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QUADRO CLÍNICO DO LOBO ORBITÁRIO COM CRISES CEREBELARES:
CISTICERCOSE RACEMOSA DO ÂNGULO PONTO-CEREBELAR
A N Í B A L SILVEIRA *
M Á R I O ROBORTELLA * *
W A L T E R E . M A F F E I * * *
Intenta a presente observação clínica evidenciar uma vez mais a cor
relação entre distúrbios funcionais e alterações orgânicas do cérebro, o que
somente pode ser compreendido- à luz da patogenia dos sintomas.
O paciente em apreço foi apresentado primeiramente em conferência
clínica de caráter prático, na Enfermaria do 4.° Pavilhão Masculino (março
de 1945) a fim de mostrar-se o fundamento do diagnóstico diferencial entre
pitiatismo e alterações cerebrais objetivas. Posteriormente — junho de
1945 — ainda com finalidade idêntica e como demonstração prática, porém
j á em reunião do Centro de Estudos Franco da Rocha, dois dos atuais au
tores ( A . S . e M . R. ) discutiram em pormenores o feitio do quadro clínico
em causa, procurando estabelecer os dados localizatórios e a patogenia das
manifestações neuropsiquiátricas 1 8 . A observação clínica que a seguir apre
sentamos corresponde à redação de todos os dados neuropsiquiátricos coli
gidos até a época da última comunicação há pouco mencionada e revistos
quanto à evolução até a data em que se deu o óbito.
O B S E R V A Ç Ã O
G.P .M. , brasi le i ro, v i ú v o , com 43 anos de idade ao ser admi t ido no Hospi ta l de
Juqueri, a 12-1-1945 ( R . G . 29.759), fa lec ido a 14-12-1945.SúmwZa do exame procedido
no ato de entrada ( D r . D a r c y U c h o a ) : M á s condições físicas. R e f e r e que t ive ra
"conges tão" e depois f icou com fraqueza nas pernas ( s i c ) . A l é m disso "é mui to
a t rapa lhado da cabeça", "ouvindo mui ta conversa" . Desor ientação quanto ao lugar
e ao tempo.
Súmula dos dados neuropsiquiátricos em março de 19lf5 ****-. o paciente informa
cor re tamente o própr io nome, a idade, a data de admissão. Desor ientado quanto
a o loca l e pa rc ia lmente quanto ao m o t i v o da in ternação, bem como em re lação
a o próprio estado mórb ido . R e f e r e com sat isfatória precisão datas, fatos e ind iv í -
T raba lho rea l izado no Hospi ta l de Juqueri e apresentado e m reunião do Centro
de Estudos "Franco da R o c h a " a 22-11-1946. N a época os autores e x e r c i a m no
Hosp i ta l de Juqueri os seguintes ca rgos : * C h e f e de Clínica (1ª Secção M a s c u l i n a ) ;
** Ps iquia t ra-Chefe (4º P a v i l h ã o M a s c u l i n o ) ; *** Chefe do Labo ra tó r io de A n a t o m i a
P a t o l ó g i c a .
**** A observação psiquiátr ica por extenso, a que correspondem êste ex t r a to e
os seguintes, acha-se no A r q u i v o Cl ínico do Hosp i ta l de Juqueri .
duos re lacionados com a própria pessoa. O t rabalho menta l se processa com acentuada lent idão, porém não se ev idenc iam distúrbios intrínsecos. A atenção, mesmo voluntár ia , é pouco f i x á v e l . N e g a distúrbios senso-perceptivos e não os denota pelo compor tamento . Expressão ve rba l sem transtornos apreciáveis . Ind i fe ren te à própria si tuação. At i tudes por vezes teatrais , aparentemente pi t iá t icas . Exame neuro
lógico — Dados de t ipo subje t ivo inacessíveis pela incapacidade de cooperação do paciente; dados ob je t ivos e m par te estáveis , e m par te v a r i á v e i s de sessão para sessão. A m i m i a constante; "mas t igação forçada" . Tendência à imobi l idade e m g e ral . R e f l e x o s profundos presentes e s imétr icos. Hiper ton ia v a r i á v e l , aparentemente despertada pela a tenção durante as manobras de e x a m e . Marcha e m pequenos passos com incerteza v a r i á v e l , especia lmente quando o paciente é l a rgado pelos aux i l iares que o sustinham. Camptocormia , que se e x a g e r a nas mesmas condições. Queda por perda lenta do equi l íbr io e e m direção v a r i á v e l . Crises tônicas do t ipo da r ig idez por descerebração. Condições somáticas — Com re lação aos aparelhos de v ida v e g e t a t i v a nada se aprecia a tua lmen te que ex i j a menção especial . A s condições re la t ivas ao estado ge ra l t odav ia são precárias, não só pela ev idente impossibil idade de p rove r à própria a l imentação c o m o poss ive lmente t a m b é m por desvio intr ínseco nos processos de nutr ição. Exames subsidiários — Exame neuroftalmo-
lógico só possível com re lação aos fundos oculares que se ap resen tavam normais . Exame do liqüido cefalorraquidiano: punção suboccipital , paciente sentado; 0,20 g de proteínas por l i t ro ; reações de Pandy, de Weichbrod t e de Nonne , l evemen te pos i t ivas ; 5/3 células por m m 3 ; 575 hemácias por m m 3 ; reação do benjo im colo ida l 01210.12210.00000.0; reação de Wassermann pos i t iva a par t i r de 0,1 cc. Reações so-
rológicas para lues (Wassermann , K a h n e E a g l e ) nega t ivas .
Diagnóstico clínico provisório — A concomitância de a l te rações neurológicas permanentes mas pouco precisas, a té cer to ponto mascaradas por outras de t ipo v a r i á v e l e de transtornos mentais que — considerados superf ic ia lmente — poder iam interpretar-se como pit iát icos, induzir ia a pensar e m conversão histérica. T o d a v i a o próprio fe i t io desse complexo s in tomát ico l evou ao d iagnóst ico c l ín ico e topográ fico que adiante discut i remos e que resumíramos desde o pr incípio na seguinte rubr ica; Psicose por lesão cerebral, com provável comprometimento orgânico da região
frontal orbitaria ou da via fronto-ponto-cerebelar.
Quanto à e t io log ia , a hipótese era de processo preferentemente ex t racerebra l , poss ive lmente por hipertensão in t racraniana v a r i á v e l . A ar ter iosclerose fo ra considerada como pra t icamente afastada dev ido ao e x a m e neu ro f t a lmo lóg ico ; en t re tan to não se poderia exc lu i r a possibil idade de processos vasculares e mesmo tumorais , o que e x i g i a novas ver i f icações paracl ín icas . N o v o exame de liqüido cefalorraqui-
diano, em ma io de 1945, r e v e l o u : 0,28 g de proteínas por l i t ro ; reações de Pandy , de We ichb rod t e de N o n n e l evemen te posi t ivas ; 7,13 g de c loretos por l i t ro ; 11 células por m m 3 ; reação do benjoim colo ida l 12221.22221.00000.0; reação de T a k a t a - A r a posi t iva, de t ipo f loculante ; reação de Wasse rmann prejudicada.
Evolução das manifestações clínicas até junho de 19^5 * — O e x a m e neurológ ico r eve lou desde o início fácies amímica , de resto com m o v i m e n t o s de mas t igação continuos, e camptocormia . O equi l íbr io es tava prejudicado; a a t i tude ereta só era possível sob o apoio de ambos os lados; quando se suprimia esse apoio, o paciente caía pesadamente. Sentado, caía para trás, não conseguindo v o l t a r à posição p r imi t iva espontaneamente . Marcha em pequenos passos, r ecurvado para diante. Mai s tarde, mesmo apoiado tinha dif iculdade e m esboçar a locomoção (d i sbas i a ) . F reqüen temente era acomet ido por crises súbitas de hiper tonia difusa com perda momentânea da consciência, porém sem convulsões, semelhantes às crises de r ig idez por descerebração (ce rebe l la r fits, de J ackson) . Surg i ram t remores , especialmente de t ipo intencional . Os re f lexos profundos t ê m estado presentes e normais . N ã o
* Quando da apresentação do paciente e m reunião do Centro de Estudos "Franco da R o c h a " 18.
cooperava , em gera l , para a pesquisa de déf ic i t p i ramidal , porém nas poucas vezes
e m que o estado psíquico a permit iu não se ev idenc ia ram distúrbios desse t ipo nem
sinais outros de a l t e ração cerebelar . u l t i m a m e n t e v inha apresentando re l axamento
dos esfincteres. Com re lação aos nervos cranianos hav ia a assinalar estrabismo
interno à direi ta e paral is ia facial direi ta de t ipo central e v a r i á v e l , porém não
permanente . A n o t a m o s t a m b é m espasmo facial durante uma crise hipertónica.
Quanto ao estado psíquico, no início apresentava ge ra lmen te conservada a capaci
dade de or ientação . Ident i f icava-se , o r ien tava-se em re lação à data de in ternação;
ent re tanto e r r ava comple tamente ao tentar reconhecer o local . Conse rvava parcia l
mente a noção de doença. Repe t i a com certa precisão a lgumas datas e a lguns
fatos, denotando sat isfatória capacidade de evocação . N ã o hav ia distúrbios apreciá
ve is de percepção. Com referência ao t rabalho mental , fazia-se este excess ivamente
moroso, porém não se a p u r a v a m deficiências a lóg icas do pensamento na acepção
de Kle i s t , nem idéias del irantes. A expressão verba l , isenta de defei tos neurológicos
e de desordens peculiares, era lenta, parca e sem mímica facial complementar . A
in ic ia t iva para a ação prát ica e a a fe t iv idade e s t avam grandemente compromet idas .
Quando das manobras para os exames neurológicos e durante as ver i f icações psi
quiátr icas os t ranstornos neurológicos se acen tuavam e x a g e r a d a m e n t e : intensifica
vam-se g randemente os tremores, o paciente assumia at i tudes ex t r avagan te s dev ido
ã hipertonia dos membros inferiores e à camptocormia . E r a m freqüentes as quedas
em r i tmo lento, como que intencionais. Esta par t icular idade daria a impressão de
pi t ia t ismo ao examinador menos avisado.
Evolução ulterior — A s condições neurológicas e mentais foram piorando gra
da t ivamente , embora por surtos. Assim, decorridos 5 meses a part i r da pr imeira
observação, isto é, em agos to de 1945, o que dominava o quadro psiquiátr ico e r am
a obnubi lação, quanto às funções intelectuais, e a espurcícia. P e l o aspecto neuro
lóg ico e s t avam mais acentuados a impossibi l idade de locomoção , a a t ax ia do tronco,
o r e l axamen to dos esfincteres.
N o v a ve r i f i cação neuro-of ta lmológ ica nada revelou, ainda esta vez , que fosse
d igno de menção. O e x a m e de liquor, repet ido então (10-10-1945), t rouxe esclare
cimentos decisivos quanto ã e t i o log i a : punção suboccipital , doente dei tado; pressão
inicial 23,5; f inal 6 ( m a n ó m e t r o de C l a u d e ) ; 0,50 g de proteínas por l i t ro ; 7,20 g
de cloretos por l i t ro ; reações de Pandy, de We ichb rod t e de Nonne posi t ivas; reação
do benjoim coloidal 12222.22222.10000.0; reação de T a k a t a - A r a posi t iva, t ipo f locu
lante; 17,4 células por m m ' ; reação de Wasse rmann nega t i va com 1 cc; reação de
Steinfeld, posi t iva; reação para cisticercose, posi t iva.
Diagnóstico clínico-localizatório — A hipótese diagnost ica inicial pôde assim ser conf i rmada e mesmo precisada: pelos dados liquóricos, quanto ao fa tor causal; pelo decurso dos sintomas, com referência ao s ignif icado topist ico, isto é, em relação ao sistema encefá l ico a t ingido .
E m pr imeiro lugar , os sintomas neuropsiquiátr icos seriam de o r i gem ex t racor -t ical , mesmo ex t racerebra l , pois as manifes tações psíquicas se h a v i a m most rado v a r iáveis e m intensidade e até em ampli tude, no decorrer da observação . A l é m disso os sintomas mentais., como lent idão da fala e períodos de obnubilação, ind icavam o compromet imen to t ransi tór io do lobo frontal . Este dado era corroborado pela ocorrência de distúrbios neurológicos va r i áve i s mas progress ivos : incapacidade para manter a a t i tude ereta — donde camptocormia — e disbasia. P o r out ro lado, o fato de não have r incidido apraxia da marcha do t ipo da a tax ia frontal de Brun most r ava que a convex idade frontal , ao n íve l do pólo, estaria indene: os distúrbios te r iam então o r i g e m ao n íve l da zona orbi tar ia . O mesmo raciocínio pa togenét ico se ap l i cava aos distúrbios cerebelares : a constância e a va r i ação em intensidade induziam a exc lu i r a hipótese de lesão in t racor t ica l ou int ra-encefál ica t a m b é m a este n íve l . Te r í amos a considerar pois um processo não destrut ivo, loca l izado de modo a perturbar por compressão a d inâmica das v ias fronto-ponto-cerebelares , espec i f icamente as l igações cerebelo-orbi tár ias . A apatia, a falência de es t ímulo para
contactuar com o ambiente , o desinteresse v a r i á v e l no plano ins t in t ivo — compa
ráve l ao do histérico ante a dramat ic idade do próprio quadro mórbido — traduzi
r i am a fa lência do componente orb i tá r io deste sistema.
A posi t iv idade da reação de f ixação de complemento para cisticercos, no líquor, v e i o e lucidar a natureza p r o v á v e l de tal processo, a qual suspei táramos fosse tu-moral , conforme o diagnóst ico antes t ranscr i to . Tornou-se patente a exis tência de cisticercose em contac to com o sistema l iquór ico : as vesículas es tar iam ag indo como massa tumora l . Mesmo que houvesse vesículas intra-encefál icas , não seriam estas a causa dos distúrbios neuropsíquicos. E para produzi rem efei tos tão amplos como os mencionados no quadro cl ínico, d e v e r i a m assestar-se ao n íve l da porção mais concentrada do sistema trans-hemisfér ico re fe r ido : ao n íve l do cerebelo e da ponte.
Estas considerações quanto ao d inamismo pa togênico l evaram-nos pois ao d iagnóstico loca l i za tó r io então e x a r a d o : quadro neuropsiquiátrico orbitário, como reper
cussão de alterações ponto-cerebelares; cisticercose provável.
Dados anátomo-patológicos — O doente faleceu em 14 de dezembro de 1945, em caquexia por disenteria amebiana. O e x a m e aná tomo-pa to lóg ico ( W . E . M . ) mostrou, ao n íve l do ângulo ponto-cerebelar direi to , um cacho de vesículas de cist icerco, p i r i formes e destituídas de scólex, por tanto com os caracteres do cist icerco race-moso ( f i g . 1 ) . A lep tomeninge es tava assaz espessada na base do encéfa lo , princ ipa lmente em torno da protuberância, do pedúnculo cerebral e da cisterna quias-mát ica , eng lobando os nervos cranianos; esse espessamento se cont inuava pela fenda de Bichat e pela base dos lobos temporais . A s artérias da base do encéfa lo estav a m l ige i ramente espessadas. N o s hemisfér ios cerebrais, ao n íve l da convexidade , nada de anormal . Os cortes frontais do cérebro t ambém nada mos t ra ram digno de nota. Encéfa lo pesando 1.250 g. N o s demais órgãos no tavam-se apenas a t rof ia e anemia; e no f ígado hav ia t ambém esteatose. O intestino grosso apresentava em toda a extensão ulcerações da mucosa, de contornos arredondados e de t amanho var iado , caracteres estes da disenteria amebiana . Cortes do cérebro, incluídos em celoidina e corados pelos métodos de Nissl e de Wei l nada r e v e l a r a m digno de menção.
C O M E N T Á R I O S *
A presente observação anátomo-clínica parece-nos ilustrativa sob vários
aspectos. Antes de mais nada, evidencia que é por vêzes possível chegar ao
diagnóstico topográfico das lesões encefálicas tomando por base apenas os
sintomas neuropsíquicos. Isto exige somente que se apreciem tais sintomas
à luz da dinâmica cerebral e não pelo prisma da mera descrição. N o caso
em apreço, a análise clínica sob êsse cri tério fêz prever que o quadro orbi
tario devia depender de processo à distância, c e r ebe l a r 1 8 . Para a eventua
lidade neurocirúrgica, é nossa opinião, semelhante cri tério se torna funda
mental : va le pelo menos para orientar e joeirar os recursos paraclínicos 16c.
Outra peculiaridade que merece comentada, a de que sintomas variá
veis em intensidade e inconstantes — em aparência pitiáticos — podem re
sultar de alterações estruturais. O raciocínio médico, entretanto, leva ha
bitualmente a tomar a ambas essas condições como antagônicas. E m rela
ção ao paciente isto sucedeu por mais de uma vez. Quando inicialmente
apresentado em reunião clínica semanal do 4.° Pavi lhão — justamente para
frisar êste particular de semiótica — foi considerado como histérico por
ilustre psiquiatra do Distr i to Federal que visitava o Hospi ta l : a direção in
constante nas quedas, a lentidão e a aparente cautela ao cair, as reações
emocionais que exageravam os distúrbios neurológicos ante o nosso exame,
levaram aquele colega a discordar do diagnóstico de lesão do encéfalo. N o
vamente a hipótese de histeria — pitiatismo a nosso ver, se fôsse o caso —
foi aventada em reunião clínica do Centro de E s t u d o s 1 8 por alguns colegas
que na ocasião discordavam de nossa interpretação quanto à patogênese. A
topografia e a natureza especial do processo etiológico explicam essa con
corrência entre manifestações funcionais e alterações orgânicas, a qual nada
tem de fortuita.
Acentuamos alguns dados neurológicos e psíquicos implicados na diagno
se diferencial porque expr imem a participação de duas zonas corticais bá
sicas no funcionamento do encéfalo: a cerebelar e a frontal orbitaria. Os
mediadores fisiológicos dessa cooperação fundamental, as vias fronto-ponto-
cerebelar e cerebelo-hipotalâmico-orbitária, permitem compreender a pato
gênese do quadro m e n t a l 1 4 , a razão de ser da sucessão dos sintomas fron
tais secundários 1 6 b e, principalmente, identificar os distúrbios frontais de re
percussão 1 9 . N a ocorrência clínica resumida na precedente observação psi
quiátrica, o conjunto da sintomatologia neuropsíquica e a importância va
r iável dos distúrbios permit i ram deduzir que estava perturbado, em sentido
eferente, o sistema cerebelo-orbitário.
Efet ivamente, na opinião de um dos autores ( A . S . ) , é preciso distinguir
naquele grupo de ligações trans-hemisféricas não só o t ipo filogenético mas
também a direção dos impulsos. O primeiro conjunto de vias cerebelo-fron¬
tais agora mencionado seria neo-encef álico, o segundo páleo-encefálico: aquêle,
* Nota da presente publicação — Atemo-nos à reconst i tuição do comentá r io e à c i tação b ib l iográf ica de 1947, sem atual izá- los .
preposto de preferência ao tono muscular de ação e a funções psíquicas de
relação; êste, antes ao tono muscular de atitude e a funções dizentes com
a vida vegetat iva. E m ambos os casos a direção eferente, ou cerebelífuga,
dos impulsos corresponderia ao estímulo da função correspondente; e a di
reção oposta traduziria o mister de regência. Assim, haverá falência da
função correspondente se a lesão se assestar na zona de estímulo e fôr de
natureza inibitória ou destrutiva; ocorrerá ao contrário a liberação se ela
fôr irri tativa ou se estiver ao nível das áreas de regência. O efeito consi
derado na primeira hipótese poderá, entretanto, deixar de manifestar-se, no
caso de al teração crônica e principalmente estabelecida na fase inicial de
desenvolvimento: é que nessa eventualidade a zona de regência poderá com
pensar o distúrbio quanto aos aspectos menos diferenciados, então com sa
crifício, em geral, das atribuições mais dependentes que lhe são próprias.
Exemplif icam esta última modalidade clínica os dados de um paciente de
60 anos, que apresentava grave atrofia neocerebelar, presumivelmente desde
os 6 meses de idade: nenhum distúrbio cerebelar, mas deficiência mental
profunda. A conclusão foi que os lobos frontais, normais, haviam sido des
viados da atribuição própria "pelo trabalho de suplencia para a função neu
rológica do cerebelo, deficiente" 1 6 b (pág. 203 e fig. 19) .
Do quadro neurológico — N a fenomenologia neurológica há pouco aqui
descrita e em parte comentada ressaltam a incapacidade de equilíbrio, quer
estático e segmentar — camptocormia — quer para a locomoção, bem como
crises de hipertonia muscular de tipo cerebelar. A astasia-abasia constitui
ocorrência freqüente em processos da convexidade frontal, dos quais não
raro pode constituir o único indício, como o ilustra um caso clínico de A l o y ¬
sio de C a s t r o 4 (págs. 22 e 23) . E m relação ao paciente da atual observa
ção anátomo-clínica, entretanto, a predominância de manifestações cerebe-
lares e ao mesmo tempo a ausência da apraxia da marcha descrita por
B r u n 3 , bem como, principalmente, da apraxia de ação coordenada de K l e i s t 1 3 a ,
excluíam o comprometimento do pólo frontal. Assim, dentre as síndromes
topográficas frontais tão exaustivamente estudadas por Delmas-Marsa le t 5 ,
estaria em causa apenas a de t ipo profundo, da qual aliás participam os
distúrbios abásico-astáticos. Semelhante síndrome porém não significa, para
nós, apenas lesão direta da profundidade do lobo frontal — eventualidade
em que surgiriam sintomas estranhos ao caso em a p r ê ç o 1 9 (quadro I ) —
mas também envolvimento das vias que estabelecem ligação com o cere
b e l o 1 9 (pág. 30 e quadro I V ) . A hipótese de alterações cerebelares predo
minantes e a suspeita de etiologia tumoral para os distúrbios parecem em
desacôrdo com o fato de alterações dos fundos oculares estarem ausentes,
em mais de um exame; entretanto, a estase papilar depende, como é corre
tamente aceito, de hidrocefalia interna; e esta pode faltar mesmo em pro
cessos propriamente neoplásticos da fossa posterior, até em fase adiantada 1 0 .
Aos distúrbios neurológicos denotados no caso do paciente correspon
dem, tanto em sentido funcional quanto sob o ângulo topístico, a zona orbi
taria do lobo frontal e de outro lado regiões neocerebelar e paleocerebelar,
com predominância desta última. Ass im o mostram as desordens motoras
ou, de modo mais geral, neurológicas, as quais têm absorvido quase total
mente as verificações dos neurofisiologistas que se dedicam ao estudo do
cerebelo. T a m b é m o evidenciam os transtornos psíquicos, a que logo nos
referiremos, habitualmente esquecidos naquelas pesquisas.
E m relação ao dinamismo de regência, inconteste, que o cerebelo exerce
sôbre a motilidade, há que distinguir previamente a diversa participação do
paleocerebelo e do neocerebelo. Conforme acentua F u l t o n 7 , ao discutir mi¬
nudentemente as verificações neurofisiológicas sobre o cerebelo (págs. 463-
490) : "Seria de prever que as projeções piramidais, mediante as colaterais
da ponte, ter iam ligações primariamente com o neocerebelo; e que as pro
jeções extrapiramidais corticais, que influem sôbre o mecanismo postural,
seriam associadas primariamente ao lobo anterior e aos dinamismos paleo¬
cerebelares" (pág. 482). Daí advém, como é reconhecido clinicamente e
mesmo pela experimentação, que as alterações dos hemisférios cerebelares
se traduzam pela chamada ataxia do tronco e que as do verme cerebelar
acarretem abasia e perda paroxística do tono muscular estático. N o caso
do paciente em aprêço, ambos os tipos de distúrbio est iveram presentes e
entre êles a abasia foi dominante e progressiva. Êste particular clínico se
explica pela situação mediana da massa principal de cisticercos. Fazemos
notar ainda que não se apuraram sintomas característicos da falência neo¬
cerebelar: nem tremores ao iniciar movimento, nem dismetria, nem desor
dens adiadococinéticas.
P o r outro lado, quanto à região cerebral interessada na síndrome, era
a base do lobo frontal e não o pólo nem a convexidade que estava em
causa. Efet ivamente, tanto a convexidade quanto a zona orbitária da re
gião frontal recebem influxos neocerebelares. Os distúrbios motores acen
tuados — com hiperatividade e inquietação — observados por Bianchi nas
mutilações da convexidade f ron ta l 2 , foram também verificados na experi
mentação de Kennard e c o l . 1 1 . 1 2 em macacos: hiperatividade e desigual am
plitude da locomoção em cada membro, donde a "marcha c i r cu la r " 1 1 . En
tretanto, Ruch e Shenkin demonstraram que tal ocorria devido a ser atin
gida nas experiências a área 13, e que esta de per si explicava o distúrbio 1 5 .
Ademais , tanto clinicamente quanto na experimentação, as lesões da cor-
ticalidade ou do pólo se expr imem por desordens psíquicas não apresentadas
pelo paciente. Assim pudemos desde o início formular a hipótese localiza¬
tório-funcional de síndrome orbitaria.
A o contrário, os transtornos psíquicos em causa desde o início, uns
progressivos, outros transitórios, confirmavam a diagnose topística. Insis
timos nestes sintomas — intelectuais e conativos — porque ainda não se
encontram satisfatoriamente caracterizados na literatura psiquiátrica. T ê m
entretanto sido assinalados com relativa freqüência em observações anátomo-
clínicas.
Distúrbios psíquicos — Mesmo em relação à convexidade do lobo frontal
os neurofisiologistas permaneceram durante muito tempo sob o domínio da
falsa concepção de "zona muda". Entretanto, já no fim do século passado
Bianchi pôde desfazer êsse mito, utilizando as próprias experiências e re
vendo cs dados obtidos por outrem. A capacidade de distinguir entre ali
mentos e materiais não comestíveis — função portanto tipicamente intelec
tual — desaparecia nos animais cujas áreas frontais eram m u t i l a d a s 2 : ao
mesmo tempo que a inquietação motora, no plano neurológico, era neces
sário considerar aquêle transtorno psíquico. Deficiência perfeitamente com
parável a essa foi anotada em macacos, na experimentação de Kennard e
Ectors, já r e f e r i d a 1 1 . E ainda, de modo mais sistemático, nas metódicas
pesquisas de Jacobsen 9 sôbre o papel dos lobos frontais no aprendizado
dos primatas. Com maior razão ainda, pela ausência de satisfatória dou
trina prévia, 03 autores em geral deixaram de reconhecer funções psíquicas
à região orbitaria do lobo frontal : e isso apesar de se registrarem na li te
ratura observações clínico-anatômicas concludentes. Foi sòmente Kleis t quem
demonstrou de modo claro e preciso a existência de síndrome peculiar ao
cérebro orbitario. N a arrojada carta funcional do c é r e b r o 1 3 a , 1 6 a , . b estabelece
o conjunto de efeitos psíquicos peculiar à zona cíngulo-orbitária. Tais atri
butos, que arrolamos como conativos e instintivos 1 6 a , . 1 9 , devem ser distingui
dos daqueles que constituem apanágio exclusivo da corticalidade: o pensa
mento ativo 1 3 c , a iniciativa, a coordenação intelectual da ação 1 3 a , . 1 6 a , c .
Coube a Leonora Wel t , segundo precisa K l e i s t 1 3 a , descrever em pri
meira mão alterações do caráter como conseqüência de lesões da região
frontal orbitaria. Caída em descrédito, essa importante verificação clínico-
patológica de 1888 foi reabilitada e reavaliada pelo insigne mestre de Frank
furt am Main, que também lhe retificou a configuração clínica e lhe im
primiu fundamento doutrinário, baseado nas próprias observações pessoa i s 1 3 a .
Mostrou Kleis t que nesses quadros, como na mória de Jastrowitz, há que
distinguir sintomas pròpriamente orbitários e sintomas da corticalidade 1 6 a , b ,
ou do tronco cerebral. Estariam em causa, nas lesões da região orbitária,
fenômenos de déficit funcional da "personalidade", na acepção de Kleist .
Tais distúrbios, quando na fase inicial, não são reconhecidos como tais nem
pela família nem pelo médico, em geral, segundo o acentua Pe t e r D u u s 6
muito judiciosamente: daí as contradições da literatura relativa ao lobo or
bitario. Reunindo 30 casos de tumores da região orbitaria, dos quais 5 de
observação pessoal, Duus divide o quadro psiquiátrico orbitario em duas
fases: inicialmente, alterações do caráter, marcadas e bem definidas, mas
em regra interpretadas como "esquisitices" pelos circunstantes, durante me
ses e mesmo anos; no estágio final, carência de iniciativa que progressiva
mente atinge até o grau de espurcícia; como transição entre ambas podem
ocorrer a lucinações 6 (págs. 645-646).
Para compreender o porque desta sintomatologia e de que forma trans
tornos neuropsíquicos tão diversos podem indicar a mesma sede cerebral, é
necessário considerar, ainda que rapidamente, as concepções de Kleis t sobre
as funções do lobo orbitario ou, melhor, da região cíngulo-orbitária. A í se
situam, segundo Kleist , as estruturas prepostas às várias manifestações da
personalidade ( Ichsphäre) . Esta abrange três n í v e i s 1 3 b : afetividade e ins-
tintividade (Gefühls- und T r i e b - I c h ) , em plano inferior; personalidade so¬
mática ( K ö r p e r - I c h ) , com as sensações internas, como estágio médio; em
plano superior, o do caráter, a 'personalidade subjetiva, a sociabilidade
(Selbst-, Gemeinschafts-Ich), a religiosidade ( W e l t - und religiöses I c h ) . E m
outro p a s s o 1 3 a (pág. 1250) acentua que todos êsses domínios da personali
dade compreendem um lado sensorial e um lado motor : no primeiro caso
e nessa ordem em que os enumeramos, sentimentos, momentos instintivos,
sensações corporais, intenções (Gesinnungen); no outro, movimentos reati
vos, expressivos, instintivos ( T r i e b - ) e desempenhos voluntários (Wil lensbe
tä t igungen) . E com relação ao aspecto localizatório 1 3 a : "O córtex do cín¬
gulo e do cérebro orbitario contêm, portanto, provavelmente um campo sen
sorial dos estímulos interoceptivos com tonalidade afetiva. A l é m disso aí
vão ter impressões olfativas oriundas da região olfativa, as quais poderiam
cooperar nessas regiões com as sensações orais, anais, genitais e viscerais
para a alimentação, a excreção e a procura sexual" (pág. 1165; grifos do
or ig ina l ) .
Esta participação da região orbitaria na regência da vida vegetat iva
e mesmo de atividades instintivas foi depois demonstrada experimentalmente
por Bailey e S w e e t 1 e por T . C. Ruch e H . A . Shenk in 1 5 , independentemente.
E mesmo o aspecto mais subjetivo das manifestações instintivas, o emocio
nal, pôde ser evidenciado em primatas nos quais Fulton e I n g r a h a m 8 pro
duziram lesões limitadas à região orbitária.
Sob o aspecto clínico, as observações que se têm dedicado especifica
mente a êste gênero de perturbações neuropsiquiátricas revelam dados con
cordantes em relação aos distúrbios de or igem orbitaria. Kleist , que lhes
dedica o estudo a um tempo mais minucioso, mais completo e mais siste
mático, arrola nesta rubrica — "Os distúrbios das funções da personalidade
e dependência para com o cérebro orbitário, o cíngulo e o cérebro interme
diário" 1 3 a (págs. 1159-1254) — 39 observações pessoais de ferimentos de
guerra. Compara-as com as similares de outros autores e completa-as com
o próprio material clínico de lesões focais do cérebro. Como alterações de
or igem orbitaria r e fe re : a ) no domínio da personalidade subjetiva e da so
ciabilidade, deficiência das intenções e das atitudes morais (gesinnungsmäs¬
s ige ) , bem como dos empreendimentos correspondentes ( instabil idade); b )
em relação à noção de si próprio (Eigener leben) — que envolve também
feixes de l igação do lobo orbitário — transtornos da unidade da personali
dade em sentido voli t ivo, donde a falta de empreendimento ou de liberdade
de ação; c ) no setor da instintividade, a deficiência de iniciativa — pelo
comprometimento das ligações com a região frontal — e a falência dos ins
tintos individuais em conseqüência dos distúrbios diencefálicos.
Duus, da escola de Kleist , assinala no estudo de conjunto que já cita
m o s 6 a transição dos transtornos psíquicos da fase de alterações anti-sociais
do caráter para a de embotamento completo, inclusive com espurcícia; além
disso, distúrbios vegetat ivos na fase final, devidos porém à hipertensão en-
docraniana. E m alguns pacientes de nossa observação pessoal também foi
registrada grave alteração do caráter, o que levou ao diagnóstico topográ
fico, confirmado depois pelos dados objetivos.
U m dêstes doentes, sexagenário, faleceu aos dois meses de internação.
Durante o período de observação revelou decadência mental progressiva e
rápida, finalmente com embotamento global da inteligência e da iniciativa,
inclusive com espurc íc ia 1 7 . Dois anos antes da internação denotava baixa
da eficiência no trabalho e graves distúrbios do comportamento: faltas ao
serviço, furto de utensílios da oficina, espancamento da espôsa, j á acamada;
tentat iva de coito com a espôsa quase moribunda e agressões contra as
pessoas presentes que o impediram, o que determinou intervenção da polícia
e, a seguir, a internação. O quadro neuropsiquiátrico do lobo frontal se
complicava com sintomas extrafrontais (apraxia, agrafía, distúrbios extra¬
piramidais, outros de tipo cerebelar) e os dados liquóricos denunciavam neo
plasma endocraniano. Daí o diagnóstico localizatório quando da pneumen¬
cefalografia: "P rováve l neoplasia ao nível da grande via fronto-cerebelar.
Síndrome do lobo frontal, com repercussão sôbre a zona parietal inferior
(agrafía, a p r a x i a ) " 1 9 (págs. 56-57, obs. 8 e fig. 20 ) . O pneumencefalograma
foi concordante; a necropsia revelou meningeoma paramediano ao nível da
região orbitaria, o qual se acompanhava de edema do lobo frontal, com de
generação de feixes frontoparietais (Dr . Paulo Pinto P u p o ) 1 7 .
Dois outros internados do Hospital de Juqueri apresentaram o quadro
orbi tár io não por neoplasma porém por aracnoidite optoquiasmática: nestes
o quadro mental não exibia transtornos extrínsecos, os quais ocorrem nos
tumores. Da súmula de observação neuropsiquiátrica de um dêles: "Orien
tação psíquica conservada". . . "Acentuada lentidão no trabalho mental.
Viscosidade intelectual. Fabulações ocasionais. Minuciosidade. Expressão
sem desordens intrínsecas. Afetividade aparentemente embotada, de modo
habitual. Períodos de grande destrutividade e agressividade, que diz incons
cientes. Refe re auto-mutilação e tentativa de suicídio, nas mesmas condi
ções. Perversões instintivas, ao que diz." . . . "Convulsões epileptiformes,
que diz datarem dos 15 anos de idade. Convulsões e hipertonia muscular
tipicamente pitiáticas." . . . "Diagnóst ico: Quadro psiquiátrico frontal-orbitá¬
rio"19 (pág. 56, obs. 7 e fig. 19; os grifos são desta t ranscr ição) . A verif i
cação neurocirúrgica (Dr . A . de Mat tos P imen ta ) confirmou os dados neuro-
oftalmológicos de aracnoidite opto-quiasmática. São a lgo diversas as desor
dens sumariadas em relação ao out ro : "Orientação psíquica íntegra." . . .
"Trabalho mental rápido. Exci tação psíquica. Prol ixidade. P o r vêzes fa
bulações, de tipo mitomaníaco. Chistes, trocadilhos. Expressão sem distúr
bios intrínsecos. At iv idade prática desviada no sentido da superprodutivi¬
dade dispersiva. Perversidade, de tipo da mória. Euforia pueril, discordan
te." . . . "Diagnóst ico: Desordens neuropsiquiátricas por aracnoidite opto
quiasmática (quadro mental do lobo frontal, região orbitaria)"19 (pág. 57,
obs. 9 e fig. 21; grifos da atual t ranscrição) . T a m b é m aqui a inspeção
neurocirúrgica ratificou o diagnóstico de aracnoidite opto-quiasmática (Dr .
A . de Mattos P i m e n t a ) .
Valor topístico dos distúrbios — Alguns transtornos, tanto neurológicos
quanto de ordem psíquica, ocorreram durante todo o período de observação
e mesmo foram progressivos. Outros, porque transitórios ou cronológica¬
mente secundários, foram interpretados como fenômenos de repercussão, na
acepção anteriormente discutida 1 6 b , 1 9 .
N o primeiro caso, a ataxia do tronco, a astasia-abasia e a perda de
equilíbrio faziam admitir al teração permanente ao nível da região palooce-
rebelar; crises de hipertonia muscular, não constantes, sugeriam exacerbação
transitória dos distúrbios de regência; e a compensação neocortical cerebral
se mostrava falha por ocasião dos surtos de tremores.
Quanto aos sintomas mentais, eram de natureza instintiva os mais cons
tantes e se acentuaram progressivamente: alheiamento para com o ambiente
e desinterêsse progressivo pelas próprias condições, o que atingiu o grau da
espurcícia. A hiperemotividade, de aparência pitiática, foi evidente — e
poderia falsear o diagnóstico, segundo dissemos — enquanto foi possível o
contato com o mundo subjetivo do examinando. A integridade habitual do
trabalho intelectual, sujeito a erros de orientação alopsíquica compreensíveis
ante a situação de internado, revelava que a região da convexidade frontal
estaria indene. Como estados mórbidos transitórios na esfera intelectual,
assinalamos momentos de obnubilação, os quais refletem a falência do dina
mismo da vigí l ia; tal dinamismo, segundo demonstrou K l e i s t 1 3 a , f i l iável ao
tronco cerebral, depende da função instintiva básica, a de nutrição ( A . S . ) ,
por sua vez atribuída ao neocerebelo. Assim, a manutenção do esfôrço e da
atividade em geral, e a regência instintiva dos próprios atos, exibiam distúr
bios caracterizados pelo déficit grave, no caso agora referido. Ambas as
manifestações da personalidade, às quais Kleis t designa, respectivamente,
como Ausdauer e gesinnungsmässige Handlungen, constituem, com as exte
riorizações do caráter — Gesinnungen — apanágio do córtex orbi tar io: ve
jam-se a carta funcional original em Geh i rnpa tho log i e 1 3 a ( f ig . 429, à pág.
1365) e a versão brasileira, em que os termos correspondentes aparecem
como Perseverança, atos intencionais, Caráter 1 6 a ( f ig . 8, à pág. 145), ( f ig .
3, à pág. 1 9 5 ) 1 6 b . Esta última, a do caráter, esteve caracterizada também
pela falência e não pela perversão como nas observações anátomo-clínicas
há pouco referidas; ou então pelo comportamento teatral, misto de indife
rença e de exibicionismo. D e qualquer forma, como acentuamos, o quadro
em conjunto passava para segundo plano em referência aos distúrbios paleo¬
cerebelares.
Êste conjunto de considerações, que t ivéramos em mente ao sopesar os
transtornos neuropsiquiátricos sob critério patogênico ao mesmo tempo es
pacial e c r o n o l ó g i c o 1 9 (págs. 28-30), levou nosso raciocínio clinico à diag
nose de quadro frontal orbitario como conseqüência de alterações paleoce¬
rebelares.
R E S U M O
O paciente fôra apresentado duas vêzes em reuniões clínicas, para diag
nóstico diferencial entre alterações neuropsíquicas orgânicas e pitiatismo.
Da primeira, aos 2 meses de internação, releva notar os seguintes dados:
trabalho mental lento, porém sem distúrbios intelectuais intrínsecos; atenção
pouco f ixável ; expressão verbal sem transtornos intrínsecos, mas escassa;
carência global de iniciativa; indiferença para com a própria situação; ati
tudes por vezes teatrais, em aparência pitiáticas; hipertonia muscular va
riável, aparentemente despertada pelo exame; marcha em pequenos passos,
com incerteza var iável ; queda lenta, em direção inconstante; camptocormia,
que se exagera quando desamparado; crises tônicas, de tipo da descerebra¬
ção; condições somáticas precárias; exame neuro-oftalmológico só possível
quanto a fundos oculares, sem anormalidade; exames de líquor incompletos,
com alterações discretas; reações negativas para sífilis no líquor e no san
gue. Diagnóstico provisório: Psicose por lesão cerebral, com provável com
prometimento orgânico da região frontal orbitaria ou da via fronto-ponto-
cerebelar.
A o ser apresentado da segunda vez, decorridos três meses, estavam mais
acentuados o desligamento para com o ambiente, a carência de iniciativa,
a total incapacidade para cuidar de si, com espurcícia; agravou-se a per
turbação da marcha com completa astasia-abasia e com ataxia do tronco;
tornaram-se mais freqüentes as crises tônicas de tipo cerebelar; repetidos
os exames de líquor, ainda incompletos, denotaram alterações do mesmo
tipo anterior; o exame de fundos oculares foi novamente negat ivo; não
fôra ainda possível a pneumencefalografia. A evolução dos distúrbios, com
alterações de or igem orgânica evidente e com outras aparentemente pitiá
ticas, permitiu precisar o aspecto local izatório: Síndrome frontal orbitaria
por alterações cerebelares prováveis.
Sòmente cinco meses após a primeira discussão clínica do quadro, quando
obtido o exame completo do líquor, o diagnóstico etiológico pôde ser aven
tado. O exame neuro-oftalmológico foi ainda negativo. A evolução dos
sintomas levou o doente à obnubilação e ao embotamento intelectuais, à
espurcícia; e, pelo lado neurológico, à impossibilidade de locomoção, à ataxia
do tronco, ao relaxamento dos esfincteres. Diagnóst ico: quadro neuropsi¬
quiátrico orbitario, como repercussão de alterações ponto-cerebelares; cisti¬
cercose provável.
O paciente faleceu 11 meses após a internação. A necropsia revelou,
quanto ao sistema nervoso central, um cacho de vesículas de cisticerco ra¬
cemoso ao nível do ângulo ponto-cerebelar direito ( f ig . 1) e espessamento
das leptomeninges na base do encéfalo até a dos lobos temporais. Nenhu
ma alteração histológica do córtex cerebral ou das vias intra-hemisféricas
(Nissl e W e i l ) .
Quanto ao aspecto patogênico, o quadro orbitario descrito por Kleis t
era representado pela falência na manutenção do esfôrço e da atividade em
geral (Ausdauer ) , na regência instintiva dos atos (gesinnungsmässige Hand¬
lungen) , bem como pelo distúrbio teatral, tipo pitiático, do caráter (Gesin-
nung) . Os transtornos neurológicos e mesmo neurovegetativos correspon
diam, na opinião dos autores, à falência paleocerebelar.
S U M M A R Y
Clinical pattern of orbital lobe with cerebellar fits. Cysticercus racemosus
of ponto-cerebellar region.
The patient had been shown twice in seminar for discussion of differentia]
diagnosis between pithiatism and organic brain lesions. A t first, t w o months
after admission, the pattern was as fo l lows : no peculiar troubles in think
ing; impaired attention; poor spontaneous speech; general lack of init iative;
no care for the self; behavior sometimes theatrical, apparently pithiatic;
muscular hypertonia, aroused by the examination; gait uneaven, by short
steps, subject falling often, in no predictable direction; tonic spells, de
cerebrate in type; poor bodily status. N o neurophthalmic disorders (only
the fundi examination was feasible, for lack in cooperat ion) ; mild altera
tions at the spinal fluid tests; tests for syphilis negat ive in the serum and
in the spinal fluid. Provisional diagnosis: psychosis with brain lesions,
probably in the orbital region or along fronto-ponto-cerebellar pathways.
A t the second time, three months later, seclusion was growing worse,
lack of undertaking was most marked, the patient was completely unable
to care for himself and remained conspurcated; gait troubles were accrued
with astasia-abasia and trunk ataxia; cerebellar fits were more frequent;
fluid examinations, still incomplete, and neurophthalmic data gave no new
results; pneumoencephalography was not ye t available. T h e pattern of in
termixed organic troubles and pithiatic behavior led to a closer pathogenetic
diagnosis: orbital syndrome due to cerebellar lesions probably.
I t was only f ive months after admission that proper fluid examination
was available, and then rendered an etiologic diagnosis possible. T h e pa
tient was then unable to wa lk and to take care of himself, and remained
unalert. Diagnosis: neuropsychiatry orbital syndrome evoked by cerebello
pontine disturbances; cysticercosis probably.
Exitus eleven months after admission. Necropsy disclosed, as for the
c.n.s., a bunch of cysticercus racemosus at the cerebello-pontine region, at
r ight ( f ig . 1 ) ; leptomeninges were somewhat thick at the basis until the
temporal lobes. N o alteration of the frontal lobes or elsewhere, macro-
scopically and histologically as wel l (a t Nissl and W e i l stains).
A s for the pathogenesis, the orbital patterns, in sensu Kleist 's , con
sisted of lack in maintaining mental alertness and the initiative (Ausdauer ) ,
in the instinctual drives (gesinnungsmassige Handlungen) , as wel l as of the
theatrical troubles of character (Gesinnung) . Neurological and neuro-ve
getat ive troubles were to be ascribed to paleo-cerebellar regulations, in the
authors' mind.
R E F E R Ê N C I A S
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