalítica, ou seja, que o analista opere a partir da castração, incluindo o sujeito e o real na cena discursiva” (Erlich, 2005, p.7-8).

Quanto ao tratamento do real pelo mito, pode-se dizer que o faz articulando simbólico

e imaginário. O mito é feito de linguagem e se articula na estrutura discursiva. Ainda nesse

escopo, citamos Lévi-Strauss:

“... o mito faz parte integrante da língua; é pela palavra que ele se nos dá a conhecer, ele provém do discurso. Se queremos perceber os caracteres específicos do pensamento mítico, devemos pois demonstrar que o mito está, simultaneamente, na linguagem e além dela”(op.cit, 1955:240).

Entretanto, o mito se diferencia da ciência e da psicanálise na medida em que

privilegia os efeitos que promovem imaginário, sem interrogá-los. É preciso destacar que o

imaginário também está em jogo na ciência e na psicanálise. Ambas o incluem em sua

articulação com o real e o simbólico, porém na tentativa de desbastá-lo. Apesar de igualmente

operarem o procedimento de desimaginarização tendo como referencial o simbólico furado,

guardam uma diferença, pois para a ciência há no horizonte a promessa do avanço, o ideal de

tudo simbolizar e para a psicanálise de partida, isso é impossível. “O discurso da ciência

rejeita a presença da coisa, uma vez que em sua perspectiva, se delineia o ideal do saber

absoluto, isto é, de algo que estabelece, no entanto, a coisa, não a levando ao mesmo tempo

em conta” (Lacan, 1959-60:164).

Considerando que o imaginário tem como função preencher lacunas, conferindo

sentido ao sem sentido, o procedimento de desbastá-lo segue a direção de interrogar um saber

que tem como efeito uma verdade totalizadora, tal como se apresenta uma imagem, isto é,

fechada. Como conseqüência dessa operação cai o que é da ordem do imaginário, ou seja, cai

a realidade psíquica do sujeito na qual ele se posicionava, dando lugar a outro saber, por

conseguinte a outra verdade. A direção de uma análise é a de que a operação de parcialidade

do saber, portanto da verdade compareça para o sujeito, tendo como resultado uma outra

posição subjetiva, já que não se trata de trocar de saber e de verdade, mas de fazer operar o

fato de que ambos sejam eles quaisquer, são parciais.

Também no caso da ciência, quando um saber é interrogado e não mais se sustenta,

derruba a meia verdade que representava, e no lugar dessa advém outra meia verdade

informada de um novo saber. Porém, apesar de o saber e a verdade referirem-se a um recorte

circunscrito, a ciência faz uma operação de tentar transformar imaginariamente as verdades

Page 89: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

82

parciais que descobre em verdades absolutas, fazendo crer na validade do universal,

desprezando o particular. Dessa forma, pode-se dizer que se de um lado procede a

desimaginarização, por outro, ao formular algum saber que opera, lança-o como verdade

universal, recobrindo imaginariamente o furo. Da perspectiva psicanalítica, dizemos que o

imaginário reside na ciência quando ela sustenta o projeto de domínio do real, e do universal,

apesar de também ter como direção desbastar o imaginário. “A ciência, como se sabe, não é

uma revelação; muito depois de seus primórdios ainda lhe faltam os atributos de

determinação, imutabilidade e infalibilidade pelos quais o pensamento humano tanto anseia”

(Freud, 1926b: p.218).

Lévi-Strauss (1949) aponta: “Talvez descobriremos um dia que a mesma lógica se

produz no pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem pensou sempre, do

mesmo modo” (p.265). Essa colocação nos faz pensar que o homem sempre tentou dar conta

do real através de algum discurso que o abordasse, porém justamente por usar do discurso

como recurso, vai de encontro a uma falta. É a essa falta que a psicanálise vem dar lugar,

apontando-a como estrutural da dimensão simbólica do sujeito, trazendo então uma nova

perspectiva que implica um trabalho psíquico para cada sujeito, no qual o que se pretende

absoluto já não tem mais lugar:

“... o pensamento dispõe sempre de demasiadas significações para a quantidade de objetos nos quais ele pode enganchá-las. Dilacerado entre esses dois sistemas de referência, o do significante e do significado, o homem exige ao pensamento mágico que lhe forneça um novo sistema de referência, no seio do qual os dados até então contraditórios possam se integrar. Mas sabe-se que esse sistema se edifica as custas do progresso do conhecimento”. (ibidem, p.213).

Lévi-Strauss (1949) aponta para o fato de que o mito provém da ordem da linguagem,

afirmando assim sua dimensão simbólica:

“A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na história que é relatada. O mito é linguagem; mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito elevado, e onde o sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento lingüístico sobre o qual começou rolando” (ibidem,p.242).

Se ambos, ciência e mito, lançam mão da articulação entre imaginário e simbólico, o

último privilegia o imaginário sobre o simbólico. Em contraponto, ao operar um

procedimento de desimaginarização, a ciência passa a tratar o real pelo simbólico, na medida

Page 90: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

83

em que insere a crítica frente a um discurso marcado pela crença, em que a interpretação

mitológica assume o lugar de verdade inquestionável. Nesse processo, a ciência inaugura o

real, que, apesar de desde sempre ter estado aí, passa a existir como tal, revelando sua crueza

no que aparece como o sem sentido, fazendo cair a verdade total pretendida pelo mito.

Referindo-se à experiência analítica, Lacan (1953b) diz: “Ela implica sempre, no seio

de si mesma, a emergência de uma verdade que não pode ser dita, pois o que a constitui é a

fala, e seria preciso de alguma forma dizer a fala propriamente dita, o que é, a bem dizer, o

que não pode ser dito como fala” (p.10). Na medida em que a verdade se articula pela fala, é

também não-toda, em outras palavras não se pode dizê-la toda, é sempre meia verdade, já que

marcada pelo real. Isso se coloca, pois a linguagem por estrutura comporta uma falta e sendo

por esse viés que a verdade pode ser dita, ela é, portanto, sempre parcial. A psicanálise coloca

em evidência a descompletude imanente à verdade de qualquer saber, relativizando-a.

Considerando o real, a falta de sentido em jogo para todo sujeito, Lacan (1953b) aponta que

há, no seio da experiência analítica o que podemos denominar mito:

“O mito é o que confere uma fórmula discursiva a alguma coisa que não pode ser transmitida na definição da verdade, pois a definição da verdade não pode apoiar-se senão sobre si mesma, e que é na medida em que a fala progride que ela a constitui. A fala não pode apreender-se a si mesma nem apreender o movimento de acesso à verdade como uma verdade objetiva. Ela pode exprimi-la – e isto, de uma maneira mítica” (ibidem, p.10).

Diante desse pequeno fragmento, pode-se concluir que uma verdade é sempre meia e

contingente, restando verdadeira até ser interrogada e desconstruída, dando lugar a uma nova

verdade, na qual o sujeito se posiciona. Assim, se diante da falta de sentido, do impossível

colocado pelo real, o sujeito constrói seu mito particular, ele o sustenta como uma verdade

que marca sua realidade subjetiva. Por não encontrar palavras, explicações, o sujeito precisa

criar seu mito, a fim de seguir a narrativa de sua história, tamponando o furo a partir de uma

interpretação simbólica predominantemente imaginária. Da perspectiva psicanalítica, o mito é

a historinha, narrativa, recheio da fantasia, esta última operando como função constitutiva

para o sujeito, servindo como tela protetora do real.

Em seu artigo “O mito individual do neurótico”, Lacan (1953b) busca circunscrever o

que é mito:

“Se nos fiamos na definição do mito como uma certa representação objetiva de um epos ou de uma gesta que exprime de maneira imaginária as relações fundamentais características de um certo modo de ser humano em uma época determinada, se o

Page 91: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

84

compreendemos como manifestação social latente ou patente, virtual ou realizada, plena ou esvaziada de seu sentido, desse modo de ser, podemos então certamente reencontrar sua função na própria vivência do neurótico” (ibidem, p.10).

O que Lacan nomeia de mito individual do neurótico é aquilo que se manifesta como

um roteiro fantasioso, apresentação de um pequeno drama que reflete as relações inaugurais

do sujeito e aponta para a constelação original que presidiu o nascimento do sujeito, seu

destino, as relações familiares fundamentais, marcadas por determinados traços, as quais

adquirem valor na medida em que o sujeito as apreende subjetivamente.

No exemplo ilustrado da cura xamanística percebe-se que o mito é tomado como

referência de um sistema no qual o universo da tribo está baseado, e é recebido pela tradição

coletiva, o que traz segundo Lévi-Strauss (1949) um sentimento de segurança ao grupo. Para a

psicanálise, ao contrário, o mito é considerado como o tesouro individual. Se no primeiro o

mito é transmitido ao sujeito pelo grupo, no segundo, o sujeito vem à análise falar do seu

mito, encontrar-se com ele, podendo reconhecê-lo como tal. “O doente atingido de neurose

liquida um mito individual, opondo-se a um psicanalista real; a parturiente indígena supera

uma desordem orgânica verdadeira, identificando-se com um xamã miticamente transposto”

(p.230).

O que Freud postulou como fundamento de toda neurose, isto é, o complexo de Édipo,

tem valor de mito. Se de um lado o Édipo é fundamento, posto que é fator estruturante na

constituição do sujeito, por outro comparece como mito. Fazendo um recorte do Édipo em sua

vertente mítica, dizemos que esse vem ser a história, narrativa a completar a falta de sentido,

vem recobrir o impossível em jogo no real, além de conferir significação ao sujeito. Isso se

coloca na medida em que a história de cada sujeito contará com a triangulação do par parental

enquanto função, o que permitirá do aspecto simbólico que se tenha uma representação na

constituição de seu lugar no mundo da linguagem. Porém, é também nessa relação a três que o

sujeito a se constituir experimentará a entrada na linguagem, por conseqüência, a perda de um

objeto que será para sempre perdido, o que coloca em jogo o fato de nunca ser por completo,

pois a plena satisfação será interditada. Vale ressaltar que o recorte feito aqui diz respeito à

neurose, o que não significa que não haja Édipo na psicose, porém guarda suas

particularidades, que não abordaremos nesse trabalho:

“No lugar da falta de um significante que diga do seu desejo, o sujeito neurótico fixa, como um clichê estereotípico, uma história, que passa a ter o valor de sua verdade subjetiva. Tal história, no caso da estrutura neurótica, corresponde à

Page 92: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

85

construção de seu mito individual. Lá, no lugar da falta real, que não pode ser apreendida pela palavra, o mito permite, ao sujeito, imprimir uma fórmula discursiva que vale como sua verdade subjetiva” (Bueno, 2002:115-116).

Diante do fascínio dos pós-freudianos pelo imaginário, Lacan empreendeu o trabalho

de desmontagem do edifício imaginário no qual se encontrava a psicanálise, o que o levou a

dizer no início de seu ensino: “Em suma, todo o esquema do Édipo deve ser criticado” (op.cit,

1953:18). Parece-nos que Lacan deu um passo além de Freud, ao incluir um quarto elemento

no mito de Édipo, qual seja, a morte. “...o que está em questão na estrutura quaternária é o

que constitui a segunda grande descoberta da psicanálise, não menos importante do que a

função simbólica do Édipo, a relação narcísica” (ibidem, p.18). O estatuto do quarto

elemento, nomeado por Lacan como morte imaginária, introduz uma mobilidade ao sujeito.

“É, com efeito, da morte imaginada, imaginária que se trata na relação narcísica. É igualmente

a morte imaginária e imaginada que se introduz na dialética do drama edipiano, e é dela que

se trata na formação do neurótico...” (ibidem, p.19). A relação narcísica, segundo Lacan, é a

experiência fundamental do desenvolvimento imaginário, de modo que uma análise deve ter

como direção intervir nisso que constitui o narcisismo, isto é, o imaginário, a fim de que o

sujeito possa fazer o trabalho de, ao desbastá-lo, tomar nova posição no real. Considerar a

condução de uma análise como tal é contrapô-la de modo radicalmente diferente da dos pós-

freudianos, visto que o Édipo para esses poderia servir exclusivamente para fins explicativos,

para simbolizar, encontrar representação para o sujeito de sua história, tal o mito para uma

tribo. O que Lacan vem acrescentar com sua releitura de Freud está para além da questão da

explicação, de encontrar significado, já que introduz o furo como aquele que aponta uma falta

na possibilidade de representar. Dessa forma, trazendo o real para o centro da clínica, Lacan

trabalha com a impossibilidade da representação, imprimindo como direção do trabalho que o

sujeito posicione-se no real pelo ato.

4.2. O Real e os Planetas: da episteme antiga à ciência moderna

Continuemos nossa investigação com o artifício de que Lacan lança mão em seu

Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954-55), no qual

toma os planetas como termo de referência para mostrar o que os seres falantes não são.

Interroga por que os planetas não falam e, a essa pergunta, responde da seguinte maneira: “Os

Page 93: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

86

planetas não falam – primeiro, porque não têm nada a dizer – segundo, porque não têm tempo

para isto – terceiro, porque se os fez calar” (p.298). A interrogação lançada por Lacan e em

seguida sua resposta sugerem um interessante diálogo entre os campos da ciência e

psicanálise, apontando como o céu instiga a curiosidade do ser falante. Esse campo estudado

pela astronomia toca o real inalcançável, real este que também diz respeito a um dos registros

mais caros à psicanálise. Uma das razões atribuídas por Lacan ao fato de os planetas e estrelas

não falarem está justamente na condição real de sua dimensão. Nesse Seminário, define a

noção de real da seguinte forma: “O sentido que o homem sempre deu ao real é o seguinte – é algo que se reencontra no mesmo lugar, quer não tenha estado aí, quer tenha estado. Talvez este real se tenha movido, mas neste caso, a gente o procura em outro lugar, procura por que ele foi demovido, a gente também pensa que, por vezes, ele possa ter movido seu próprio movimento. Mas ele está sempre justo em seu lugar, quer estejamos lá, quer não estejamos lá. E nossos próprios deslocamentos não têm, em princípio, salvo exceção, influência eficaz sobre estas mudanças de lugar” (ibidem, p.370).

Para Lacan, a percepção de que havia coisas que estavam sempre no mesmo lugar, tal

como astros que se deslocam, mas são encontrados de novo lá onde estavam, configurou um

importante progresso para a humanidade. Essa percepção, segundo o autor, não foi dada ao

homem inicialmente pelos planetas e sim pelas estrelas, o que permitiu nomear constelações,

tais como as “Três Marias”, “Ursa Maior” entre outras:

“As estrelas são reais, integralmente reais, não há nelas, em princípio absolutamente nada que seja da ordem de uma alteridade para com elas próprias, são pura e simplesmente o que são. Que a gente as encontre sempre no mesmo lugar, eis uma das razões que faz com que elas não falem” (ibidem, p.300).

De acordo com Lacan, antes das ciências exatas, o homem já pensava o real como o

que está no mesmo lugar. “Sempre se reencontrará, na mesma hora da noite, tal estrela em tal

meridiano, ela tornará a voltar lá, ela está sempre justamente lá, é sempre a mesma” (ibidem,

p.371). A diferença, segundo Lacan, é que o homem da antiguidade acreditava que sua ação

tinha relação com a conservação da ordem. As cerimônias e ritos eram tidos como

indispensáveis para a manutenção das coisas em seus lugares, o que garantia o pensamento de

que o real não se desarranjaria. Referindo-se ao homem antigo, diz: “Ele não pretendia fazer

lei, ele pretendia ser indispensável à permanência da lei” (ibidem, p.371), o que aponta que o

rigor da noção do real, tal como enunciada por Lacan, lá estava.

Page 94: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

87

A perspectiva da ciência exata surgiu quando o homem percebeu que suas danças,

rituais, invocações, enfim, sua participação não influenciava a ordem das coisas. Foi quando

essa convicção antiga caiu, que uma abertura à nova visão se deu. “A partir do momento em

que o homem pensa que o grande relógio da natureza roda sozinho e continua marcando a

hora, mesmo quando ele não está aí, nasce a ordem da ciência” (ibidem, p.371). A referência

ao sistema solar, segundo Lacan, é essencial, visto que decifrá-lo foi um dos passos decisivos

para constituir tal ciência:

“Lacan constata que a origem da linguagem do cientista ou da apreensão do real pelo simbólico data desde o mapeamento feito, na Grécia, dos movimentos dos astros – o que se testemunha, por exemplo, pelo fato de o mapa do céu ter sido uma das primeiras formas de simbolização da humanidade” (Freire, 1996:36).

A ciência moderna surge, por um lado, inspirada pela antiga episteme e, por outro,

numa ruptura a certos aspectos dessa. A episteme antiga deriva do pensamento filosófico-

científico que se originou na Grécia. Pode-se dizer com Marcondes (1998), que é de uma

insatisfação com o tipo de explicação do real encontrada no mito que nasce o pensamento

filosófico-científico:

“... o pensamento mítico tem uma característica paradoxal. Se, por um lado, pretende fornecer uma explicação da realidade, por outro lado, recorre nessa explicação ao mistério e ao sobrenatural, ou seja, exatamente àquilo que não se pode explicar, que não se pode compreender por estar fora do plano da compreensão humana. A explicação dada pelo pensamento mítico esbarra assim no inexplicável, na impossibilidade do conhecimento” (op.cit, p.21).

Bem como Marcondes (1998), Vernant (1957) afirma que o nascimento da filosofia na

cidade grega de Mileto inaugura o começo do pensamento científico, caracterizado por uma

lógica racional, uma nova forma de reflexão positiva sobre a natureza. “Na escola de Mileto,

o logos ter-se-ia pela primeira vez libertado do mito como as escaras caem dos olhos do cego”

(p.349).

“O nascimento da filosofia aparece, por conseguinte, solidário de duas grandes transformações mentais: um pensamento positivo, excluindo toda forma de sobrenatural e rejeitando a assimilação implícita estabelecida pelo mito entre os fenômenos físicos e agentes divinos; um pensamento abstrato, despojando a realidade dessa força de mudança que lhe conferia o mito, e recusando a antiga imagem da união dos opostos em benefício de uma formulação categórica do princípio de identidade” (ibidem, p.358).

Page 95: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

88

A contribuição dos filósofos milésios, segundo Vernant, é de uma inovação radical.

Isso se coloca, pois um dos aspectos que menciona diz respeito à mudança da forma e do

conteúdo que se transmitia. O quadro da cultura grega arcaica era desenhado por uma

civilização fundamentalmente oral, ou seja, a educação nela se dava pela transmissão de

cantos poéticos de geração em geração. O conjunto do saber era armazenado nas narrativas

lendárias que funcionavam como enciclopédia dos conhecimentos comuns. “É nesses cantos

que se encontra consignado tudo o que um grego deve saber acerca do homem e do seu

passado – as façanhas dos heróis de outrora –, acerca dos deuses, das suas famílias, das suas

genealogias acerca do mundo, da sua figura e das suas origens” (ibidem, p.377). Assim, por

não serem cantores, poetas, narradores, os primeiros filósofos exprimiam em textos escritos o

fio de uma narrativa que não se desenrolava na linha da tradição, mas expunha uma teoria

explicativa, concernente a fenômenos naturais e à organização do cosmo. Eles buscavam os

princípios permanentes sobre os quais repousa o equilíbrio dos diversos elementos de que é

composto o universo, sem deixar que nenhum ser sobrenatural interviesse nos esquemas. A

estranheza de um fenômeno, no lugar de ser tratado na linguagem do mito, levando à

interpretação divina, levanta um problema. Vai-se do encantamento à interrogação:

“Do oral ao escrito, do canto poético à prosa, da narração à explicação, a mudança de registro corresponde a um tipo de investigação inteiramente novo; novo pelo objeto que designa: a natureza, physis; novo pela forma de pensamento que aí se manifesta e que é totalmente positivo” (ibidem, p.377).

Vernant (1957) sublinha que o surgimento desse pensamento está associado às

transformações de todas as ordens pelas quais a sociedade grega passou e que conduziram ao

advento da pólis, cidade. A abertura ao conhecimento, à ciência, ocorre, portanto, quando a

explicação do mundo natural é procurada com base em causas naturais, isto é, nele próprio e

não numa realidade misteriosa, num mundo divino. “E esta natureza, separada do seu pano de

fundo mítico, torna-se ela própria problema, objeto de discussão racional” (ibidem, p.356).

Essa tentativa caracterizou o pensamento dos primeiros filósofos desse período chamados pré-

socráticos, que, embora com diferenças, sustentavam alguns pontos comuns. Para Marcondes

(1998), o apelo à noção de causalidade por esses filósofos constitui característica central da

explicação científica, isto é, o estabelecimento de uma conexão causal entre determinados

fenômenos naturais. Em grande parte por esse motivo, “...consideramos as primeiras

tentativas de elaboração de teoria sobre o real como início do pensamento científico. Explicar

Page 96: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

89

é relacionar um efeito a uma causa que o antecede e o determina... é tomar um fenômeno

como efeito de uma causa” (op.cit, p.24).

Apesar de ambos, mito e ciência lançarem mão de um nexo causal, as referências a

que recorrem para a explicação causal diferem: o mito se refere a causas sobrenaturais, e o

pensamento filosófico-científico a causas naturais. Esse último rompe com o mito no que

tange ao caráter regressivo da explicação causal. Com isso dizemos que se explica sempre

uma coisa por outra, o que pode levar à busca de uma causa anterior, mais originária, até o

infinito, podendo tornar inválido o sentido de uma explicação, pois essa levaria ao

inexplicável, a um mistério como no pensamento mítico. Diante disso, surge a necessidade de

se estabelecer uma causa primeira, ou conjunto de princípios, como ponto de partida para o

processo racional. A fim de evitar a regressão ao infinito da explicação causal, os primeiros

filósofos postulam a existência de um elemento primordial. O primeiro desses elementos a ser

formulado foi a água, em seguida, outros princípios explicativos foram adotados como o fogo,

o ar e o átomo, além da doutrina dos quatro elementos, terra, água, ar e fogo. A importância

da noção de “arqué” (elemento primordial) está na tentativa desses filósofos em apresentar

uma explicação da realidade, através de um princípio básico que a permeie e unifique pela via

de um elemento natural. “Tal princípio daria precisamente o caráter geral a esse tipo de

explicação, permitindo considerá-la como inaugurando a ciência” (ibidem, p.26).

O que caracteriza esse pensamento cuja ciência teve sua origem é seu logos. “O logos,

é, portanto, o discurso racional, argumentativo, em que as explicações são justificadas e estão

sujeitas à crítica e à discussão” (ibidem, p.26). É esse logos que permite a passagem do mito à

razão, na medida em que é um discurso que não recorre aos deuses, ao mistério na descrição

do real. Ele se baseia numa explicação, em que as razões dadas não se apresentam como fruto

de inspiração ou revelação, mas: “simplesmente do pensamento humano aplicado ao

entendimento da natureza” (ibidem, p.26). Para Marcondes (1998), é o caráter crítico desse

saber que constitui um dos aspectos fundamentais desse pensamento. “As teorias aí

formuladas não o eram de forma dogmática, não eram apresentadas como verdades absolutas

e definitivas, mas como passíveis de serem discutidas, de suscitarem divergências e

discordâncias, de permitirem formulações e propostas alternativas” (ibidem, p.27). Na medida

em que são tomadas como construções do pensamento humano, e não de revelações divinas,

estavam abertas a reformulações e correções. A única exigência era de que na divergência a

nova hipótese fosse justificada e fundamentada, também sendo possível submetê-la à crítica.

Page 97: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

90

“A razão grega é a razão que permite agir de modo positivo, refletido, metódico, sobre os

homens, mas não transformar a natureza” (Vernant, 1957, op.cit, p.374).

Conforme Vernant (1957), dois traços caracterizam o novo pensamento grego: a

rejeição do sobrenatural na explicação dos fenômenos e a ruptura com a lógica da

ambivalência, a procura de uma coerência interna no discurso, definição rigorosa de

conceitos:

“A escola de Mileto não viu nascer a Razão; ela construiu uma Razão, uma primeira forma de racionalidade. Essa razão grega não é a razão experimental da ciência contemporânea, orientada para a exploração do meio físico e cujos métodos, instrumentos intelectuais e quadros mentais foram elaborados no curso dos últimos séculos, no esforço laboriosamente continuado para conhecer e dominar a Natureza” (Vernant, 1996:94).

O pensamento racional tende a eliminar os aspectos polares e ambivalentes presentes

no mito, ele renuncia a utilizar as associações por contraste, a acasalar e unir os opostos em

nome de um ideal de não-contradição e univocidade, afastando qualquer raciocínio que seja

ambíguo. Segundo Vernant (1957), a primeira condição do chamado pensamento racional é a

separação da natureza, dos deuses, do homem. Isso se coloca, na medida em que: “No mito, a

diversidade dos planos ocultava uma ambigüidade que permitia confundi-los. A filosofia

multiplica os planos para evitar a confusão. Através dela, as noções de humano, de natural, de

divino, melhor distintas, definem-se e elaboram-se reciprocamente” (p.358).

“A sua razão não é ainda a nossa razão, esta razão experimental de ciência contemporânea, orientada para os fatos e para sua sistematização teórica. Elaborou é certo uma matemática, primeira formalização da experiência sensível, mas, precisamente, não procurou utilizá-la na exploração do real físico. Entre a matemática e a física, o cálculo e a experiência, faltou a conexão; a matemática ficou solidária da lógica” (ibidem, p.373).

Essa nova racionalidade traz uma nova concepção de verdade, aberta, acessível a todos

e que fundamenta em sua própria força demonstrativa seus critérios de validade. A verdade

será correlata de um saber que se justifica no raciocínio. “É o rigor formal da demonstração, a

sua própria identidade em todas as suas partes, a sua congruência em suas mais longínquas

implicações, que estabelecem seu valor de verdade” (ibidem, p.380).

A transição das narrativas míticas e religiosas para o pensamento filosófico-científico

é caracterizada por um discurso em que: “tudo que se afirma deve ser submetido à discussão,

Page 98: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

91

à argumentação, à justificação, preocupando-se assim com os critérios de verdade e de

justificabilidade” (Marcondes, 1998, op.cit, p 42).

De acordo com Oliveira (2006), a concepção de ciência criada pelos gregos

(Episteme), enquanto um saber racional que buscava compreender a complexa estrutura do

real define-se como saber teórico sobre a realidade. A episteme era um tipo especial de

conhecimento, que deveria ser marcado por critérios rigorosos, garantidores de validade. Dois

termos são centrais para a compreensão do conceito de saber epistêmico, quais sejam:

validade e demonstração. Outra marca da episteme é a necessidade. Pode-se resumir a

episteme como um tipo de conhecimento universal e necessário, isto é, uma forma de saber

cuja validade não varia nem com as mudanças do espaço, nem do tempo ou com as variações

que o mundo social, cultural e psicológico sofre. É preciso que seja um saber que possa ser

compreendido levando à aceitação de todos. No que tange à demonstrabilidade do

conhecimento epistêmico, Oliveira afirma que demonstrar é deixar os adversários de uma

idéia sem qualquer outra saída da perspectiva racional. Frente a uma demonstração, restariam

aos contrários à verdade apresentada, paradoxos que não se constituem em uma contra-

argumentação válida.

O cosmo dessa episteme antiga era o mundo natural e o celeste enquanto realidade

ordenada, harmônica, regida por uma ordem racional e hierárquica, tendo a causalidade como

lei principal, onde a razão significa existência de leis e princípios que regem a realidade. A

episteme era um saber teórico de caráter livre e gratuito, infundado, sem fins específicos,

caracterizando-se por uma atitude contemplativa, especulativa, dirigida a uma realidade

abstrata e ideal, desvinculada da prática. Somente no início do período moderno, nos séculos

XVI-XVII com Galileu Galilei e Francis Bacon, ciência e técnica serão pensadas interagindo,

sendo a técnica aplicação prática do conhecimento científico. Na visão grega clássica, ciência

e técnica eram radicalmente diferentes. Marcondes (1998) define episteme como verdadeiro

conhecimento em oposição a doxa, opinião. O que se verifica aí é a articulação, desde os

primórdios da ciência, entre os termos saber e verdade, ou seja, a ciência como apresentação

de um saber que se pretende verdade:

“É a racionalidade deste mundo que o torna compreensível, por sua vez, ao entendimento humano. É porque há na concepção grega o pressuposto de uma correspondência entre razão humana e a racionalidade do real – o cosmo – que este real pode ser compreendido, pode-se fazer ciência, isto é, pode-se tentar explicá-lo teoricamente” (Marcondes, 1998,op.cit, p.26).

Page 99: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

92

Da episteme antiga à moderna, uma revolução teve lugar. No entanto, se de um lado

houve rupturas, por outro é preciso reconhecer algumas filiações. De acordo com Marcondes

(1998) essa revolução sofreu influências de Platão pela valorização da matemática na

explicação do cosmo e dos pitagóricos que anteciparam o modelo heliocêntrico proposto por

Copérnico, mas é de Aristóteles a inspiração pela ênfase na pesquisa experimental e na

importância da investigação da natureza. Com isso, aponta que a ciência moderna resulta da

contribuição de diferentes pensadores, além dos citados, ao longo da história e: “em certos

aspectos, rompe de fato decisivamente com a ciência antiga, mas em outros inspira-se ainda

em teorias clássicas” (ibidem, p.151).

Para Marcondes (1998), uma das principais transformações do ponto de vista

metodológico científico ocorre por um lado quando se torna mais importante salvar os

fenômenos observáveis, isto é, representá-los adequadamente àquilo que a observação

astronômica e os cálculos matemáticos revelavam do céu, no lugar de abordá-los a partir de

uma visão teórica e por outro lado, quando a observação, experimentação e verificação de

hipóteses tornam-se os critérios decisivos, suplantando o argumento metafísico. A visão

aristotélica de cosmo não salvava os fenômenos observáveis, era estritamente teórico,

fundamentado numa hierarquia, considerando idéias de perfeição.

Segundo Koyré (2006), a revolução científica do século XVII tem como fundamento

os seguintes pontos: a validação do modelo heliocêntrico de Copérnico por Galileu,

substituindo o mundo geocêntrico; a formulação do universo infinito, indefinido, iniciado por

Nicolau de Cusa e Giordano Bruno, no lugar de um mundo fechado como todo finito e bem

ordenado no qual a estrutura espacial materializava uma hierarquia de perfeição e valor e a

geometrização do espaço, através da geometria euclidiana, isto é, extensão infinita e

homogênea considerada a partir daí como idêntica ao espaço real do mundo, ao invés do

espaço aristotélico, como conjunto diferenciado de lugares intramundos. O caminho do

mundo dos antigos aos modernos, ou como Koyré intitula seu livro, “Do mundo fechado ao

universo infinito”, levou pouco mais de cem anos. Do ponto de vista da idéia de ciência, o que

muda é a valorização da observação e do método experimental, em oposição a uma ciência

contemplativa dos antigos, além da tentativa de formalização pela matematização da natureza:

“A ciência ativa moderna rompe com a separação antiga entre a ciência (episteme), o saber teórico, e a técnica (téchne), o saber aplicado, integrando ciência e técnica e fazendo com que problemas práticos no campo da técnica levem a

Page 100: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

93

desenvolvimentos científicos, bem como com que hipóteses teóricas sejam testadas na prática, a partir de sua aplicação na técnica” (Marcondes, 1998, op.cit, p.151).

A invenção do primeiro instrumento científico por Galileu, o perspicillum (telescópio),

permitiu a descoberta de novos planetas, estrelas, montanhas na lua, até então jamais

alcançados a olho nu. “Poder-se-ia mesmo dizer que não só a astronomia, mas também a

ciência como tal, entraram, com a invenção de Galileu, em uma nova fase de seu

desenvolvimento, a fase que poderíamos chamar de instrumental” (Koyré, 2006:82). Só com

Newton, praticamente no século XVIII, é que se tem a formulação de uma ciência físico-

matemática plenamente elaborada em um sistema teórico. A ciência moderna opera

transformações tanto em relação à visão do cosmo quanto aos aspectos metodológicos.

“Enquanto o homem medieval e o antigo visavam à pura contemplação da natureza e do ser, o

moderno deseja a dominação e a subjugação” (ibidem, 2006:5).

Para Marcondes (1998), o conflito entre os dois modelos de ciência - o antigo e o

moderno-, suscitou no século XVI questões acerca dos postulados científicos, pois pensadores

céticos levantavam dúvidas sobre a possibilidade de o homem, através de qualquer teoria

científica, conhecer de forma certa e definitiva o real. Isto se colocava na medida em que

teorias falsas tinham sido tomadas durante vinte séculos como verdadeiras, o que interrogava

sobre a veracidade de teorias consideradas verdadeiras em tal época. Como ter certeza de estar

livre do erro? Esse questionamento mergulhou o homem num mar de incertezas. “Descartes

assume então a missão de fundamentar ou legitimar a ciência, demonstrando de forma

conclusiva que o homem pode conhecer o real de modo verdadeiro e definitivo” (p.163).

Através do cogito, encontra uma certeza irrefutável: na medida em que se pensa, as coisas e o

próprio pensador existem. Inaugura assim o método científico, de fazer o real ser apreendido

pelo simbólico:

“Ora, se o objetivo de Descartes é fundamentar a ciência então é necessário encontrar uma ponte entre o pensamento subjetivo e a realidade objetiva, entre o mundo interior e o mundo exterior. Só poderá haver ciência quando o pensamento puder formular leis e princípios que expliquem como o real funciona” (ibidem, p.169).

Nesse método, toda proposição deve ser rejeitada caso haja o menor motivo de dúvida,

a fim de se chegar ao verdadeiro conhecimento. Descartes encontra na dúvida o fundamento

para construir o edifício do saber:

Page 101: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

94

“a duvida é o que oferece à intuição uma espécie de critério negativo de evidência: quanto menos eu puder duvidar de um conhecimento, mais ele me parecerá evidente, ou seja, verdadeiro, então, um conhecimento absolutamente indubitável será absolutamente evidente e verdadeiro para mim” (Baas e Zaloszyc, 1996:7).

Essa pequena consideração acerca da passagem do mito à episteme antiga e depois à

ciência moderna revela dentre muitos aspectos que vieram com a ciência moderna uma

mudança na abordagem do real. De modo mais radical, talvez possamos situar a emergência

de um novo real, infinito, aberto, que exige ser tratado com precisão, observação e

verificação. Afirmar que o real existe e interroga o homem desde sempre só é possível a partir

da ciência moderna, na medida em que, ao formulá-lo como tal, permite rever a forma como

era tratado até então. É com a ciência moderna que podemos dizer que o simbólico é furado,

na medida em que o real foi reconhecido como não-todo simbolizável. Diante da falta de

saber sobre o real, a ciência busca fazer um procedimento de mestria a fim de simbolizá-lo,

tornando-o inteligível e verificável. Na medida em que o saber instalado pela ciência torna

simbolizado o real, produzindo efeitos reais, passa a tratar sua significação como verdade,

como traduzindo uma verdade:

“... até Descartes o fundamento do sujeito e da realidade é “metafísico”, isto é, um discurso que não se reconhece como tal e que se supõe a tradução mesma do real enquanto perfazendo uma totalidade. É obra de Descartes, através da dúvida metódica, esse esvaziamento da metafísica enquanto essa significação absoluta, a qual toda produção humana e todos os entes tinham que encontrar consistentemente seu lugar. Em seu lugar Descartes propõe uma imbricação entre Discurso e Método; de um lado, o Discurso relativiza-se, isto é, não afirma mais uma verdade última, mas de outro, a verdade não perde poder de ordenar o discurso pois é para identificar sua incidência que temos o Método”(Leonel.F.1996:137).

É pela exigência de coerência de simbolização própria à ciência, pela precisão que o

antigo mundo fechado, mais ou menos explicado pela metafísica, torna-se infinito. Essa

exigência requer critérios rigorosos, diante do que muitas vezes não há explicação.

Esbarrando nesse ponto, a ciência constata o real puro como impossível, enquanto aquele que

interroga o simbólico, que, ao mesmo tempo em que convoca a buscar significação, topa com

sua falta. A ciência, portanto, o inaugura como tal, na medida em que, apesar de o real estar

desde sempre presente, ao abordá-lo pelo simbólico como não-todo, o estabelece de uma nova

forma. É no encontro com o real que a ciência moderna busca tentar contorná-lo, a partir de

um saber que dele dê conta, operação que ameniza o efeito por ele provocado. “Cai por terra,

Page 102: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

95

portanto, a definição clássica do conhecimento científico como certeza absoluta, como

verdade universal e necessária” (Marcondes, 1998, op.cit, p.173).

“Podemos considerar que a grande contribuição cartesiana à filosofia, do ponto de vista da questão do método e da fundamentação do conhecimento, é o germe da atitude crítica introduzida pela dúvida, que dá portanto início ao desenvolvimento da longa reflexão sobre os limites do conhecimento humano e ao questionamento da concepção tradicional de ciência que caracteriza a filosofia moderna” (ibidem,p.173).

Considerando que, para o ser falante, o mundo, a realidade é uma realidade construída

através da linguagem, tudo o que surge como sua formulação, independente do campo, é

necessariamente atravessado pelo simbólico. Assim, se o simbólico é o recurso que o sujeito

dispõe para estar no mundo, logo, é ele que indica, dá sinal ao sujeito daquilo que ele não

sabe. O real, tal como constatado pela ciência, isto é, como aquele que enquanto puro é

impossível de ser capturado, só se apresenta através do simbólico, na medida em que é a

impossibilidade de abordagem do simbólico, isto é, seu furo, que dá notícias da existência do

real como resistente à significação. No que o sujeito experimenta a falta de pelo menos um

significante que conceda uma significação, está aí afetado pelo real. De outro lado, pode-se

dizer que é justamente essa experiência da falta de representação que convoca, instala o

movimento de busca, de demanda de saber, significante que possa vir a fazer significação

para o sujeito. É, portanto o real que faz de um lado resistência ao simbólico que de outro, por

esse motivo o coloca em marcha, em movimento. O sujeito frente ao real passa a demandar

significante que se enlace com outro significante a fim de numa rede construir algum saber

possível que permita suportar minimamente a falta como experiência do humano, diante do

que todo sujeito está despreparado.

No que instala essa articulação entre simbólico e real, a ciência lança luz ao real como

impossível de abarcar e ao funcionamento simbólico tal como Lacan formulou. Só se pode ver

o simbólico por causa da ciência, visto que o convoca a fim de tentar circunscrever o real. No

que esbarra com o furo, torna a demandar mais significantes para tal tarefa, evidenciando seu

caráter descompleto.

O fato de planetas e estrelas estarem sempre no mesmo lugar remetendo assim a sua

dimensão real, justifica em parte o porquê de não falarem. Mas para Lacan: “Seria, no

entanto, um engano, crer que sejam tão mudos assim” (1954-55: 301), de modo que afirma

que a ciência os fez calar e que isso se mantém. Lacan atribui à ciência, mais especificamente

Page 103: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

96

a Newton, a operação de fazê-los calar definitivamente. O que Newton, segundo Lacan, fez

foi uma apreensão do real pelo simbólico, reduzindo-o a uma determinada linguagem, de

modo a que essa linguagem passa a ser o acesso a esse real, isto é, fala do real. Na medida em

que essa linguagem passa a representar algo da ordem do real, ela ao mesmo tempo em que

cala o real, o faz falar unicamente através de sua própria “língua”. A razão verdadeira da

mudez de estrelas e planetas é que foram calados, transformados em astros, isto é,

circunscritos numa determinada linguagem científica que bastou em parte, para que mais

sobre eles se perguntasse:

“Só se fica definitivamente seguro que os planetas não falam a partir do momento em que se lhes arrolhou o bico, ou seja, a partir do momento em que a teoria newtoniana forneceu a teoria do campo unificado sob uma forma que foi, desde então, completada, mas que já era perfeitamente satisfatória para todos os espíritos humanos. A teoria do campo unificado está resumida na lei da gravitação, que consiste essencialmente no seguinte – há uma fórmula que mantém tudo isto junto, numa linguagem ultra-simples que comporta três letras” (ibidem, p.302).

Ao criar o campo unificado, isto é, uma certa linguagem para circunscrever o real,

Newton o reduziu a tal linguagem fazendo calar qualquer manifestação ou questão que daí

adviesse. Diante da constatação desse real, a ciência se esforça em dominá-lo

circunscrevendo-o tanto quanto possível sob a forma de teoremas, fórmulas, axiomas, o que

traz como efeito calá-lo. O objetivo da ciência é esvaziar, reduzir o real, a uma fórmula,

número, ao discurso, fazendo crer que ele cabe nela:

“Para Lacan, através de Koyré, essa revolução da ciência, que pertence a Galileu e Descartes, consistiu na delimitação do real pelo simbólico, pelas suas fórmulas que atingem o mundo por seus ideais científicos de formalização, ou seja, mundo teorizável em seu ideal de um saber completo” (Freire, 1996, op.cit, p.35).

Pode-se então dizer que o conceito de real em psicanálise encontra seu ponto

originário no real tal como abordado pela ciência. Referindo-se a Lacan em “Radiophonie”,

Freire (1997) observa que foi a ciência que constatou que o real puro, em si, é impossível e

que só existe realidade no sentido daquilo que sob o real construímos pelas fórmulas. “... para

a ciência o real é impossível, porque a fórmula que o cerca não o esgota completamente em

seu devir” (p.79). É impossível tocar o real puro, mesmo através de letrinhas, a ciência o

apreende por via da linguagem:

Page 104: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

97

“O joguinho simbólico a que se resumem o sistema de Newton e o de Einstein tem, afinal, pouquíssimo a ver com o real. Esta ciência, que reduz o real a umas poucas letrinhas, a um pacotinho de fórmulas, aparecerá sem dúvida, com o recuo dos tempos como uma espantosa epopéia, e talvez também se tornará delgada como uma epopéia de circuito um tanto curto” (Lacan, 1954-55, op.cit, p.373).

O real, tal como Lacan o formulou, é aquilo que escapa ao simbólico, é o sem sentido.

É esse o real da ciência, isto é, aquele que remete ao mesmo, homogêneo, que causa um não-

senso, posto que irredutível à linguagem. Essa impossibilidade de tocar o real, ou seja, sem a

mediação da linguagem e mesmo através dela, tomando que ele escapa, foi uma constatação

da ciência, que demonstrou que o real só se presentifica pelo simbólico, pelas fórmulas

simbólicas que, no limite, podem se reduzir a letrinhas. Foi a partir da ciência que se fez

possível um acesso aos objetos reais, tais como planetas e estrelas, que, através da construção

de uma linguagem conceitual, ganharam nova existência simbólica. Isso implica dizer que a

ciência testemunha que há um real inefável em jogo para todo sujeito, já que da passagem do

real ao simbólico algo não pode ser apreendido tal como é, algo se perde quando da captura

pela linguagem.

Na medida em que utiliza uma linguagem específica, a ciência através de fórmulas

criou um mundo ideal, teórico, resumido a letrinhas, buscando atingir o mundo real, empírico.

No entanto, apesar do rigor, os mundos não se equivalem, o que se percebe é a

impossibilidade de alcançar o mundo sensível, perceptível. “Impossibilidade que se constata

no fato de, por exemplo, nenhum homem ter testemunhado, em nenhum lugar empírico e em

tempo algum, um corpo em movimento, se prolongando ad infinitum, tal como postula a lei

da inércia” (Freire,1996, op.cit, p.27). O mundo criado tornou-se impossível, pois a estrutura

simbólica não alcança o mundo sensível. A própria ciência faz a constatação da

irredutibilidade do mundo real frente ao mundo ideal, simbolizável. Essa irredutibilidade

demonstra que: “a realidade simbólica exige a morte da coisa, ou melhor, de que para que um

organismo indiferenciado se torne simbólico, isto é, nomeado, uma parte desse inanimado, da

coisa, deve-se perder” (ibidem, p.18). Ainda nessa via, Vernant (1957) referindo-se a

matemática aponta:

“Se esta disciplina pode tomar a forma de um corpo de propostas deduzidas inteira e exatamente a partir de um número restrito de postulados e de axiomas, é porque ela não visa as realidades concretas nem mesmo essas figuras que o geômetra revela no curso da sua demonstração. Ela tem por objetivo puros conceitos, que ela própria define, e cuja idealidade, a perfeição, a objetividade, a plena inteligibilidade – está ligada ao seu não-pertencer ao mundo sensível” (p.381).

Page 105: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

98

Por outro lado, a apreensão do real, por algumas fórmulas, aponta um efeito no real o

que as torna saberes verdadeiros, ou verdades, até prova contrária. E essas verdades, enquanto

perduram, organizam a vida dos sujeitos. Como ilustração, temos a descoberta do movimento

de rotação da terra, que determina a duração de um dia, já que a terra leva vinte e quatro horas

para rodar em torno dela mesma. Enquanto resta como verdade, esse é o tempo do dia em que

os sujeitos balizam suas vidas e compromissos.

Verifica-se que é sempre e somente a partir da linguagem que algo pode ser abarcado,

apreendido, e que a coisa como tal, o real puro, já não o é mais, pois no momento em que é

nomeado passa a ter sua existência reduzida pela linguagem. E no que a linguagem apreende,

a coisa em si se perde como tal. No tocante ao universo humano, nada é puro em si, já que

necessariamente é permeado pela linguagem, única forma de fazer o universo existir. Isto

implica dizer que o universo humano é o da linguagem, e o que através dela se tenta

apreender, mas encontra barreira, aponta sua impossibilidade de tudo abarcar. Em outras

palavras, aponta a parcialidade do simbólico. Como diz Lacan, quanto aos planetas: “A

questão de saber se eles falam não fica resolvida pelo simples fato de eles não responderem.

Não se está sossegado – algo pode, um dia, nos surpreender” (op.cit, 1954-55:303).

A constatação de que o real puro é inatingível pertence tanto à ciência quanto à

psicanálise, que, ao tomarem o universo humano como permeado pela linguagem, atestam que

não há universo possível ao ser falante fora da linguagem. A linguagem utilizada pela ciência

moderna como modo de apreensão do real é a formalização matemática:

“A formalização não é outra coisa senão a substituição, a um número qualquer de uns, disso que se chama uma letra. Pois, que vocês escrevam que a inércia é mv2/2, o que quer dizer isto? – senão que, qualquer que seja o número de uns que vocês coloquem sob cada uma dessas letras, vocês estão submetidos a um certo número de leis, leis de grupo, adição, multiplicação, etc.” (Lacan, 1972-73:177).

Esta lei é antes de tudo lei de linguagem, e como diz Galileu: “A natureza é um livro

escrito em linguagem geométrica; para compreendê-la é necessário apenas aprender a ler esta

linguagem” (apud, Marcondes, op cit, p.152). Na medida em que pretende dominar o real,

esgotá-lo pela linguagem, a ciência instala, através do simbólico, um saber sobre o real. Em

outras palavras, instaura o saber na sua dimensão de significante. Por exemplo,

“...encontramos as três letrinhas da fórmula da gravitação, (f = m.a) que instauram um saber

sobre qualquer movimento entre qualquer corpo, em qualquer época” (Freire, op.cit, 1996,

p.25).

Page 106: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

99

É na ciência tal como isolada por Koyré que Lacan se baseia. Segundo Koyré há um

corte entre a episteme antiga e a ciência moderna, galileana, cujo modo de operação é a física

matematizada. Ao matematizar os objetos, a ciência galileana o despoja de suas qualidades,

buscando atingi-lo em seu status real. A operação de depurar e desqualificar o objeto de seus

atributos, a fim de apreendê-lo pela matematização, realiza a tentativa de chegar o mais

próximo do puro objeto, do real puro. Para Milner (1996), o que há de moderno na ciência é o

rompimento com a noção de episteme:

“... o que há de episteme num discurso é somente a reunião daquilo que esse discurso apreende de eterno e de necessário em seu objeto. Daí decorre que um objeto se presta tanto mais naturalmente à episteme quanto mais facilmente ele deixa revelar o que nele o faz eterno e necessário – de modo que não há ciência do que pode ser diferente do que de fato é, e que a ciência mais acabada é a ciência do mais eterno e do mais necessário objeto” (Milner, p.39).

Milner (1996) destaca dois discriminantes que, segundo Koyré, distinguem uma

ciência galileana. No primeiro, Koyré afirma ser uma ciência galileana aquela que combina

dois traços: a empiricidade e a matematização. Koyré admite que todo existente empírico

pode ser tratado por alguma técnica e que a matematização é o paradigma de toda teoria.

Desse modo, pode-se dizer que a ciência moderna, galileana, é uma teoria da técnica, ou seja,

a matematização constitui seu modelo de teoria para abordar a técnica, e a técnica é uma

aplicação prática da teoria. Deste discriminante, Milner deduz que a ciência tem por objeto o

conjunto do que existe empiricamente, isto é, o que se pode chamar universo. E a ciência o

trata com bastante precisão, através da matematização. Segundo Marcondes (1998), o

empirismo é uma forma de saber derivado da experiência sensível e de dados acumulados

com base nessa experiência, permitindo a realização de fins práticos.

O segundo discriminante estabelece que, na medida em que a ciência toma o empírico

por objeto, a técnica pode e deve lhe oferecer os instrumentos, já que, enquanto literal e

precisa, a ciência pode se valer dos instrumentos fornecidos pela técnica. A ciência se torna

teoria da técnica e a técnica aplicação prática da teoria. “O universo da ciência moderna é a

um só tempo e pelo mesmo movimento um universo da precisão e um universo da técnica”.

(Milner, 1996, op.cit, p.38). A combinação da matematização dos caracteres, na tentativa de

precisá-los melhor, constitui a inovação da ciência.

A eleição da matemática como modelo para a ciência herdada dos gregos deriva da

postulação da episteme antiga, do necessário e eterno, já que figuras e números guardam em si

Page 107: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

100

a propriedade de não ser outra coisa do que são, apresentando-se sempre da mesma forma. Os

números são uma via de acesso ao mesmo, ao que está sempre no mesmo lugar, aludindo

assim ao real:

“A peripécia não reside, portanto no fato de a ciência moderna se tornar matemática; a ciência antiga já o era e, sob certos aspectos, a ciência moderna o é menos que ela. Mais que a matemática, é preciso dizê-la efetivamente matematizada. Da matematização a mola propulsora primeira é o número, como letra, e, portanto o cálculo – não a boa forma das demonstrações. Para os gregos, a ciência é matemática, que não é matematização, não concorre o número na medida em que ele permite a conta, mas aquilo que faz com que o número seja um acesso ao mesmo em si; entendamos o logos como demonstração necessária” (ibidem, p.44).

A ciência moderna rompe com o eterno e necessário, pois mesmo na tentativa de

matematizar inclui o empírico que escapa às noções da episteme, admitindo que eterno é o

que ele não é. A ruptura moderna requer que a matemática, em alguma medida, deixe de estar

ligada ao eterno e ao perfeito, onde os números não mais funcionarão como números, chaves

de ouro do mesmo, mas como letras, e como tais devem apreender o diverso no que ele tem

de incessantemente outro. O conceito de letra, referido no segundo capítulo é aqui assinalado

para registrar sua aproximação ao real, na medida em que esvazia o significante de sua função

de significar. Além disso, o fato de a ciência lançar suas proposições como passíveis de serem

refutáveis aponta para a inclusão da noção de descompletude.

O real, tal como colocado pela ciência moderna, explode com as noções de perfeição,

harmonia, valor, sentido e limite da episteme, em que supostamente o saber dava conta do

mundo. Diante de uma cosmologia harmônica, ordenada, onde tudo tinha o seu lugar, tal

como na “física de Aristóteles onde as coisas ocupam um lugar que lhes é próprio, um lugar

que corresponde à sua natureza em um mundo bem ordenado” (Freire, op. cit, 1996:34), o real

aponta um furo desse universo fechado, perfeito, criando uma nova visão, agora infinita, ou

seja, vislumbrando uma parcialidade do saber adquirido. É nessa perspectiva que o sujeito

emerge, como passível de ser representado parcialmente pelo simbólico. Milner (1996) aponta

duas proposições que, segundo ele, podem ser depreendidas de Freud e Lacan: “o imaginário

como tal é radicalmente estranho à ciência moderna e a ciência moderna, enquanto literal,

dissolve o imaginário” (p.47). Considerando que a episteme antiga em seu tratamento do real

recorre a um simbólico que se apresenta organizado, ordenado, fechado, poderíamos dizer

Page 108: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

101

que, se por um lado rejeita o imaginário do mito, ou seja, o mundo divino, por outro instaura

um simbólico suposto total, sem furos, onde tudo encontra seu lugar?

Referindo-se à ciência galileana, Milner coloca:

“ela consiste, em primeiro lugar, no fato de que a matemática, na ciência, possa soletrar todo o empírico, sem levar em conta nenhuma hierarquia do ser, sem pôr em ordem os objetos numa escala que vai do menos perfeito – intrinsecamente rebelde ao número – ao mais perfeito, quase integralmente numerável”(ibidem, p.43).

Apesar de reconhecer o real como impossível, visto que é inerente à sua constituição, a

ciência parte do pressuposto de que é possível simbolizar o real, de vez que se ainda não foi

possível, é que se precisa caminhar mais, desenvolver novas pesquisas etc, fato que evidencia

uma forma histérica na lida com o real. Ao reconhecer o real como tal, pode-se dizer que a

ciência inaugura o simbólico como não-todo, ou seja, na medida em que há muitas perguntas

sem respostas, constata uma falta no simbólico, ainda que a entenda como passível de ser

respondida. Do ponto de vista da psicanálise, mais precisamente seu ponto de partida inclui

um impossível que diz respeito à simbolização total do real. É também pelo simbólico que vai

tratar do real, mas tendo como fundamento um simbólico não-todo, visto que é um fato da

estrutura discursiva. Da operação da ciência, haverá sempre um resto que sobra do qual ela

nada quer saber, resto esse a que a psicanálise se volta posto que se articula ao sujeito:

“Porém, se, tanto para a psicanálise quanto para a ciência, a primazia do significante sobre a realidade é uma constatação – uma vez que não há mundo senão através da linguagem – quanto à irredutibilidade do real ao simbólico, elas se distinguem: enquanto para a ciência essa irredutibilidade deve ser superada em nome de um conhecimento possível e mais completo sobre o real, para a psicanálise que não tem uma Weltanschauung, essa irredutibilidade é imanente ao ser falante, ao ser sexuado” (Freire, 1996, op.cit, p.27-28).

4.3. O Real e o Sujeito:

A operação da ciência de tentar delimitar o real pelo simbólico incide no campo do

humano, donde o cogito surge como produto. O “penso, logo sou” equivale à simbolização

possível do sujeito, em outros termos, à única forma de se fazer representar, pelo significante.

De um lado a ciência viabiliza a formulação do sujeito, de outro, o exclui da cena. É

justamente por se voltar ao resto da ciência, àquilo que nesse campo fica esquecido, que a

psicanálise passa a estabelecer um laço, passa a se encontrar com a ciência, ainda que dela a

Page 109: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

102

ciência nada queira saber. Esse encontro pode se dar nos campos férteis de onde essa pesquisa

teve seu início, o hospital, o posto de saúde, locais em que ciência e psicanálise esbarram no

cotidiano. E mesmo na clínica particular, onde no discurso de um sujeito, pode-se escutar

diferentes falas que remetem à inclusão ou não daquilo que diz respeito ao sujeito. No

entanto, a resultante desse encontro, que podemos qualificar de “faltoso”, não é uma adição,

posto que não se trata de a psicanálise vir completar o saber da ciência, mas por ser um

discurso que insere a descompletude como constatação, fazer diferença e, paradoxalmente,

acrescentar pela falta.

O real da ciência interessa à psicanálise na medida em que se relaciona com o sujeito

do qual trata, pois o real afeta o sujeito. O real como resto da ciência, enquanto não-todo

dominado, retorna, e é a clínica psicanalítica que pode lhe dar lugar. Apesar de a ciência

insistir na tentativa sempre mais e mais rigorosa de calar o real, buscando reduzi-lo todo ao

simbólico, é esse real que, ao retornar sempre no mesmo lugar escapando ao sentido, abala o

sujeito. Isso implica dizer que a ciência falha em sua proposta, já que, o real não-todo

absorvido pelo simbólico sobra. Proposta essa que para a psicanálise é da ordem do

impossível, na medida em que o simbólico, por estrutura é não-todo, tornando essa tarefa

inviável. É como resto que o real comparece, causando o sujeito que frente a ele responde de

diversas formas. É o sujeito, portanto, que dá noticias do real, que face à falta de recurso

simbólico aparece.

O sujeito excluído da operação da ciência é retomado como protagonista da cena

psicanalítica, de modo que é à psicanálise que concernem suas dores, questionamentos,

sofrimento, dúvidas, enfim, o que diz respeito à subjetividade, na relação com o real que lhe

causa. Ainda que o sujeito se depare com uma gama de discursos que oferecem explicações

para lidar com o real, somente o discurso psicanalítico dá lugar ao real tal como se apresenta,

tendo como direção que o sujeito se posicione a partir daí.

Enquanto resto da ciência, o real continua a provocar questões subjetivas inquietando

o sujeito, que frente a isso produz interrogações. O real interroga o sujeito sobre o lugar que

ocupa, sobre sua identidade, os limites de seu corpo, sua existência, etc... “É

incontestavelmente real que estrela não tem boca, mas ninguém nem sonharia com isto, no

sentido próprio do verbo sonhar, se não houvesse seres providos de um aparelho de proferir o

simbólico, isto é, os homens para fazer com que se repare nisto” (Lacan, 1954-55, op.cit,

p.300). Lacan aponta que o que há de singular ao ser humano é o recurso simbólico, de modo

Page 110: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

103

que apenas a partir dele, somente o homem pode lançar questões tais como: O que as estrelas,

os planetas significam? Qual o sentido do mundo? De onde viemos, para onde vamos? Por

que os planetas não falam? É ao ser falante que esse tipo de interrogação acomete diante do

que o sujeito não encontra resposta, portanto, terá de se ver com isso. Estas são perguntas que

a ciência abafou, e a psicanálise, ao acolher o sujeito afetado por elas, dá espaço para que a

partir daí um trabalho tenha lugar. Como ilustração, selecionamos um fragmento do

atendimento clínico de M, 17 anos que, no ano de prestar o vestibular, se queixa de não

conseguir aprender matemática, ele diz: - “fico observando a turma, olhando para o quadro e

não entendo como conseguem aprender aquelas fórmulas malucas, nunca entendi porque dois

mais dois são quatro, não entra na minha cabeça, de onde saiu isso?”. É esse sujeito que sofre,

interroga e não encontra uma resposta satisfatória, que é afetado pelo real que a psicanálise

recolhe, com a proposta de trabalhar acerca disso.

Apesar da constatação de que: “a ciência opera sobre um suposto real puro

transformando-o em pura fórmula, foracluindo seu sentido para o sujeito e fazendo calar as

estrelas” (Freire, 1996, op cit, p.37), o real retorna, colocando questões. Pode-se dizer que na

medida em que a ciência não encontra algumas respostas, exclui as perguntas que lhes

correspondem, excluindo o sujeito que as faz. Isso implica o fato de que a ciência exclui o

sujeito já que, enquanto o real o afeta e o faz questionar, não lhe interessa, pois tem como

proposta estabelecer saberes objetivos, sem desvios postos pela subjetividade. Referindo-se à

psicanálise Quinet (2000) diz:

“Enquanto para esta o real em jogo é relativo à castração e à falta no Outro, o real para a ciência é tudo aquilo que ainda não foi simbolizado por seu discurso. O projeto da ciência de colonizar todo o real com seus significantes lhe confere um aspecto de loucura ao rejeitar de sua esfera qualquer subjetividade” (p.151).

Ao tomar o real como irredutível ao simbólico, a psicanálise oferece aos sujeitos, que

desejem atravessar o processo, uma possibilidade de fazer algo com isso que os afeta. No

lugar de adiar o encontro com o real, negá-lo, imaginarizá-lo, buscar explicações que

tamponem sua dimensão, entre outras formas que apontam para um não querer saber do

sujeito acerca desse, a psicanálise pretende que o sujeito depare-se com a impossibilidade

trazida por esse, cujo efeito é de tomar posição frente à castração. Ao se debruçar sobre esse

sujeito sob o qual o real afeta, a psicanálise a partir da clínica promove condições para o

sujeito que é levado a investigar sobre a significação de suas questões encontre um espaço de

Page 111: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

104

trabalho. Ainda que a significação que o sujeito possa vir a encontrar seja nenhuma, já que o

real resiste à significação, é no encontro com essa falta que o sujeito tem a chance de mudar

de posição frente ao real, ou melhor, no real.

Pode-se dizer que a ciência calou o que é real não porque supunha que o real falava,

mas na medida em que suscitava questões aos sujeitos, como aos cientistas. Desta forma,

fazer calar os planetas é calar o efeito do real nos sujeitos, em última instância, calar o sujeito.

Foi esse real constatado pela ciência que a levou a simbolizá-lo, no mesmo ato excluindo o

sujeito.

A psicanálise retoma as noções de sujeito e real, tais como fundadas na ciência,

entretanto, ao tomar o simbólico como não-todo a partir do real que resiste à significação,

subverte o sujeito que passa a ser sujeito do inconsciente. Em outras palavras, um sujeito

marcado pelo inconsciente que, enquanto não-todo estruturado como linguagem, afeta o

sujeito no real. Pode-se dizer que a psicanálise dá lugar à verdade do sentido para o sujeito

que a ciência exclui, já que ela busca calar a falta de sentido do real. Referindo-se ao

esquecimento da dimensão de verdade na qual a ciência se constituiu, Lacan comenta: “a

ciência esquece as peripécias nas quais ela nasceu, no momento em que ela se constituiu”

(1966a:869).

“O real é a resposta da psicanálise à foraclusão da verdade do sujeito, operada pela ciência. Se a ciência se constitui sob uma forma idealizada de uma Weltanschauung, sob uma estrutura de linguagem que exclui o sujeito, cabe à psicanálise tratar o real excluído, que retorna. É portanto, o sujeito foracluido pela ciência que retorna à psicanálise. Retorno que se presentifica tanto nos atos falhos (chistes,esquecimentos etc.) quanto, de uma maneira mais radical, no próprio real – que escapa à linguagem” (Freire,1996, op.cit, p.33).

Considerando a marca real que constitui o sujeito, pode-se colocar a hipótese de que o

sujeito na ciência é excluído para que a operação de tentativa de totalizar um saber verdadeiro

se dê, já que somente o sujeito pode lançar novas interrogações sobre o mundo, na medida em

que sob ele o real retorna, pedindo escuta. Disso resulta que o sujeito excluído da ciência é o

mesmo que retorna sob a forma de real, sob forma inconsciente.

Se psicanálise e ciência coincidem no interesse pelo real irredutível, que retorna ao

mesmo lugar, impossível, sem-sentido, a primeira se distingue da segunda, já que o real que

concerne à psicanálise é também e, sobretudo, aquele que toca o sujeito. “Trata-se de um real

Page 112: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

105

que interessa ao ser falante, não porque suscite a questão do sentido pelas fórmulas que o

calam, mas porque concerne ao sujeito, frente à verdade do seu desejo” (ibidem, p.37).

Se o mundo antigo organizava-se nos moldes de uma ordenação em que tudo tinha um

lugar, poderíamos dizer que o mesmo se passava no tocante ao sujeito, isto é, também o

sujeito encontrava no laço social feito pela cultura um lugar simbólico no qual havia respostas

e atributos para si? Parece que podemos responder afirmativamente a essa questão, tendo em

vista nossa pesquisa, o que permite dizer que o procedimento da ciência moderna de romper

com um mundo finito, ordenado, incide também no campo humano de modo a desqualificar o

sujeito de seus atributos:

“Isso, por seu turno implica o abandono, pelo pensamento científico, de todas as considerações baseadas em conceitos de valor, como perfeição, harmonia, significado e objetivo, e finalmente a completa desvalorização do ser, o divórcio do mundo do valor e do mundo dos fatos” (Koyré, 2006, op.cit, p.6).

Havia uma costura na linguagem que gerava determinada conotação, significação e que

sofre um rompimento a partir do real que emerge com a ciência moderna como efeito da

dúvida e interrogação de qualquer postulado insustentável. Este corte pode ser evidenciando,

por exemplo, com a mudança radical que se produziu em relação ao problema da queda dos

corpos. “É muito diferente pensar que os corpos caem porque o lugar natural daquilo que é

pesado, grave, é o mais baixo... e afirmar que os mesmo corpos que parecem cair estão, na

verdade, sendo atraídos pela Terra porque estão próximos a ela e têm menos massa do que

ela” (Elia, 2004:11-12) A descrição da lei que postula que matéria atrai matéria na razão

direta das massas e inversa das distâncias, aponta o abalo que adveio com a ciência.

Pode-se dizer com Freire (1996) que os significantes se fundam na ciência como

significantes sem intenção, ou seja, na constatação da impossibilidade de acasalamento entre

significante e significado. Podemos entender que a colocação de Freire diz respeito ao fato de

que ao introduzir um novo real, a ciência moderna faz surgir um significante desamparado de

significado, significantes que não dizem nada a ninguém, na medida em que se desfaz a solda

que ligava significante e significado? Como conseqüência da operação da ciência, o homem

passa a ter a seu encargo que responder questões que o coletivo não mais respondia, pois o

edifício de saber estabelecido não mais funcionava, tal como experimentou Descartes. É esse

significante, que não se vincula ao antigo significado dado pelas qualidades de um mundo

Page 113: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

106

regido por valores, que aparece, dando lugar ao sujeito que, tomando aí seu lugar, vai

questionar sobre seu lugar, já que não encontra mais atributos que lhe respondam.

Ainda nessa linha podemos situar a colocação de Benjamim (1985), quando se refere a

rupturas que vieram com a primeira guerra mundial e à revolução da técnica “Uma nova

forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao

homem” (p.115). Ao constatar que a experiência transmissível pelo homem na cultura perde

lugar, sendo subtraída do homem, Benjamim aponta o surgimento de uma nova barbárie. A

barbárie de que fala é resultante dessa pobreza de experiência, mas é positiva, pois: “Ela o

impele a partir para frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com

pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” (ibidem, p.116). É possível dizer

que a barbárie de que nos fala Benjamim diz respeito a essa desconstrução operada pela

ciência que, de um lado arrasa uma construção estabelecida do mundo antigo, e de outro

engendra um movimento?

Na medida em que constatamos a estreita ligação entre sujeito e significante, como

também entre ciência e linguagem, indagamos: Se a ciência opera com o significante que dá

lugar ao sujeito, porém ejetando esse último de seu campo, poderíamos dizer que isto decorre

do fato de que ela opera sobre o significante, reduzindo-o pelo modelo de formalização à

letra? Se é na ciência que se constitui o significante sem significação que convoca o sujeito,

é, no entanto, a psicanálise que o resgata e lhe dá lugar, visto que a ciência procede a sua

exclusão.

Nesse capítulo, verificamos que os registros do real, simbólico e imaginário não

existem sozinhos e precisam se articular a fim de engendrar o psiquismo. É nessa perspectiva

que mito, ciência e psicanálise também se articulam como um nó, já que esse sujeito, que vem

à análise falar de seu mito, só pôde surgir daquilo que foi instaurado pela ciência, sendo assim

efeito dessa. Contudo, apesar da íntima ligação entre ambos, somente a psicanálise inclui o

real em sua operação, articulado ao simbólico e imaginário, implicando que qualquer crença

numa verdade absoluta como pretende o mito e a ciência inúmeras vezes cai por terra, visto

que há uma impossibilidade que diz respeito à linguagem na qual o sujeito, enquanto ser

falante, se constitui.

Page 114: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

107

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentaremos aqui o percurso trilhado nessa pesquisa, destacando os pontos

principais a que chegamos em nosso desenvolvimento. Sublinhamos que estes pontos não

esboçam um fechamento ou esgotamento da questão, instalando uma abertura a novas

interrogações e relançando o desejo de prosseguir nossa investigação. A inclusão da falta, não

só do ponto de vista teórico, mas enquanto operação que permeou o movimento de tecedura

desse texto nos permite apontar considerações, que são finais na referência a esse estudo, mas

ponto de partida para outros. No lugar de uma conclusão acabada, nos coloca em face de um

momento, o de concluir.

Na origem de nossa questão, está a experiência clínica. Foi nesse cenário permeado pela

interlocução dos discursos psicanalítico e médico, que se evidenciou a diferença quanto ao

olhar e direção do tratamento do sujeito, surgindo daí uma pergunta. Qual a concepção e o

lugar do sujeito para a psicanálise e para a ciência? Junto à interrogação advinda da clínica,

encontramos nas palavras de Lacan (1966a), uma interseção entre esses campos curiosamente

no mesmo ponto que da clínica nos chamou a atenção: o sujeito. Se a clínica nos fez perceber

um afastamento, Lacan postulou uma aproximação, nos instigando ao exame dos encontros e

desencontros desses campos. O sujeito passa a ser então o fio de condução dessa investigação,

tornando-se também, uma questão. Como definir a noção de sujeito que Lacan refere à ciência

e à psicanálise e qual a relação dos respectivos campos?

Verificamos a partir dessa pesquisa que a ciência moderna é resultante de um

rompimento com a episteme antiga. Esse corte, promovido pelo procedimento de

desimaginarização, cria um novo real, irredutível ao simbólico, permitindo a passagem do

mundo fechado, harmônico, ordenado por referências de valores e perfeição, ao universo

infinito, no qual o sujeito encontra condições de sua emergência. A mudança na abordagem

do real incide também no campo humano, esvaziando o enquadramento até então fundado em

significados e valores estabelecidos e compartilhados. Concluímos assim que a destituição

subjetiva que levou Descartes à produção do cogito não é outra coisa, senão a mesma

operação, no campo da subjetividade, de desbastamento do imaginário introduzida pela

ciência moderna.

Averiguamos então que a marca instalada pela ciência, que Lacan afirma ser fundadora,

portanto, fundamental para o surgimento do campo inaugurado por Freud, diz respeito a esse

Page 115: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

108

despojamento de qualidades, atributos e significações. Decorre daí outra marca essencial, a

noção de sujeito do cogito: “penso, logo sou”, que afirma o ato de pensar como o que garante

a existência do sujeito no simbólico. Seguindo as determinações científicas, o cogito inaugura

o sujeito reduzido ao significante, única forma de representar-se para outro significante.

Demonstramos que a emergência desse sujeito, denominado sujeito da ciência por Lacan, é

efeito do abalo produzido pela queda de um saber, apontando sua divisão subjetiva entre saber

e verdade.

Constatamos a partir do cogito que o universo do sujeito é o da linguagem, que através

da representação faz o mundo existir. No entanto, pontuamos ser o método instaurado pelo

cogito de tratar o real pelo simbólico, no qual a psicanálise se inscreve, revelador da

impossibilidade de capturar o real puro. O fato de a ciência testemunhar um real puro nos

permitiu concluir que os conceitos de real e simbólico têm sua origem neste campo.

Entretanto, sua operação que tem como ideal tudo simbolizar, nos leva a pontuar tais

conceitos como sendo mais próprios à psicanálise. Diferenciamos então o real para a

psicanálise como relativo à castração, à falta no Outro, e na ciência como o que ainda não foi

simbolizado.

Se o sujeito da ciência, como vimos, é reduzido ao significante, sendo consciente o

pensamento que o resume, é porque despreza o que está para além desse. Conferimos que

Lacan subverte o sujeito da ciência, em sujeito do inconsciente, apontando um Outro lugar

para o pensamento. Isso implica o fato de o inconsciente que, é não-todo estruturado como

linguagem e determina o sujeito, denunciar a irredutibilidade deste ao significante, o que

muitas vezes desperta angústia. Ainda podemos sustentar como Lacan o fez em 1966, que se

trata do mesmo sujeito? Respondendo de um modo breve, óbvio e acabado às nossas

considerações, dizemos que não, porém, privilegiando nosso recorte de aproximações e

afastamentos, sugerimos outra resposta: Só é possível concordar com Lacan que o sujeito com

o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência, se sublinharmos o verbo operar. É somente

por esse gesto, ausente na ciência, que implica a inclusão do sujeito em seu campo, que a

psicanálise, subvertendo-o em sujeito do inconsciente, homenageia por um lado, a ciência, por

ter instaurado o sujeito do significante, fato que permite operar sobre seu discurso, mas, por

outro, com ela rompe, reinventando seu próprio sujeito, que em parte, é o da ciência. Ao tratar

o real excluído da ciência, que retorna afetando o sujeito, a psicanálise atesta a falha do

projeto científico de colonizar o real.

Page 116: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

109

Na medida em que deduzimos que o sujeito para a psicanálise pode em parte ser

representado, sendo outra parte esse vazio de representação, em que se manifesta o desejo,

interrogamos: é o desejo dizível? Se a verdade do desejo tem uma nodulação com o real,

sendo daí que advém, será possível articular no discurso isso que lhe causa? De outro modo,

se de um lado, pode-se formular o desejo, é sua causa, impossível de dizer?

Inferimos ainda que a ciência se constitui sob uma estrutura de linguagem que exclui a

verdade do sujeito. Considerando sua relação com a linguagem e os quatro discursos

propostos por Lacan, indagamos: a ciência pode configurar um discurso? Segundo Jorge

(2002b), Lacan aventa a possibilidade de um discurso da ciência, do qual não fornece a

fórmula. Olivieri (2002) pontua que Lacan pensou a ciência a partir do discurso do mestre em

O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70) e quatro anos mais tarde em

Televisão (1974), afirmou que teria quase a mesma estrutura do discurso histérico. Essas

pontuações nos remetem ao título de nossa dissertação: “psicanálise e ciência: um sujeito,

dois discursos”. É possível afirmar o mesmo sujeito para ambas, apesar de este sofrer

operações diferentes? Quanto ao sujeito, nossa consideração está posta e quanto ao discurso?

Lançamos essas perguntas que, entre outras surgem como efeito desse estudo, para

futuros trabalhos.

Page 117: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]
Page 118: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

111

_____________. Por que os planetas não falam? Rio de janeiro: Revinter,1997. FREUD, Sigmund. Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 2a edição, 1986, 8a

reimpressão, 2004. _____________. “Tratamento psíquico ou mental” (1890), vol. I, op. cit. _____________. “Projeto para uma Psicologia Científica” (1950 [1895]), vol I, op.cit. _____________. “Sobre o início do Tratamento” (1913), vol. XII, op.cit. _____________. “O inconsciente” (1915), vol. XIV, op. cit. _____________. “Conferência XXV –A Angústia” (1916-17), vol. XVI, op. cit. _____________. “Uma dificuldade no caminho da Psicanálise” (1917), vol. XVII, op. cit. _____________. “A dissolução do Complexo de Édipo” (1924), vol. XIX, op. cit. _____________. “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925), vol. XIX, op. cit. _____________. “Inibições, sintomas e angústia” (1926a [1925]), vol. XX, op cit. _____________. “A questão da análise leiga” (1926b), vol XX, op. cit. _____________. “Conferência XXXII – Angústia e vida pulsional” (1933a), vol. XXII op. cit. _____________. “Conferência XXXV – A Questão de uma Weltanschauung” (1933b), vol. XXII, op. cit. GARCIA-ROSA, Luis Alfredo. – Freud e o inconsciente. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1987. GUYOMARD, Patrick. – O gozo do trágico: Antígona, Lacan e o desejo do analista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. ERLICH, Hilana – “A Eficácia Simbólica em Lévi Strauss e Lacan”. Trabalho apresentado no Simpósio Nacional: Psicanálise e Psicoterapia no Campo da Saúde Mental, (UERJ), 2005. JORGE, Marco Antonio Coutinho – Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan – vol I: as bases conceituais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 a. _____________. “Discurso e Liame social: apontamentos sobre a teoria lacaniana dos quatro discursos” In: RINALDI, D e JORGE, M.A.C. (org). Saber, Verdade e Gozo: leituras de O Seminário, livro 17, Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2002 b. _____________. “A pulsão de morte” In: Estudos de psicanálise, Belo Horizonte, Círculo Brasileiro de Psicanálise, n 26, 2003. _____________. “O sintoma é o que muitas pessoas têm de mais real. Sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise e a fantasia” In: Psicologia clínica: mídia, tecnologia e subjetividade, Rio de Janeiro, PUC, RJ, 2004. KOYRÉ, Alexandre. – Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. LACAN, Jacques – “O Simbólico, o imaginário e o real” Conferência de julho de (1953a) na Societé Française de Psychanalyse. In: Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, Documentos, nº 9, 5/10/1999. _____________. “O mito individual do neurótico” (1953b). Traduzido por Antônio Quinet. In: Revista Falo, n. 3, Salvador: Fator, 1987. _____________. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1923c) In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966.

Page 119: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

112

____________. “Discurso de Roma” (1953d). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. ____________. O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise ( 1954-1955). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1985. _____________. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde de Freud” (1957). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966. ____________. O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1988. ____________. “A ciência e a verdade” (1966a) In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ____________. “Respostas aos estudantes de filosofia sobre o objeto da psicanálise” (1966b). In: Green, A., Lacan, J. , Leclaire, S. e Nassif, J. (org). Psicanálise ciência e prática. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1975. ____________.“O Lugar da Psicanálise na Medicina” (1966c). Traduzido por Marcus André Vieira. In: Opção Lacaniana, n. 32, dezembro de 2001. ____________. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. ____________. O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. LAPLANCHE, Jean & PONTALIS. – Vocabulário de psicanálise; sob a direção de Daniel Lagache; tradução Pedro Tamen. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. LEONEL, Francisco. – “Lacan e a Topologia” In: FREIRE, A.B; FERNANDES, F.L; SOUZA N.S (org). A ciência e a verdade: um comentário. Rio de Janeiro: Revinter, 1996, p.97-143. LÉVI-STRAUSS, Claude. – Antropologia Estrutural. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro 2003. _________ . “Do mito à razão” (1957). In: Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. MARCONDES, Danilo – Iniciação à História da Filosofia – Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1998. MILLER, Jaques Allain – Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1984. MILNER, Jean Claude. – A Obra Clara: Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. OLIVEIRA, Damião Bezerra. – “A crise do conceito de episteme” Em: Revista Margens virtuais do Núcleo de Pesquisa do Campos Universitário do Baixo Tocantins- Universidade Federal do Pará (UFPA), 2006. Fonte: Internet. OLIVIERI, Felippo. “A aletosfera, lugar de objetos agalmáticos”. In: RINALDI, D e JORGE, M.A.C. (org). Saber, verdade e gozo: leituras de O Seminário, livro 17, de Jaques Lacan. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2002, p.71- 76.

Page 120: Psicanálise e Ciência - Um Sujeito Dois Discursos [Dissertação]

113

QUINET, A. – A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2000. RINALDI, Dóris. – A ética da diferença. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. SOUZA, Neusa Santos. – “A Divisão do Eu” In: FREIRE, A.B; FERNANDES, F.L; SOUZA N.S(org) A ciência e a verdade: um comentário. Op cit, p.11-16, 1996. VERNANT, Jean Pierre – As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.