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Psicanálise Módulo I Parabéns por participar de um curso dos Cursos 24 Horas. Você está investindo no seu futuro! Esperamos que este seja o começo de um grande sucesso em sua carreira. Desejamos boa sorte e bom estudo! Em caso de dúvidas, contate-nos pelo site www.Cursos24Horas.com.br Atenciosamente Equipe Cursos 24 Horas Autora do conteúdo: Ana Paula Veiga (Psicóloga/Sexóloga) Contato: http://www.wix.com/ana_paula_veiga/atendimento

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  • PPssiiccaannlliissee

    Mdulo I

    Parabns por participar de um curso dos

    Cursos 24 Horas.

    Voc est investindo no seu futuro!

    Esperamos que este seja o comeo de

    um grande sucesso em sua carreira.

    Desejamos boa sorte e bom estudo!

    Em caso de dvidas, contate-nos pelo

    site

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    Atenciosamente

    Equipe Cursos 24 Horas

    Autora do contedo: Ana Paula Veiga (Psicloga/Sexloga) Contato: http://www.wix.com/ana_paula_veiga/atendimento

  • Sumrio

    Introduo..................................................................................................................... 3 Unidade 1 Conhecendo a Psicanlise........................................................................ 12

    1.1 Freud e a criao da psicanlise ...................................................................... 12 1.2 Escolas psicanalsticas.................................................................................... 22

    1.3 Jung e a psicologia analtica ........................................................................... 23 1.4 Wilhelm Reich e a psicologia do corpo........................................................... 33

    1.5 J. Lacan e sua contribuio psicanlise......................................................... 43 1.6 A psicanlise no Brasil ................................................................................... 54

    Unidade 2 Fundamentos da Psicanlise .................................................................... 56 2.1 Primeira tpica: consciente, pr-consciente e inconsciente.............................. 57 2.2 Narcisismo ..................................................................................................... 60 2.3 Segunda tpica: id, ego e superego ................................................................. 64 2.4 Resistncias.................................................................................................... 69 2.5 A psicanlise e os sonhos ............................................................................... 78 2.6 O setting analtico........................................................................................... 81 2.7 A alta em psicanlise ...................................................................................... 83

    Concluso do Mdulo I............................................................................................... 85

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    Introduo

    Sigmund Freud (1856-1939) postulou um mtodo de investigao que se resume, essencialmente, em clarificar o significado inconsciente das aes do sujeito. Desse modo, para a psicanlise existem contedos escondidos na vida mental de todos ns. Baseado no mtodo de associao livre, que garante a validade das interpretaes desde que sejam controladas certas resistncias inerentes, a psicanlise foi o primeiro esforo cientfico para o tratamento das questes psicolgicas. Antes de Freud, o tratamento das desordens emocionais era alm de pr-cientficos e ineficazes, mas

    potencialmente perigosos.

    O modismo de tal teoria levou muitos produo em nome da psicanlise daquilo que no deveria ser assim nominado, j que o contedo, o mtodo utilizado e, at mesmo, os resultados obtidos, no condiziam com o pressuposto original. O que vemos por a que Freud e suas ideias foram to popularizados que seus conceitos,

    muitas vezes, so veiculados de modo errneo ou distorcido.

    Um erro comumente visto, em profissionais de formao apressada, o de pensar que as diferentes teorias que surgiram da psicanlise so trabalhos que falam sobre a mesma coisa, mas de maneira diferente, ou seja, abordagens distintas sobre o ser humano, que visam e apontam para um mesmo resultado.

    Sabemos que a psicanlise ultrapassa os seus pouco mais de 100 anos de criao.

    Ainda assim, inegvel o valor daquilo que foi construdo durante os anos no decorrer da vida de Freud. Tamanha a sua dedicao e cuidado em tornar claros seus pensamentos, em dividir suas angstias e as suas releituras, que podemos nos deleitar

    com aquilo que foi estudado pelo criador.

    Sabemos que a psicanlise se fez a partir de certezas e incertezas de Freud. Incertezas essas que construram com muita propriedade a sua obra, pois, se voltarmos atrs, perceberemos que o mtodo freudiano foi desenvolvido, alm do prprio contato com seus pacientes, mas tambm nos fracassos que se apresentavam diante daquilo que

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    no se esperava ou era sabido. Foi o no conseguir entender que o fez seguir em frente e

    estudar cada vez mais a fundo a mente humana. Cabe apostar que isso que ele esperaria de todos ns, ao falarmos e passarmos adiante a teoria criada para que a

    humanidade pudesse se sentir um pouco protegida dentro da sua desproteo inerente.

    Ainda assim, vale dizer que a verdade no est nas respostas elaboradas pela psicanlise. A completa, o xito, a evitao do sofrimento e das doenas, algo buscado

    por todos ns e por diferentes leituras da mente humana.

    Ao estudarmos este caso de amor que recebeu o nome de Psicanlise, percebemos que Freud nos pede que tomemos cuidado com os seus conceitos chamados, por ele prprio, de fundamentais. preciso desfazer equvocos criados no apenas pelos leigos, mas especialmente por aqueles que detm o saber, e, que, por se considerarem conhecedores, ao fazer uso parcial da psicanlise, so capazes de causar prejuzos que refletiro justamente no pblico leigo.

    mais do que preciso a conscincia da necessria formao do analista, enquanto um processo extra-acadmico, onde seja vivel se preparar para lidar com o futuro paciente, isolando os elementos psquicos de si prprio. Formao esta que, ao passar pela anlise pessoal, visa a superao das prprias resistncias a fim de que elas no interfiram e, assim, prejudiquem o processo analtico daqueles interessados nos cuidados profissionais desse futuro analista.

    Os ensinamentos da Psicanlise baseiam-se em um nmero incalculvel de observaes e experincias, e somente algum que tenha repetido estas observaes em si prprio e em outras pessoas, acha-se em posio de chegar a um julgamento prprio sobre ela. (FREUD, 1940, livro 7, p.16. Ed. Bras)

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    O mesmo foi levantado por Fradiman e Frager (1986):

    Em 1922, no Congresso da Associao Psicanaltica Internacional, concordou-se que uma anlise didtica com um analista j declarado, seria obrigatria para qualquer candidato a analista. Desse modo, este analista tornar-se-ia consciente de seus modos de enfrentar a realidade. E, ento, quando ele ou ela trabalhasse com pacientes, no haveria confuso entre as necessidades do analista e as do paciente. (p. 27)

    De qualquer forma, seria leviano de nossa parte, esquecer que o psicanalista um ser humano, com seus problemas, conflitos e limitaes. Com sua prpria histria e formas de interpretar a sua escuta, que estudou, fez terapia analtica e supervisionou casos, mas, ainda assim, continua sendo, antes de tudo isso, uma pessoa sensvel, afetuosa, entediada, irritvel e que tambm se angustia e sofre.

    O que a psicanlise?

    Dentro da psicologia encontramos vrias abordagens psicoteraputicas que englobam tendncias tericas um tanto diferentes e, com isso, diversas formas de tratamentos. Apesar disso, conforme levantado por Cavalcanti e Cavalcanti (2006), nenhum molde psicoterpico pode ser, indistinto e vantajosamente, aplicado a todos em todos os casos. As caractersticas do prprio indivduo permitem uma abordagem

    teraputica mais adaptvel condio apresentada por ele.

    Via de regra, o que todas as linhas concordam, ainda que haja at mesmo certa competio entre elas, em relao importncia e aceitao, que o comportamento

    humano resultado da interao entre as variveis biolgicas, aquelas que so herdadas e as variveis, que so adquiridas atravs da aprendizagem e da experincia pessoal.

    A ttica teraputica freudiana consiste em trazer o material do inconsciente para a superfcie, ou seja, para o nvel da conscincia, onde possvel ser trabalhado e

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    resolvido ao descobrir os motivos que originaram determinados comportamentos ou

    sintomas. Desta forma, a compreenso interna, chamada de insight, e a resoluo dos conflitos subjacentes so os objetivos primrios desta concepo. Porm, tal esforo ocorre junto resistncia, tanto mais forte quanto mais profundo estiver o material a ser trabalhado.

    Vale lembrar que a psicanlise no inviabiliza, assim como no substitui, a

    necessidade de acompanhamento mdico ou medicamentoso. Ao analista cabe interpretar a fala do seu paciente, o significado inconsciente das palavras, das aes e do

    contedo imaginativo expressado atravs dos sonhos ou fantasias. Seu objetivo a reeducao emocional ao promover o autoconhecimento e o autocontrole, uma melhoria na qualidade de vida com a reduo dos sintomas apresentados, alm das mudanas em si mesmo, caractersticas essas que no competem com o tratamento feito atravs da medicao.

    Atualmente, a psicanlise no est limitada prtica, centrada em outros cenrios por sua amplitude de pesquisa. H at quem diga que a psicanlise uma

    psicologia prpria. Nas palavras do criador:

    Psicanlise o nome de (1) um procedimento para a investigao de processos mentais que so quase inacessveis por qualquer outro modo, (2) um mtodo (baseado nessa investigao) para o tratamento de distrbios neurticos, e (3) uma coleo de informaes psicolgicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina cientfica (FREUD, 1923, livro 15, p. 107. Ed Bras)

    Propomos outra traduo ao afirmar que a psicanlise ainda mais do que isso. aquela ideia que nos envolve de uma tentativa sincera dos entendimentos de nossas limitaes e angstias. Apesar disso, ainda que as teorias ou suas racionalizaes

    expliquem de forma to completa o nosso sofrimento, por vezes, precisamos ir alm delas para que seja possvel a diminuio das aflies daqueles que nos procuram.

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    Precisamos, claro, nos apoiar na teoria, mas no podemos correr o risco de nos

    perdermos nela e esquecermos de quem est nossa frente.

    A contribuio de Freud

    verdade que, passados mais de 150 anos do seu nascimento, Freud continua polmico. Hoje, sua teoria recebe questionamentos que vo desde a psicologia cognitivo-comportamental neurocincia, responsvel pelo estudo das bases biolgicas da mente. Apesar disso, a importncia de Freud para a cincia um assunto

    inquestionvel. O descobrimento da sexualidade infantil, por exemplo, possibilitou o estudo de uma rea que, at ento, era reinada pela ignorncia tanto na cincia quanto na filosofia, contribuindo para a formao de um novo campo conceitual bem mais abrangente e diversificado.

    Alm disso, outros conceitos foram de suma

    utilidade em diversos ramos da psicologia, permitindo, assim, o

    avano de tal cincia para alm de um complemento da psiquiatria. Desde ento, a psicologia pode explicar os

    processos psquicos do ser humano, no se limitando

    somente no tratamento dos distrbios emocionais.

    De tudo, fica que a psicanlise pretende esclarecer o

    funcionamento da mente humana e tem como fundamento a crena de que os processos psquicos, em sua maioria, fazem parte do inconsciente, isto , a conscincia nada mais

    do que somente uma frao da nossa vida psquica.

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    Porm, o modo de examinar a pessoa que nos pede por auxlio varia de acordo

    com as concepes tericas elegidas. Inmeras correntes tentam explicar a gnese dos distrbios emocionais que afligem milhes de pessoas no mundo todo. De acordo com

    seus esquemas explicativos, as abordagens tericas assinalam orientaes teraputicas que consideram mais aplicveis e eficientes.

    Sabemos da possibilidade existente, graas aos vrios e grandes estudiosos dos

    processos mentais, de examinarmos o nosso mundo interior com o intuito de buscar pistas que demonstrem as razes dos nossos comportamentos. Contudo, tal tarefa,

    extremamente difcil, pois, escondemos, por alguma razo, de ns mesmos, tais pistas, seja de forma ricamente elaborada ou com baixo sucesso.

    Os instrumentos existentes para alcanarmos o alvio do sofrimento emocional existem para que utilizemos como almejemos ou como consideremos a melhor escolha. Freud foi somente um dos tericos que escreveu sobre a maneira como utilizou os

    instrumentos, sobre aquilo que ele descobriu e o que concluiu com as suas descobertas.

    Embora suas concluses ainda sejam discutidas, certo que seus instrumentos abriram o caminho para diversos outros sistemas e que podem ser das mais duradouras contribuies para o estudo da personalidade.

    Objetivo do processo analtico

    Muitos pedidos so feitos aos terapeutas. Muitas vezes procurados por ltimo, aps anos de angstia e sofrimento, depois da ansiedade fazer parte da vida desses indivduos to intimamente que chegam a se confundirem com ela, nos perguntam e nos

    perguntamos at que ponto podemos ajud-los?

    O psicanalista no est ali a fim de responder de forma incondicional ao pedido de ajuda que lhe feito. O trabalho do analista vai depender do desejo em conjunto com o seu paciente, tanto na funo do sujeito do suposto saber como na funo de objeto,

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    isto , no sustento do lugar do vazio para que seja possvel deslocar a fala do paciente a esse lugar e, assim, se d a possibilidade de tratamento.

    Isso ocorre, pois a funo da terapia estabelecer a conexo entre o evento mental reprimido e as manifestaes neurticas do paciente, de forma que este se perceba, compreendendo e, ento, podendo neutralizar os efeitos da experincia original. Dito de outra forma, com base em um interrogatrio dirigido, o paciente

    induzido a trazer, memria, uma ideia que havia estado guardada por muito tempo e qual ele no teria acesso em outras condies. De tal forma, podemos perceber que a

    funo da terapia permitir a interao dos contedos dos sistemas presentes na mente do indivduo.

    Mas quem nos busca por ajuda, quer alcanar muitas vezes uma plena felicidade e acredita que o analista tem o caminho que ele procura. Cabe ao analista saber que tal felicidade imaginria, por muitas vezes, entra em choque com a realidade, no cabendo

    ser alcanada. Estamos pr-destinados a nunca nos satisfazermos em um mundo calculado, ainda que a sociedade do espetculo nos tente provar o contrrio, imprimindo

    uma ideia de fornecimento de prazeres ilimitados, seja pelo consumo ou seja pelo espetculo.

    Pblico alvo

    Este curso destina-se a todos aqueles interessados em adquirir conhecimento

    sobre a teoria da psicanlise, ou seja, tanto aos que querem aprender a dinmica dos problemas emocionais e afetivos de acordo com tal pressuposto, quanto aos que desejam dedicar-se psicanlise como terapeutas. Apesar disso, se faz necessrio saber, como j levantado, que um programa de formao em psicanlise pede por um trip estabelecido pelo prprio criador: conhecimentos tericos, superviso e anlise pessoal.

    Vale dizer que tal trabalho, voltado para o pblico leigo, no pretende

    popularizar a psicanlise, at porque, como veremos, o inconsciente s poderia ser

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    desvendado atravs da prpria anlise. Nossa ideia incentivar o desenvolvimento

    pessoal e a realizao intelectual.

    Objetivos gerais

    Promover os principais conceitos da psicanlise e dos fundamentos da tcnica psicanaltica, possibilitando ao estudante a sua atuao na

    promoo da sade psquica, atravs de aes preventivas e intervenes psicanalticas educativas;

    Favorecer o conhecimento, a reflexo e o debate sobre questes referentes teoria psicanaltica;

    Capacitar a melhora da qualificao profissional, ao proporcionar os

    conhecimentos e habilidades para o crescimento profissional.

    Objetivos especficos

    Identificar os principais fundamentos da psicanlise e de outras poucas escolas;

    Permitir que o aluno compreenda o campo dos fenmenos e dos

    processos psquicos (comportamento, conscincia e inconsciente);

    Revelar o funcionamento de complexos, traumas, desejos ocultos ou qualquer outro contedo mental que perturbe o adequado equilbrio emocional do paciente.

    Definies importantes

    cotidiana a confuso feita entre algumas qualificaes do terreno psi. Por isso, necessrio clarificarmos alguns conceitos, para que possamos seguir adiante com a clara e necessria diferenciao dos principais termos.

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    Comecemos pela palavra psicologia. Ela a cincia que estuda os aspectos

    mentais (sentimentos, pensamentos, razo etc) e comportamentais. Para realizar seu ofcio, o psiclogo precisa escolher uma abordagem baseada em uma teoria especfica

    como mtodo de trabalho. Para a obteno do ttulo preciso frequentar um curso superior de durao de cinco anos, onde o estudante passa por um processo complementar ao desenvolvimento terico com estgios supervisionados.

    Alm disso, um psiclogo pode aprender pelos livros e se aprimorar intelectualmente mesmo que nunca tenha praticado ou se submetido a um processo

    teraputico tambm chamado de psicoterapia, ou seja, a ferramenta clnica do conhecimento da psicologia.

    Diferentemente, um psicanalista1, aquele profissional que possui uma formao

    em psicanlise, s tem sentido atravs do seu trabalho clnico. Sem bastar o estudo sobre sua rea, preciso se submeter prpria anlise com outro analista, visando a

    explicao do seu funcionamento psquico o que, geralmente, avana por alguns anos. Alm disso, tal teoria pode ser utilizada por um psiclogo ou por algum que tenha feito

    uma formao em psicanlise, sem necessariamente ter cursado a faculdade de psicologia nem qualquer outro curso universitrio.

    J a psiquiatria uma especializao da medicina que, ao tentar delimitar os

    problemas do paciente a partir de uma perspectiva mdica, ou seja, orgnica, tem a prerrogativa de prescrever drogas para o tratamento dos sintomas relacionados,

    habilidade esta no designada ao psiclogo. O estudante de medicina opta pela especializao em psiquiatria, que composta de 2 ou 3 anos e abrange estudos em neurologia, psicofarmacologia e treinamento especfico para diferentes modalidades de

    atendimento.

    1 Quando ainda no sculo XIX Freud inventou a psicanlise, a carreira de psicologia ainda no existia. Assim,

    inicialmente quase todos os psicanalistas eram psiquiatras.

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    Unidade 1 Conhecendo a Psicanlise

    Psicanlise o nome dado ao campo clnico e terico de investigao da psique

    humana que originou efeitos importantes na cultura ocidental. Independente da psicologia, ela se desenvolveu atravs dos estudos do mdico neurologista austraco Sigmund Schlomo Freud (1856-1939), que tinha como primordial objetivo compreender os sintomas neurticos e/ou histricos. Com os conhecimentos advindos da investigao

    feita por ele, pode-se superar a falha existente no tratamento mdico de tais pacientes.

    A proposta de Freud, da cura pela palavra e sua teoria sobre o inconsciente, o tornaram popular ainda na primeira metade do sculo XX, e fez da psicanlise um mtodo de investigao dos processos mentais impenetrveis por qualquer outro modo.

    1.1 Freud e a criao da psicanlise

    A felicidade um problema individual. Aqui, nenhum conselho vlido.

    Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.

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    Nascido em maio de 1856, em Freiberg, Moravia, hoje Pribor, atual Repblica Tcheca, seu pai, um comerciante que trabalhava com ls e com os negcios em baixa, se viu obrigado a mudar-se para Viena quando Freud tinha apenas quatro anos. Vinte anos

    mais velho do que sua me, era uma figura severa e autoritria, bem diferente dela, uma pessoa carinhosa, com quem Freud desenvolveu uma profunda ligao.

    Com mais sete irmos, ele era o nico a ter, em seu quarto, lamparina e leo que,

    naquela poca, eram verdadeiras regalias. Alm disso, para que pudesse estudar melhor, era proibido que seus irmos fizessem barulho pela casa.

    Pelo fato de ser judeu, todas as carreiras fora medicina e direito eram proibidas na poca. Interessado pelos trabalhos de Charles Darwin e Johann Goethe optou por estudar medicina na Universidade de Viena. Ao ingressar na universidade, Freud sofreu grande preconceito por ser judeu. Tal fato deve ter servido para que ele se acostumasse a ser uma figura na oposio.

    O jovem estudante Freud desenvolveu trabalhos em neurologia e fisiologia, comandando pesquisas sobre as glndulas sexuais das enguias. Fora isso, entrou para o laboratrio de Brcke para estudar o sistema nervoso dos peixes. Os estudos de medicina, com exceo da psiquiatria, nunca o atraiam. Isto fez com que ele levasse oito anos para se formar, em 1881. desta poca, mais precisamente em 1882, que datam os primrdios da psicanlise, quando Freud ainda era recm-formado.

    Apesar da sua vontade, como sua condio financeira no permitia que seguisse estudando no laboratrio acadmico, comeou a atender pacientes, clinicando como neurologista e tratando essencialmente de mulheres burguesas que sofriam de distrbios

    histricos. Alm do mais, ele tinha se apaixonado e percebeu que, casando-se, precisaria de um cargo mais bem remunerado.

    Freud percebeu que, na histeria, os pacientes apresentavam sintomas que so

    anatomicamente inviveis. Por exemplo, na "anestesia de luva" a pessoa no tem nenhuma sensibilidade na mo, ainda que apresente sensaes normais no punho e no

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    brao. Porm, visto que os nervos tm um percurso ininterrupto do ombro at a mo,

    no pode haver nenhuma causa fsica para este sintoma. Assim, tal doena carecia de uma explicao psicolgica.

    Na clnica psiquitrica, notou que os problemas dos pacientes estavam relacionados ao fato deles terem seus desejos reprimidos, subordinados ao inconsciente, sendo muitos deles de natureza

    sexual. Ao procurar aliviar o

    sofrimento psquico das pacientes,

    Freud, durante um ano, ainda fez uso dos mtodos teraputicos da poca: eletroterapia, massagens e

    hidroterapia.

    De 1884 a 1887, fez algumas

    das primeiras pesquisas com cocana e, ao descobrir as propriedades

    analgsicas, no sendo naquela poca proibida, ficou impressionado com suas propriedades e escreveu a respeito de seus possveis usos para os distrbios, tanto os fsicos como os mentais: Eu mesmo experimentei uma dzia de vezes o efeito da coca, que impede a fome, o sono e o cansao e robustece o esforo intelectual. (1963)

    Por pouco tempo foi um defensor, mas depois tornou-se apreensivo em relao s suas propriedades viciantes e interrompeu sua pesquisa. Porm, tal estudo abriu portas para que esta substncia fosse disseminada na Europa e nos Estados Unidos.

    Terminando sua residncia, Freud conquistou uma bolsa de estudos no Salpetrire, em Paris, onde trabalhou com Charcot (1825-1893), figura de papel fundamental na formao do jovem Sigmund. Ele percebeu em Freud um estudante capaz e inteligente, e deu-lhe permisso para traduzir seus escritos para o alemo quando Freud voltou Viena.

  • 15

    Nesta poca, a histeria era a mais misteriosa de todas as doenas nervosas, e, no

    s os pacientes histricos, como, tambm, os mdicos que demonstravam interesse por trat-la, eram desacreditados. Charcot contribuiu decisivamente para a mudana de tal

    quadro, recuperando no s a dignidade dos pacientes, como abrindo um espao para que eles fossem ouvidos.

    Para ele, a histeria no poderia ser considerada como uma enfermidade

    imaginria. Era uma neurose que no estava restrita ao universo feminino, contradizendo a prpria origem do nome (hystera= tero). Tanto um quanto o outro se mostraram interessados na autenticidade e na normalidade dos fenmenos histricos e em sua apario na populao masculina.

    Apesar disso, Freud no havia concordado com a ideia de Charcot, que dizia que a causa fundamental de tal distrbio era a hereditariedade. Ainda assim, ficou encantado quando percebeu que a hipnose era um caminho para a explicao. Desta forma,

    podemos dizer que a maneira como Charcot tratava seus pacientes histricos foi o ponto decisivo para que Freud comeasse a olhar em direo criao de sua metapsicologia.

    Porm, seguindo em seus estudos, Freud passou a achar os ensinamentos de Charcot discutveis.

    Ainda antes de voltar Viena, Freud foi a Berlim estudar sobre as enfermidades

    infantis, onde publicou alguns trabalhos sobre paralisia cerebral das crianas. E, em 1886, j de volta, alm de ter se casado com Martha Bernays, com quem teria seis filhos, estabeleceu sua clnica particular e passou por um perodo de grande resistncia por parte das autoridades mdicas em relao s suas inovaes cientficas. Assim, foi questo de tempo a sua retirada da vida acadmica e da relao profissional com a

    sociedade de mdicos.

    Algumas circunstncias j o tinham feito abandonar o uso da eletroterapia e a utilizar como ferramenta de trabalho a hipnose, mtodo que permitia ao paciente a

    entrada em um estado de sugesto (hipntica), onde seria possvel revelar a histria da

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    gnese dos sintomas e sobre o qual era invivel o acesso em estado normal de

    conscincia.

    Este fato foi descoberto ao perceber que a hipnose era uma condio que atenuava a vigilncia da censura, possibilitando evocar fatos perdidos que estavam relacionados com o sintoma. Assim, em hipnose, uma situao era recordada e possvel de realizar o ato psquico, antes reprimido, permitindo, de tal forma, um livre curso do

    afeto correspondente e o consequente desaparecimento do sintoma. Estas reconstrues da situao traumtica inicial eram seguidas de exploses emocionais, chamadas de

    catarse, e acompanhadas pelo desaparecimento sintomtico. Nas palavras de Freud (1914): Os sintomas de pacientes histricos baseiam-se em cenas do seu passado que lhes causaram grande impresso, mas foram esquecidas (traumas); a teraputica, nisto apoiada, consistia em faz-los lembrar e reproduzir essas experincias num estado de hipnose (catarse). (Ed. Bras, livro 6, p. 17)

    Aliou-se a Josef Breuer2 (1842-1925), com quem continuou suas investigaes exploratrias da dinmica da histeria. Juntos, Breuer e Freud, escreveram, em 1895, Estudos sobre a histeria. A ideia do livro no era a de se fixar na natureza de tal distrbio, mas esclarecer a gnese de seus sintomas, acentuando, portanto, a contribuio da vida afetiva e a importncia da distino entre atos psquicos inconscientes e conscientes. Porm, alvo de crtica, o livro, escrito a quatro mos, serviu

    de corte no caminho dos dois. Se, para Breuer, o tratamento estava completo com a ajuda hipntica, para Freud ainda faltava entender outras questes. Desta forma, Freud tornou conhecidos os inconvenientes deste procedimento: no era possvel hipnotizar todos os doentes, visto que nem todos eram sugestionveis e, por sua vez, nem todos os mdicos conseguiam hipnotizar de forma to profunda quanto necessrio.

    2 Sua paciente mais conhecida foi Bertha Pappenheim, sob o pseudnimo de Anna O., que ser a primeira paciente histrica de Freud. Na poca, responsvel pelos cuidados de seu pai gravemente doente, Anna O. sofria de um variado quadro sintomtico que inclua paralisia, contraes musculares, inibies e estados de perturbao psquica. Em estado de viglia, a paciente era to incapaz como os outros de entender a origem de seus sintomas ou as conexes com a sua vida. Porm, hipnotizada, achava-se o que faltava. Com seu pai, a paciente se viu forada a reprimir um pensamento-impulso, cuja representao havia revelado o sintoma. Seu tratamento e sua hipnose permitiram revelar os pensamentos e afetos reprimidos como o desejo de que o seu pai morresse.

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    Para Breuer, a origem da histeria est ligada s lembranas traumticas que

    foram reprimidas por algum mecanismo do plano inconsciente da vida mental, isto , ao reprimir a carga do afeto da lembrana, originam-se os sintomas histricos. Era preciso

    um mtodo catrtico para se conseguir o retorno do afeto (utilizado para manter o sintoma) e que por ter pego um caminho falso, no podia ser descarregado. Freud no

    estava satisfeito com tais ideias, pois no acreditava que os sintomas

    tivessem sido originados em qualquer cena desagradvel. Para ele, tais cenas

    traumticas estavam ligadas sexualidade.

    Seguindo o seu caminho novamente sozinho, ampliou os

    limites da histeria, comeando pela

    investigao da vida sexual dos neurastnicos. Em meio disso, Freud

    percebeu que o mtodo da hipnose, no lugar de eliminar os sintomas

    causadores do sofrimento, por vezes, gerava novos sintomas no lugar daqueles suprimidos.

    Claro que esta descoberta, ainda que no tire o valor do mtodo hipntico, o

    impe limites. E, por isso, a hipnose deixou de ser o mtodo ideal para os propsitos de Freud, que mudou a sua abordagem, escolhendo trabalhar com os pacientes deitados, enquanto ele se colocava por trs, de maneira que poderia ver, mas no ser visto.

    Com esta postura, ele pretendia encorajar seus pacientes a falarem livremente, sem reservas, sem omisso e julgamento, independente da aparente relao com seus sintomas, isto , sem preocupaes de certo ou errado, reflexes ou conexes lgicas. A

    ideia era buscar a origem dos sintomas atravs daquilo que era verbalizado, vencendo, primeiramente, as resistncias que impedem o acesso ao inconsciente. Visto que o

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    analista, por sua vez, tem a funo de reunir e significar o material descoberto3, um

    terapeuta psicanalista tradicional tem uma postura mais passiva e calada, ansiando do seu paciente seus prprios insights.

    Esta tcnica foi chamada por ele de Associao Livre, onde o material inconsciente viria tona, com essas ajudas espontneas, relatadas pelo prprio paciente atravs dos sonhos, dos atos falhos e dos esquecimentos. Como aquilo que foi

    esquecido tinha sido penoso, temvel ou doloroso, para faz-lo consciente era preciso dominar o que se revelava contra o sujeito, impondo-se ao profissional tal esforo, tanto maior quanto a gravidade do esquecido e a resistncia do paciente. neste momento que surge a teoria da represso4, ponto central psicanaltico, onde o conflito leva luta entre duas foras: instinto e resistncia.

    Assim, os sintomas se fazem como o resultado de uma satisfao substituda, porm alterada e desviada dos seus propsitos, por conta da resistncia do ego. Desta

    forma, os sintomas neurticos no estariam ligados diretamente aos acontecimentos reais seno a fantasias optativas, onde a realidade psquica mais importante do que a

    realidade material.

    Foi em 1894, que Freud descobriu o conceito de transferncia. No final do ano seguinte, nasce o filho de Anna Freud, sua filha mais velha e que se tornaria

    psicanalista, fundando sua prpria corrente e tornando-se uma clebre psicanalista de crianas.

    E por volta desta poca que surge, pela primeira vez, o termo psicanlise, mais precisamente em 1986, para indicar um mtodo particular da psicoterapia. Neste mesmo

    3 Vale ressaltar, como smbolo de curiosidade, que como Freud anotava somente depois de algumas horas o discurso

    de seus pacientes, acredita-se que pode ter havido certas omisses. Outra crtica que ele pode ter reinterpretado e ter sido guiado pelo desejo de encontrar material de apoio s palavras transcritas.

    4 A represso um mecanismo primrio de defesa anloga tentativa de fuga e antecessor da futura soluo normal

    por julgamento e condenao do impulso repulsivo. Como consequncia, o ego precisa se proteger por meio de um permanente esforo contra a presso do impulso reprimido, sofrendo assim um empobrecimento. Alm disso, o reprimido, ao se transformar em inconsciente, pode alcanar uma descarga e satisfao substituda por caminhos indiretos, fazendo fracassar o propsito da represso.

  • 19

    ano, no qual inclusive o seu pai morre, a correspondncia entre Fliess5 e Freud exibe a

    expresso "aparelho psquico" e os seus trs componentes: consciente, pr-consciente e inconsciente. atravs de tais correspondncias que Freud inicia o que ele chamaria de sua autoanlise. Em paralelo, reconhece a sexualidade infantil e o complexo de dipo. Poucos anos depois, publica A Interpretao dos Sonhos", com data de 1900, ainda que tenha sido publicado no final de 1899. Datada, a pedido dele mesmo, de 1900, para abrir o sculo, foi considerada por muitos como seu mais importante trabalho, apesar

    de, na poca, no ter recebido quase nenhuma ateno.

    Em 1902, criada a primeira sociedade psicanalista do mundo, em Viena, com o nome de Sociedade Psicolgica das Quartas-Feiras. No ano seguinte, a primeira vez que Freud analisa uma criana de cinco anos. E neste mesmo ano que ele descobre a primeira teoria das pulses: pulso sexual e pulso do Eu. Logo em seguida, Freud revelou os estgios da sexualidade infantil e conheceu Jung, com quem comeou a se corresponder e com quem, em sete anos, j somava 359 cartas.

    Jung que j tinha uma percepo de inconsciente e do psiquismo quando se aproximou de Freud, criou, em 1907, a Sociedade Freud, em Zurique, que, mais tarde, se tornou a Associao Psicanaltica de Zurique. Alm disso, Jung teve tal importncia para Freud visto que, alm de muito inteligente e esperto, no era judeu e Freud receava que o progresso da psicanlise fosse ameaado pelo antissemitismo.

    Porm, alguns anos depois, a amizade ficou abalada aps Jung tentar convenc-lo a dessexualizar sua doutrina.

    Freud, em 1911, descobriu o conceito de narcisismo ao estudar sobre a psicose paranica. No prximo ano, Freud publica alguns livros como A Dinmica da

    Transferncia e Totem e Tabu, onde pesquisa sobre a interdio generalizada do incesto, enraizada em diferentes culturas e sociedades.

    5 Wilhelm Fliess (1858-1928) foi um mdico alemo importante na pr-histria da psicanlise. Por sugesto de

    Breuer, Fliess se encontrou com Freud, em 1887, formando um forte lao de amizade. Mais do que um ouvinte crtico de Freud, fez algumas contribuies cientficas como a da bissexualidade inerente a todos os seres humanos. Suspeitando que suas ideias estivessem sendo plagiadas por Freud, a amizade se desfez em 1902. Sua correspondncia com Fliess encontra-se atualmente reunida sob o nome de O Nascimento da Psicanlise.

  • 20

    J na dcada de 20, Freud nos conta sobre sua segunda teoria do aparelho

    psquico: Isso (Id), Eu (Ego), Supereu (Superego) e sobre a segunda teoria das pulses: pulso de vida e pulso de morte.

    No mesmo ano, em que est se dedicando teoria estrutural ou segunda tpica, Freud escreveu "O Ego e o Id" (1923) e descobriu um cncer no maxilar, o que o levaria a passar por 33 cirurgias, alm de perder o maxilar superior, instalando, com isso, uma

    prtese com a finalidade de separar sua boca.

    Em 1930, Freud, j adoentado, atravs de Anna, sua filha e representante, recebe o prmio Goethe (de literatura), a nica premiao que foi entregue em vida. Alguns anos depois, entre 1933 e 1939, houve um importante avano do antissemitismo na Alemanha.

    Alm disso, em 1933, a terminologia freudiana excluda do vocabulrio da psiquiatria e da psicologia da Alemanha, e a psicanlise passa a ser considerada como uma cincia judaica. Assim, Freud tem seus livros queimados em praa pblica pelos nazistas, em Berlim. Nesta mesma poca, h uma profunda emigrao de psicanalistas alemes para a Argentina, Inglaterra e Estados Unidos.

    Apesar disso, em 1938, em meio ascenso do nazismo, a princesa Marie Bonaparte, graas a sua estima, consegue levar

    Freud, sua esposa e filhos, para Londres. Fugindo do nazismo, passa a morar na Inglaterra onde, no ano seguinte, aos 83 anos,

    morre em funo do cncer desenvolvido h mais de dez anos.

    Para que consigamos compreender sua

    obra, preciso olh-la dentro da sua perspectiva histrica, cultural e cientfica. A cura das enfermidades fsicas e mentais, por meio do dilogo, foi uma inovao desenvolvida

  • 21

    por Freud a partir de suas observaes. At ento, a rea da psicoterapia s contava com

    o apoio da terapia, ou seja, com banhos, sangrias e outros mtodos obsoletos. Dessa forma, sua contribuio, no s para a psicologia ou medicina, como para outras reas

    do conhecimento (sociologia, literatura, antropologia, entre outras) inquestionvel. Suas ideias permitiram uma revoluo de pensamento e o incio da reviso de vrios preconceitos.

    Freud explorou inmeras reas da psique que eram sabidamente encobertas, tanto pela moral como pela filosofia vitorianas. Por contestar tabus culturais, religiosos,

    sociais e cientficos, descobriu novas abordagens para o tratamento da doena mental, com ideias que se tornaram parte da herana comum da cultura ocidental.

    Sigmund Freud, pelo poder de sua obra, pela amplitude e audcia de suas especulaes, revolucionou o pensamento, as vidas e a imaginao de uma Era... Seria difcil encontrar na histria das idias, mesmo na histria da religio, algum cuja influncia fosse to imediata, to vasta e to profunda. (Wollheim, 1980, p. IX)

    Freud escreveu incansavelmente, suas obras completas somam 24 volumes e abrangem ensaios referentes aos aspectos delicados da prtica clnica, alm de uma srie

    de conferncias que esboam toda a teoria sobre questes religiosas e culturais.

  • 22

    1.2 Escolas psicanalticas

    Durante o trajeto da psicanlise, muitos foram os estudiosos que se encontraram e se encantaram com as

    descobertas de Freud. Pelo caminho, muitos formaram alianas e muitos se

    separaram, dando destinos diferentes s suas ideias.

    De toda forma, no deve nos causar

    surpresa o fato de que estudiosos brilhantes discordem tanto. O estudo da conscincia

    humana controverso em sua natureza porque h menos evidncias e mais dedues.

    Ainda que saibamos que, aps o olhar de Freud, vrios foram aqueles que contriburam para a expanso e o desenvolvimento da psicanlise, seria impossvel

    abarcar todas as figuras importantes no presente trabalho. Tal fato, no desmerece nenhum deles, s tem como objetivo permitir-nos um curso mais focado. Para um estudo mais aprofundado sobre as escolas psicanalticas, sugerimos ver algumas ideias de livros expostos na referncia bibliogrfica, presente na apostila do mdulo II.

  • 23

    1.3 Jung e a psicologia analtica

    "S aquilo que somos realmente tem o verdadeiro poder de curar-nos."

    Responsvel por ter desenvolvido importantes conceitos da psicologia como personalidades introvertidas/extrovertidas e inconsciente coletivo/arqutipos, sua anlise

    sobre a natureza humana envolveu investigaes acerca das religies ocidentais, alquimia,

    parapsicologia e mitologia. Assim, dentro de amplo conhecimento cultural e intelectual que possua, Jung fundou a psicologia analtica, uma das linhas de estudo da psicanlise

    que entendia os distrbios mentais como uma forma patolgica de procurar pela

    autorrealizao pessoal e espiritual.

    Um dos alunos mais conhecidos de Freud, Carl Gustav Jung, nasceu em uma aldeia sua, em 1875. Tanto seu pai como vrios parentes prximos eram pastores luteranos e, desta forma, j durante sua infncia, percebe-se o quanto foi tocado profundamente por questes tanto religiosas quanto espirituais. Filho nico, formou-se em medicina pela Universidade da Basilia, em 1900, e apresentou, em 1902, sua tese de psiquiatria sobre Os chamados fenmenos ocultos. Comeou a trabalhar com esquizofrnicos, no hospital psiquitrico Burgholzi, em Zurique, tornando-se grande admirador de Freud. Estava to entusiasmado com as novas perspectivas abertas pela psicanlise, que decidiu conhec-lo pessoalmente, indo a Viena, em 1907.

    De acordo com Taboada (2004), de incio, a identificao foi instantnea. No s pela convergncia de ideias, como a relao interior que ambos acreditavam existir entre os processos associativos alterados e os fenmenos psicopatolgicos, como pela

  • 24

    concepo de que tal acontecimento se dava por um fator inconsciente, com forte carga

    afetiva que exercia influncia sobre a vida psquica e sobre o comportamento dos indivduos. Dessa maneira, ambos percebiam que os fatos retidos no inconsciente

    podiam permanecer ativos por muito tempo e desencadear perturbaes da vida mental.

    Porm, a identidade de pensamentos no foi capaz de esconder diferenas fundamentais, surgindo divergncias de pensamentos. A unio foi ento rompida devido

    discordncia em pontos fundamentais. Jung no aceitava a insistncia de Freud de que as causas da represso dos contedos inconscientes eram sempre originadas devido a

    traumas sexuais no elaborados pela conscincia. Com isso, conforme lembrado por Taboada (2004), ele no pretendia negar a importncia das cargas emocionais ligadas sexualidade nem o poder patognico dos traumas.

    Somente acreditava que, para que o trauma exercesse a sua ao patognica, era preciso que houvesse uma predisposio interior especfica. Alm disso, por sua vez,

    como era de se esperar, Freud no admitia o interesse de Jung pelos fenmenos mitolgicos, espirituais e ocultos: O positivismo cientfico materialista de Freud no perdoou o discpulo que buscou o fundamento criativo da religio. (BYNGTON, 2004, p.7). O rompimento definitivo se deu em 1912, e cada um seguiu caminhos diferentes com ressentimento de ambos os lados.

    Depois de um tempo recolhido, Jung continuou a sua trajetria e desenvolveu o mtodo de associao de palavras, que visava o estudo das associaes do pensamento,

    com a finalidade de buscar o acesso aos fenmenos irracionais da psique. Visando analisar a conexo entre associao e alteraes da ateno, Jung pde perceber que certos eventos, tidos como falhas irrelevantes eram, na verdade, interferncias

    emocionais sobre o padro de resposta. As investigaes sobre o contedo e o aspecto afetivo subjacente levavam a contedos inconscientes com forte carga emocional. (TABOADA, 2004, p. 19)

    Algumas palavras indutoras provocavam reaes perturbadoras capazes de demonstrar a relao com contedos emocionais ocultos. Esses contedos, descobertos

  • 25

    por Jung durante tais experimentos, foram denominados de complexos, definidos como

    um agrupamento de contedo psquico, carregado de afetividade, que estabelece associaes com outros elementos. De tal forma, os complexos so capazes de interferir

    na vida consciente, nos envolvendo em situaes contraditrias, perturbando a memria e arquitetando sonhos, por exemplo.

    Assim, podemos perceber que o bem-estar depende dos complexos que possuem

    maior ou menor autonomia, dependendo da conexo com a totalidade da organizao psquica. Apesar do mal-estar que podem causar, no so considerados elementos

    patolgicos, mas sinal de contedos conflitivos que no foram assimilados. Para que isso ocorra, por sua vez, preciso compreender os conflitos em termos intelectuais e exteriorizar os afetos envolvidos.

    Em 1917, Jung publicou o livro "A Psicologia do Inconsciente" com seus estudos sobre o inconsciente coletivo, tambm conhecido como impessoal ou

    transpessoal. Detentor de recordaes, sentimentos e pensamentos capazes de condicionar os sujeitos, o inconsciente coletivo contm arqutipos, isto , tendncias herdadas e armazenadas que levam o indivduo a se comportar de modo semelhante aos seus ancestrais. Desta forma, seja em momentos individuais ou durante manifestaes de elementos culturais, como o caso das religies e dos mitos, o material psquico universal, e no estabelecido em nossa experincia pessoal, encontra-se no inconsciente

    coletivo. Assim, repleto de material representativo, possui uma forte carga afetiva comum a toda humanidade como, por exemplo, essa sensao universal da existncia de

    Deus.

    De acordo com Alves (2005), Jung concluiu que o inconsciente era mais do que um depsito de desejos reprimidos expressos em sonhos, como entendia Freud. Ainda que no negasse a existncia do inconsciente individual, ele acreditava em um inconsciente mais profundo e no pessoal, comum a todos os homens e culturas, expresso atravs de smbolos que vm tona em sonhos, mitos e expresses artsticas.

    Todos os indivduos compartilham os mesmos smbolos, ainda que, em cada cultura, eles tenham roupagem prpria.

  • 26

    Seguindo em sua teoria, o processo de individuao tido, por ele, como a nossa grande tarefa existencial. Tal processo costuma ser deflagrado espontaneamente no indivduo j adulto, o que o fez ter tanto interesse no estudo desta fase da vida. Para Jung, o que nos acontece na primeira metade da vida uma espcie de preparao para o nosso processo de individuao, a descoberta de nossa identidade profunda, que ocorre somente atravs da realizao de nossos potenciais.

    De acordo com Ramos e Machado (2004), o processo de individuao, que percorre toda a evoluo humana, tanto individual como coletiva, refere-se ao processo de se tornar uno, indivisvel, isto , um ser nico atravs do autoconhecimento. Ainda que tal processo de desenvolvimento da personalidade seja algo idealizado, , ao mesmo tempo, aquilo que motiva o ser humano, desde o seu nascimento velhice, o guiando

    em suas escolhas afetivas e profissionais.

    Paradoxal como pode parecer, este processo resulta da interao do indivduo com o coletivo. Visto que, individuar-se no individualizar-se, impossvel a ocorrncia deste processo fora da interao com o outro. De certo modo, o processo de individuar-se depende dessa fina sintonia com o que podemos chamar de nossa essncia e que, embora dependa da gentica, da educao e do ambiente familiar e cultural, certamente a todos transcende. (RAMOS e MACHADO, 2004, p.42)

  • 27

    J, para Vargas (2004), o termo individuar entendido como tornar-se si mesmo, atingindo os potenciais prprios de cada um. Para o autor, a individuao um processo espontneo de amadurecimento, por meio do qual o indivduo se torna o que

    est destinado a ser, desde o incio.

    Precisamos lembrar que atravs do processo de individuao que entramos em contato com os arqutipos. E, de acordo com Vargas (2004), Jung discriminou em quatro fases este processo: a conscientizao da persona, o confronto com a sombra, o encontro com a anima (para o homem) ou com o animus (para a mulher) e, finalmente, o encontro com o Self (ou si mesmo).

    Antes de entrarmos na explicao de tais termos levantados agora, precisamos esclarecer que, ao investigar as criaes artsticas das antigas civilizaes, Jung percebeu alguns smbolos de arqutipos comuns, mesmo entre culturas distantes no tempo e no espao. Diferentemente dos arqutipos que no tm um contedo definido,

    os smbolos podem ser individuais ou coletivos, ter um significado bvio com uma conotao especfica e s podem ser considerados como tal, quando evoca algo mais do

    que o seu simples significado. O smbolo representa a conexo com a energia arquetpica necessria para a consecuo de feitos que alteram o estado das coisas e podem trazer novas solues para conflitos aparentemente insolveis. (RAMOS e MACHADO, 2004, p. 46)

    Para Jung, o smbolo

    aponta um vnculo entre

    aspectos conscientes e

    inconscientes de um mesmo

    elemento, contendo uma esfera irracional e um enorme poder de mobilizao. Desta forma, a palavra smbolo passou a ser

  • 28

    utilizada com a finalidade de assinalar a unio de opostos, do conhecido e do

    desconhecido. Alm disso, como o que desconhecemos carrega o seu valor afetivo, o smbolo sempre capaz de despertar emoo.

    Ramos e Machado (2004) salientam a importncia de entendermos que Jung usou o conceito de smbolo baseado em sua etiologia: sym (juntar) e balein (em direo a). De tal forma, symbalein significava, na Grcia Antiga, o ato de unir duas metades de uma mesma moeda que fora partida na separao de duas pessoas.

    Quando uma delas desejava enviar uma mensagem importante outra, o mensageiro trazia consigo uma das metades da moeda. Desse modo, o destinatrio da mensagem poderia verificar sua autenticidade ao constatar a perfeita unio das duas metades (uma conhecida, outra incgnita). (RAMOS e MACHADO, 2004, p. 45)

    Agora, voltando s um pouco ao que vimos acima sobre os complexos,

    precisamos completar que eles fazem parte do nosso inconsciente pessoal6, isto , da sombra, e so, de acordo com Ramos e Machado (2004), responsveis, em grande parte, pelos nossos comportamentos mais aberrantes e desadaptativos realidade.

    Temos acesso sombra atravs da jornada do autoconhecimento. Aquilo que escondemos necessrio ser revelado para que seja possvel transcender a tais contedos. Sem limparmos esse contedo impossvel que sejamos livres, pois no pertencer esfera da conscincia no quer dizer que a sombra no influencie as atitudes humanas. Em outras palavras, sem a conscientizao da natureza da sombra, no existe

    processo de individuao.

    6 Vale lembrar, como j ressaltado por Ramos e Machado (2004), o conceito junguiano de inconsciente como fonte

    de criatividade e potencialidade e no somente como depositrio de contedos reprimidos, imagens ou vivncias dolorosas bloqueadas pelo mecanismo do ego. de l que surgem os impulsos que tomam forma na matria, de acordo com o espao e o tempo de uma pessoa.

  • 29

    Porm, a necessidade de nos adaptarmos vida em sociedade, como as

    exigncias culturais, nos leva a desenvolver o que Jung nomeou de persona, uma mscara coletivamente reconhecvel e aceitvel. Nas palavras de Ramos e Machado

    (2004):

    Quando extremamente rgida, a persona pode cindir com os aspectos mais profundos do ser e passa a expressar apenas um aspecto desejado externamente, sem refletir o carter mais ontolgico do si mesmo. Quando integrada, a persona criativa e possibilita a expresso de diferentes facetas do indivduo.(p. 47)

    Outro conceito importante na psicologia analtica, diz respeito a um aspecto do inconsciente observado indiretamente: a anima e o animus, contrapartes sexuais do homem e da mulher que funcionam como elo entre o mundo interno e o ego. Da mesma

    forma como existem aspectos biolgicos masculinos na mulher, igualmente, existem aspectos psicolgicos masculinos correspondentes ao arqutipo do animus. Assim, um e

    outro possuem qualidades humanas que faltam na disposio consciente.

    As projees romnticas tm a funo de estabelecer um confronto com o inconsciente, e sua retirada permite uma expanso do autoconhecimento. Mediante a relao com o sexo oposto podemos conhecer a realidade de nosso potencial, pois tornar-se consciente no um projeto isolado. Embora requeira certa dose de introspeco, essa jornada implica convvio com o outro para se realizar. (RAMOS e MACHADO, 2004, P. 47)

    Foi em 1921, em seu livro "Tipos Psicolgicos", uma de suas obras mais conhecidas, que Jung props que cada indivduo possua uma maneira singular de apreender o mundo. Para caracterizar esta tipologia, dinmica e desenvolvida, ao longo

    da vida, Jung descreveu duas atitudes (extroverso e introverso) e quatro funes da conscincia (pensamento, sentimento, sensao e intuio).

  • 30

    De acordo com Fadiman e Frager (1986), a energia dos introvertidos segue de forma mais natural em direo a seu mundo interno, enquanto que a energia do extrovertido mais focada no mundo externo. Os interesses primrios dos introvertidos

    se concentram em seus prprios pensamentos e sentimentos, ou seja, em seu mundo interior. Por sua vez, os extrovertidos envolvem-se com o mundo externo das pessoas e das coisas e tm uma tendncia mais social, necessitando de proteo para no serem dominados pelo mundo de fora e se alienarem de seus prprios processos internos.

    Vale ressaltar que essas atitudes, ainda que no sejam totalmente cristalizadas, se excluem mutuamente, visto que seria impossvel manter as duas ao mesmo tempo. O ideal que o ser humano tenha uma cota de flexibilidade, podendo adotar ambas, quando apropriado for e, assim, sem responder de uma maneira fixa ao mundo, operando em termos de um equilbrio.

    As quatro funes da conscincia levantadas acima estariam, para Jung,

    dispostas em dois pares de opostos, um racional (pensamento e sentimento) e o outro irracional (sensao e intuio). Cada funo pode ser combinada e experimentada de uma forma introvertida ou extrovertida.

    Para que possamos nos orientar, precisamos de uma funo que nos afirme que algo est aqui (sensao), outra funo que nos demonstre o que (pensamento), uma terceira que declare se isto ou no apropriado (sentimento) e uma quarta que indique de onde isso veio e para onde vai (intuio). (JUNG, 1942, p. 167)

    Para Jung, o pensamento a alternativa de elaborar os julgamentos e de tomar as decises. As pessoas que funcionam com o predomnio de tal funo psquica so chamadas de reflexivas, por serem grandes planejadores que se agarram aos planos e s teorias, ainda que sejam confrontados com evidncias. Por sua vez, o sentimento age como uma funo orientada para o aspecto emocional da experincia, baseada em emoes intensas ainda que negativas. Aqui, a tomada de decises est atrelada aos

  • 31

    julgamentos de valores prprios como certo e errado. De maneira simplificada, podemos dizer que, enquanto o pensamento nos diz o que esse algo, o sentimento nos diz se esse algo agradvel ou no.

    J a sensao, classificada junto com a intuio, uma forma de apreender informaes, ou seja, a percepo dos detalhes e de fatos concretos. Os tipos sensitivos tendem a responder situao vivencial imediata, lidando de forma eficiente

    com todos os tipos de emergncia. Jung via a intuio como uma forma de processar a informao em termos passados, objetivos futuros e processos inconscientes. Assim, as consequncias so mais importantes do que a experincia. Seus tipos nos falam de pessoas que processam as informaes rapidamente, relacionando automaticamente a experincia passada com informaes da experincia imediata. Uma maneira de simplificar o conceito apresentado dizendo que a sensao nos expe que algo existe e a intuio nos diz de onde esse algo vem e pra onde vai.

    Ningum desenvolve igualmente todas as quatro funes. Cada um tem uma funo dominante e uma auxiliar parcialmente desenvolvida. As outras duas funes so, em geral, inconscientes e a eficcia de sua ao bem menor. Quanto mais desenvolvidas e conscientes estiverem as funes dominantes e a auxiliar, mais profundamente sero os seus opostos. (FADIMAN e FRAGNER, 1986, p. 48)

    De acordo com Vargas (2004), ainda que o tipo psicolgico, essencialmente herdado, conserve-se o mesmo ao longo da vida, com o amadurecimento incide uma tendncia maior integrao conscincia das funes menos desenvolvidas. Com isso,

    ocorre uma maior harmonizao da personalidade quanto ao uso das quatro funes e das duas atitudes.

    Em 1928, Jung se interessou pelos trabalhos de Reich e, juntos, passaram a estudar alquimia, comungando a ideia da natureza humana original e criativa, que se

  • 32

    esconde atrs de um homem massificado, que h muito perdeu a conexo com a

    totalidade da vida e com suas razes mais profundas.

    No mesmo ano que lanou o livro Psicologia e Alquimia, Jung sofreu um

    infarto, resolvendo renunciar s atividades docentes. Nesta obra, Jung fala do simbolismo da alquimia como intimamente relacionado com o processo analtico. No estudo deste livro, utilizou uma amostra de sonhos de um paciente, mostrando como os

    smbolos utilizados pelos alquimistas ocorrem na psique, como parte do depsito de imagens mitolgicas utilizadas pelo indivduo em seu estado de sono.

    De acordo com Jung, a terapia um esforo em conjunto do analista e do analisado, que trabalham junto como iguais, em um relacionamento onde o analisado deve ser visto por inteiro, sem procurar consertar partes isoladas de sua psique, alcanando, finalmente, o seu estado de individuao.

    Apesar de tantos conceitos apresentados aqui, foi o esforo de Jung evitar a nfase em uma teoria ou em tcnicas especficas no processo teraputico. Seu medo era

    o de transformar o comportamento do analista em algo mecnico e, assim, prejudicar o contato com o analisado. Jung no queria a existncia de junguianos, objetivando, com tal afirmao, que quem concordasse com a sua psicologia, experimentasse um caminho prprio. De acordo com Vargas (2004):

    Para que cada junguiano, dentro de sua individuao, possa se exercer como analista, ele necessita de uma formao ampla e profunda, que implica a aquisio de conhecimentos tericos, tcnicos e vivenciais. A clnica junguiana, vasta e muito rica, com inmeras aplicaes, pode utilizar-se de diferentes tcnicas, conforme o analista e o cliente. (p. 74)

    Jung morreu aos 86 anos, em 1961, aps ter levado uma vida que marcou a antropologia, a sociologia e a psicologia, alm de campos como a arte, a mitologia e a literatura.

  • 33

    1.4 Wilhelm Reich e a psicologia do corpo

    Do irreal resulta a impotncia; o que no somos capazes de conceber

    no podemos dominar.

    Reich foi o fundador do que poderamos chamar de psicoterapia orientada para o corpo, visto que seu trabalho objetivava a libertao de emoes atravs deste. Enfatizou a necessidade de lidar com os aspectos fsicos do carter, em especial os modelos de

    tenso muscular crnica, tendo como principais contribuies os conceitos de carter e couraa, que se desenvolveriam a partir do conceito freudiano da necessidade do Ego

    em se defender contra foras instintivas.

    Wilhelm Reich7 nasceu, em 1897, na Galcia, mais precisamente em Dobrzynica, uma parte da ustria germano-ucraniana. Filho de fazendeiro judeu de classe mdia, seu pai era uma figura autoritria de forte temperamento e sua me, uma mulher bem atraente que se suicidou quando ele tinha 14 anos, aparentemente depois de

    Reich ter revelado ao seu pai que ela tinha um caso com o seu tutor. Seu pai morreu de tuberculose trs anos mais tarde e seu nico irmo quando Reich tinha 26 anos.

    7 Como ttulo de curiosidade, vale ressaltar que tanto a religio quanto as observncias judaicas no tiveram nenhum

    papel significativo na educao de Reich.

  • 34

    Foi pouco depois da 1 Guerra Mundial que Reich alistou-se no exrcito

    austraco, onde chegou ao posto de tenente e entrou em servio ativo na Itlia. Ao final da guerra, foi para Viena, como um veterano de apenas 21 anos.

    Em 1918, Reich ingressou na escola mdica, na Universidade de Viena, decidindo, quase que instantaneamente, dedicar-se psiquiatria.

    Profundamente interessado na sexualidade humana, em 1919, procurou Freud com a finalidade de organizar um seminrio sobre sexologia na escola que frequentava. Apenas um ano depois, aos 23 anos de idade, Reich comeou a participar das reunies da Sociedade Psicanaltica de Viena como membro efetivo. Assim, a clnica psicanaltica fundada por Freud, em Viena, o teve como primeiro assistente

    clnico. Destinada a pacientes que no podiam pagar pelo tratamento, a demanda era enorme. Tal fato, na percepo de Reich, demonstrava que a neurose era uma doena de

    massa, que precisava ser tratada alm dos limites da psicanlise.

    De acordo com Kignel (2004), em 1921, Reich iniciou a sua prtica psicanaltica, antes mesmo de ter sido analisado, passando a atender os pacientes

    encaminhados por Freud, em um profundo exemplo de admirao pelo seu trabalho.

    Em 1927, Reich procurou fazer anlise com Freud, que se recusou a fazer uma exceo sua poltica de no tratar membros do crculo psicanaltico profundo. Nesta poca, desenvolveu-se um srio conflito entre ambos que comeou, em parte, pela recusa de Freud em analis-lo e, por outro lado, com o aumento das divergncias tericas que resultaram do envolvimento marxista de Reich e sua insistncia de que toda neurose era baseada numa falta de satisfao sexual. (FADIMAN e FRAGNER, 1986, p. 89)

  • 35

    Somado a isso, segundo Cavalcanti e Cavalcanti (2006), enquanto Freud considerava a neurose decorrncia de uma perturbao sexual e sexo precisa ser percebido em um sentido amplo, como o foi para ele , Reich assegurava que a neurose

    era uma perturbao sexual em sentido restrito, isto , uma falha na capacidade de atingir o orgasmo. Por tal motivo, a neurose no s bloqueia a capacidade de entrega como retm a energia em couraas musculares8, impedindo a descarga sexual. Desta forma, para Reich, a gratificao sexual plena, alm da funo profiltica, por evitar o

    desencadeamento do processo neurtico, tambm desempenha uma funo teraputica contra a prpria neurose. Isso porque, para ele, quando se atinge a satisfao orgstica

    descarregada toda a energia do organismo, no restando nada para determinar e/ou manter o sintoma neurtico.

    Assim, segundo Cavalcanti e Cavalcanti (2006), quando esse alvio bloqueado ou insuficiente, segundo Reich, o sistema nervoso autnomo se sobrecarrega de energia e a excitao sexual crescente, no liberada, se exterioriza sob a forma de angstia. Em

    outras palavras, a ausncia do orgasmo, portanto, seria o mecanismo central determinante da angustia e, por conseguinte, da neurose.

    Outra grande divergncia com os conceitos da psicanlise freudiana foi a ideia de Reich, de que a libido uma fora, sobretudo orgnica e mensurvel, e no uma energia psquica. Sua proposta tem, no orgasmo, a viso de que ele capaz de

    descarregar o excesso de energia do organismo. Por tal razo, resumidamente, sua meta teraputica visava a libertao dos bloqueios corporais e a obteno plena da capacidade

    orgsmica.

    Vale ressaltar que a psicoterapia realizada antes de Reich, basicamente, ignorava

    os processos corporais. Foi ele quem passou a pensar no corpo como fonte e resoluo

    dos conflitos. Segundo Cavalcanti e Cavalcanti (2006), inegvel que a psicossomtica j correlacionava as doenas fsicas com os conflitos psquicos, mas em termos de

    8 Tal conceito ser explicado em breve. Por enquanto, nos basta a ideia levantada por Cavalcanti e Cavalcanti (2006),

    que afirmam a couraa muscular como sendo um padro geral de tenso muscular crnica do corpo que funciona como um escudo, retendo energia que no pode ser descarregada.

  • 36

    terapia psicanaltica, as sensaes orgnicas eram apenas trabalhadas verbal e

    mentalmente.

    A psicanlise, de modo geral, ainda no tinha se alertado para o fato de que o organismo vivo se expressa mais claramente pelos movimentos corporais do que por palavras. O corpo fala por meio da linguagem viva da postura, da expresso fisionmica, dos gestos; uma lngua que antecede, precede e transcende a expresso oral. Quando se admite que o fsico e o psquico so apenas nveis de uma mesma realidade, torna-se evidente a possibilidade de operar modificaes psquicas por intermdio da estrutura orgnica. (CAVALCANTI e CAVALCANTI, 2006, p. 20)

    Foi Reich que nos trouxe este olhar para a relao da mente e do corpo. E, de tal

    forma, interessado no papel da sociedade na criao de inibies, fundou uma psicologia orientada para o corpo.

    Assim, por volta de 1950, Reich ocupou-se com experimentos envolvendo acumuladores de energia orgnica: caixas e outras invenes que, segundo ele, armazenam e concentram energia orgnica. Reich descobriu que vrias doenas que resultavam de distrbios do aparelho automtico, podiam ser tratadas com graus variados de sucesso, pelo restabelecimento de um fluxo normal de energia orgnica do indivduo. Isto poderia ser conseguido pela exposio a altas concentraes de energia orgnica nos acumuladores. Estas doenas incluam cncer, angina de peito, asma, hipertenso e epilepsia. (FADIMAN e FRAGNER, 1986, p. 90)

  • 37

    Ele percebeu que era possvel isolar a energia da vida, guardando-a em

    acumuladores conhecidos como caixa de orgone. Ao posicionar os doentes dentro de tais caixas, ele acreditava estar tratando de doenas srias. Tudo isso porque, para ele,

    tal Energia Orgnica, termo derivado a partir do organismo e orgasmo, flui naturalmente por todo o corpo, de cima a baixo, paralela espinha. Livre de massa, essa energia vital e necessria ao funcionamento humano, no possui inrcia ou peso,

    encontra-se presente em qualquer parte, embora em diferentes concentraes. Alm

    disso, por estar em constante movimento, pode ser observada em condies apropriadas, e por governar o organismo total, alm de se expressar nas emoes e nos movimentos

    biofsicos dos rgos, torna-se o centro da atividade criativa.

    Em outro estudo, Reich nomeou o carter como aquilo que composto pelas

    atitudes habituais de uma pessoa e de seu padro consistente de respostas para diversas

    situaes. O conceito inclui, no s modos e valores conscientes, como, tambm, o estilo de

    comportamento e as atitudes fsicas.

    De acordo com Fadiman e Fragner (1986), o carter se forma como uma defesa contra a ansiedade, criada pelos intensos

    sentimentos sexuais da criana e o consequente medo da punio. A primeira defesa

    contra este medo o mecanismo de defesa do ego conhecido por represso, o qual refreia os impulsos sexuais por algum tempo. medida que as defesas do ego se tornam cronicamente ativas e automticas, elas evoluem para traos ou couraa caracterolgica,

    como resultado de todas as foras defensivas repressoras, institudas de forma mais ou menos lgica dentro do prprio ego.

    Alm disso, para ele, cada atitude de carter tem uma atitude fsica

    correspondente, ou seja, o carter do indivduo anunciado no corpo, em termos de rigidez muscular ou couraa muscular. Como no somente de recalque vive o

  • 38

    inconsciente, mas de representaes contidas no organismo como um todo, ele tenta

    ativar o inconsciente atravs da observao, ao e interpretao das expresses no verbais. Para isso, Reich analisava seus pacientes pela avaliao da natureza e da funo

    de seu carter, ao invs de decompor seus sintomas.

    Assim, como o psiquismo e suas fixaes podem ser acessados de diferentes maneiras alm das livres associaes verbais misso do terapeuta reichano no s

    avaliar o que acompanha a histria verbal do seu paciente, mas tambm ler a dinmica da expresso corporal.

    Visto que o indivduo que se encontra encouraado incapaz de expressar as emoes biolgicas primitivas, o maior obstculo presente ao crescimento so as couraas, que tem o papel de reduzir o livre fluxo de energia e a livre expresso de emoes, transformando-se em uma importante amarra, tanto fsica quanto emocional.

    Pensando sobre isso, com a finalidade de liberar emoes e fantasias contidas, Reich comeou a trabalhar de forma direta no relaxamento da couraa muscular, pois,

    para ele, a liberao das emoes, atravs do trabalho com o corpo, produz uma vivncia muito mais intensa do que aquela que desperta o material infantil como forma de trabalho. Para tanto, conforme levantado por Cavalcanti e Cavalcanti (2006), Reich utilizava a respirao profunda como procedimento teraputico a fim de neutralizar tais

    couraas, com a colaborao ativa do paciente que, por sua vez, precisa enfrentar abertamente suas resistncias ou restries que surgem pelo caminho.

    Alm disso, outra tcnica utilizada dizia respeito intensificao da tenso, que fazia os pacientes mais conscientes dela, aumentando a possibilidade de aliviar o que

    estava preso em determinada parte do corpo. Fadiman e Fragner (1986) acrescentaram que, para que seus pacientes se conscientizassem de seus traos neurticos de carter, Reich imitava com frequncia suas caractersticas, gestos ou posturas, fazendo com que repetissem ou exagerassem uma faceta habitual do comportamento.

  • 39

    Reich comeou primeiramente com a aplicao de tcnicas de analise de carter a atitudes fsicas. Ele analisava, em detalhes, a postura de seus pacientes e seus hbitos fsicos, a fim de conscientiz-los de como reprimiam sentimentos vitais em diferentes partes do corpo. Reich fazia os pacientes intensificarem uma tenso particular a fim de se tornarem mais conscientes dela e de eliciar a emoo que havia sido presa naquela parte do corpo. Ele descobriu que s depois que a emoo engarrafada fosse expressa, que a tenso crnica poderia ser abandonada por completo. (FADIMAN e FRAGNER, 1986, p.93)

    Alm de analisar de forma detalhada a postura dos seus pacientes e seus hbitos fsicos para que pudessem ser conscientizados da forma como reprimiam os sentimentos vitais em diferentes partes do corpo, Reich descobriu que as tenses musculares

    crnicas servem para bloquear uma das trs excitaes biolgicas: a excitao sexual, a ansiedade ou a raiva.

    Como vimos, o desenvolvimento de um trao neurtico de carter marcaria a soluo de uma questo que foi reprimida ou transformaria a represso em uma formao relativamente rgida e aceitvel pelo ego. Faz-se importante salientar que

    traos de carter so conceitos, para Reich, diferentes dos sintomas neurticos. Enquanto esses ltimos so experimentados como estranhos ao indivduo (tais como fobias ou medos), os traos de carter so vividos como parte integrante da personalidade. Assim, as defesas de carter, alm de particularmente efetivas, so difceis de serem erradicadas, por estarem bem racionalizadas pelo indivduo e,

    portanto, experimentadas como parte do seu autoconceito.

    Voltando ao conceito da couraa muscular, precisamos salientar a sua organizao em sete bsicos segmentos de armadura, compostos por msculos e rgos

    com funes expressivas relacionadas. Formando uma srie de anis mais ou menos

  • 40

    horizontais e em ngulo reto com a espinha e o torso, os principais segmentos da

    couraa destacados por Fadiman e Fragner (1986), segundo Reich so:

    Olhos: Expressada pela imobilidade da testa e por uma expresso vazia dos olhos, tal couraa dissolvida, abrindo fortemente os olhos, imitando uma

    expresso de espanto para que mobilize as plpebras e a testa e, de tal forma, encorajar a expresso emocional. Os olhos tambm devem movimentar livremente, tanto em crculos como olhando de lado a lado.

    Boca: Inclui os msculos da garganta, parte de trs da cabea e o queixo. O

    maxilar pode ser demasiadamente preso ou frouxo de uma forma que no natural. A ideia de soltar tal couraa passa por encorajar o paciente a imitar o choro, reproduzir sons que mobilizem os lbios e o morder.

    Pescoo: Inclui os msculos profundos do pescoo e a lngua. Como essa couraa a responsvel por segurar a raiva ou o choro, para soltar tal

    seguimento seria preciso berrar, por exemplo.

    Trax: Este segmento contm os msculos longos do trax, os msculos dos ombros e da omoplata, toda a caixa torcica, as mos e os braos. Sua funo inibir o riso, a raiva, o desejo e a tristeza. Como consequncia, a respirao tambm se torna bloqueada. Assim, alm de trabalhar com a respirao, deve-se

    trabalhar a utilizao dos braos e das mos para bater ou rasgar.

    Diafragma: Este segmento abarca o diafragma, o estmago, o plexo solar, os vrios rgos internos e os msculos ao longo das vrtebras torcicas baixas.

    Sua funo inibir a raiva.

    Abdmen: Inclui os msculos abdominais longos e os msculos das costas, relacionada com a inibio do rancor, capaz de produzir instabilidade.

  • 41

    Pelve: Abarca todos os msculos da pelve e membros inferiores. Tal couraa serve para impedir a raiva e o prazer, sendo impossvel de experiment-lo antes de liberar a raiva contida dos msculos plvicos.

    Para Reich, o crescimento psicolgico um processo de dissoluo da nossa

    couraa psicolgica e fsica, o que nos torna seres humanos mais livres e capazes de orgasmos plenos e satisfatrios. Porm, citando Fadiman e Fragner (1986): aprender a equilibrar o autocontrole e a livre expresso permanece como parte de um contnuo processo de crescimento. (p. 104)

    Da mesma forma, dentro da viso de tal linha, o terapeuta reichiano precisa ter

    atingido um aprecivel progresso em seu crescimento pessoal, visto que, para trabalhar psicolgica e fisicamente com um indivduo, ele precisa ter ultrapassado os medos das

    produes ativas de seu corpo, permitindo um livre movimento de energia corprea.

    Vale ressaltar, ainda, que de acordo com o que foi levantado por Fadiman e Fragner (1986), a extensa pesquisa feita por Reich sobre energia orgnica e tpicos relacionados, foi ignorada ou repudiada pela maioria dos cientistas e crticos. Visto que o seu programa de orientao sexual controverso ainda hoje, sabemos que suas ideias foram bastante contestveis para a sua poca. Para termos uma base, por volta de 1933 e

  • 42

    1934, em um perodo de seis meses, Reich havia sido expulso de suas duas principais filiaes profissionais, polticas e sociais, alm de trs pases diferentes.

    A vida de Reich ocorre em paralelo a perseguies, entre outras, do FBI e FDA (Food and Drug Administration9). Esta ltima expediu uma imposio, impedindo a distribuio das caixas de orgone, afirmando que as pretenses a respeito do resultado divulgado por Reich eram de natureza fraudulenta. Reich recusou a interdio, sendo

    acusado de desrespeito e condenado a dois anos de priso, devido ao movida pelo rgo responsvel pelo controle de medicamentos dos Estados Unidos.

    Depois de preso, foi diagnosticado como paranico, precisando ser transferido a uma penitenciria com instalaes para tratamento psiquitrico. Suas obras foram apreendidas e todas as cpias de seus livros e revistas nos EUA foram queimadas, antes de seu julgamento, em praa pblica.

    Suas opinies radicais a respeito da sexualidade resultaram em considerveis equvocos e distores por outros autores, despertando ataques difamatrios e

    infundados. Ainda que sua trajetria nos conte de obras proibidas de serem impressas ou divulgadas e que seu trabalho no deixe de ter falhas experimentais, sua pesquisa nunca foi recusada ou revista com cuidado por qualquer cientfico respeitvel.

    Reich acabou enlouquecendo na priso, onde morreu, em 1957, de um ataque cardaco. Seu corpo recebeu sepultura simples, em seu local de trabalho e moradia.

    9 Agncia governamental americana que lida com o controle das indstrias alimentcias e de medicamentos.

    Em 1931, apresentou um programa em um congresso, em Dusseldorf, com a seguinte proposta: Kignel (2004)

    Distribuio livre de preservativos a todos que no pudessem obt-los atravs de caminhos normais e uma massiva propaganda pra o controle de natalidade;

    Abolio das leis contra o aborto. Providncias para liber-lo em clnicas pblicas, salvaguardas financeiras e medicas para mulheres grvidas e novas mes.

  • 43

    1.5 J. Lacan e sua contribuio psicanlise

    O sintoma a inscrio do simblico no real.

    Abolio de qualquer distino entre casados e no casados. Liberdade para o divrcio; eliminao da prostituio atravs de mudanas econmicas e sexo-econmicas para erradicar suas causas;

    Eliminao de doenas venreas atravs de um abrangente programa de educao sexual;

    Preveno de neuroses e problemas sexuais por meio de educao afirmativa da vida; estudo de princpios pedaggicos sexuais; estabelecimento de clnicas teraputicas.

    Treinamento de mdicos, professores e trabalhadores sociais em todos aspectos relevantes para higiene sexual.

    Tratamento em substituio punio em casos de abuso ou crime sexual; proteo das crianas e dos adolescentes contra seduo de adultos.

  • 44

    Suas ideias de fundo estruturalista abalaram o cenrio psicanaltico da Frana a partir da dcada de 60. Conhecido por no ser um autor de fcil leitura, uma vez que seus textos

    apresentam grande complexidade conceitual, alm de terem sido escritos em estilo elptico,

    seus conceitos demandam uma inverso do pensamento linear e racional, o qual a cultura ocidental est acostumada. Suas percepes vo bem alm dos muros do seu uso clnico,

    constituindo-se em interlocutora de campos como a esttica, a filosofia e a crtica literria.

    Em 1901, nasceu, na Frana, Jacques Marie mile Lacan (1901-1981), psiquiatra e psicanalista francs, responsvel por reformular a obra freudiana, dando-lhe um carter mais filosfico e tirando-lhe o substrato biolgico. Primognito de uma

    prspera famlia de forte influncia catlica e burguesa de origem provinciana, sua famlia paterna era de vinagreiros de Orlans e de slida tradio catlica.

    Por conta desta tradio, Lacan estudou no Colgio Stanislas, uma clebre

    instituio dirigida por jesutas, onde adquiriu uma nobre formao que inclua estudos de alemo, latim, grego, retrica, matemtica e filosofia.

    Mostrou uma impressionante atrao pela psicanlise, em uma poca em que as ideias de Freud estavam ganhando espao dentro do pensamento francs, ainda que os

    preconceitos impedissem a sua disseminao no pas. Alm deste fato, seu interesse desde cedo pela filosofia, o permitiu uma base intelectual que os psicanalistas do seu tempo no possuam.

    Assim, Lacan teve

    contato com a psicanlise atravs do surrealismo, a partir de 1951. Para ele, os ps-freudianos haviam se desviado muito das ideias de Freud. Sua viso era retom-la atravs da lingustica

    de Saussure e da antropologia estrutural de Lvi-Strauss.

  • 45

    Estudou medicina, e, depois de formado, passou a atuar como neurologista e

    psiquiatra. Por volta de 1932, j estava envolvido com a Sociedade de Neurologia, a Sociedade de Psiquiatria e a Sociedade de Sade Mental, estando completamente

    integrado nos crculos de neurologia e psiquiatria. Na sua tese de medicina, escreveu e publicou seu primeiro trabalho sob o ttulo de: A psicose paranica e suas relaes com a personalidade, momento inaugural da carreira deste mdico psiquiatra, praticamente desconsiderado pelo meio da poca.

    Para se ter uma ideia, no mesmo ano da sua publicao, em 1932, Lacan enviou para Freud sua tese, recebendo como resposta apenas um carto postal. Eles nunca chegaram a se encontrar.

    Em 1934, Lacan casa-se com a sua primeira mulher, Marie-Louise Blondin, filha de um homem de destaque na medicina, com quem teve trs filhos: Caroline (1937), Thibault (1939) e Sybille (1940). No mesmo ano, se afiliou a Socit Psychanalytique de Paris (SPP), fundada oito anos antes.

    Lacan era tido como um intelectual brilhante fora dos meios psicanalticos franceses, porm o abalava o fato de no ser reconhecido pela SPP, onde os seus trabalhos no s no eram levados em conta, como o seu anticonformismo produzia profunda irritao.

    Assim, ele prprio se demitiu junto com Daniel Lagache, J. Favez-Boutonier e F. Dolto, fundando, os quatro, a Sociedade Francesa de Psicanlise, que durou 30 anos. Com tal decomposio, surge uma nova Escola onde Lacan passou a fazer uma seleo das demandas.

    Em 1941, Lacan separa-se de Marie-Louise. E, no mesmo ano, nasce Judith Sophie, filha de Lacan com sua 2 mulher, Sylvia Bataille.

    Autor polmico e de importncia singular, Lacan interrompe as sesses conforme sua vontade, recebendo as pessoas sem ao menos marcar hora. Sua tcnica foi

  • 46

    alvo de constantes contestaes, inclusive da comisso de ensino, que exigiu que

    regularizasse tal situao. A lgica de Lacan nos diz que se o inconsciente atemporal, no faz sentido insistir sobre sesses padronizadas.

    Porm, conforme foi levantado por Goldenberg (2004), as sesses curtas no podem ser confundidas com o embasamento terico do tempo lgico. O uso lgico do tempo a tentativa de reduzir a durao da sesso, curta ou longa, ao tempo do

    acontecimento discursivo, cujas consequncias sero elaboradas pelo paciente fora do consultrio enquanto cuida da vida.

    Outra forma de ver Lacan nos foi proposta por Oliveira (2004), que o divide em trs tempos. Inicialmente, uma viso do futuro, da famlia ocidental, somada viso social mais geral do mundo um primeiro Lacan. Em seguida, e a partir de 1945, ocorre o movimento estruturalista de Lacan, descoberto atravs da leitura de Lvi-Strauss, onde se faz possvel a elaborao de uma nova concepo do inconsciente e da

    linguagem. J o 3 Lacan est voltado pesquisa matemtica, onde tentou, atravs de modelos lgicos, encontrar uma soluo que pudesse responder a questo da

    formalizao do inconsciente e da loucura.

    H quem afirme que Lacan sofria de inibies de escrita, visto que o ensino de sua teoria e a transmisso de seus conceitos e pesquisas ocorreram de forma

    primordialmente oral, por meio de seminrios e conferncias, que constituram o ncleo de seu trabalho terico, ainda que a maioria deles transcrita e posteriormente publicada.

    Tal fato parece curioso, se pensarmos que sua vertente foi estudar a lingustica e a lgica para reconfigurar a teoria do inconsciente, em um trabalho no s terico como

    clnico. A linguagem se fez o centro de suas preocupaes, visto que a condio principal de existncia do inconsciente, que s existe no sujeito falante. De acordo com Forbes (2004), para Lacan, palavras no so s palavras. No h nada a ser buscado alm delas e sim nelas.

  • 47

    Segundo Battaglia (2004), Freud afirmou que o ser humano quando nasce um caos resultante de um corpo ainda fragmentado e descontnuo. Se, para Freud tal unidade s pode ser apreendida a partir de um esquema mental, por sua vez, Lacan

    afirma que esse esquema mental no da ordem do natural, mas antecipado atravs de um Outro antes mesmo da capacidade motora da criana de se expressar, permitindo que haja a instalao das experincias subjetivas e cognitivas. Dizendo de outra forma, o Outro traduz a sua leitura pessoal de mundo para a criana e, neste sentido, a

    interpretao obrigatria e repressiva, embora tambm imprescindvel para que a criana se estabelea. Assim, passamos a entender quando Lacan afirma que o

    conhecimento vem daquilo que exterior ao conhecimento que o sujeito tem de si mesmo.

    Parte de ns nos ultrapassa, visto que a linguagem nos fala muito antes que falemos atravs dela. O sujeito entendido pela psicanlise se faz como efeito da interveno do Outro e da incidncia da Lei na relao do Outro com o ser. O objetivo do trabalho analtico no eliminar a diviso do sujeito, mas permitir que ele no responda cegamente ao desejo inconsciente que sempre desejo (de se fazer objeto) do desejo de um Outro com a finalidade de se tornar capaz de se responsabilizar por sua condio desejante, a qual consiste, justamente, na impossibilidade de satisfazer plenamente o desejo e, portanto, na permanente tarefa de realiz-lo na produo simblica. (KEHL, 2004, p. 49)

    Assim, percebe-se que Lacan afirmava a importncia do Eu frente ao inconsciente. De

    acordo com Cesarotto (2004), os humanos s podem existir graas fala. O registro do simblico tem, na linguagem, a expresso mais concentrada, regendo o sujeito do inconsciente: Ele a causa e o efeito da cultura, onde a lei da palavra interdita o incesto e nos torna completamente diferente dos animais (p. 25)

  • 48

    Alm disso, se antes Freud falava de relaes bem estruturadas pela hierarquia,

    para Lacan tais relaes se davam de modo mais horizontal e, assim, as figuras de autoridade perdem o lugar simblico de poder e excelncia. Bom exemplo disso o

    complexo de dipo, uma estrutura que privilegia o eixo vertical das identificaes, basta ver o papel fundamental do pai em tal modelo. Porm, ao fazermos parte de uma era globalizada, quando a horizontalidade mais importante do que a verticalidade anterior, Lacan prope uma anlise alm das significaes consagradas no ideal paterno e de seus

    representantes. a anlise de um sujeito de uma nova era.

    Outra importante releitura se faz entre a proposta do id, ego e superego de Freud. Na teoria lacaniana, o aparelho psquico uma organizao nica formada pelo Real e pelos registros do Imaginrio e do Simblico (RSI), que se representam em torno do furo inicial do objeto a. De acordo com o que foi levantado por Kehl (2004), o Real nos diz sobre aquilo que irrepresentvel, que tentamos permanentemente simbolizar. J, de acordo com Cesarotto (2004), por sua vez, o Real referido pela negativa, isto , seria aquilo que, carecendo de sentido, no pode ser simbolizado, nem integrado imaginariamente.

    Voltamos a Kehl (2004), para buscar sua ideia sobre o Simblico e acharmos que ele o registro em que o trabalho psquico se faz atravs do significante. Podemos dizer que o simblico tem na linguagem a sua forma mais concreta, governando o

    sujeito do inconsciente, assim, ele se faz como o responsvel pelas transformaes do sujeito.

    Ao contrrio do imaginrio, onde se produz a consistncia e a fixidez das representaes, no Simblico a arbitrariedade da relao entre o significante e o significado permite uma mobilidade muito grande ao trabalho representacional do psiquismo. Se no Imaginrio nos parece que as coisas so o que so j que nada se parece mais com a verdade de uma coisa do que sua imagem no Simblico, o significante desliza, muda de sentido, desestabiliza a relao

  • 49

    do falante com a suposta verdade de sua fala. (KEHL, 2004, p. 50)

    Por ltimo, o Imaginrio entendido, pela mesma autora, (2004), como o registro onde as representaes psquicas se apoiam sobre as imagens, ganhando uma consistncia que parece ser a expresso da verdade.

    Algum tempo se passou e Lacan mostrou que os trs registros, essenciais da realidade humana, no podem ser isolados por se apresentarem unidos de modo indissocivel na

    topologia do n Borromeano, onde os elos esto dispostos de forma que, se cortarmos um deles, todos se desligariam simultaneamente. Vale ressaltar que cada uma das trs categorias autnoma e distinta das outras, ainda que todas estejam amarradas de maneira interdependente.

    At o momento, Lacan acreditava que o desejo era a causa das formaes do inconsciente, porm ao colocar o gozo em tal lugar, opera-se uma mudana de vital importncia, visto que o gozo, ponto fundamental para Lacan, entendido como uma

    mistura de prazer e de insatisfao. Expressando a conjuno de Eros e Tanatos, ele que alimenta os sintomas, inibies ou as angstias, sem se completar visto que est sempre extravasando.

  • 50

    Para Forbes (2004), enquanto Freud fez uma Sociedade de analistas, Lacan fez uma Escola de psicanlise. O fato de no haver psicanlise sem psicanalistas, faz da sua formao um problema crucial. Por sua vez, a formao lacaniana complexa e bem

    mais exigente do que a universitria, visto que no padronizada, o que impede o cumprimento de frmulas prontas ou de tarefas pr-estabelecidas.

    Precisamos dizer que Lacan foi o nico intrprete a dar obra de Freud uma

    estrutura filosfica e a tir-la do seu ancoramento biolgico, sem que isso o fizesse cair no espiritualismo. Pelo contrrio, ele criou um sistema de pensamento que reconstruiu

    inteiramente a doutrina e a clnica de Freud, com conceitos e tcnica originais, podendo ser considerado o seguidor que mais contribuiu e deu continuidade sua obra. Suas ideias ampliaram os terrenos da psicanlise, questionando mentalidades e potencializando a cincia do inconsciente.

    De acordo com Oliveira (2004), Lacan renovou no somente a teoria de Freud como o conjunto de prticas e clnica psicanaltica. Independente das crticas, ns precisamos dizer que ele ocupou um lugar fundamental ao dar vida nova obra de

    Freud. Por isso, visto que sua obra est totalmente integrada histria da psicanlise, suas concepes so essenciais para os militantes da rea clnica da psicanlise.

    Na viso de Kehl (2004), Lacan atraiu a psicanlise para a arena dos grandes sistemas de

    pensamento da segunda metade do sculo XX, estendendo o seu alcance ao faz-la dialogar com a

    lingustica e o estruturalismo.

    Por outro lado, os crticos alegam que a obscuridade das suas ideias protege quem fala ou

    escreve do risco de ser contestado. Lacan ocupa um

  • 51

    lugar nico na histria da psicanlise da segunda metade do sculo XX.

    De acordo com Lacan, a psicanlise no uma cincia, uma filosofia ou mesmo

    uma viso particular de mundo. Ela uma prtica comandada pela elaborao da noo do sujeito e esta noo, para Lacan, conduz o sujeito em sua dependncia significante. Nas palavras de Goldenberg (2004): A sesso analtica como uma encenao de teatro, cujo diretor o paciente, e na qual o psicanalista aceita o papel de ator coadjuvante, com o intuito de apreender o roteiro que ambos seguem sem saber. (p. 45)

    Fazia parte do trabalho de Lacan seu especial cuidado para no interferir no discurso do seu paciente. Assim, ele visava que o prprio, analisando, pudesse descobrir as prprias questes, visto