Quando grãos de areia se transformam em fios de ouro

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Quando Grãos de Areia se Transformam em Fios de Ouro

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Texto escrito em 2002 e publicado em 2012, após revisão. Trata-se de um exercício de autoconhecimento que utiliza o recurso da mito-estória de vida, uma proposta criativa para valorizar o processo de individuação. As ilustrações são de Ana Serra.

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Quando Grãos de Ar eia seTransformam em Fios de Ouro

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“Em última análise, só me parecem dignos de ser narrados os acontecimentos daminha vida através dos quais o mundo eterno irrompeu no mundo efêmero. Porisso falo principalmente das experiências interiores. Entre elas figuram meus so-nhos e fantasias, que constituíram a matéria original de meu trabalho científico.Foram como que uma lava ardente e líquida a partir da qual se cristalizou arocha que eu devia talhar.”

“O mito é um degrau intermediário inevitável entre o inconsciente e o conscien-te. Está estabelecido que o inconsciente sabe mais que o consciente, mas seusaber é de uma essência particular, de um saber eterno que, frequentemente,não tem nenhuma ligação com o ‘aqui’ e o ‘agora’ e não leva absolutamente emconta a linguagem que fala nosso intelecto.”

C. G. JUNG

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© 2012 do autor

Direitos reserDireitos reserDireitos reserDireitos reserDireitos reservados desta ediçãovados desta ediçãovados desta ediçãovados desta ediçãovados desta ediçãoRiMa Editora

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COMISSÃO EDITORIALDirlene Ribeiro MartinsPaulo de Tarso Martins

Carlos Eduardo M. Bicudo (Instituto de Botânica - SP)Evaldo L. G. Espíndola (USP - SP)João Batista Martins (UEL - PR)

José Eduardo dos Santos (UFSCar - SP)Michèle Sato (UFMT - MT)

Rua Virgílio Pozzi, 213 – Santa Paula13564-040 – São Carlos, SPFone/Fax: (16) 3411-1729

www.rimaeditora.com.br

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NOTA AOS LEITORES

Este livro nasceu de uma experiência insólita. Em 2002, como requisito necessá-rio para o exame de qualificação para o doutorado na Faculdade de Educação daUSP, fui obrigado a escrever um memorial. Nunca senti atração por esse tipo detexto, porém, a necessidade me fez pensar no assunto. Como não havia escapató-ria, pensei em fazer algo criativo e, então, pensei em escrever na terceira pessoa,distinguindo o Eu e o Ego, pois somente este é que se alimenta dos frutos doces eazedos da árvore da vida, e busquei referências na mitologia grega e na astrologiapara tecer meu memorial.

Não fazia ideia de como a banca examinadora poderia avaliar a minha trans-gressão. Felizmente, o professor Teixeira Coelho, professor da Escola de Comunica-ção e Artes (ECA), e membro da banca, disse que o memorial era a melhor parte daTese. Segundo ele, eu poderia jogar a Tese fora e ficar somente com o memorial.Aliás, ele sugeriu que o memorial estivesse na Tese, algo não usual, uma vez que,este recurso, costuma ser usado apenas na qualificação para que a banca possamelhor conhecer o candidato.

Em 2003 aconteceu a defesa da Tese e o memorial ficou arquivado, perdi-do em um disquete. Em 2009, ministrei algumas palestras sobre mito-estória devida, ou seja, como chamei a técnica usada na confecção deste livro, uma formade biografia criativa. Durante os meses de novembro e dezembro daquele ano,aproveitando o encerramento do ano letivo e a desnecessidade de preparar au-las, resolvi rever o texto e acrescentar mais algumas linhas nesse frágil tecido. Eagora, em agosto de 2012, acrescentei mais algumas experiências em minha mito-estória de vida.

É importante esclarecer que a mito-estória de vida não passa de um exercí-cio de autoconhecimento que integra a bio-estória do sujeito e mitologia. Qual-quer uma pode ser utilizada (grega, hindu, indígena, africana etc.).

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Neste livro, optei em utilizar informações contidas em meu mapa astral, inter-pretadas livremente, relacionando minha experiência vivida com os atributos da mi-tologia grega.

Com esta narrativa mítica espero contribuir, de uma forma singela, com oprocesso de ressignificação e de reencantamento do mundo que marcam nossaexperiência cotidiana neste limiar de uma nova era, a do reenvolvimento huma-no.

São Carlos, 17 de agosto de 2012.

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Dia 17 de maio de 1966, às 23 horas e 25 minutos. Neste exato momento, acidade de São Paulo recebia a visita de Hermes, mensageiro de Zeus e psicopompo,e de Afrodite, deusa do amor, para acompanhar um difícil parto. A presençadestes deuses foi necessária porque a gestação foi dissimulada de diferentes for-mas, desde a concepção, para que Ares, o fecundador ativo e destruidor do ou-tro, porém, o guia espiritual do pai daquela criança, não tentasse uma últimacartada para impedir aquele nascimento. Manter aquela gravidez por nove mesessó foi possível graças a uma astuciosa resistência que contou com a colaboraçãoplena de diversos deuses. O pai genético daquela criança nunca aceitou a ideia deser pai e lutou até o último minuto para que isso não acontecesse.

Seu sobrinho, enfermeiro em um posto de saúde da cidade, foi procuradopelo futuro pai que desejava por um ponto final na gravidez. O que ele não sabia,porém, é que o sobrinho já havia combinado outra coisa com a futura mãe eentregou para o tio um placebo dizendo trata-se de um forte abortivo. Ares e ofuturo pai aguardavam ansiosos pelo resultado do “remédio”, mas os dias se pas-savam e o aborto não acontecia. Quando a gravidez chegou ao sexto mês, Aresestimulou o futuro pai a tirar satisfação com o sobrinho. Este, orientado por Hermes,conseguiu enganar novamente o tio. Desta vez, receitou um novo tratamentocom plantas medicinais que seria “infalível”. Mesmo assim, tentou conformá-lodizendo que nem sempre o tratamento “funcionava” quando a gravidez já estavaem estado avançado. Por isso, pediu ao tio que fizesse um esforço e pensasse comcarinho na ideia de ser pai. O tempo foi se exaurindo e as Moiras já tinhampreparado o fio do destino daquela criança e, na hora estabelecida, uma do sexomasculino nasceu na cidade de São Paulo.

De nada adiantou a força bruta de Ares. A astúcia de Hermes e o amor deAfrodite foram capazes de superá-la. Por causa dessa briga entre deuses, o céu dacidade de São Paulo, no exato momento em que a criança nasceu, apresentava-secom Mercúrio e a Lua na casa 3 do seu mapa astral, a casa da comunicação,

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enquanto Vênus e Saturno encontravam-se na casa 2, a casa dos valores e nosigno de Peixes, indicando a importância da espiritualidade na formação daquelacriança. Como aquela gravidez não era desejada, o planeta Plutão acompanhouaquele nascimento a partir da casa 8 – a casa regida por Escorpião – tambémconhecida como a casa das transmutações, o que gerou uma criança “plutoniana”,ou seja, indicando que aquela criança necessariamente se envolveria afetivamentecom temas assustadores como o inconsciente, a morte, a mediunidade etc.

O fato de nascer com a Lua na casa 3 (regida por Hermes/Mercúrio), masno signo de Áries (Ares/Marte) era um forte indício de que a imaginação seriauma poderosa aliada daquela criança. Em primeiro lugar, tudo indicava que ela setornaria uma pessoa acolhedora, protetora e com profundas ligações com as raízesfamiliares, sobretudo com a figura materna. Além disso, aquele menino provavel-mente possuiria aguçada intuição e uma fértil imaginação, podendo se tornar,futuramente, um singular narrador, um contador de história e até, quem sabe,professor.

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Com o passar dos anos, a figura masculina que se tornava referência e modelopara o menino era o avô paterno, um anarquista espanhol que veio para o Brasildurante a Guerra Civil em seu país. O pai se mantinha ausente da educação dacriança e, nos poucos contatos que tiveram, quase sempre estava bêbado ou oagredindo física e moralmente. O avô, além do anarquismo, cultivava uma inten-sa paixão pelo espiritismo kardecista, o que o levou a criar na cidade de Tupã, nointerior do estado de São Paulo, um dos mais importantes centros espiritistas daregião. Sincronicidade ou não, o mapa astral da criança já fornecia pistas para seentender essa relação profunda com o avô, pois, sua casa 1 - considerada como acasa da identidade - e sua casa 2 - a casa dos valores - estavam fortemente influ-enciadas pelo signo de Peixes, um signo místico, sensível e esotérico. E como já foiassinalado, nesta última encontrava-se o planeta Saturno, reforçando uma ligaçãomais profunda com os antepassados.

Aquela criança e o seu avô pareciam ter muitas dificuldades para lidar coma realidade do dia a dia. Era como se extasiassem na fantasia e considerassem ocotidiano banal demais para ser vivido ou aceito. Ambos pareciam ter uma predi-leção por locais silenciosos e vazios onde encontravam as condições adequadaspara paixões introspectivas como a meditação, a leitura e a audição de música,por exemplo.

Porém, em sua infância, o menino tinha um sonho recorrente. Sonhavaquase que diariamente com cobras, ratos e fortes cachorros negros que tentavamatacá-lo. Depois de lutar bravamente, conseguia sempre vencer abrindo e que-brando as mandíbulas dos animais. E sempre acordava exausto depois desses so-nhos. Num certo dia, sua mãe resolveu levá-lo em uma benzedeira. Após esse dia,esses sonhos foram se tornando mais raros, até desaparecem.

Seu avô, um eterno defensor da não-violência, estimulava o neto a trocarseus brinquedos em forma de armas (espada de plástico, revólver de espoleta,entre outros) por livros ou mesmo por brinquedos mais lúdicos que alimentassem

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a imaginação. O avô seguia, sem saber, os passos de Hermes, o deus que nainfância reanimou um dragão morto e lhe deu asas. E, assim, o avô possibilitavaao neto o acesso às asas da imaginação.

Apesar de sua idade avançada, apresentava um espírito jovial e alegre, ve-nerando os vínculos familiares e a vida pastoril, além de sua iluminação tambémcomo psicopompo (condutor das almas). Hermes parecia ser o guia de ambos, doavô e da criança, e uma experiência que o menino nunca se esqueceu foi a morte dovelho anarquista. Este, ao saber que estava com câncer no estômago e que teriaapenas mais alguns dias de vida, pediu aos 14 filhos para visitá-lo, juntamente comos netos e netas. Para satisfazer o último pedido do velho anarquista, o menino e oseu pai viajaram para Tupã para se despedirem do avô, aquele que procurava re-ligar, em vida, os segredos da Terra com os do Céu. O menino que nunca tinha vistoum cadáver, e não se angustiava com questões metafísicas acompanhou com muitanaturalidade tudo o que viu e ouviu naquele dia fatídico.

A morte do velho anarquista, por ser alguém tão singular, só poderia serpolêmica, ou melhor, hermesiana. Deitado em sua cama, com alguns adultos emsua volta, o velho era observado por seu médico particular. O neto, ao lado deoutras crianças, permanecia afastado do quarto, mas atento para não perder ne-nhum detalhe do que se passava lá dentro. Quando o médico disse que o velhohavia falecido, vários parentes começaram a chorar e a se abraçar. Em seguidachamaram as crianças para se despedirem do avô. Porém, cerca de dez minutosdepois da notícia do médico, o velho anarquista abriu os olhos, levantou umpouco a cabeça e disse, com uma voz trêmula, que ainda não havia chegado suahora de partir. Ele apenas tinha sido conduzido por seus mentores para conhecero local onde estaria definitivamente dentro de alguns minutos. Antes de morrer,olhou profundamente para o neto e, em seguida, para uma estante cheia de livrosespíritas e espiritistas, ou seja, respectivamente, escritos por desencarnados (atra-vés de médiuns) e escritos por encarnados que dizem seguir a doutrina espírita(transmitida pelos espíritos para Kardec, no século XIX).

O neto compreendeu intuitivamente a mensagem do avô e, durante cercade três anos dedicou-se de forma obsessiva à leitura deles, devorando livros e

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revistas sobre o assunto até completar 15 anos de idade, quando este interessediminuiu significativamente. Era como se a presença de Mercúrio no signo deTouro começasse, finalmente, a se manifestar. Por volta dos 16 anos de idade,passou a se dedicar ao prazer alcançado em atividades intelectuais. Passou a acom-panhar, com avidez, a maioria dos eventos artísticos e culturais que ocorriam nacidade de São Paulo. Assim, gradativamente, foi se esquecendo da vida espirituale dos ensinamentos do velho psicopompo.

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Antes de completar 15 anos de idade, o agora adolescente só tinha ido aocinema uma única vez. Seu pai o levara para assistir King Kong, em meados dadécada de 1970. Mesmo assim, guardou para sempre a lembrança daquele acon-tecimento, pois o medo que sentiu e que o fez ficar segurando firmemente nacadeira, aguardando o momento em que apareceria na tela o macaco gigantesco,foi uma imagem-sensação inesquecível para ele. Depois que completou 15 anos esaiu da casa dos pais, sua vida tornou-se outra. Passou a conhecer os meandros dacidade de São Paulo sempre na companhia de Hermes, que lhe dizia onde deveriair tranquilamente e onde precisava tomar cuidado.

O jovem encantou-se com todo o mundo que Hermes lhe apresentou,sobretudo o do cinema. É claro que não abandonou o “mundo real” completa-mente, pois a força de Ananke sempre tentava oprimi-lo e o lembrava que neces-sitava conciliar o trabalho medíocre semanal em um laticínio, na periferia da cida-de de São Paulo, e a paixão que cultivava pelo cinema. Foi no laticínio que encon-trou a face corruptível de Hermes. Suas obrigações no laticínio eram realizadassem o menor interesse: ralar restos de mussarela e vender como se parmesãofossem, desregular a balança para o produto parecer mais pesado, entre outrasfalcatruas que seu chefe o obrigava a fazer. Depois de alguns meses conseguiuoutro emprego em uma fábrica de biscoitos, mas o emprego era também insupor-tável. Com frequência, vários funcionários cuspiam na massa ou colocavam ovos

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podres nela. Sem falar que os biscoitos precisavam ser assados em um dia e emba-lados apenas no seguinte, quando estavam frios. Assim, eles eram assados e acon-dicionados em caixas plásticas onde passavam a noite esfriando. No dia seguinte,quando a fábrica era aberta, o espetáculo diário consistia em assistir às centenasde baratas que saltavam das caixas para se esconder em frestas na parede, ralos eoutros esconderijos.

E por falar em espetáculo, certo dia Hermes pediu ao irmão Dioniso paralevar o jovem adolescente ao teatro. Este prontamente atendeu ao pedido e resolveulevá-lo para assistir, no Centro Cultural São Paulo, próximo da estação Vergueiro doMetrô, a um espetáculo muito interessante chamado “Tempestade em copo d’água”.Algumas horas antes do espetáculo, em visita ao pai, o jovem comentou ingenua-mente que iria ao teatro pela primeira vez. Ares, ao ouvir aquilo, tentou convencer opai a não deixar aquela experiência se concretizar. Assim, motivado pela brutalidadedo deus, disse ao filho: “eu não gosto de teatro, por que você vai?”. Mesmo sem aaprovação do pai, o jovem foi ao teatro, dando início a uma relação conflituosa entreos dois, e que durou anos. A experiência foi muito estimulante e, a partir daquele dia,começou a assistir a todas as peças que entravam em cartaz como “Na carreira doDivino”, “Ubu-rei”, entre outras que estavam em cartaz.

Entre seus 16 e 19 anos de idade, aproximadamente, o jovem morou nacidade de Santos e, para sobreviver, comprava roupas de cama, mesa e banho nobairro do Brás, na capital, e as revendia no Litoral. Boa parte do dinheiro querecebia usava para pagar a “pensão” onde morava e também para comprar discose livros. Quando estava em São Paulo gostava de passear na “Baratos e Afins”,uma loja que vendia discos novos e usados e também em uma livraria, localizadaentre a praça da Sé e a Liberdade, que vendia livros da editora Cultrix/Pensamen-to, por um preço bem acessível. Provavelmente era uma livraria da própria edito-ra e os livros encalhados eram ofertados sobre uma enorme mesa na entrada daloja. Comprou, nesse período, vários livros de astrologia, psicologia analítica,esoterismo, filosofia oriental, budismo, meditação etc.

Ele costumava ler no ônibus, mas não conseguia entender nem 10 % doque lia, apesar de, intuitivamente, se encantar com as palavras e desejar saber

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cada vez mais sobre tais assuntos. Por volta dos 20 anos de idade retornou para acapital paulista e foi na cidade de São Paulo que, em certa noite, conheceu duasmulheres extremamente bonitas. Elas se apresentaram: Hedoné e Areté, respecti-vamente, o prazer e a virtude.

Ele acabara de sair de um espetáculo de teatro e se encaminhava para umbar no bairro do Bixiga, onde passava as madrugadas de Sexta para Sábado e,após ouvir o que as duas tinham para falar, nem pensou duas vezes para convidarHedoné para acompanhá-lo. A partir daquela madrugada, a fascinação daquelerapaz pelo cinema e pelo vinho, recém-descoberto, aumentava. Ele começou afrequentar boa parte do chamado “circuito alternativo de cinema” de São Paulo:os Cineclubes Bixiga, GV e Oscarito, o Centro Cultural São Paulo, o Museu LasarSegall, o MIS e o Sesc Consolação – na época denominado Sesc Vila Nova e quetambém exibia filmes em 35 mm, às segundas-feiras.

Por não ter dinheiro, raramente frequentava as salas comerciais. Seu inte-resse por cinema o levou a fazer amizade com os gerentes dos três cineclubesprincipais da cidade e, assim, em pouco tempo, não pagava mais a “taxa de ma-nutenção” para assistir aos filmes ali exibidos. Entre 1984 e 1987 assistiu a cerca de500 filmes por ano. Em um velho caderno anotava o nome do filme, o ano emque foi produzido, o local onde o assistiu e algum comentário sobre o mesmo.Essa paixão que o contagiava o levou a pedir para um dos gerentes do cineclubeOscarito para trabalhar lá nos finais de semana. Um trabalho voluntário comoesse não podia ser negado e, assim, até o fechamento definitivo do cineclube, eletrabalhou de graça nos finais de semana.

Uma passagem curiosa dessa vivência hedonista como cinéfilo aconteceudurante uma das “sessões da meia-noite” promovidas às sextas-feiras e aos sába-dos como propedêutica para quem pretendia penetrar madrugada adentro nosbares do Bixiga. Em uma das sessões foi exibido o filme Solaris, de Andrei Tarkovsky.Naquela noite o público foi muito pequeno, algo em torno de dez pessoas tive-ram coragem de pagar a “taxa de manutenção” para assistir ao filme. O jovem jáo conhecia e não estava muito animado com a exibição. Tratava-se de um filmemuito denso e demorado (quase 3 horas de duração) para ser exibido durante a

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madrugada. Mas como o filme estava programado deveria, portanto, ser exibido.

O que ninguém esperava, porém, era que Pã, o filho de Hermes, aparecessepor lá para fazer uma pequena brincadeira e, assim, sem perceber, o “Mãozinha”(como era conhecido o projecionista do Cineclube) montou o filme invertendo asequência de alguns rolos. Como cada um tem em média 20 minutos, cerca de 40minutos após o início da exibição, quando deveria entrar o rolo número 3, houveuma alteração brusca na “história” pois entrou o número 6. Percebendo que algoestava errado, o jovem cinéfilo conversou com o “Mãozinha” e desceu da cabinede projeção – pois lá de cima não era possível escutar se alguém da plateia estavareclamando, como era rotina sempre que a projeção perdia o foco ou o somficava com problemas – e foi até lá com o objetivo de pedir desculpas e explicarque o filme seria interrompido por alguns minutos para uma remontagem.

Ao descer, porém, percebeu que havia um silêncio mortal na sala. Cami-nhou, lentamente, em direção à tela e percebeu que ninguém estava acordado.Voltou para a cabine e falou para o “Mãozinha” não se preocupar e continuarcom a projeção. O filme, de difícil compreensão, tornou-se uma verdadeira obrasurrealista com a alteração das sequências, ficando ainda mais incompreensível.Quando as luzes se acenderam e o público começou a acordar e a se retirar, eledizia gentilmente para as pessoas: “Que belo filme, não? Tarkoviski é um gênio!Voltem sempre!”.

Sua pouca habilidade com as coisas práticas da vida, sobretudo ganhar di-nheiro, era compreendida no meio familiar como “preguiça” ou “ociosidade”.Poucos parentes conseguiam compreender sua pré-disposição para atividadescontemplativas e introspectivas, ou atividades neg-ativas. Seus familiares não con-seguiam entender porque um jovem de aproximadamente 18 anos de idade gos-tava tanto de cinema, sentia prazer em ler e escrever, interessava-se pela filosofiaoriental e fazia passeios fáticos pela cidade ou pelo campo sem nenhum objetivoa ser alcançado (além do prazer vivido naquele momento), tirava fotografias depaisagens e animais... Em suma, trocava o sacrifício desesperador que se esperavade um adulto pela espera necessária para amadurecer um “sacro ofício”.

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Seu interesse por mitologia e por cinema era tratado como uma excentrici-dade por vários familiares, quase todos acostumados apenas com o excesso devigília da vida ativa e os valores do trabalho produtivo desencantado. Como emtodas as famílias têm uma, ele se tornou a “ovelha negra”, o “bode expiatório”(Pã) e para o seu pai e para alguns tios e tias aquele que nunca ia “ser alguém navida”, “o que nunca ia ter nada”, o que “iria se perder nas drogas”, o que iria“virar assaltante ou veado”...

RRRRRECEBENDOECEBENDOECEBENDOECEBENDOECEBENDO EEEEE TRANSMITINDOTRANSMITINDOTRANSMITINDOTRANSMITINDOTRANSMITINDO OOOOO FOGOFOGOFOGOFOGOFOGO DEDEDEDEDE P P P P PROMETEUROMETEUROMETEUROMETEUROMETEU

Como Cronos não espera e sabe que por volta dos 22 anos de idade temos acasa 6 (a casa do trabalho, da rotina, da organização etc.) pela frente, o encantopor Hedoné foi sendo desfeito. Areté, desprezada anos antes pelo rapaz, foiprocurá-lo novamente. A deusa da virtude tentou conquistá-lo mostrando-lhecomo era importante engajar-se em atividades sócio-políticas capazes de “trans-formar” de forma efetiva a realidade social. O aprendiz de herói, assim comoHércules, não sabia seguir o “caminho do meio”, como sugeriria algum sábiobudista, e tendo se esquecido por completo de Hedoné, passou a ouvir e a seguiros conselhos de Areté. Foi quando acreditou ter encontrado a verdade absoluta.Como sua casa 6 estava no signo de leão, um signo de Fogo fixo, toda a experiên-cia vivida, anteriormente, foi colocada entre parênteses e agora, com o orgulhosolar, considerava-se uma nova pessoa.

Filiou-se a um partido político de esquerda e participou de todos os movi-mentos sociais que apareceram em sua frente. Areté ficou feliz quando percebeuque o rapaz estava recebendo de Prometeu uma chama vermelha muito forte e,praticamente, não se lembrava mais de Hermes e Dioniso. Com esta chama emsuas mãos, deixou a barba crescer para tentar apagar qualquer traço infantil emseu rosto, pois a partir daquele momento fazia questão de ser alguém sério ecomprometido com a organização efetiva de um mundo racional, crítico e lúcido.Qualquer coisa que lembrasse o irracionalismo e a acriticidade de sua juventudedeveria necessariamente ser combatido com violência.

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Além do crescimento da barba, cortou o cabelo para tentar adquirir umaaparência masculina, vendeu os discos que não eram de artistas engajados na lutasocial, queimou poesias, jogou fora o caderno onde anotava dados sobre filmes,destruiu fotos que o fizessem se lembrar de como era “alienado”... Em suma, eleprecisava naquele momento se des-envolver do seu passado recente.

Foi nessa época também que sentiu necessidade de fazer um curso superior“engajado” e “crítico”, três anos após ter concluído o ensino médio e dito para simesmo que nunca mais queria saber de escola nenhuma. Com sua nova forma dever o mundo, não conseguia entender como tinha coragem de sair do Cineclubee perambular com um grupo de “alienados” pelos bares do Bixiga até o dia clare-ar ou andar pela boca do lixo, onde costuma pernoitar no apartamento de umaamiga, na Rua Aurora, viciada em cocaína.

Mas agora seria diferente. Ele tinha uma nobre missão a cumprir: levar aconsciência crítica às pobres criaturas humanas, alienadas por um processo educativo“opressor” e “reprodutivista” e vítimas de uma “indústria cultural perversa” e“onipotente” da qual ele também havia sido uma vítima, mas, com a ajuda deAreté e de Prometeu, havia se libertado. Assim, mesmo antes de terminar seucurso de graduação em Geografia (1987-1992), foi lecionar em uma escola públi-ca, em um bairro paulistano de classe média. Porém, como os alunos não de-monstravam nenhum interesse por suas palavras, passou a taxá-los de “ociosos” efilhos da “classe exploradora” que não tinham compromisso com o saber científi-co e com a transformação social.

Para alimentar sua heroicidade resolveu levar suas ilustradas palavras para aperiferia e foi lecionar em uma escola pública em Itaquera, na zona leste da capi-tal, no período noturno. Nessa escola, conheceu Sísifo e ficou fascinado com a suadedicação e resolveu imitá-lo. Agindo como seu novo herói, suportava com orgu-lho as horas angustiantes dentro de um lotado vagão de metrô que o levava paraa estação Aricanduva, onde tomava um ônibus, também lotado, até a escola. Masacreditava que o sacrifício valeria a pena, pois além de ser uma escola que só foiconstruída após a reivindicação da comunidade local, os professores eram engajadosna “luta” também.

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Estava feliz da vida o jovem amigo de Prometeu e Sísifo que praticamentepagava para lecionar. Mas, e daí? Para que dinheiro quando se acredita estarrealizando uma ação tão importante: transformando jovens em pessoas des-en-volvidas, ou seja: críticas, lúcidas e militantes efetivos contra a “opressão burgue-sa”, assim como ele acreditava ser.

Suas palavras de ordem eram socialismo, luta, transformação... e, de formaarrogante, considerava-se um professor “crítico” e “progressista” comprometidocom a transmissão de conteúdos revolucionários. Orgulhosamente se consideravao responsável pela formação de cidadãos conscientes e politizados capazes deromper com a “escuridão” do senso comum. Toda a sua necessidade de “luz” e de“pureza” fizeram com que ele se afastasse radicalmente do elemento Terra. Nessemomento de sua vida, passou a acreditar que poderia viver apenas do engajamentopolítico. Eram as chamas dos movimentos sociais que o alimentariam. Por váriasnoites ficou acordado, pois achava que dormir era perda de tempo. A revoluçãosocialista o chamava e precisava dele 24 horas por dia.

O excesso de fogo em sua casa 6 fez com que ele não medisse cansaço noplano físico e, no plano mental, acreditasse piamente que o seu trabalho era umatarefa muito especial e que não tinha valor. Literalmente, deu a vida (Sol) pelotrabalho. Ócio? Isso nem pensar. Isso era para pessoas preguiçosas, inúteis e dis-pensáveis. Enquanto isso, suas aulas “politizadas” eram preparadas com muitoafinco para iluminar a pobre massa inculta. Porém, o abandonado corpo, numdeterminado dia, sentiu-se cansado. Nesse dia, o jovem herói abatido, como seuma águia comesse o seu fígado, diariamente, olhou para o canto da sala de aulaonde estava Prometeu o observando e perguntou-lhe: “por que eles não aceitamo fogo que estou lhes oferecendo com tanto sacrifício?”.

Sua frase, direcionada para Prometeu, foi como uma revelação: nesse mo-mento, ele parecia tomar consciência de que agia de forma compulsiva e egocêntricaem relação ao trabalho e que não se permitia momentos de lazer e de ócio. Emoutras palavras, revelava-se, diante de seus olhos, a sensação de que sentia culpapelo prazer e que procurava, através do trabalho, esconder a mediocridade desua vida interior. Era o excesso de des-envolvimento que estava lhe destruindo.

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Durante três anos, aproximadamente, o agora homem e dono de um títulouniversitário, viveu com intensidade sua fantasia heróica. Seu comportamento erasemelhante ao do gigante Skrymir, da lenda escandinava narrada por Jacob Grimm,que ao levar um golpe do martelo divino de Thor na cabeça, acorda e diz: “deveter passarinho em cima da árvore; algum deve ter feito cocô na minha cabeça”.Por isso, nada parecia abalar suas convicções “racionais” e “coerentes”.

Por volta dos seus 26 anos de idade, felizmente, as forças de sua casa 7, acasa de Libra, da busca do equilíbrio e da cooperação, começaram a se manifestar.Para ajudá-lo, seu mapa astral ainda trazia Urano, cuja arma é o laço, tambémnesta casa. Ao contrário de Zeus, seu neto, Urano quase não briga, mas procuraenvolver o inimigo e o trazer para o seu lado. E, para sua sorte, Urano conseguiulaçar o jovem herói e mostrou-lhe o valor da liberdade e da renovação de ideias.Mas um fato foi determinante nesse processo de metanóia.

Ele estava segurando um livro chamado “A personagem de ficção”, de Déciode Almeida Prado e outros, quando sentiu todo o corpo tremer e perdeu por algunssegundos a consciência, saindo do seu estado de vigília. Ao retornar, percebeu queo livro havia sumido de suas mãos. Procurou em volta e não o encontrava. A únicaconclusão plausível era irracional demais: o livro havia sido desmaterializado desuas mãos. Contou essa experiência para algumas pessoas que o ironizavam e aindadiziam: “você fumou o quê?” tomou chá de cogumelo, foi?”.

Não encontrando ninguém que entendesse aquela experiência, sem ironizá-lo, guardou-a apenas para si durante muito tempo. Porém, aquela figura que detanta seriedade e comprometimento com as “mudanças sociais” e que pretendiaviver da razão e para a revolução socialista, tornou-se mais compreensivo com osalunos e passou a enxergar atrás da apatia, da baderna hedonista dentro da salade aula e da transgressão corporal às regras ascetas da escola, uma necessidade deespaço para a expressão das angústias e das formas banais de rir da vida, dançar eser feliz.

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Além disso, passou a desconfiar que existissem coisas acontecendo ao seuredor e que não eram captadas pelos cinco sentidos. Com a ajuda do laço deUrano, seus jovens alunos deixaram de ser imaginados e tratados ora como sofre-dores e infelizes, ora como hedonistas alienados. O olhar crítico e opressor da-quele inexperiente professor desmanchou-se diante de si quando percebeu queestava diante, realmente, de sua própria sombra. Aqueles alunos representavamtudo que ele viveu na companhia de Hermes e Dioniso e queria, desesperada-mente, apagar de sua vida.

E, ao completar 28 anos, encontrou-se com a casa 8, a casa das transmutações.E, para completar, Plutão ali também se encontrava. Assim, seria inevitável umadescida às profundezas do inferno. E a experiência que vivenciou foi singular. Emum momento em que se encontrava aflito, questionando seu papel como profes-sor, perguntou para si mesmo: “quem sou eu para querer transformá-los? Será queé necessário lutar exaustivamente por uma sociedade perfeita e ordenada? Seráque não sou eu quem precisa ser transformado?” Foi nesse instante que percebeucomo tinha se tornado uma pessoa des-envolvida, ou seja, alguém semenvolvimento com o mundo concreto, que não aceitava a emoção e os sentimen-tos, que estava perdendo os vínculos com o próprio corpo, com a família, com aspessoas reais, ou seja, cheias de falhas e contradições e, sobretudo, com sua pró-pria alma.

Além disso, outros fatos insólitos começam a acontecer. Por exemplo, luzesse acendiam sem que ninguém apertasse os interruptores. Ou então, quando saiado quarto e se direcionava para o banheiro, a porta deste se abria sozinha.

Também sonhava com o avô morto que lhe pedia para entrar em um corre-dor escuro e comprido. Sonhava também com um cemitério cujos túmulos eramenormes elefantes... E isso tudo sem nunca ter usado LSD ou qualquer outra subs-tância psicoativa. Sem saber o que fazer, sentou-se em um banco no parque doCarmo e abaixou a cabeça na direção dos joelhos. Alguns minutos se passaram eele sentiu uma mão fria em seu ombro esquerdo. Ao levantar o corpo, viu umafigura feminina lânguida como ele, e de olhos tristes. Em uma de suas mãos, ummaço murcho de narcisos brancos. Enquanto o jovem a admirava, ela lhe disse:

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“você me acompanha?” Curioso com a questão, perguntou: “para onde?” E elasem pestanejar respondeu: “oras, para o inferno!”.

O jovem respirou fundo, olhou bem nos olhos dela e disse: “vamos! masquem é você?” E assim foi que ele conheceu e ficou encantado com a meigaPerséfone, a filha de Deméter e esposa de Hades. Na descida para o inferno en-controu-se frente a frente com Mefistófeles e com o enfadonho Fausto. Ao olharpara este, sentia como se estivesse diante de um espelho. “Será que eu me trans-formei nisso?”, pensava. Perséfone, puxando-o pelo braço, fazia com que eledescesse cada vez mais. Dentro de um gigantesco salão, ela pediu para ele olharpara a sua esquerda. E ele viu um belo jovem segurando uma cítara. Perséfone,pausadamente, disse: “aquele é Orfeu e aqui esta para resgatar sua amada Eurídice.Por que você não faz o mesmo? Resgate o seu passado que você mandou para cá.Ele não foi destruído...”.

Foi quando ele viu num canto escuro do salão uma taça de vinho, umcaduceu e um envelope. Enquanto caminhava naquela direção, em sua mentevinham as imagens de sua juventude boêmia e tolerante com as imperfeições domundo e das pessoas. Ao segurar em suas mãos o envelope, viu que era uma cartapara ele e os remetentes eram Dioniso e Hermes. Além de solicitar que pegasse ocaduceu e a taça de vinho, junto com a mensagem estava um poema atribuído aBorges, que ele já conhecia, mas nunca tinha o lido com tanta profundidade.Talvez, quando o leu, ainda não estivesse preparado para entender suas profun-das palavras. Mas, nesse momento, do fundo do Tártaro, aquelas palavras toca-vam-lhe a alma e o coração:

Se eu pudesse novamente viver a minha vidana próxima trataria de cometer mais erros

não tentaria ser tão perfeitorelaxaria mais.

Seria mais tolo do que tenho sidona verdade, bem poucas coisas levaria a sérioseria menos higiênico. Cometeria mais riscos

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viajaria mais, contemplaria mais entardeceressubiria mais montanhas, nadaria mais rios

iria a mais lugares onde nunca fuitomaria mais sorvete e comeria menos lentilha

teria mais problemas reais e menos problemas imaginárioseu fui dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto de sua vida

claro que eu tive momentos de alegriamas se eu pudesse voltar a viver trataria

somente de ter bons momentosporque se não sabem, disso é feito a vida, só de momentos

não percam o agoraeu era um desses que nunca ia a parte

alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente,um guarda-chuva e um paraquedas

se eu voltasse a viver viajaria mais levese eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera

e continuaria assim até o final de outonodaria mais voltas na minha rua

contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais criançasse tivesse outra vez uma vida pela frente

mas não tenho

tenho 85 anos e sei que estou morrendo.

Após uma profunda pausa, ele disse para Perséfone com um sorriso no rostoque já se sentia preparado para voltar. Perséfone, então, deu-lhe uma semente deromã. A cada degrau que subia, a semente, em suas mãos, ia se transformando emuma pequena planta. Ao chegar à superfície, a primeira coisa que viu foi Dionisobrincando com algumas crianças enquanto o esperava sair das trevas. Ao ver Dioniso,entendeu que rir não significa ser alienado ou infantil, mas possuir outra maneira deencarar a vida. Feliz, ajoelhou-se no gramado e, ao mesmo tempo que contempla-

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va os marrecos que nadavam no lago, tratou de plantar o pequeno pé de romã quetrazia em suas mãos. Enquanto isso, algumas pessoas que passavam por ele falavam:“brasileiro é mole mesmo, não gosta de fazer nada!”; outros diziam: é isso aí! temque trabalhar, mas tem que relaxar também!” e tinha aqueles que falavam: “aspessoas só vivem correndo, tem que parar um pouco, né!”.

Ele apenas olhava para as pessoas e sorria. Nesse momento, um homemque o observava lhe disse: “cada um com seu tempo! Você já descobriu o seutempo mágico?”. O homem estendeu a mão, ajudou-o a se levantar e partiu. Ojovem tentou segui-lo, mas não conseguiu o acompanhar. Assim, gritou antes queele desaparecesse: “qual é o seu nome?”. E uma voz vindo de muito longe res-pondeu: “Kairós... um dia nos reencontraremos...”.

Ao perceber que estava na direção da saída do parque, aproveitou e cami-nhou sem pressa até a escola. Lá chegando, sentou-se com o diretor e pediu de-missão. A transição de saturno começa a influir em sua vida. E sua nova preocupa-ção era encontrar um emprego em que pudesse viver de forma mais espontâneae lúdica, sem excessos de criticismo ou lucidez, sem se preocupar tanto em adqui-rir e transmitir conhecimentos. Começava a perceber que conhecimento não sig-nificava sabedoria. E, ao voltar para casa, junto com a sombra do crepúsculo,ficou pensando: “Antes eu era uma pessoa criativa, hoje sou apenas crítica. Já fuialguém que vivia em um mundo lúdico, hoje quero construir um mundo lúcido.Antes eu tinha um grupo afetivo de amigos; e agora, sozinho, luto por mudançasefetivas. Será que não é possível unir essas duas vidas?”.

AAAAAOOOOO SOMSOMSOMSOMSOM DDDDDAAAAA CÍTCÍTCÍTCÍTCÍTARAARAARAARAARA DEDEDEDEDE O O O O ORFEURFEURFEURFEURFEU

Sincronicidade ou não, o fato é que um dia após pedir demissão, soube que umaONG cultural que trabalhava com Folclore e Cultura Popular, no bairro do Bixiga,necessitava de um assistente de pesquisa. Até esse momento de sua vida, sua rela-ção com o “folclore” tinha sido também ambígua. Em sua infância, apesar de ternascido em São Paulo, morou em casas onde sua mãe sempre manteve uma pe-quena horta com ervas medicinais e aromáticas.

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Assim, desde criança, estava acostumado com os remédios caseiros para tosse, dorde barriga entre outros. Era parte de sua rotina ser benzido por uma vizinhaidosa, principalmente quando tinha pesadelos, algo frequente em sua infância,como já foi narrado. Mas é claro que houve um momento em sua vida que pas-sou a considerar a medicina da mãe fruto da “alienação” popular. Foi na fase emque seus maiores amigos foram Apolo e Prometeu. Assim, criticava exaustivamen-te a medicina popular irracional e defendia, em oposição, uma visão científica domundo. Homeopatia, acupuntura e outras práticas alternativas, ele também olha-va com desprezo.

Mas como a missão de lutar contra a ignorância e as superstições estava setornando algo de seu passado, não fazia mais sentido pensar o “folclore” como“coisa de alienado”, fruto da pobreza e da miséria socioeconômica ou como algoque deveria necessariamente ser superado. Assim, resolveu tentar a vaga de assis-tente de pesquisa. Foi nesse período também que começou a redescobrir o saboralquímico da alimentação.

A ideia de se alimentar de luta não mais o agradava e o gosto em mexer coma terra, cultivar verduras e legumes, preparar a própria refeição começou a tomarforma dentro dele. Uma experiência extremamente prazerosa que ele levou quasetrinta anos para descobrir.

Em relação à entrevista na ONG, Orfeu colocou-se à disposição. Com umolhar complacente, pediu ao rapaz para ficar tranquilo e deixar que ele, na hora,iria dizer-lhe como se comportar e falar. Orfeu, cantor e poeta, encantou de talforma o entrevistado que, em poucos dias, o jovem começou a trabalhar na AbaçaíCultura e Arte, pesquisando alimentação, lendas, músicas, danças, folguedos, entreoutros fatos “folclóricos” de três regiões diferentes: Vale do Paraíba e Vale do Ribei-ra, no estado de São Paulo, e a região da cidade de Três Rios, no estado do Rio deJaneiro. As pesquisas realizadas serviam de base para a montagem de espetáculosparafolclóricos que uniam música, dança e teatro. Na Abaçaí, além das pesquisas,tornou-se, também com a ajuda de Orfeu, um dos violonistas do grupo e se apre-sentou no espetáculo “Missa de Malungos”, organizado para as comemorações dos

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500 anos da América, apresentado-se em vários locais, como o Memorial da Amé-rica Latina, o Teatro Municipal de Campos do Jordão, o Teatro Municipal de SãoJosé dos Campos e em várias igrejas da Grande São Paulo.

Para sua manutenção, o grupo também organizava eventos culturais e artís-ticos. No período em que trabalhou na Abaçaí Cultura e Arte, participou da orga-nização de dois eventos no SESC Pompéia, um deles denominado Arraial de Iguape,que reuniu músicos da região, espetáculos de dança, venda de artesanato e decomidas típicas. Ajudou na organização de outro evento com o SESC Carmo, naPraça da Sé, de difusão de danças folclóricas e parafolclóricas, além de algumasperformances com os famosos “bonecões do Abaçaí” na inauguração do SESCIpiranga e do SESC Itaquera, em meados da década de 1990.

Durante os dois anos em que trabalhou na ONG, sua vida parecia encantada.Pela primeira vez sentia algo de mágico no trabalho que realizava. Seu salário tam-bém era irrisório, como quando lecionava. Mas o trabalho com arte e cultura per-mitia uma sensação muito diferente, como se uma centelha divina se acendesse nofundo de sua alma. Cada espetáculo tinha uma aura diferente. O calor e a solidari-edade tanto do público que assistia aos espetáculos como dos demais membros dogrupo criavam dentro dele um sentimento ambíguo de reconhecimento do seupróprio valor, aumentando sua autoestima, e, ao mesmo tempo, um forte desejode amar e aceitar as pessoas, a natureza, sua cidade...

O O O O O RETORNORETORNORETORNORETORNORETORNO DODODODODO MAGOMAGOMAGOMAGOMAGO: : : : : CRIANDOCRIANDOCRIANDOCRIANDOCRIANDO VÍNCULOSVÍNCULOSVÍNCULOSVÍNCULOSVÍNCULOS EEEEE CULCULCULCULCULTIVTIVTIVTIVTIVANDOANDOANDOANDOANDO AAAAA TERRATERRATERRATERRATERRA

Além do trabalho na Abaçaí, ele criou no CRUSP (Conjunto Residencial daUSP), onde morava, um grupo ecológico chamado “espaço cotidiano”. Se, emsua vida prometéica, participou da coordenação do Centro Acadêmico por duasgestões seguidas, foi um dos reorganizadores da Associação de Moradores doCRUSP etc., nessa nova fase não encontrava mais interesse na “luta”. Nesse mo-mento, ele queria abraçar outras ideias e projetos. Cooperar, enfim. Por isso, seugrupo ecológico precisava ser independente da Associação de Moradores, já queo espírito do grupo era o de cooperar com o órgão que administrava a moradia

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estudantil, e também com a Associação, porém com autonomia e independênciade ambos. Caso fosse vinculado a esta, necessariamente teria que lutar contra aCOSEAS, como fazia politicamente a Associação, por razões internas do movi-mento estudantil, cuja palavra de ordem na época era “fora Sarney, Goldenberg eWanderley”, respectivamente, o presidente da República, o reitor da USP e ocoordenador da COSEAS.

Assim, motivado por Hermes, o deus criador de vínculos, o grupo organizoua primeira experiência de coleta seletiva de lixo na moradia. Em todas as cozinhasdo bloco F foram colocadas caixas de papelão para que os moradores interessadosseparassem metal, vidro, papel e plástico. No final de semana, um sucateiro vinhacom a sua Kombi e levava o material coletado. Para armazená-lo durante a semana,a COSEAS construiu um pequeno “acondicionador” em frente ao bloco residencial.Alguns meses depois, a prefeitura do Campus fez um acordo com a Prefeitura Mu-nicipal de São Paulo para colocar containers coloridos na entrada da Universidade.O grupo aproveitou-se do momento e solicitou ao prefeito da Cidade Universitáriaque negociasse também um conjunto próximo à moradia estudantil. Assim, com aimplantação dos containers, desativou-se a coleta nas cozinhas e os moradores pas-saram a levar diretamente o material reciclável até eles.

Além desse trabalho, o grupo mantinha uma horta comunitária em frente aobloco F, com vários tipos de verduras e ervas medicinais e fez um projeto de arborizaçãodo CRUSP com árvores frutíferas, plantando mudas doadas pela prefeitura do campusentre os blocos F e D e entre os blocos A e C. E como o espaço mais alquímico de umacasa é a cozinha, com frequência faziam “banquetes” em uma das cozinhas coletivasdo CRUSP, com os ingredientes da horta, assim como Hermes costumava fazer paraos demais deuses do Olimpo. E um de seus parceiros para estas cerimônias, era odionisíaco Luis Miranda, hoje referência do humorismo brasileiro.

OOOOOSSSSS TRABALHOSTRABALHOSTRABALHOSTRABALHOSTRABALHOS DEDEDEDEDE H H H H HÉRCULESÉRCULESÉRCULESÉRCULESÉRCULES EEEEE OSOSOSOSOS LLLLLAÇOSAÇOSAÇOSAÇOSAÇOS DEDEDEDEDE A A A A ANANKENANKENANKENANKENANKE

Em 1995, quando estava com 29 anos de idade, sua casa 8, a casa regida porescorpião, manifestou-se profundamente em sua vida. Mas a sua casa das

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transmutações estava no signo de Virgem, o que indicava também muito trabalho,sobretudo burocratizado e minucioso. Foi nesse momento de sua vida que leu nosclassificados de um jornal que uma organização, que não se identificava no anún-cio, precisava de animadores culturais para trabalhar em Interlagos. A única exigên-cia era ser graduado em algum curso superior. Como estava sob a influência dePlutão, seu poder intuitivo estava muito apurado. Logo imaginou que a organiza-ção seria o SESC e resolveu se inscrever. Após uma bateria de entrevistas, testes,redações etc. um novo trabalho se descortinou em sua frente. Ingenuamente, ima-ginou que estava no paraíso, realizando o trabalho de sua vida.

Ele nem sequer imaginava que aquela passagem por Interlagos era apenasuma trama necessária para se atingir uma transformação ainda maior, costuradapelas linhas das Moiras e pré-figurada pelos astros. Três ou quatro meses se passa-ram e o novo emprego começou a ficar angustiante. Sem se dar conta do queestava acontecendo começou a sentir falta da relação fratriarcal e dionisíaca pre-sente no trabalho de pesquisa e criação de espetáculos na Abaçaí - apesar daconstante falta de recursos.

Em seu novo emprego era forçado a um trabalho sem imaginação, semprazer e extremamente estressante, pois, além do cansaço com a longa viagem detrem e ônibus para chegar até lá, as atividades que precisava realizar eram dignasapenas para voluntariosos heróis, e não para simples mortais. Diariamente preci-sava suportar um ativismo enlouquecedor para atender cerca de 5000 crianças,além da organização excessivamente burocrática e dos chefes que nunca estavamsatisfeitos com o resultado obtido e falavam: “aqui é necessário matar um leãopor dia!”.

Mesmo assim, nas lacunas existentes, e antes que o estresse tomasse contade seu corpo e de sua mente, organizou alguns eventos que o deixaram realmentesatisfeito. Um deles foi denominado “Passaporte da cidadania: o direito à cultura,ao esporte e ao lazer”, realizado para comemorar o sexto aniversário do Estatutoda Criança e do Adolescente (ECA) e que envolveu um número significativo deentidades sociais da zona sul da cidade de São Paulo; uma exposição denominada“fique por dentro dos répteis”, montada com o apoio do zoológico de São Paulo

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no interior de um escorregador cuja forma é a de um jacaré gigante, projetadopela arquiteta Marcia Maria Benevento. Quando este trabalho de “animação cul-tural” se descortinou em sua frente, ainda vivendo as amarguras do processoseletivo, imaginava aquele ambiente de trabalho como a materialização das pala-vras de Platão, em Fedro:

Ah! Por Hera, que lindo lugar para parar um pouco! O plátano cobre um espaço tãogrande quanto sua altura. E este pimenteiro silvestre, como é grande e quão maravi-

lhosa sua sombra! E assim todo florido, o lugar não poderia estar mais perfumado. E ofascínio ímpar desta fonte que corre sob o plátano, o frescor de suas águas: basta a

ponta do pé para dizê-lo. E diga-me, por favor, se o ar puro que aqui se respira não éapetecível e extraordinariamente agradável. Clara melodia de verão que faz eco aocoro das cigarras. Porém, o requinte mais precioso é o deste gramado que, com a

suavidade natural de seu declive, permite que, quando nele se deite, a cabeça fiqueperfeitamente à vontade.

Porém, a experiência vivida naquele maravilhoso lugar foi muito diferente.Isto só ajudou a fortalecer um sentimento de aversão à cidade de São Paulo.Quando este sentimento topofóbico se apoderou dele definitivamente - e com aforça de Plutão, o príncipe das trevas na casa 8 - conseguiu romper finalmentecom os laços de Ananke que o prendiam à cidade onde nasceu.

Sempre que pensava na possibilidade de se mudar, os laços de Ananke oseguravam. Mas, agora, a ruptura parecia inevitável e conseguiu o que para mui-tos é impossível: abandonar em definitivo a cidade hercúlea de São Paulo, cidadeonde nasceu e morou por quase trinta anos. Os astros sabiamente colocaramVênus no lugar certo e na hora certa para criar nele uma poderosa vontade de se(re)envolver com o mundo e ser capaz de compreender as sábias palavras deHémon, em Antígona:

Sábio é o que não se envergonha de aceitar uma verdade nova e mais sábio é o que aaceita sem hesitação. Quando a tempestade cai sobre a floresta, os abutres que se cur-

vam à ventania resistem e sobrevivem, enquanto tombam gigantes inflexíveis. Domina a

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tua cólera e cede no que é justo. Jovem que sou, sei que o que digo vale muito pouco:acho que o ideal era nascermos todos sábios, sem precisarmos aprender nada de nin-

guém. Mas como isso acontece raramente, é bom ouvir opiniões contrárias.

Assim, ao aprender a ouvir os outros, foi seduzido pelas palavras de umanimador cultural residente em São José do Rio Preto e resolveu trabalhar no inte-rior. Depois de tanto refletir se a experiência seria válida, resolveu pedir transferên-cia e ocupar uma vaga de animador cultural no SESC daquela cidade. Também foifundamental para essa decisão duas experiências na capital, classificada por ele como“cidadania paranóica”. A primeira foi vivida enquanto ele ainda cursava as discipli-nas do mestrado (1993-1996): ao tomar um ônibus, em frente à Faculdade de Edu-cação da USP, percebeu o início de uma discussão entre uma estudante e o cobra-dor. Este não tinha cinco centavos para dar de troco e pediu para a estudanteaguardar alguns minutos. Ela se enfezou e começou a gritar que o troco era direitodela e o queria imediatamente. O cobrador, até esse momento, falava sem se exal-tar que daria o troco, mas ela precisava esperar um pouco. Aí começou o discursoda estudante: “eu sou cidadã e exijo ser tratada como cidadã...”.

O cobrador, então, retrucou: “se você quer ser tratada como cidadã apren-da a tratar os outros com mais educação, você estuda para quê?...”.

O jovem mestrando não sabia o que fazer e ficou apenas observando, mas,felizmente, um senhor estava no ônibus e num momento de “iluminação divina”tirou do bolso da camisa uma moeda de cinco centavos e a entregou para ocobrador. Este a entregou para a estudante que, finalmente, sentou-se no fundodo ônibus e ficou murmurando o resto da viagem, reclamando por não ser trata-da como “cidadã”.

E a segunda experiência o envolveu diretamente. Havia na USP, na décadade 1990, um estudante que perambulava pelos prédios da Faculdade de Filosofiada USP falando sozinho pelos corredores. Ele era muito parecido com o ZéRamalho, cantor e compositor. Algumas pessoas diziam que ele ficou daquelaforma após a conclusão do seu mestrado em Ciências Sociais; outras, que elenunca estudou regularmente e que sempre foi daquele jeito. O importante, po-

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rém, foi que, em 1996, nosso herói, que já até possuía um título de “mestre emEducação”, vivia uma rotina bem singular na cidade de São Paulo: levantar entrecinco e meia e seis horas da manhã, tomar um ônibus do bairro do Butantã até aAv. Rebouças; em seguida, andar até a estação Pinheiros e tomar um trem até aestação Jurubatuba e, enfim, tomar outro ônibus até o SESC Interlagos onde tra-balhava.

E, numa certa manhã, na estação de Pinheiros, por volta das sete horas, láestava o estudante que falava sozinho. Quando chegou o trem, ambos entraramno mesmo vagão. Inspirado por algum vento, o “falador” o seguiu e se sentou aoseu lado. Depois de alguns minutos começou a falar que era da coordenação doMovimento Sem Terra na região sudeste e que estavam cadastrando estudantesuniversitários para invasões no estado de São Paulo e queria cadastrá-lo.

O então animador cultural do SESC agradeceu o convite e lhe disse que eramjustas as reivindicações do movimento, mas preferia apoiá-lo de outra forma. Suaspalavras ofenderam o “militante” que, muito mais enfezado que a jovem sem tro-co, começou a gritar dentro do trem que ele era um “burguês” e que na USP sótinha “burguês filhinho de papai”. Assustado com a agressividade daquele passagei-ro, o jovem animador cultural tentou manter-se calmo e atento caso o “militante”tentasse agredi-lo fisicamente. Para complicar a situação, aquele era um ano eleito-ral e ele se dirigia ao SESC com um pequeno broche de apoio a um candidato avereador chamado Elias Lilikã, cuja plataforma era voltada basicamente para a co-munidade GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes).

O broche tinha a forma de uma fita (semelhante a das campanhas contra aAIDS) com as cores do arco-íris (signo do movimento GLS). Ao ver o broche, o“militante” exteriorizou todo o seu preconceito e começou a gritar dentro dotrem: “pessoal, olha que bichona! Esse cara defende gay! A bichona defende gay!Do movimento sem terra ele não quer saber, mas anda com fitinha gay!”. Para asua sorte, o trem chegou à estação Santo Amaro e o “militante” desceu resmun-gando. O jovem continuou sua viagem para o trabalho, mas com uma importan-te decisão em sua mente: mudar o mais rápido de São Paulo, a capital do des-envolvimento, da paranoia e da esquizofrenia.

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Foi nessa época também, devido a influência de Plutão em seu mapa astral,que o jovem mestrando descobriu o Reiki, uma técnica de imposição das mãoscriada supostamente por um monge budista japonês chamado Mikao Usui, nofinal do século XIX. O contato foi da seguinte forma. Em um certo dia, no SESCInterlagos, encontrou sobre a mesa um panfleto de uma outra unidade, o SESCCarmo, divulgando um evento sobre o Reiki. O jovem ficou curioso para conhe-cer aquela terapia que parecia ser uma forma de se energizar como tambémenergizar outras pessoas sem fazer esforço físico. Até esse momento, ele associava“energizar” com mexer o corpo e experiências similares. Na época, até brincouque era uma forma perfeita de energização para pessoas “ociosas” e “preguiço-sas” como ele.

Porém, ao se informar sobre a “especialização” na técnica, ele ficou decep-cionado com os valores e com as explicações que recebeu. A ideia de pagar porum ritual iniciático para abrir seus canais de comunicação com o sagrado pareciamais charlatanismo do que outra coisa. Mas o ciclo das transmutações plutonianasestava apenas começando...

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Com sua transferência para o interior aprovada, descobriu depois de 30 anos osignificado da palavra Tempo Livre. Esta deixou de ser um conceito acadêmicopara ser algo vivido. Foi quando, então, lembrou-se do velho Kairós, o homem queele conheceu alguns anos atrás. Em São José do Rio Preto não precisava mais des-perdiçar cerca de 5 horas por dia para se locomover pela cidade apenas para ir decasa ao trabalho e vice-versa. Em apenas 15 minutos ele se dirigia a pé até o trabalhoe podia voltar para almoçar em casa, quando quisesse. Os dias no interior pareciammuito mais longos e saborosos.

Nos primeiros meses de vida na cidade sentiu-se perdido sem saber o quefazer. Seu corpo ainda guardava as marcas da correria hercúlea vivida na cidadede São Paulo e se sentia como um viciado em drogas em crise de abstinência. Masele sabia também que precisava resistir e se acostumar com o novo tempo. E, para

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isso, Kairós foi um grande aliado. Ao reencontrá-lo em Rio Preto, em uma praçano centro da cidade, Kairós lhe contou a história de Éros e Psique. O novo anima-dor cultural do SESC Rio Preto se apaixonou pela história que era mais ou menosassim: O filho de Afrodite estava envolvido com a jovem, mas esta nunca podiavê-lo. Quando ela, através de uma artimanha, rompe o acordo, eles se separam,se des-envolvem. Mas, após realizar alguns trabalhos sugeridos por Afrodite, elesse envolvem novamente, ou seja, se reenvolvem, mas de uma forma muito maisprofunda e franca, diferente do primeiro envolvimento. E o re-envolvimento passoua ser a meta que estabeleceu em seu novo emprego.

Para isso, contribuiu bastante o ambiente de trabalho menos competitivoe mais fraterno daquela unidade do SESC. Lá conseguiu finalmente encontraruma paz de espírito ou o ócio necessário para se re-envolver com o seu corpo edesamarrar os laços que o prendiam ao passado hercúleo. E, como o ano de1997, em seu mapa astrológico, estava destinado a ser muito criativo, tudo cons-pirava a seu favor. Com a ideia de re-envolver as pessoas, em pouco tempoconseguiu organizar eventos com idosos, com crianças, com artistas plásticos dacidade e chegou a editar dois livretos: “Dinorah do Valle, uma vida dedicada àhistória e à memória de Rio Preto” e o “Guia do Blues”. O primeiro foi umahomenagem a uma das mais importantes jornalistas da cidade e, o segundo,uma tentativa de difundir e valorizar os diferentes estilos de Blues na cidade.Conseguiu também organizar uma das primeiras experiências de bate-papo onlinecom artistas, na cidade.

Com o apoio de um provedor de acesso à internet, conseguia colocar osartistas que se apresentariam na unidade em contato com o seu público, horasantes da apresentação. O primeiro foi com o músico Loop B, cujo trabalho mistu-ra música eletrônica e percussão em sucata e, o segundo, com o cantor, composi-tor e repentista Jorge Mello, parceiro de Belchior em diversas composições.

Apesar da ambiência mais afetual vivida no município, seu organismo nãoconseguiu se acostumar ao calor da cidade e, no final daquele ano, ao surgir apossibilidade de uma nova transferência, dessa vez para o SESC São Carlos, loca-lizado em uma cidade também acolhedora, porém, com um clima físico mais

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agradável, tratou logo de conseguir o apoio necessário para começar a trabalharna cidade conhecida como a “Capital do Clima”.

Apesar de atuar como animador cultural, em São Carlos seu trabalho concen-trou-se na área da Comunicação. O que não foi nenhum problema, pois no mestradoele havia sido Coordenador de Comunicação da Associação de Pós-Graduandos daUSP e, nas outras unidades do SESC onde trabalhou, sempre se envolveu com aspessoas desse setor.

Muitas vezes, ele mesmo projetava o material de divulgação dos eventosque coordenava ou, quando tinha mais tempo, produzia todo o material em seucomputador e, o responsável do setor, apenas tinha o trabalho de fechar o arqui-vo e encaminhá-lo para a gráfica. Assim, apesar de não se envolver diretamentecom a organização de eventos, o trabalho que realizava o agradava muito.

Porém, no mês de maio de 1998, quando uma animadora cultural da uni-dade entrou em férias, ele conseguiu organizar um evento denominado MostraSESC de Música Eletrônica, reunindo alguns dos mais significativos grupos brasilei-ros. Além dos espetáculos, durante o evento foi lançado o Guia SESC de MúsicaEletrônica, um levantamento histórico deste gênero musical. Mas o que mais oagradava era editar um livreto chamado Cinefilia, que além de trazer a programa-ção de cinema da unidade, trazia informações sobre a história do cineclube eoutros assuntos relacionados com a sétima arte, sua antiga paixão.

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Aos 32 anos de idade os aspectos ígneos da casa 9, a casa dos estudos filosófi-cos, das viagens e da verdade, começou a se manifestar com mais força em suavida, além das forças de seu ascendente, no signo de Aquário. E tudo seria mara-vilhoso se sua casa 9 não estivesse no signo de escorpião, o que não o liberavacompletamente da força de Plutão. Esta foi importante para que o jovem anima-dor cultural descobrisse o outro e também a morte, os dois mistérios terríveis queo homem não é capaz de entender, como podemos perceber em Antígona:

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Muitas são as coisas prodigiosas sobre a terra, mas nenhuma mais prodigiosa do que opróprio homem. Quando as tempestades do sul varrem o oceano, ele abre um caminhoaudacioso no meio das ondas gigantescas que em vão procuram amedrontá-lo: à mais

velha das deusas, à Terra eterna e infatigável, ano após ano ele lhe rasga o ventre com acharrua, obrigando-a a maior fertilidade. A raça volátil dos pássaros captura, muita vez,

em pleno voo. Caça as bestas selvagens e atrai para suas redes habilmente tecidas eastuciosamente estendidas a fauna múltipla do mar, tudo isso ele faz, o homem, essesupremo engenho. Doma a fera agressiva acostumada à luta, coloca a sela no cavalo

bravo, e mete a canga no pescoço do furioso touro da montanha. A palavra, o jogo fugazdo pensamento, as leis que regem o Estado, tudo ele aprendeu, a si próprio ensinou.

Como aprendeu também a se defender do inverno insuportável e das chuvas malsãs. Viveo presente, recorda o passado, antevê o futuro. Tudo lhe é possível. Na criação que cerca

só dois mistérios terríveis, dois limites. Um, a morte, da qual tenta escapar. Outro, seupróprio irmão e semelhante, o qual não vê e não entende...

A partir do momento que conseguiu romper com os laços de Ananke, alémdos vínculos com sua cidade natal, outras rupturas seriam também necessárias,mas ele não sabia disso. E, assim, sentiu a dor da ruptura pela primeira vez quan-do o seu melhor amigo em Rio Preto, aquele que o convenceu a ir para o interior,envolveu-se em um acidente automobilístico. Foi uma situação muito diferentedaquela vivida com a morte do avô. A morte do velho anarquista havia sidomágica e os vínculos entre eles de certa forma nunca foram rompidos. Agora eradiferente. Sentia no peito a dor da separação e não conseguia entender o queestava acontecendo.

E como estava vivendo as forças da casa das viagens e dos estudos, a casade Sagitário, passou em um concurso para o doutorado na USP. Assim, sua “casadas viagens” foi vivida com viagens semanais para a capital, durante 2 anos segui-dos. A impossibilidade de conciliar o trabalho no SESC e o doutorado fez comque ele tivesse que pedir demissão e viver com uma bolsa de estudo até meadosde 2003. Para completar, começava a aparecer em seu mapa a força de Posseidon,a mesma que destruiu o labirinto de Minos, através do planeta Netuno. E essaforça é, por natureza, criativa e caótica. Durante o doutorado, conseguiu empre-go em duas faculdades do interior.

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Mas a experiência não foi muito boa. Em ambas foi mandado embora. Emuma delas lecionava uma disciplina denominada “História da Educação I” e oconteúdo enfatizava a educação Grega e Romana. Na elaboração de seu plano deaula, alguns autores se tornaram obrigatórios, como Hesíodo e Homero. Paradiscutir a escola de Epicuro, ou melhor, criar a ambiência desta escola, todos osmeses, em uma das aulas, os alunos comemoravam o aniversário de alguém. Alémda festa, algumas atividades como Jogos Cooperativos, dinâmicas de grupos etc.aconteciam na aula. Quando algum vídeo era exibido, os alunos levavam umconfortável tapete e diversas almofadas, e se esparramavam pelo chão. Tudo issoirritou a coordenadora do curso, uma doutora em Educação pela UNICAMP, e elefoi demitido no final do ano letivo com o argumento de que o MEC não aceitavanada daquilo que ele permitia em sala de aula.

E na outra faculdade lecionava no curso de Arquitetura uma disciplina de-nominada “A cidade: aspectos sociais e antropológicos”. Ele havia recebido umconvite do coordenador do curso para ministrar esta disciplina cujo objetivo erafazer os alunos descobrirem o outro, o valor da diversidade. Ele ficou fascinadocom a proposta da disciplina e do curso como um todo, pois os alunos do cursode Arquitetura tinham aulas de teatro, de técnicas circenses, andavam em cadeirasde rodas pelas ruas da cidade, entre outras formas não convencionais de técnicaspedagógicas.

Tudo isso era para que os alunos pudessem vivenciar o espaço urbano e nãoapenas pensá-lo. Em sua disciplina, fez um projeto para os alunos interagiremcom os idosos, com as crianças, com os deficientes físicos, com os gays entreoutros grupos humanos. O trabalho de campo era realizado em uma praça nocentro da cidade onde os alunos procuravam compreender como ela era vivenciadae imaginada por cada grupo que a frequentava diariamente. O trabalho final dosalunos seria a organização de uma exposição com desenhos da praça a partir dasperspectivas e sonhos levantados durante a vivência com os usuários.

Esta exposição ficaria na faculdade e também na praça. O grupo de alunosque levantava a “praça” das crianças estava elaborando um projeto que tinha atételeférico. A “praça” dos idosos era um pouco diferente. Tinha muito verde e segu-

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rança. Por seu lado, a praça dos portadores de deficiência física tinha um novotraçado e passeios sem buracos. Os alunos pareciam envolvidos no projeto e tam-bém as pessoas que frequentavam a praça, pois estas se espantavam quando desco-briam diferentes opiniões e todas tão coerentes. Os idosos, por exemplo, ficavamadmirados com a imaginação das crianças e se comoviam com a dificuldade dosportadores de deficiência física, que era diferente da que eles enfrentavam.

Essa descoberta do Outro mexia profundamente com todos. Mas, duranteas férias escolares, no meio do ano letivo, a coordenadora pedagógica da faculda-de se rebelou contra o caos netuniano que, em sua opinião, em nada se asseme-lhava a um curso de Arquitetura. Por isso, demitiu o coordenador do curso, alte-rou a grade curricular e afastou todos os professores que “brincavam” ao invés delecionar. E, o mais engraçado, com o mesmo argumento da outra faculdade: o“monstro” MEC não aprovaria um curso de arquitetura como aquele.

Mas o ciclo de Escorpião não havia se encerrado e, como a Morte é um deseus mais importantes atributos, uma nova separação se fez presente em sua vida.Dessa vez com o pai. Quando ambos (pai e filho) pareciam que finalmente iriamse entender, um câncer no sistema digestivo do velho seguidor de Ares veio paraselar aquela separação. Era mais um castigo por desafiar Ananke e os seus laços.Para coroar o processo, sua morte ocorreu no dia do renascimento (mais umatributo plutoniano), no Domingo de Páscoa de 2001.

Porém, o que talvez seja o aspecto mais importante dessa relação parado-xal capaz de reunir as forças esotéricas e caóticas de Netuno foi a redescoberta doReiki e da espiritualidade. Se em 1996 ele não se encantou com o Reiki, a força deNetuno que costuma acompanhar cada um de nós por volta dos 38 anos, jácomeçava a se manifestar nele e, nesse momento de sua vida, praticamente oconduziu ao ritual, mesmo pagando 500 reais por ele. E, ao passar pelo ritualiniciático do Reiki (nível I), ele notou que ao seu lado havia três grupos bemdefinidos de pessoas: o com graves problemas de saúde (câncer no útero, câncerde mama etc.) que buscavam no Reiki uma forma de amenizar seus sofrimentos;o grupo dos que tinham parentes doentes e, como o primeiro, queria amenizar oproblema de seus entes queridos e, por fim, o grupo daqueles que trabalhavam

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com “terapias alternativas” e queriam se especializar em mais uma técnica paraoferecer em suas clínicas. Ele era, portanto, o único que estava lá para fazer ainiciação de forma desinteressada, levado apenas pela curiosidade. Com seus amigosbrincava dizendo que foi fazer a iniciação sem segundas intenções a não ser “ma-tar o tempo com mais dignidade”.

Assim, ao invés de fazer uma viagem, ir ao cinema, por exemplo, foi participarde um caro ritual. Durante vários meses, porém, ele não teve coragem de aplicar Reikiem outras pessoas. Aliás, nem falava para as pessoas com quem convivia na Universi-dade que era reikiano. Ele tinha receio de perder o emprego na faculdade ondelecionava e também de ser ironizado pelos colegas da USP onde fazia o seudoutoramento. Assim, ele se contentava em sentir, egocentricamente, a agradávelaplicação de Reiki. Quando o Reiki foi incorporado definitivamente em sua vida,começou a aplicá-lo em familiares e em alguns conhecidos.

E depois de várias vivências com a energia universal, resolveu disponibilizar nainternet algumas de suas experiências. Isso o fez perder alguns amigos, sobretudo osmarxistas, mas, por outro lado, conheceu pessoas espiritualizadas e sensíveis que oajudaram a pensar, sentir e agir no mundo de uma outra forma, valorizando a hierofaniano cotidiano. O mais importante, porém, é que agora ele não era mais um amyEtos(um não iniciado) e poderia dar continuidade ao trabalho do velho anarquista ekardecista. Possivelmente, o seu principal diaktoros (guia, mensageiro) nesses anostodos, ora aparecendo na figura de Hermes, ora de Dioniso, ora de Orfeu...

Mas esse caminho que escolheu não é totalmente seguro ou sem desafios.Certo dia, resolveu mandar uma mensagem para a lista de discussão dos pós-graduandos da USP sobre o Reiki, particularmente, sobre uma técnica que intuiupara trabalhar a energia universal com grupos, denominada Mandala Reiki, e quehoje é conhecida como Terapia Vibracional Integrativa (TVI). Após postar a men-sagem, recebeu uma resposta mais ou menos assim: “como é que permitem queuma bobagem como essa circule em uma lista de pós-graduação”. Se isso tivesseacontecido anos antes, sentiria vergonha de sua ousadia, mas, nesse momento,sua atitude foi mais simples. Apenas começou a rir da resposta, pois, de certaforma, não esperava por nada diferente. Ele sabia que as mudanças na Academia

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são lentas, novos paradigmas podem ser incorporados, mas apenas na forma deideias, nunca na forma de vivência.

Ainda em 2001, criou com alguns amigos o Centro de Estudos e VivênciasCooperativas e para a Paz, onde além do Reiki, a comunidade podia usufruir deaulas de hatha-yoga, danças circulares, meditação etc.

E com a lua no signo de Áries, ou seja, com uma sensibilidade heróica paradefender seus princípios e valores, resolveu que precisava falar em espiritualidadeou em práticas numinosas com educadores ou em sala de aula. Se não fizesse issoseria um eperopeutes (enganador). Assim, resolveu transformar sua Tese de dou-torado em uma das primeiras pedras de uma longa jornada que teria pela fren-te, em busca de um lugar koinos hermes (onde possa compartilhar o achado deHermes, os tesouros encontrados). Articulando as informações que passou areceber do mundo espiritual com o estudo de autores ocidentais tais como Ed-gar Morin, Gilbert Durand, C. G. Jung, Mircea Eliade, entre outros, tentou ela-borar argumentos científicos para defender sua Tese, onde propôs a noção deanimagogia, uma educação espiritualista cujo objetivo básico seria o(re)envolvimento do ser com a comunidade, com a natureza, o Outro e, sobre-tudo, com a sua própria alma.

Curiosamente, depois de muitos anos, (re)encontrou-se com o espiritismokardecista e, possivelmente, com o seu avô, que nos trabalhos mediúnicos se mani-festava com o nome de Tupã, usando a forma de um índio com postura altiva e vozgrave. Este “índio” nunca disse abertamente que era o seu avô paterno, mas deixou,por várias vezes, sinais que o fez pensar nessa hipótese. Esta experiência o extasioue teve uma ideia singular. Fazer estudos de História Oral com os espíritos, o quechamou de espiritologia. Como um discípulo de Hermes, unir comunicação e espí-ritos não era nenhum empecilho mental. Aliás, paradoxos são sempre estimulantes.Assim, se a técnica de História Oral era algo que dominava desde a graduação, eque usou e abusou dela quando trabalhou na Abaçaí Cultura e Arte e também emseu mestrado, por que não a utilizar para entrevistar seres incorpóreos?

Assim, em 2003, no mesmo ano em que defendeu o seu doutorado, termi-nava a coleta de depoimentos dos espíritos sobre o Reiki e outras terapias com-

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plementares. Entre os anos de 2003 e 2005, ainda vivendo sob a influência de suacasa 9, organizou o material e o transformou em alguns livros que foram impres-sos e também distribuídos pela Internet.

Mas a influência de saturno também se fez notar em seu novo emprego:professor de idosos, em uma instituição pública. A partir de agosto de 2003, apóspassar em um concurso público em que se inscreveu no último dia, começou umanova experiência profissional lecionando para pessoas acima de 60 anos de ida-de. Graças a essa experiência tão gratificante, voltou a acreditar na educação. Masnão mais aquela educação militante, que fala em revolução e em mudanças; masuma educação para a paz, para a harmonia, para a convivência e a troca deexperiências... Enfim, os sinais da influência saturnina, estimulando o repouso e acooperação entre os diferentes.

E Graças a essas singulares experiências, em 2005, Hermes e Dioniso acha-ram que ele já estaria pronto para conhecer um dos espíritos mais transgressores eanarquistas que já se manifestaram mediunicamente: o “preto-velho” pai Joa-quim de Aruanda. Não foi a toa que esse período que já manifestava indícios dacasa 10, também conhecido como a busca do dharma. Por isso, a racionalidade eo trabalho sob a influência de Cronos, se bem incorporada, pode ser muito pro-dutiva. E essa força, junto com a consciência da infinitude que adquiriu em suafase anterior, fez com que escrevesse vários livros, engatando um atrás do outro,e quase todos refletindo a relação nascimento/morte e sobrevivência.

E um dos fatos mais curiosos e singulares foi receber um e-mail de um anti-go amigo que trabalhou com ele no SESC Interlagos comunicando que tinha acha-do em uma gaveta a cópia de um livro infanto-juvenil escrito por ele em 1992.Sua expressão de alegria foi contagiante, pois o original havia se perdido em umapane no computador e não imagina que poderia resgatar aquele texto escritoquando tinha um pouco mais de 20 anos de idade.

O texto foi redigitado e, 20 anos depois, em 2012, transformado em livro.Acaso ou não, justamente quando o Brasil novamente sediava um evento, deno-minado, agora, Rio + 20. Recuperar aquele texto foi, sem dúvida, um presentedos deuses. E o seu nome não poderia ser outro: Rede da esperança.

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E o que mais se pode esperar da vida? A única certeza é que por volta de2016, quando estiver completando 50 anos de existência, terá com mais força acompanhia de Urano, já que a influencia de sua casa 11, a casa de aquário, a casado seu ascendente cada vez mais ativa em seu cotidiano.

E este re-encontro com Urano, o deus que não luta, mas que laça os inimi-gos e os traz para o seu lado, pode fazer que seu retorno a Ítaca seja realizado deforma serena e tranquila, ao contrário do que vivenciou Ulisses. Com a força deUrano atuando em sua vida, quem sabe todo o trabalho até aqui realizado possaser divulgado e expandido sem que seja preciso sair do colo de “Penélope”, aguar-dando, pacientemente, o momento de “Telêmaco” descer do céu para mais umaaventura pela Terra.

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“sinto-me contente de que minha vida tenha sido aquilo que foi: rica e frutífera.Como poderia esperar mais? Ocorreram muitas coisas, impossíveis de serem can-celadas. Algumas poderiam ter sido diferentes, se eu mesmo tivesse sido diferen-te. Assim, pois, as coisas foram o que tinham de ser; pois foram o que foramporque eu sou como sou. Muitas coisas, muitas circunstâncias foram provocadasintencionalmente, mas nem sempre representaram uma vantagem para mim.Em sua maioria dependeram do destino. Lamento muitas tolices, resultantes deminha teimosia, mas se não fossem elas não teria chegado à minha meta.”

C.G. JUNG

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Adilson Marques – é doutor em Educação pela USP e autor, até o momento de 33livros. Reside em São Carlos onde leciona na Universidade Aberta da TerceiraIdade e coordena o projeto Homospiritualis, voltado para a difusão da cultura depaz e da diversidade religiosa no município.

Publicou, entre outros:

“Psicosofia: sabedoria espiritual para um mundo em regeneração”;

“Nas trilhas indeléveis de Hermes: topofilia, memória e educação ambiental”;

“O reiki, a TVI e outros tratamentos complementares”;

“História Oral, Imaginário e Transcendentalismo: Mitocrítica dos ensinamentosdo espírito Pai Joaquim de Aruanda”,

Contatos: [email protected]