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ANÁL I SE DE CONJUNTURA

E DESAF IOS PARA A DEFESA

DA DEMOCRAC IA

D IÁLOGOS

FEM IN I STAS

S U M Á R I O

Feminismos Plurais

Aprender com os nossos acertos e resistir

Feminismo como resistência ao ultraneoliberalismo e aos fundamentalismos

Neoliberalismo, fundamentalismo religioso e militarismo

Impactos das reformas trabalhista e previdenciária para as mulheres

Participação política das mulheres e presença feminista no Congresso Nacional

Fundamentalismos e Direitos Humanos

Diálogos Feministas

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Apresentação 3

Anne Karolyne

Junéia Martins Batista

Sonia Coelho

Carmen Silva

Adriana Marcolino

Natália Mori

Viviane Hermida

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A P R E S E N T A Ç A O

Analisar o contexto político do Brasil no períodorecente não tem sido um exercício fácil. Aindamais complexo tem sido atuar nesse momentopara defender direitos e a própria democracia.Pensar uma ação política unitária da esquerda e,dentro dela, das feministas para se contrapor aoavanço do neoliberalismo e dosfundamentalismos é um grande desafio e umadas tarefas prioritárias para esse campo. Refletir sobre essas questões foi o objetivo dosegundo debate da série “diálogos feministas”,realizado em São Paulo em fevereiro de 2019 eorganizado pela Fundação Friedrich Ebert emparceria com o SOS Corpo Instituto Feministapara a Democracia. Os diálogos são feitos por umgrupo de ativistas que se propõem a constituirum espaço de reflexão e elaboração feministanessa conjuntura, bem como propiciar ofortalecimento de alianças entre as pessoas eorganizações participantes.

Esta publicação traz uma síntese dos temasabordados nesse debate, que foi organizado emdois momentos: o primeiro realizou uma análiseda conjuntura a partir de uma perspectivafeminista e o segundo indicou temas prioritáriospara uma agenda que se contraponha àsreformas neoliberais e ao avanço doconservadorismo. Para estimular o debate,algumas convidadas apresentaram um insumoinicial, trazendo seus pontos de vista sobre essasquestões, seguido de uma rica troca de opiniões ereflexões com o conjunto das participantes. Aspróximas páginas buscam sistematizar asprincipais reflexões do grupo. Esperamos que esse material possa alimentarnovos debates e inspirar mais ações feministas,coletivas e de esquerda na defesa da democraciae de direitos. Boa leitura!

DIÁLOGOS FEMINISTAS : ANÁLISE DE CONJUNTURA E DESAF IOS PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA

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A conjuntura é tão complexa que às vezes é difícildefinir prioridades. Para compreendermos o paíse o contexto que estamos vivendo é preciso olharpara a história do Brasil e o impacto que isso temna vida das mulheres. É preciso compreender opatriarcado moderno e como, na formação socialdo capitalismo, os homens detêm o poder. Eacrescentar a essa leitura o colonialismo, aescravidão, a invasão dos nossos territórios e asresistências que as populações indígenas enegras fazem até hoje. Isso significa que asopressões têm dimensões de raça, etnia, classe egênero. A análise dessas dimensões é centralpara a compreensão do contexto. As mulheresindígenas e negras têm um lugar específico naestrutura de uma sociedade construída a partir dainvasão dos territórios e que tem reflexos epermanências até hoje. Ao longo da história as mulheres vêm sereafirmando através de lutas importantes, como ofeminismo. Mas por mais que tenhamosavançado, ainda falta muito para chegar ondequeremos. Essa eleição, para todas e todos nós,foi um divisor de águas. As mulheres foram oúnico setor que se organizou de fato, ocupandoas ruas e expondo um candidato machista, no#ELENÃO. A Primavera Feminista, que aconteceuantes, foi uma onda que começou no Sudeste efoi chegando nos outros lugares. Toda vez que asnossas vidas são ameaçadas, há grandesmobilizações. A força das mulheres tem sido umcatalisador. Tem sido uma linha de frente que searticula com várias pautas, como as da populaçãoLGBT. Algumas mulheres que não são do dia a diado processo de organização dos movimentossociais têm ocupado cada vez mais os lugares dereivindicação. O debate que temos feito é que aorganização das mulheres precisa ser para todas 

e precisa chegar nas mulheres como um todo,inclusive nas que não podem estar presentes naconstrução política diária. É importante que issoseja colocado para que não se julgue as que nãoestão organizadas nos movimentos tradicionais.Porque, na verdade, todas nós estamosresistindo. E as lutas que todas nós fazemos, emseus diferentes lugares, é importante. Quero chamar a atenção para alguns fatos combase nas últimas eleições. Embora tenhamosaumentado a nossa bancada feminina, muitasmulheres conservadoras também se elegeram.Nesse processo, a gente percebe tanto acooptação de pautas feministas como ofortalecimento de discursos antifeministas.Apesar de serem candidatas mulheres e do nossoobjetivo ser o de ter mais mulheres na política,são mulheres que se contrapõem às nossas lutashistóricas. Como dialogar com essas mulheres? Épossível? Precisamos pensar sobre isso. A outra questão que quero levantar é sobre aprópria participação política como um todo. Hoje,no PT, nós temos a paridade. Temos algumascandidatas eleitas e mulheres ocupando cargosdentro do partido. Eu sou fruto disso, dasconquistas a partir das discussões de gênero,geração e étnico-raciais que temos feitointernamente. Mas estamos longe de alcançar aparidade como desejamos, ainda precisamosconquistar o poder nos cargos principais, porexemplo. Nos outros partidos é ainda mais grave.As mulheres não sabem como acessar o fundopartidário, só assinam os papéis. O resultadodisso foi o que vimos nas últimas eleições com onúmero de candidaturas laranjas, na tentativa deburlar a cota de 30% eleitoral destinada asmulheres. E esse não é um problema apenas dos 

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F E M I N I S M O S P L U R A I S

Anne KarolyneSecretaria Nacional de Mulheres do PT

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partidos de direita. É um problema dos partidosde centro e de esquerda também. Nas últimas eleições tivemos uma iniciativainteressante no PT, que foi o projeto Elas por Elas.Esse projeto começou a ser pensado antes dadecisão dos 30% nas eleições. E foi a primeira vezque a gente construiu as candidaturas femininasde forma coletiva e horizontal. Conseguimosproporcionar autonomia às mulheres para seorganizarem e garantir assessoria para as suascandidaturas. As que tinham mais condições,recursos e assessoria partilhavam com as outras.Construímos também uma plataforma deformação com pautas feministas para que todaspudessem apresentá-las, se desejassem. Emalguns estados funcionou, em outros não, masavançamos. Queremos seguir construindo ofortalecimento desse processo após o 8 de 

março. O que a gente acredita é que não bastatermos mulheres eleitas ou dirigentes dequalquer jeito, é importante que elas estejamcomprometidas com nossas pautas e lutas. Nessa conjuntura, precisaremos ter muitacapacidade criativa para conseguir resistir. Estoumuito preocupada com esse momento, não sócom os partidos políticos, mas do ponto de vistada nossa sobrevivência mesmo, das nossas vidas.Criamos uma rede interna de solidariedade,porque nós estamos recebendo denúncias,nossas militantes estão sendo perseguidas.Professoras e professores estão com receio deentrar em sala de aula. As liberdadesdemocráticas e o pouco que conquistamos atéaqui estão em risco. É importante que seja cadavez mais real para cada uma e todas nós a ideiade que “você não está só”.

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Ouvir a Anne falando me trouxe um alívio. Saber queestamos formando essas lideranças é algo que dáorgulho. Formar e dar oportunidade às mulheresjovens é uma das coisas que as mulheres estãosabendo fazer melhor do que os homens. Nesse momento, estamos vivendo um avanço daextrema direita no mundo. Mas o que é o mundo? Éa Europa. Nós pensamos na Europa, nos EUA edepois pensamos na nossa região. Muitas vezesesquecemos do que acontece na América do Sul e naAmérica Central. El Salvador elegeu recentemente um'Bolsonaro'. Na Nicarágua as pessoas que se colocamcontra o governo estão fugindo por causa de prisõesarbitrárias. No Equador, o sucessor de Rafael Correaestá proibindo concursos públicos. Sobre aVenezuela, não preciso nem falar. Eu tenho muitascríticas a Nicolás Maduro e à forma como ele conduzseu governo. Mas é preciso olhar também para aforma como a mídia constrói a sua narrativa. Nósprecisamos ter uma mirada sobre isso, porque tudoisso tem a ver com o Brasil. Mauricio Macriprovavelmente não se reelegerá, entãopossivelmente teremos algo mais próximo da socialdemocracia na Argentina. Mas o restante da regiãoestá lidando com esses conflitos. No Brasil, o povo elegeu este governo sabendo o queestava elegendo. Nesse momento, estamos vivendouma ameaça a tudo o que conquistamos de políticaspúblicas nas últimas décadas. Quais são os desafiosque temos pela frente? Primeiro, nós, mulheres daesquerda, temos que aprender com os nossosacertos. Temos que retomar as coisas boas quefizemos. Segundo, precisamos refletir sobre como otrabalho de base se perdeu e sobre como retomá-lo.Eu sou fruto do trabalho de base dos anos 1980. 

Eu tenho muita confiança nas mulheres queelegemos, mas elas sozinhas não dão conta. Como éque a gente traz as pessoas que estão em evidênciapara o nosso lado? Youtubers e instagramers, porexemplo. Nós precisamos e temos condições defazer essa disputa no mundo digital. Outra disputaque precisamos e também temos condições de fazerestá no campo da religiosidade. As pessoas têm fé enós precisamos disputar o “amém”. Nós estamos vivendo em um mundo de inteligênciaartificial. Estamos vivendo a reorganização do mundodo trabalho. Não teremos contratos de empregosformais. Teremos empregos totalmente precáriospara médicos, assistentes sociais, professores. O quevai escapar do mundo digital é a economia docuidado. Vão nascer menos crianças, mas, por outrolado, as pessoas vão ficar mais velhas. Esse é otrabalho que vai sobrar para nós, mulheres. Emboraos homens já estejam entrando também nesseslugares de trabalho, com justificativas como a forçafísica, no caso de cuidadores de idosos. A gente temque disputar com os homens também nos nossosespaços. No mercado de trabalho, nunca chega a vezdas mulheres. É muito difícil educar os meninos paraque tenham compreensão de que não precisamosdividir apenas o espaço do mercado de trabalho. Oshomens também precisam partilhar com a gente otrabalho doméstico e os trabalhos de cuidado nãoremunerados. Enquanto nós ainda temos empregos formais, umaagenda muito importante é a previdência.Precisamos também acompanhar o que a bancadada direita está fazendo. E, enquanto esquerda,precisamos priorizar o 'Lula Livre'.

A P R E N D E R C O M O S N O S S O S A C E R T O S

E S E G U I R R E S I S T I N D O

Junéia Martins BatistaSecretaria Nacional de Mulheres da CUT

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F E M I N I S M O C O M O R E S I S T Ê N C I A A O

N E O L I B E R A L I S M O E A O S F U N D A M E N T A L I S M O S

Sonia CoelhoSempre Viva Organização Feminista

Marcha Mundial de Mulheres

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Discutir o ultraneoliberalismo e o acirramento daacumulação de riqueza no mundo é fulcral nessecontexto. O que é muito complicado para nós,mulheres, é que o neoliberalismo que temos hojeprescinde da democracia. Para nós, mulheres, ademocracia é fundamental. Sabemos que o quetínhamos era uma democracia burguesa, mas,sem democracia nenhuma, a situação é muitomais difícil. Com o golpe, capturaram o Estado doponto de vista econômico e social, o que se somaà discussão sobre neoliberalismo que nósfazemos. O que é a nossa subjetividade hoje? Oneoliberalismo está na dianteira, colocando aideia de que “eu posso sozinha”. “Eu tenho aminha empresa”. “Eu sou empoderada”. E agora“eu posso ter a minha arma” também. “Vou terminha aposentadoria privada”. “Vou fazer asminhas coisas todas sozinha”. Esse é ummomento de disputa muito difícil para aesquerda. Na década de 1990, fizemos a discussão de quehá mulheres que têm acesso às melhorescondições de vida e há mulheres que têm umavida totalmente precarizada. O projeto do PauloGuedes é para menos de 60 milhões dehabitantes. O resto precisa viver na precariedadeabsoluta. Essa é uma discussão importante,porque teremos uma situação em que vamosprecisar olhar com atenção para a precáriacondição de vida das mulheres e discutir comprofundidade a materialidade da desigualdade.Esse é um elemento importante, porque nessatrama neoliberal é como se a desigualdade nãoexistisse. “Eu sou assim porque eu não me 

esforcei, porque eu não trabalhei”. Dá aimpressão que é só uma questão de identidade,não se discute a base material da desigualdade. A aliança entre o fundamentalismo religioso,patriarcal e racista coloca para nós mulheres umcenário muito difícil. A valorização do núcleo dafamília e o controle sobre os nossos corpos enossa sexualidade são alguns dos seuselementos. O Escola sem Partido e as discussõesem torno da ideologia de gênero, que tem comoobjetivo acabar com o pensamento crítico, sãoestratégias muito fundamentais nesse momento. Nós temos alguns desafios como feministas,precisamos articular nossas pautas. Nós semprediscutimos que as nossas pautas, ou seja, asquestões do gênero, não estão dissociadas dequestões como a reforma trabalhista e daprevidência. O que se traz nesse contexto é queessas questões são uma cortina de fumaça. Comonós podemos articular as nossas questões paraque elas sejam vistas como parte de um projetoamplo de esquerda e sejam apoiadas pelo restodo nosso campo? Nesse contexto, o que empurra as mulheres paracasa – empurra entre aspas, porque eles nãopodem prescindir do trabalho precarizado dasmulheres – é que o nosso trabalho, o trabalho decuidado, fica muito mais invisibilizado. Para nós,um campo de análise fundamental é a economiafeminista. Precisamos recuperar e valorizar otrabalho das mulheres, pensando sempre naperspectiva de construir um mundo ou umasociedade em que o centro é a pessoa, é asustentabilidade da vida. 

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Nós vivemos uma derrota grande e não será umaderrota curta, é um negócio a longo prazo e agente vai precisar recuperar o nosso caminho. Ofeminismo é uma ferramenta fundamental. Umfeminismo que organiza o território. A gente temque conquistar esse povo. As igrejas, seja acatólica ou a evangélica, foram reorganizando a  

comunidade e organizando redes de acolhimento.Tem toda uma rede de amparo, as igrejas vão nascasas das mulheres, elas inclusive apoiam asmulheres para fazer aborto. Então é preciso ter ofeminismo capilarizado no território. A gente tema tarefa de trabalhar a partir dos territórios.

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Concordo plenamente com a avaliação de queestamos vivendo um momento específico dosistema capitalista racista patriarcal, que é arecolocação do seu padrão de acumulação seapossando de todos os “bens” comuns, e tambémdos corpos da classe trabalhadora. Esse processoenvolve o descarte de uma parte da populaçãoconsiderada desnecessária, uma vez que é possívelmanter o padrão de acumulação capitalistadescartando dois terços da população. Nós jáestamos vendo isso acontecer com o extermínio dajuventude negra. Dois elementos são importantes para que isso sejapossível: a apropriação da tecnologia no mundo dotrabalho e a guerra ideológica, que tem sido feitatambém com recursos tecnológicos. Essa disputanão é feita apenas através da disseminação deinformações falsas, mas também da captura dasnossas subjetividades. A tecnologia tem otimizadoas formas a partir das quais o sistema capitalistaabsorve os nossos desejos para nos manipular e sefortalecer. Como é possível ampliar a acumulaçãocapitalista descartando pessoas, muitos valoreshumanistas estão em xeque porque eles nãopodem coabitar com esse descarte. O governo quevivemos está inserido nesse contexto global, isso serevela a partir das suas propostas de reduzir ovalor da mão de obra e através dadesregulamentação do mundo do trabalho quealguns tem chamado de “uberização da economia”. Esse governo tem também outros elementosimportantes, como as suas associações com ofundamentalismo religioso e o militarismo. Ele temarticulado o fundamentalismo como se a fé fosse 

um negócio e colocado o militarismo como saídapara a crise. O militarismo é uma ideia forte noBrasil, porque nós vivemos ditaduras militares pormuito tempo. A própria República foi declarada pormilitares. Então somos um país onde grande parteda população avalia que o militarismo é correto.Embora a maioria não entenda a associação comas forças milicianas. O militarismo e o autoritarismo têm dado lugar auma “autorização para matar”. Estamos vivendouma progressiva negação e violação do “outro”.Esses outros são a população negra, as mulheres, apopulação LGBT. O caso da travesti assassinadaque teve seu peito rasgado e seu coraçãosubstituído por uma imagem de santa dá o tom daautorização da crueldade que estamos vivendo. Ofato de treze meninos negros serem assassinadosao mesmo tempo numa favela do Rio de Janeiro eisso não gerar comoção social demonstra queestamos vivendo um momento de crescimento dofascismo social. E esse fascismo social tem sidofortalecido dentro do governo. Todos estes elementos estão presentes nogoverno, mas o governo não é homogêneo. Hávários blocos: a mídia, os militares, o agronegócio,os financistas, as igrejas, Sérgio Moro e a suadisputa com a justiça... Embora eles tenham muitaforça e nós estejamos com baixa capacidade demobilização, é importante percebermos essasdisputas internas. Algumas leituras têm tentadonormalizar o contexto, acreditando que o governovai se desgastar por ele mesmo e apostando naorganização para as próximas eleições. Nãoacredito que ele vai cair por ele mesmo.

N E O L I B E R A L I S M O , F U N D A M E N T A L I S M O

R E L I G I O S O E M I L I T A R I S M O

Carmen SilvaSOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia

Articulação de Mulheres Brasileiras

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O setor sindical tem trabalhado muito, sobretudodiante das reformas trabalhista e previdenciária,mas não tem conseguido mobilizar as pessoas.Desconfio que quem vai conseguir fazer isso pelaprimeira vez nesse novo governo é o movimentofeminista, com o 8 de março. E isso é atéengraçado, porque eles têm a mania de colocar ofeminismo como uma pauta específica. Nós temosconstruído um 8 de março com muitas pautas,cada vez mais abrangente e plural. Nós mulheres,quando saímos com o “Ele não”, antecipamos osegundo turno. O “Ele não” denunciou o caráterfascista de Bolsonaro e potencializou o movimentodo ‘vira voto’. Isso é uma demonstração da nossaforça e da potência da nossa ação política. É importante que todos os setores da esquerdareconheçam o valor dos movimentos sociais.Alguns movimentos são mais próximos dospartidos e alguns são mais autônomos em relação  

aos partidos e em relação aos movimentossindicais. É importante que nós valorizemos todasessas lutas. Na minha perspectiva, é na construçãodessas lutas que a articulação entre essesdiferentes setores vai se dar. E não pode serapenas as lutas de uns, é preciso que estejamosarticulados para fortalecer as lutas de todos. Precisamos estar preparadas para o fato de quepode haver uma eclosão social a qualquermomento, porque no pós junho de 2013 quemganhou foi a direita, porque a esquerda não soubeo que fazer. É preciso potencializar as redes desolidariedade locais e apostar em construirprocessos de formação que articulem as diversasexperiências que tem surgido. Porque asexperiências de resistência acontecemindependente de nós, dos movimentos sociais, e agente tem o desafio de se articular para fazerecoar essas vozes.

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Nós, mulheres, estamos entre os grupos maisimpactados pelas reformas trabalhista e daprevidência. De um modo geral, a ReformaTrabalhista atinge as trabalhadoras e ostrabalhadores mais vulneráveis. Dois eixos dessareforma impactam diretamente na vida dasmulheres: os novos contratos, mais precários, e aflexibilização da jornada de trabalho. As mulheresjá estão numa posição mais precária no mercadode trabalho, principalmente nos contratos parttime. A reforma traz a possibilidade de contratosonde os funcionários trabalham 12 horas e folgam36 horas. Os novos contratos também mudam as regras dasnegociações entre empregadores e empregados.No caso das mulheres, após o período da licençamaternidade, as trabalhadoras podem negociar aredução da sua jornada para amamentação. Emgeral, são os sindicatos que negociam essa reduçãoou a ampliação da licença. Os sindicatos vinhamconseguindo avançar nesses direitos. Com areforma isso passou a ser uma negociaçãoindividual da mulher com o empregador. Os índicesde desemprego das mulheres após a licençamaternidade atualmente são altos. O que se estimaé que a necessidade de negociar esses direitosdiretamente com os empregadores dará lugar amenos liberdade de reivindicação para as mulherese aumento do desemprego. Outra medida prevista pela reforma trabalhista éque, enquanto estiver grávida, a mulher só seráafastada de ambiente de trabalho insalubre se ummédico atestar que existe um grau médio ou altode insalubridade naquele espaço ou naquela  

função. Os médicos que avaliam as condições detrabalho poderão ser contratados pelas própriasempresas. O que facilita decisões que ignorem asaúde das mulheres para beneficiar osempregadores. A Reforma da Previdência, por outro lado, excluium grupo grande de pessoas que hoje acessam aaposentadoria e os benefícios da seguridade social,ao propor regras que dificultam esse acesso. Acapitalização e as mudanças de parâmetros trazemconsequências diretas para as mulheres. Ostrabalhadores mais prejudicados com acapitalização são as mulheres, principalmente asmulheres negras, empregadas domésticas, astrabalhadoras do campo, os professores eprincipalmente as professoras e os trabalhadoresinformais, porque não existe nenhum esforço detrazer esses trabalhadores para o sistema formalou para garantir o acesso aos benefícios. Capitalização significa a transferência do fundopúblico para fundos privados de aposentadoria.Atualmente, a nossa aposentadoria é construídacom investimentos do Estado, dos empregadores edos trabalhadores. Com a Reforma, a nossaaposentadoria será construída unicamente pelosnossos salários, como uma espécie de poupança.Isso tira a responsabilidade do Estado e dosempregadores. Como as mulheres tem um saláriomenor, a poupança vai ser menor e,consequentemente, a aposentadoria também serámenor. As mudanças paramétricas propostas pela reformaaumentam a idade mínima para aposentadoria das 

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P R E V I D E N C I Á R I A P A R A A S M U L H E R E S

Adriana MarcolinoDIEESE

DIÁLOGOS FEMINISTAS : ANÁLISE DE CONJUNTURA E DESAF IOS PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA

mulheres de 60 para 62 anos e o tempo decontribuição de 15 para 20 anos. A reformatambém extingue a possibilidade de se aposentarantes de atingir a idade mínima. Atualmente, asmulheres já têm dificuldade de cumprir osrequisitos e acabam se aposentando com 61,5anos. Muitas mulheres não conseguem seaposentar por idade, porque quando chegam aos60 anos ainda não conseguiram atingir o tempomínimo de contribuição, devido àdescontinuidade da nossa participação nomercado de trabalho. Exatamente porque somosnós que, ao longo da vida, mais vezes paramos detrabalhar por razões como violência, gravidez,abortos, partos, para cuidar de outros familiares,crianças, idosos e deficientes. Ao propor que a idade mínima seja alterada para62 anos, o governo utiliza o argumento de queestaria aumentando apenas seis meses detrabalho nas previsões de aposentadora dasmulheres, já que atualmente as mulheres se  

aposentam com aproximadamente 61,5 anos. Oproblema é que ao aumentar também o tempo decontribuição mínimo das mulheres em cinco anos,na prática a reforma obriga as mulheres atrabalhar 5 anos a mais. Um dos argumentos colocados por esse governoé o de que o sistema é excessivamente generosocom as mulheres no Brasil. Alguns defendem quea idade mínima para aposentadoria das mulheresseja menor em relação aos homens apenas paraas mulheres que tem filhos. Essa é uma propostaque além de reforçar a ideia da maternidadecomo principal função das mulheres nasociedade, ignora que os trabalhos de cuidadonão são apenas ligados à maternidade. Estas reformas desconsideram completamente asdesigualdades entre homens e mulheres e asdesigualdades regionais, criando regras linearesque não levam em conta as diversas desigualda-des que existem na sociedade brasileira.

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Para as trabalhadoras e trabalhadores rurais, areforma da previdência se iniciou bem antes. Em 18de janeiro de 2019, o governo apresentou umamedida provisória ao congresso nacional que temcomo objetivo: penalizar as trabalhadoras etrabalhadores rurais, proteger os grandesdevedores e beneficiar as instituições financeiras.Com a Medida Provisória o governo cria umprograma especial de revisão de benefícios(aposentadorias rurais, auxilio doença, auxilioreclusão, pensão por morte e beneficio deprestação continuada - BPC), para aqueles queforem notificados terão apenas 10 dias paraapresentarem suas defesas. As mulheres rurais sãoas mais impactadas com a MP 871, o acesso aosalário maternidade que antes era de 5 anos,passou a ser de apenas 6 meses.

A medida ainda altera a concessão dos benefícios apartir de janeiro de 2020, que será feitaexclusivamente mediante o cadastro nacional deinformações sociais (que atualmente conta commenos de 5% de agricultoras e agricultorescadastrados). Até lá, para os agricultores acessarema previdência social rural, terão que apresentar umaauto declaração ratificada pela pelas entidadescredenciadas pelo programa nacional de assistênciatécnica e extensão rural, que na prática não darãoconta da demanda do campo, já que não estão emtodos os municípios e não contam com estruturafísica e humana. Somada às questões colocadaspela MP 871, a PEC 06 (proposta de Reforma daPrevidência) é principalmente injusta quando fixaum valor contributivo para as trabalhadoras e ostrabalhadores rurais se aposentarem sem levar emconta as realidades das pessoas do campo.

A R E F O R M A D A P R E V I D Ê N C I A E A P O P U L A Ç A O R U R A L

Edjane Rodrigues| CONTAG

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Dentre as várias interdições do patriarcado, oimpedimento à participação política das mulheresé um dos seus pilares. Quando a gente discute asdiferentes formas de opressão, é importantelembrar que o patriarcado é um sistema milenar emuito anterior ao próprio capitalismo. Esse é umfato que ajuda a explicar porque é tão difícilromper com culturas políticas organizativasmachistas. O tensionamento entre quem seorganiza em partidos e quem se organiza emmovimentos é saudável, não é novo e é importantepara avançarmos nessa discussão. Há alguns anos, nós ativistas de movimentosfeministas fizemos a aposta no diálogo institucio-nal com representantes dos poderes públicos enas políticas participativas. Hoje, quando eu vejoque a Bancada Feminina está apostando em umprojeto de emenda constitucional para a participa-ção das mulheres permanecer no piso já existentede apenas 10%, eu penso que não avançamos emnada. Nós pensávamos nas ações afirmativascomo “remédios”. Acreditávamos que essas açõesdeveriam ser entendidas como pontapés iniciaispara tensionar um modelo totalmente dominadopelos homens, com o intuito de garantir deimediato a presença das mulheres tão alijadas dasinstâncias de poder. A primeira lei de cotas é de1996 (depois de uma revisão da lei de 1994). E,passado esse tempo, os partidos políticos conti-nuam operando na lógica de (mal) tentar garantir omínimo. Aquilo que a gente queria como piso,virou teto. As feministas que fazem e pensam aPolítica já falam em paridade, ou melhor, comogerar condições reais para a paridade na política.Mas como é que se geram condições para

paridade com as condições de trabalhoorganizadas na sociedade da forma como estão,por exemplo, sem divisão das responsabilidadesdomésticas de forma igual, sem políticas públicasde amparo e cuidado de quem não pode se auto-cuidar, como as crianças, pessoas idosas e enfer-mas? O tempo para o exercício da política é escas-so e uma batalha real para as mulheres que assu-mem ainda a maior carga do trabalho reprodutivo. Outro elemento é o nosso próprio sistema político.O nosso sistema está totalmente esvaziado dedemocracia, a gente percebe um fechamento cadavez maior para a inserção da diversidade. Os limi-tes do nosso sistema político estão dados, inclusivepela força do capital. Decisões são tomadas aportas fechadas, se discutem coisas que descum-prem os programas dos próprios partidos. Asbancadas informais (que se organizam por temas,como a da Bala, do Boi e da Bíblia) estão cada vezmais organizadas e vão fazendo discussões etomando decisões para além dos partidos. Estou no esforço de pensar como a gente podeavançar, de repensar a nossa luta de décadas emprol da participação política das mulheres. Hojenós temos várias mulheres eleitas, a bancada femi-nina passou de 10% para 15% do parlamento. Masmuitas dessas mulheres são laranjas e conservado-ras e atuam contra nós. Além da presença dasmulheres nesses espaços, é preciso que hajaconteúdo feminista, para que essa presença nãoseja simplesmente “mais do mesmo”. A gentepercebe uma perpetuação dos modus operandi dapolítica brasileira. São as mesmas famílias. Muitasmulheres estão lá por causa dos seus maridos e 

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F E M I N I S T A N O C O N G R E S S O N A C I O N A L

Natália MoriCFEMEA e Articulação de Mulheres Brasileiras

DIÁLOGOS FEMINISTAS : ANÁLISE DE CONJUNTURA E DESAF IOS PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA

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filhos, assim como boa parte dos homens. Hátambém um grupo novo, que dialoga com osentimento de sequestro da política, com a ideiade que a política não presta. São parlamentaresque chegam sem nenhuma trajetória de vidapolítica prévia, sem entender nada do que é opapel de um parlamentar. Isso é uma coisaimportante para a gente observar nessecontexto, 141 dos parlamentares eleitos nuncativeram experiência parlamentar. Nós achávamos que o contexto estava difícil, mastudo sempre pode piorar. Estamos diante deuma tendência de crescimento doconservadorismo. Nós feministas temosdenunciado isso, a cada eleição nós falamos“essa é a legislatura mais conservadora desde ademocratização”. O que é que a gente podeesperar do parlamento nesse momento? Acontinuação do desmonte, retro-cessos, reformada previdência, ataques cada vez mais diretos àsnossas lutas, aos nossos valores e princípios, aosdireitos humanos, à autonomia dos nossoscorpos. Assim que a pauta fiscal e econômica forresolvida, seremos devastadas.

A bancada de oposição a esse governo será de27% do parlamento. Porém, de tudo que é podresurge esperança e sementes de novas perspecti-vas e olhares. Nas últimas eleições nós tivemos oaumento de uma bancada feminista, antirracista,antiLGBTfóbica, que é fruto de toda a movimenta-ção que nós mulheres temos feito há décadasnesse país. Nós vemos reflexos dessas lutastambém na construção política das mulheresparlamentares, das vereadoras. Existe uma possi-bilidade real de tensionamento e de espaço paranovas formas de exercício do poder, com partici-pação popular real. E não à toa, as mulheresestão à frente desses processos de mandatoscoletivos e em diálogo real com movimentosfeministas e outros movimentos sociais. Poissentimos na pele diariamente a interdição aosnossos modos de sermos e existirmos numasociedade tão desigual entre homens e mulheres,entre pessoas negras e brancas. Tem se discutidouma proposta de se formar uma frente dediálogo com movimentos sociais feministas eantirracistas para ver como o Parlamento podeser um lugar público e real de resistência frente àbarbárie política pela qual estamos passando.

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A ideia de direitos humanos da forma como sedesenhou no pós-guerra está em crisemundialmente. É importante pensar em aspectosestruturais, mas também reconhecer asespecificidades desse momento. Ainda que nuncatenhamos vivenciado concretamente os direitoshumanos de forma plena, ao menos vivíamos osdireitos humanos como utopia. Nós estamosdiante de um desmonte dos direitos humanos deforma substancial, processo que vem junto comuma intensa militarização, conservadorismo eexacerbação do neoliberalismo, que encontraramnos discursos religiosos fundamentalistas umencaixe perfeito. Talvez, como afirma Achille Mbembe, a era dohumanismo esteja mesmo chegando ao fim eestejamos vivendo um momento regido pela lógicada necropolítica, que requer a desumanizaçãobrutal de enormes contingentes da população. É oque temos visto com relação aos povos indígenase a população negra no Brasil, por exemplo. Pensando na nossa agenda, a questão de gênerotem jogado um papel fundamental no Brasil e naAmérica Latina. A retirada de qualquer menção àpopulação LGBT da descrição do Ministério daMulher, da Família e dos Direitos Humanos, ainiciativa “escola sem partido”, a retirada de gênerodos currículos escolares, tudo isso tem ocupadoum lugar central no avanço do conservadorismo. Para tentar desvendar o papel dos discursosreligiosos nas eleições é importante lembrarmosdo processo que nos trouxe até aqui. Desde 2002,o debate religioso passou a ocupar um espaçorelevante nas eleições. A gente viveu um  

crescimento significativo de parlamentares eleitoscom discursos religiosos. Em 2010, os temas doaborto e da criminalização da homofobia foramtrazidos como moeda de troca eleitoral. Asfeministas estavam vendo tudo isso. Nósestávamos falando disso para os partidos decentro-esquerda. Estávamos denunciando asalianças com os partidos ligados a igrejas, masmuitas vezes, isso era visto como um alarde, não sepercebia a gravidade do problema. Hoje nós temos uma ministra que se coloca deforma “terrivelmente cristã”, dentro de um estadolaico. Em 2016, nós vimos Deus e a família seremexaltados durante toda a sessão do golpe. Depois,vimos Temer, em seu primeiro pronunciamentocomo presidente, definir seu governo como “umato religioso”. Chegamos em 2018 com a laicidadedo Estado sendo considerada coisa de esquerdista.Estamos diante de um discurso neoliberal do pontode vista econômico e extremamente conservadordo ponto de vista moral. E, é preciso enfatizar, asfeministas já vinham alertando para isso. É importante lembrar que existem polos deresistência entre cristãos e cristãs, dentro domovimento ecumênico, como o Fórum EcumênicoBrasil, membro da Aliança ACT, e a Frente deEvangélicos pelo Estado de Direito, que têm sepronunciado fortemente contra o uso da fé paramanipulação política e retrocessos nos direitos daschamadas minorias. Além disso, temos debatesimportantes sendo feitos por teólogas feministas,que podem inclusive iluminar o nosso diálogo comesses segmentos.

F U N D A M E N T A L I S M O S E D I R E I T O S H U M A N O S

Viviane HermidaCESE

DIÁLOGOS FEMINISTAS : ANÁLISE DE CONJUNTURA E DESAF IOS PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA

16DIÁLOGOS FEMINISTAS : ANÁLISE DE CONJUNTURA E DESAF IOS PARA A DEFESA DA DEMOCRACIA

D I Á L O G O S F E M I N I S T A S

Quais foram os nossos erros quepossibilitaram que Bolsonaro tenha conseguidocapturar o discurso antissistema? A maioria dosapoiadores de Trump realmente acreditam quesão vítimas nesse momento. Quando a classe

dominante se coloca no lugar de vítima, é a horada retomada do poder. É isso que estão fazendo

agora. Estamos diante de uma encruzilhadadifícil, porque o autoritarismo religioso

e o autoritarismo político andamde mãos dadas e estão

muito fortes.

O GOVERNO ATUAL

Durante muitos anos a esquerda nãoesteve acompanhando o avanço dos debatesda direita. E em muitos momentos não deu a

importância devida. Demos muito pouca aten-ção a Olavo de Carvalho, demoramos muito

tempo para discutir o Instituto Millenium.Agora estamos diante do desafio de com-

preender como esses discursos sefortaleceram e se espalharam pelo

Brasil para traçar estratégiasde combate.

FORTALECIMENTO DA DIREITA

O contexto é muito desalentador,mas é preciso olhar para o que

estamos vivendo a partir de umaperspectiva histórica. Compreender

os caminhos que nos trouxeramaté aqui para construiro momento que virá.

PACIÊNCIAHISTÓRICA

O momento tem exigido muitasreelaborações. A reflexão e o

pensamento crítico são ferramentas importantes. O

pensamento analítico e acriatividade caminham

lado a lado.

RESISTÊNCIA ANALÍTICA

Precisamos rearticular e acreditar naslutas que construímos até aqui. A Marchadas Margaridas terá um papel importante

nesse ano. A conjuntura é desafiadora, é umcenário parecido com o de 2000 ou até pior.

Mas as ações da Marcha estão sendorealizadas nos municípios. E a aposta éde que será um momento importante

de expressão da nossa força edos nossos ideais.

MARCHADAS MARGARIDAS

Os tópicos apresentados a seguir são uma sistematização das reflexões feitas durantea discussão coletiva com as participantes do debate “Análise de conjuntura desde umaperspectiva feminista: desafios para a defesa da democracia”. Esta síntesenão pretende esgotar todas as questões que foram abordadas e nãorepresenta necessariamente a opinião de todas as participantes.

A grande batalha desse momento é umabatalha de ideias e narrativas. Nossos

discursos e valores têm sido apropriados peladireita. Isso é muito mais do que uma questãosemântica ou hermenêutica, porque existe umprojeto de poder por traz dessa apropriação.

Essa é uma das questões mais complexasque estão colocadas nesse contexto.

Como dialogar com as pessoas quandotodos os nossos conceitos são

capturados pelo outrolado?

DISPUTA DE NARRATIVAS

Nas últimas décadas tem sido discutidoque os movimentos sociais se distanciaram das

suas bases. Essa afirmação pode significar muitascoisas. O que nos interessa aqui é a ideia de que, nos

últimos anos, deixamos de nos comunicar com apopulação de forma mais ampla. As nossas organizações

e os nossos movimentos têm capilaridade, mas existeuma outra rede por onde circulam ideias e debates naqual não estamos conseguindo penetrar. Mudanças na

nossa linguagem e na nossa comunicação não sãosuficientes, é preciso repensar de forma maisprofunda o diálogo que construímos com as

pessoas e a nossa capacidade de escutae de encantamento do projeto

que acreditamos.

CAPILARIZAÇÃO

A direita tem se comunicado muito bem. É mais fácil para eles, porque eles não

tensionam o senso comum. Para disputar essahegemonia, precisamos pensar como a gente secomunica. Podemos explorar melhor as diversas

ferramentas que existem na internet, como vídeos,cards, e repensar a nossa linguagem. Mas a questãonão é só a internet, precisamos pensar novas formas

de nos comunicarmos com as pessoas. O diálogocorpo a corpo no segundo turno das eleições

nos mostrou que também é precisorepensar formas de comunicação

para além da internet.

COMUNICAÇÃO

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No projeto de governo que está em curso, há um dualismo em relação à democracia. Por um lado, é um projeto que ameaça profundamente os princí-

pios democráticos. Por outro, eles não parecem quererdescartar a ideia de democracia de forma tão simples.

Toda essa necessidade de aparente legalidade em tornodo golpe de 2016 e da prisão de Lula revelam isso. A direita tem utilizado bastante o termo democracia nas

redes sociais e tem disputado também o seu signifi-cado. A democracia é um tema importante e precisamos trabalhá-lo melhor, porque seu

significado parece estar sendo esvaziado.

DEMOCRACIA

A autocrítica ea reflexão têm sido feitas em

diferentes espaços, de diferentesformas. Nos partidos de esquerda, por

exemplo, essas são discussões que estãosendo feitas internamente. O bombardeiomidiático ao qual estes partidos têm sido

expostos nos últimos anos, principalmente oPT, é um elemento a ser avaliado, porque

qualquer autocrítica pública nesse momento pode servir de substância

para ainda mais difamação ecriminalização por parte dos

meios de comunicação.

Tem-se discutido bastante que esse éum momento de reavaliação. Mas quem está

fazendo a autocrítica? Todos os setores daesquerda estão fazendo a autocrítica? Os homensestão repensando suas formas de atuar politica-

mente e as suas relações com as mulheres naconstrução política? De que forma essas discussõestêm sido feitas dentro dos partidos? As dificuldades

com as quais lidamos ano após anos na cons-trução do 8 de março revelam divergências políticas de difícil resolução, que parecem

refletir uma indisposição para reavaliarmétodos e estratégias por

parte de algunssetores.

AUTOCRÍTICA

Os movimentos feministas têm elaborado ou-tras formas de ocupação das ruas, que estão, em

certa medida, relacionadas à própria construção po-lítica feminista. A horizontalidade proposta por esses

movimentos tem potencializado o envolvimento de gru-pos que dialogam com expressões artísticas das mais di-versas, vindas das periferias, das universidades, de círcu-los de artistas mais consolidados, de artistas de rua, en-

tre outras. Não foram carros de som ou formas deorganização mais tradicionais que engajaram e

levaram multidões de mulheres às ruas nos últimos anos. Foi exatamente essa

potência criativa e plural.

ESTÉTICA FEMINISTA

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O diálogo exige escuta. O momento tem nos mostradoa urgência de repensarmos não

apenas como falamos, mas o quefalamos. Estar abertas ao diálogo significa também abertura para repensar

nossas certezas.

DIÁLOGO

As discussões em torno da noção de “bases” revelamalgumas diferenças que estão colocadas na organizaçãopolítica de diferentes setores da esquerda. O movimentofeminista faz muitas críticas à utilização do termo, porquea gente pensa que se existe uma base, existe também um

topo. Por outro lado, existem elementos da cultura dosmovimentos sindicais que são muito diferentes dos modosorganizacionais dos movimentos feministas, por exemplo.

Nós precisamos fazer discussões sobre culturasorganizacionais diferentes, para que possamos

refletir também sobre estratégias diferentes.A mesma expressão muitas vezes pode ter

significados distintos dependendode onde se atua

politicamente.

LINGUAGEME PROJETOS POLÍTICOS

A crítica ao “retorno às bases” está ligada àcrítica de noções hierarquizadas de organização

política comum nas esquerdas. Está implícita nessasperspectivas a ideia de que é preciso levar a

conscientização às massas. A relação se dá de formahierárquica porque se dita muito mais do que seouve, o que muitas vezes dá lugar a um autorita-

rismo fundamentado na ideia de que as ou os líderes políticos sabem o que é melhor para a

população. Progressivamente, isso vaidistanciando as lideranças

das bases.

AUTORITARISMODE ESQUERDA

Os movimentos sociais são muito diversos entre si. Essa é uma questão fundamental, que precisa ser reco-

nhecida e discutida. Alguns movimentos estiveram muitopróximos dos partidos de esquerda que ocuparam o poder nas últimas décadas. Outros estiveram mais distantes, mas,

durante o processo do golpe e nas últimas eleições, se viramdiante da necessidade de eclipsar as suas críticas e defender os avanços que o projeto do PT promoveu. Parte do processo

que nós vivemos hoje está ligado à nossa falta de entendi-mento sobre o que significou e o que significa ocupar o

poder. Estamos diante de uma crise profunda, que exigeuma reflexão sobre o sentido do poder. Caso contrário,

corremos o risco de acreditar que está tudo bem,que precisamos apenas reorganizar as bases

e seguir com o projeto queestava sendo construído.

A ESQUERDA E O PODER

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Um caminho para o combate ao autoritarismo presente na esquerda é a

construção de espaços reflexivos ede autorreflexão. Porque ninguémvai fazer autocrítica por decreto. É preciso que a gente construaespaços de formação política

não doutrinária.

Estamos vivendo um momento de muita polarização. Há um discurso anticomunista sendo largamente disseminado, temos visto

também a perseguição das nossas lideranças,movimentos e estratégias de boicote financeiro

às nossas organizações. A esquerda não estáconseguindo reagir a isso. Quais são os

caminhos que temos buscado paracombater o governo? Que meios

temos criado de mobilizaras pessoas?

CRISE E REORGANIZAÇÃO DA LUTA

Uma das dimensões da crise que afeta o campo da esquerda está relacionada aos boicotes financeiros que

têm sido feitos às nossas organizações e movimentos. Queestratégias temos construído para garantir a sustentabilidadedas nossas lutas? Os movimentos sindicais estão quebrados

financeiramente. Mas como nos organizávamos antes do impostosindical? Na década de 1980 não dependíamos de recursos do

Estado, porque não havia espaço para diálogo. Precisamos pensarsobre as possibilidades que nós temos, aprender com o que fizemos no passado, aprender com as experiências de outros

lugares e nos esforçarmos para criar novas possibilidades. A criatividade é um elemento necessário. Como podemos

nos organizar em cooperativas? As discussões daeconomia solidária podem ser úteis nesse

momento. Como podemos ter recursospróprios sem precisar do

capital?

SUSTENTABILIDADE FINANCEIRA DAS NOSSAS LUTAS

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Temos passado por muitas derrotas. Dilmafoi deposta, Lula foi preso, não alcançamos a

vitória de Haddad. Ver Bolsonaro todo dia é umabomba. Não se trata apenas de pensar na

desesperança que bate nas mulheres que não estãoorganizadas, mas também em como tudo isso bate

na gente do movimento. São muitas histórias dedepressão, adoecimento, abandono dos espaçosde militância. Nós precisamos sobreviver e nós

precisamos nos fortalecer. As redes desolidariedade e cuidado entre

ativistas são fundamentais nesse momento.

AUTOCUIDADO E CUIDADO

O desafio de repensara nossa comunicação não é

apenas de desenvolver estratégiaspara ganhar adesão ao nosso projeto.Não se trata apenas de comunicar o

nosso projeto, mas também de dialogarcom as pessoas para repensar esse

projeto. Quando não há abertura parao diálogo, as pessoas deixam de

se enxergar nos nossosdiscursos.

A resistência de alguns setores da esquerdade encarar a gravidade dos ataques misóginos elgbtfóbicos das forças conservadoras revela os

desafios que temos dentro do nosso próprio campopara demonstrar que as questões morais precisam ser

discutidas como parte do projeto de esquerda queestamos construindo. Tem-se afirmado que estes temas

estão sendo acionados como uma cortina de fumaça para desviar a atenção das decisões econômicas que têm sido encaminhadas. Não podemos dar menos relevância

a esses ataques ou dissociá-los de outras discussões, porque são retrocessos com o mesmograu de seriedade e fazem parte do

mesmo projeto político ao qual precisamos resistir.

“CORTINA DE FUMAÇA”

O contexto que estamos vivendo atingea todas e todos nós, porque é um processo de

retirada de direitos que têm impactos em toda apopulação. Mas não podemos perder de vista que

alguns segmentos da sociedade se encontram maisvulneráveis do que outros, como as populaçõesindígenas e negras, as trabalhadoras e os traba-lhadores rurais, a população lgbt e as mulheres.

A Reforma da Previdência, por exemplo, começou pelos trabalhadores rurais e,dentro desse segmento, as mulheres

são as mais afetadas.

LINHA DE FRENTE

Temos visto que, na ofensiva da direita, uma dascoisas que está em causa é a dignidade das pessoas.A dignidades das mulheres, da população negra, da

população LGBT e da parcela mais pobre na população. É muito grave um episódio como o da mulher trans assassinada

recentemente. São graves também os diversos casos demulheres espancadas que têm suas fotos espalhadas na

internet. Quando as pessoas escrevem, nesses casos, que estasmulheres mereceram, é a sua própria humanidade que está

sendo questionada. A incorporação do extermínio como política estado a partir da defesa da legitimidade de “matar

sob forte emoção”, incluída no pacote anti-crime, é outrademonstração da negação da humanidade de uma

parte da população. Qual é a justiça socialpossível sem que haja o reconhecimento

da humanidade de todase todos?

LUTA PELA DIGNIDADE

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O feminismo é uma ferramenta fundamentalpara a luta de classes e o contexto que estamos

vivendo nos desafia a demonstrar a relação entre as diferentes formas de opressão que estão colocadas no

mundo, para que possamos articular nossas resistências.Podemos pensar que a pauta geral tem muito a ver com a

nossa pauta hoje, pelo fato das questões que afetam a vidasdas mulheres estarem em evidência no projeto do atual go-verno. Ou, por outro lado, podemos pensar que as pautas

feministas sempre estiveram articuladas às discussõesmais amplas sobre o projeto de sociedade pelo quallutamos no campo da esquerda. O desafio é articular

a luta feminista às lutas dos outros setores daesquerda, de uma forma tal que as lutas de

uns não sejam colocadas acima daluta de outros.

ARTICULAÇÃO POLÍTICA

Para os feminismos, a construção da unidade política passa pela qualificação

do debate sobre gênero e sexualidade e dasua conexão às múltiplas agendas e pautas

do campo da esquerda. A unidade não é umaimposição, ela precisa ser uma unidade nadiversidade. Temos dito: Ninguém solta a

mão de ninguém. Mas, antes disso,precisamos pegar nas mãos umas das outras. Precisamos

nos conectar.

UNIDADE POLÍTICA

O desafio de construção da unidade

não está colocado apenas osfeminismos, mas para todo o

campo da esquerda. Por exemplo,como fazer com que a luta dapopulação do campo não seja

apenas um projeto para aspessoas do campo, mas

um projeto para a sociedade?

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Quando nos propomos a pensar sobre democracia, é importante que na construção das nossas alianças haja espaço para discordâncias eenfrentamentos. Estruturas de organização muito

hierárquicas dificultam as disputas internasnecessárias para avançarmos politicamente. A

democracia interna das instituições de esquerdaestá altamente comprometida. Esse é um

dos elementos que tem gerado oesfacelamento do nosso campo.

DEMOCRACIA EORGANIZAÇÃO POLÍTICA

O patriarcado ocidental impôs o espaço privado como um espaço feminino, as responsabilidades sobre

esse espaço deveriam caber exclusivamente às mulheres.O público, em contrapartida, é visto por esse sistema como

um espaço masculino. Mas sabemos que as mulheres sempre estiveram ocupando as ruas, principalmente as mulheres traba-lhadoras, as mulheres negras. Essa experiência histórica de ser

responsável pelo privado e ter também que organizar a vida nosespaços públicos trouxe um acúmulo de reflexões importantes

para uma perspectiva feminista da política. Nós sabemosarticular o público e o privado e incorporamos isso na forma

como nos organizamos politicamente. É importante quea gente busque meios de ampliar isso para fazer com

que mulheres que se organizam em diferentesespaços, sejam eles feministas ou não,

sintam e apliquem essasreflexões.

O PÚBLICO E O PRIVADO

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Os espaços feministas lidam de forma diferente com as divergências. Há mais liberdade para divergir sem que você seja vista como inimiga pelas suas posições. Os movi-

mentos feministas têm desenvolvidos estratégias interessantesde trabalho em rede, articulando diferentes lutas e perspectivaspolíticas. Isso não significa que resolvemos todos os nossos pro-

blemas. Nós também esbarramos nas formas patriarcais de “fazer política”. Em alguns contextos enfrentamos disputas des-

gastantes, sobretudo quando elas envolvem forças políticasque estão para além do campo feminista. A questão que se

coloca, nesse momento, é como potencializar uma pers-pectiva feminista de construção de redes e alianças.

Temos muitas experiências exitosas e algumaspistas sobre caminhos para

fortalecer essas redes.

OS FEMINISMOS E O DIÁLOGO ENTRE AS DIFERENÇAS

É uma publicação que sistematiza o debate de mesmo título realizado em 22/02/2019, em São Paulo.Diálogos feministas: análise de conjuntura e desafios para a defesa da democracia

ParticipantesAdriana Marcolino|Assessoria Dieese, São PauloAnne Karolyne|Secretaria Nacional de Mulheres do PT, São PauloBibiana Serpa|Agora Juntas e Universidade Livre Feminista, Rio de JaneiroCarmen Silva|SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, RecifeDarlene Testa|Assessoria Secretaria de Mulheres da CUT, São PauloDeise Recoaro|Pesquisadora e militante da AMB, São PauloDione Silva|Instituto de Juventude Contemporânea/IJC, FortalezaEdjane Rodrigues|Secretária de Políticas Sociais na Contag, Maceió/BrasíliaJunéia Batista|Secretária Nacional de Mulheres da CUT, São PauloLiliane Brum|Rede de Desenvolvimento Humano - Redeh, Rio de JaneiroLuciana de Melo - Luba|Secretária de Mulheres do SINDSEP-SP, São PauloMaria Luiza da Costa|Marcha Mundial de MulheresNatalia Mori|Centro Feminista de Estudos e Assessoria - CFEMEA, BrasíliaPriscilla Brito|Universidade Livre Feminista, pesquisadora em gênero, Internet e feminismo, Rio de JaneiroSonia Coelho|Sempre viva organização feminista - SOF, São PauloSophia Branco|Fórum de Mulheres de Pernambuco/AMB e Universidade Livre Feminista, RecifeViviane Hermida|CESE, SalvadorWaldeli Melleiro|Fundação Friedrich Ebert, São Paulo

Fundação Friedrich Ebert e SOS Corpo Instituto Feminista para a DemocraciaOrganização

EdiçãoCarmen Silva, Sophia Branco e Waldeli Melleiro

Sistematização, textos e projeto gráficoSophia Branco

São Paulo, abril de 2019

As opiniões expressas nesta publicação não necessariamente refletem as da Friedrich Ebert Stiftung (FES) ou doSOS Corpo Instituto Feminista para Democracia.