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Quando vier o perdão

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Quando vier o perdão

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Edição e distribuição

EDITORA EMECaixa Postal 1820 – CEP 13360-000 – Capivari – SP

Telefones: (19) 3491-7000/[email protected] – www.editoraeme.com.br

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Mônica Aguieiras Cortatpelo espírito Olavo

Quando vier o perdão

Capivari-SP— 2011 —

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Ficha catalográfica elaborada na editora

© 2011 Mônica Aguieiras Cortat

Os direitos autorais desta obra foram cedidos pela autora para a Comunidade Psicossomática Nova Consciência.

A Editora EME mantém o Centro Espírita “Mensagem de Esperança”, colabora na manutenção da Comunidade Psicossomática Nova Consciência (clínica masculina,

para tratamento da dependência química), e patrocina, junto com outras empresas, a Central de Educação e Atendimento da Criança (Casa da Criança), em Capivari-SP.

1ª edição – junho/2011 – 3.000 exemplares

Cortat, Mônica Aguieiras. Quando vier o perdão. Mônica Aguieiras Cortat pelo es-pírito Olavo,1ª edição, junho/2011, Editora EME, Capivari -SP. 336 p.1 – Literatura espírita. Romance mediúnico.2 – Brasil Colônia. Escravidão no Brasil. Resgate de vidas passadas. Livre-arbítrio. Lei do perdão.

CDD 133.9

Capa:André Stenico

Diagramação:Editora EME

Revisão:Editora EME

Revisado de acordo com o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

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“Quem acredita que a injustiça sempre vence, não conhece os caminhos de Deus”.

Pai Sebastião

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Sumário

Prólogo ........................................................................................................ 9Capítulo 1 – Ano de 1852 – Sudeste do Brasil – Infância .................. 11Capítulo 2 – Mistérios de pai Sebastião.............................................. 25Capítulo 3 – A recompensa .................................................................. 39Capítulo 4 – Olavo vai para a cidade.................................................. 43Capítulo 5 – A chegada de Roberto .................................................... 51Capítulo 6 – Notícias de pai Sebastião ............................................... 57Capítulo 7 – Vida na Corte – Sueli ...................................................... 65Capítulo 8 – A doença de Rafael ......................................................... 75Capítulo 9 – Verdades e arrependimentos ......................................... 87Capítulo 10 – O funeral .......................................................................... 99Capítulo 11 – O nascer de uma paixão ............................................... 105Capítulo 12 – O testamento ................................................................. 113Capítulo 13 – Sonhos de Estevão ........................................................ 119Capítulo 14 – O casamento .................................................................. 127Capítulo 15 – O amor de Estevão ........................................................ 135Capítulo 16 – As revelações de Carlota .............................................. 145Capítulo 17 – Depois do funeral ......................................................... 155Capítulo 18 – Vida na fazenda ............................................................ 161Capítulo 19 – Os “grandes negócios” de Roberto ............................. 167

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Capítulo 20 – Conversa com Roberto ................................................. 179Capítulo 21 – O pedido de Estevão .................................................... 183Capítulo 22 – Pressentimentos de pai Sebastião ............................... 191Capítulo 23 – O mundo espiritual ...................................................... 203Capítulo 24 – Preocupações com os vivos .......................................... 211Capítulo 25 – Izabel .............................................................................. 223Capítulo 26 – O suplício de Estevão ................................................... 231Capítulo 27 – Quando vier o perdão .................................................. 245Capítulo 28 – O plano de Hermínio .................................................... 257Capítulo 29 – A “proteção” de Virgínia ............................................. 273Capítulo 30 – A fuga ............................................................................ 279Capítulo 31 – O confronto com Roberto ............................................. 285Capítulo 32 – O castigo de pai Sebastião............................................ 293Capítulo 33 – Recado espiritual .......................................................... 303Capítulo 34 – Dez anos depois... ......................................................... 309Capítulo 35 – Na Colônia ..................................................................... 319Considerações finais de Ariel................................................................ 331

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Quando vier o perdão 9

Prólogo

Caminhei durante muito tempo, apressado e inseguro. Chegando ao platô pude observar a cidade aos meus pés, num calor modorrento de março, o ar parado e os pequenos insetos em sua faina diária. Por quan-to tempo fiquei assim, cismarento, cansado, a olhar a cidade pequenina que se descortinava à minha frente? Não conseguia achar sentido em tudo que me aconteceu. Ao longe vislumbrei o vulto de meu amigo vin-do ao meu encalço, suas vestes claras se agitando ao vento, as sandálias trançadas quase tocavam o solo e eu senti as lágrimas a me chegarem aos olhos. Finalmente vislumbrava um amigo, alguém que pudesse me esclarecer algo da situação em que me encontrava. Sua aparência jo-vem, os cabelos castanho-claros, o perfil harmonioso que se abriu em cansado sorriso quando se aproximou.

— Olavo! Há tanto que lhe busco... enfim consigo chegar a você!Dito isso, sentou -se ao meu lado, a observar -me com o mesmo cui-

dado que me tinha, enquanto estávamos naquela mesma pequena cida-de vista ao longe. Vendo meu olhar, entre feliz de vê -lo e confuso, meu querido Ariel deu leve sorriso.

— Vem... levanta! Já ficou por tempo demais preso por aqui. Esse seu ceticismo já lhe atrasou em anos! Custa tanto assim acredi-tar que a sua famosa razão pode não estar tão certa? Pequenos somos

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Mônica Aguieiras Cortat10

Olavo, na nossa compreensão do mundo e do Universo. Não se canse mais, venha.

Nos olhos dele pude ver a sabedoria acumulada que não condizia com sua jovem aparência. Ariel parecia ter bem mais idade do que seu vulto ainda jovem, de homem aos trinta anos, ainda me passava. Há quanto tempo não o via? Décadas? Sentindo -me velho e cansado de-mais para retrucar, levantei -me e segui -o. Assim que tomou de minha mão senti o cansaço arrefecer, e de súbito fui transportado como numa névoa e vi à minha frente os portões imensos e claros. Ainda medroso olhei para meu amigo, que sorria de leve com a minha admiração.

— Anda Olavo! Pensa que esteve em longa viagem e que agora retorna! Sei que não se lembra, mas confia em mim. Logo poderá des-cansar um pouco.

Ao ouvir a menção de “descansar”, fiquei satisfeito. Afinal, o can-saço já me assolava há não sei quanto tempo. Chegando à pequena casa, ele me instalou em quarto claro e simples, onde o cheiro de lavanda harmonizava o ambiente. Lembrei -me logo da casa na fazenda, onde as escravas perfumavam a roupa branca para o nosso sono. Sentindo -me assim confortado, deitei -me e finalmente adormeci.

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Capítulo 1

Ano de 1852 – Sudeste do Brasil – Infância

— Olavo! Anda menino, corre pra casa que a chuva já vem!Tivessem me perguntado, essa seria minha primeira lembrança.

Devia ter uns três ou quatro anos, mas ainda me lembro o quanto a chu-va me atraía. Pesadas nuvens cercavam nossa casa da fazenda, montes por todos os lados, o canavial se estendendo por quilômetros adiante. Lembro do cheiro dos negros a cortar as canas, suor e cansaço masca-rados com uma música que eles cantarolavam às vezes. Antes da chu-va, uma corrente elétrica parecia cruzar o solo, os pelos de meu braço eriçavam -se e o chamado dela me fazia esquecer de qualquer outra coi-sa. Os raios começavam a lamber o céu, os negros olhavam para cima, amedrontados, como se o mundo fosse cair -lhes na cabeça.

Mas, nem mesmo a mais terrível das tempestades poderia livrar os negros de sua luta diária a decepar as canas e levá -las para a moen-da. Lembro -me do capataz Joaquim, de cenho fechado, que tanto medo me infundia. Para mim, pequeno e rebelde a olhar a chuva que vinha de longe, seu vulto era mil vezes mais assustador que o de qualquer “corisco” que varasse o céu, e sua voz carregada de sotaque de outras terras, bem mais intimidante que qualquer trovão. Atrás de mim já vi-nha Januária, mulata gorda a balançar as ancas. Lembro de Januária pelo cheiro de cocada que ela exalava. Sempre às voltas na cozinha,

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a moer café, vigiar o fogo, fazer pão e doces. Podia sentir nela o amor que me tinha: amor que não pode ter pelos filhos, arrancados dela pela doença e a escravidão. Apenas um tinha sobrevivido à infância, para depois ser vendido aos dezoito anos, quando o senhor meu pai se viu em apertos financeiros.

Ainda assim era alegre, nossa Januária. Dizia sempre: “Deus dá e Deus tira. Nada é nosso nesse mundo.” E eu, infante alegre e descui-dado, a esperava terminar seu “resmungo” para me agradar com os doces.

— Parece mesmo um principezinho, com esses cachos na ca-beça. Mas não pode ver uma chuva que corre pro pátio! Já pra den-tro sinhozinho Olavo, senão “constipa” e sobra serviço a mais pra negra “aqui”.

A casa era grande, ladeada por janelas extensas, cadeiras de forro duro cobertas por tecido de veludo, que minha mãe apreciava bastan-te. Tudo sempre muito limpo, pois além de Januária eram várias as escravas sempre a cuidar de tudo, e minha mãe, apesar de não ser de gritos, era exigente. Mucama que não “desse conta” do serviço ia para a lavoura das canas. Logo, elas se esmeravam sempre, por medo de voltar ao canavial.

Quando pequeno tinha medo dos negros. Olhavam -me, na volta da faina diária, com olhares entre curiosos e ressentidos. Com a argúcia própria da infância podia sentir neles uma mágoa e uma fúria contida, que eu não entendia. Eram homens de estatura média, musculosos pelo uso das ferramentas de lavoura. A cantoria que às vezes entoavam, quando amontoados na senzala, me contavam de terras distantes em idiomas que eu desconhecia, ritmada e sofrida. Mas não eram todos que me metiam medo: havia um velho senhor que morava em peque-na choupana pouco distante da casa grande e que lidava com ervas. Era um negro já de carapinha esbranquiçada, alguns dentes faltando na boca, mas sempre com um sorriso quando me via. Chamava -me de “Inhô Lavinho”. Sebastião, até onde sei, estava na fazenda desde o tem-po de meus avós, e fazia pequenos bois de espiga de milho para que eu brincasse. Seu sorriso era bom e puro, e por mais que minha mãe o chamasse de “feiticeiro”, ela respeitava sua sabedoria para tratar dos

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males da fazenda. Não havia negro nem branco que prescindisse de seus cuidados.

Já minha mãe, apesar da pequena estatura, tinha personalidade forte. Sabendo que não podia contar com formosura, dedicou -se a ser virtuosa, e fazia da religião seu principal interesse. O rosto não era inexpressivo, ao contrário, denotava energia intensa e apaixonada. Mas os traços, herdados de meu avô, eram grosseiros para uma mulher. O cabelo muito negro já estava raiado de mechas grisalhas aos seus trinta anos, e a pele, apesar de nunca tomar sol, era áspera e já bem marcada. O nariz um tanto adunco, era a característica principal de sua família, assim como a magreza, que de início parecia da famosa “tísica”, mas que em nada mudava a sua disposição enérgica de cuidar da casa, de meu irmão mais velho, e de mim, seu caçula.

Teve quatro filhos a minha mãe. Um morto ainda antes de nascer, outro perdido na primeira infância, meu irmão Roberto (dez anos mais velho que eu), que era seu principal orgulho já que parecia ter grande gosto pelas letras e eu. Desde muito cedo conseguiu colocá -lo em um colégio de padres, famoso pela sua disciplina e por sua pouca indulgên-cia para com os alunos. Das poucas vezes que vi minha mãe sorrir, al-gumas foram quando Roberto mandava -lhe cartas para a fazenda. Seus olhos pequenos e negros iluminavam -se a falar do filho querido, que tinha nascido para a vida religiosa. Acredito que meu nascimento a te-nha deixado incrédula, pois acreditava que não mais teria filhos. Soube depois que meu pai, ao ver que o primeiro tinha se dedicado a “arrastar batinas”, quis ter outro, para ser seu companheiro e acompanhá -lo em suas caminhadas pela fazenda.

Nasci bem claro, como ele. Seus olhos castanhos esverdeados lhe fizeram a fama quando moço, pois a verdade é que se minha mãe não podia ufanar -se com sua aparência, o mesmo não acontecia a ele, que era muito bem apessoado: dono de bigode espesso e de cabelos com mechas louras que ele quase sempre mantinha debaixo do seu chapéu de couro curtido.

Não podiam os dois ser mais diferentes. Enquanto minha mãe ti-nha a voz contida e baixa, sempre a rezar pelos cantos, meu pai era dono de personalidade forte e tinha uma gargalhada, quando contava

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seus casos, que parecia estremecer as paredes grossas da velha casa. Era alegre, um tanto fanfarrão, e querido por muitos de seus amigos e vizinhos, pois sempre tinha uma troça por fazer, e um “caso” inverossí-mel para contar. De minha mãe eu quase sempre corria, pois seu amor era demonstrado em tentar sempre me deixar limpo, coisa impossível, pois como meu pai, eu era inquieto, e adorava rolar na terra marron do terreiro.

Nunca vi nele um gesto de carinho por ela, uma graça qualquer que lhe pronunciasse, como era de seu costume sempre com as outras pessoas. Tratava -lhe bem, nunca lhe negava nada, e tinha por ela um respeito forte e inalterável, porém, era apenas isso. Vizinhos desde sempre, tinham -se casado no intuito de unir duas grandes fazendas, e assim foi. Passado apenas alguns meses do casamento, morria meu avô paterno, passando assim os negócios para meu pai, que não fugiu ao desafio. Tínhamos uma vida farta, com poucos luxos, mas com con-forto. Dizem que assim que nasci, louro e forte como ele, ele disse à minha mãe:

— Carlota, esse você não pega! O primeiro estou deixando estudar pra padre, mas esse aqui vai vingar, e vai ser meu. Precisaremos de um homem para quem deixar as coisas quando eu me for.

Dormiam já em quartos contíguos, ligados por uma porta que ti-nha chave, e assim foi desde então. Livre de seus “deveres matrimo-niais”, minha mãe dedicou -se cada vez mais à sua igreja, e meu pai à sua vida particular.

Ao ver -me, quando chegava em casa, me lembro dele bonito e for-te, a me abraçar com os braços musculosos, sempre carregando peque-no chicote para o cavalo. Exclamava então:

— Como vai o meu “Olavito”? Aprontando das suas como sempre?Tinha grande orgulho de meu pai, de suas passadas largas e sua

risada a ecoar pela casa, enquanto Januária, na cozinha, ficava a “pas-sar um café” para o patrão e a diverti -lo com meus feitos de então. Apesar de seu amor por mim, é bom que se diga que não gostava nada de ser contrariado, e que pouca paciência tinha com choramingos de criança ou de mulher. Se fisicamente éramos parecidos, esforçava--me eu a agradá -lo tentando imitar -lhe as frases e o comportamento.

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Minha mãe ao ver -me assim, estremecia um pouco por dentro, e te-mia que eu desenvolvesse, assim como meu pai, um certo “gosto pelo vulgar”.

Pelos negros que nos serviam, por sua situação de penúria e mui-tas vezes de extrema pobreza, eu nada sentia. Criado desde pequeno num regime escravagista, achava a situação deles normal, como tan-tos ainda acham a pobreza hoje em dia. Meu estreito laço com meu pai tinha -me ensinado desde sempre a famosa hierarquia, onde os que podem mandam e devem ser sempre obedecidos. O feitor Joaquim era um lusitano de pulso forte e olhar arguto, a quem os negros obedeciam sempre de olhos baixos. Desde que me lembro via -o sempre a conduzir aquelas almas para a lida, assim que amanhecia. Eram crianças pouco mais velhas do que eu, nos meus quatro anos, muitos moços e mesmo alguns “velhos” que ainda possuíam músculos. Soube depois que esses “velhos” muitas vezes não chegavam aos quarenta anos, e que a apa-rência terrivelmente cansada, se devia aos anos de tratos de sol a sol, embaixo de chuva ou vento. No inverno, muitos eram os que adoeciam, e ficavam pela senzala a esperar a morte.

Tinha eu pouco ou quase nenhum contato com a senzala, já que minha mãe deixava -me a muito custo brincar apenas no terreiro de-fronte a casa. Dizia que já tinha perdido dois filhos e que não queria perder mais nenhum, logo, observava -me sempre, e mesmo quando me sentia livre para as minhas galhardices, lá estava ela ao longe a me es-piar com cuidado e seriedade.

Nunca esqueci a primeira vez que vi meu querido amigo Estevão. Estava então a brincar com mimosos soldadinhos de chumbo que tinha ganhado de meu avô, fazendo longas trincheiras no meio da poeira e do barro, quando passou por mim um negrinho sorridente, com seus alvos dentes brancos, caminhando já com os maiores para a lida no ca-navial. Como o feitor Joaquim estivesse na frente e não o visse, deixou--se ele a ficar observando meus brinquedos com o encantamento típico da infância. De início “fechei o cerco”, temendo que me pegasse algum dos formosos soldadinhos, mas logo senti que nele não havia nenhuma sombra de maldade. Contava eu então com seis anos, Estevão caminha-va pelos sete. Seu sorriso e deslumbramento me cativaram também, e

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como sentisse nele um possível companheiro para as minhas “guerras” com os soldadinhos, perguntei -lhe:

— Como se chama?— Sou Estevão. Que são esses homenzinhos pequenos? Enfeite?Expliquei -lhe logo que eram brinquedos e não enfeites. Como ele

nunca tinha visto semelhantes objetos, encantou -se com eles. Mostrei--lhe também, orgulhoso, os bois feitos de espiga de milho que Sebastião tinha me ofertado, e ele se encantou ainda mais. Senti logo nele uma ca-maradagem, indiferente à raça, cor ou credo. Vendo que os companhei-ros de labuta já iam longe, envergando pequena foice, se foi apressado, mas não sem antes olhar para trás diversas vezes, continuando com o sorriso, um tanto encabulado, de estar falando com o filho do patrão.

Sentia -me só na fazenda, crianças vizinhas não nos visitavam, e minha rotina era sempre a mesma. É fácil então notar que, vendo em Estevão um companheiro da mesma idade, me afeiçoasse a ele como a um irmão. Roberto raramente vinha à casa, e já era um moço quando me dei por gente, parecia ser muito sério e tinha maneirismos dife-rentes de mim e de meu pai. Muito apegado aos livros e à Bíblia, já falava bem o latim e, para orgulho de minha mãe, fazia diversas cita-ções, conforme a ocasião. Meu pai, mais amigo de uma boa conversa que de livros, olhava franzindo o cenho para meu irmão, que ao vê -lo, encolhia -se aos cantos da sala.

Comecei então a vigiar o horário em que Estevão ia e vinha do canavial e colocava -me então na frente de casa e trocávamos já alguns sorrisos de camaradagem. Um dia o vi chegar de olhos baixos, parecia que tinha chorado, envergado sobre a foice e meio sujo de lama. Pela primeira vez na vida compadeci -me de alguém. Procurando então por meu pai, mas sem saber ao certo como pedir -lhe, fui chegando de man-sinho para a imensa cadeira em que ele estava sentado na varanda, a observar os montes ao longe. Todo final de dia meu pai sentava -se lá, a observar a volta dos negros, para poder então dar comandos a Joaquim.

Estrategicamente armei meus soldadinhos em filas, perto dele, e comecei a brincar de leve, imitando os sons de tiros e os soldadinhos a cair. Tirando os olhos do jornal que estava lendo, ele sorriu e deixou-

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-se ficar. Quando começaram a passar por nós os negros, soltei longo suspiro, e tentei puxar assunto:

— Fez calor hoje, não?Ao que ele me olhou um tanto desconfiado, pois eu não era de

me aproximar dele neste horário e menos ainda de comentar o clima. Olhando -me entre divertido e desconfiado respondeu curtamente:

— É...Ao notar que a conversa não evoluiria, passei então a dar mais

alguns suspiros e a mover meus soldadinhos aleatoriamente. Notando ele a me olhar de “rabo de olho”, caprichei ainda mais nos suspiros de descontentamento. Lá pelas tantas, cansado de tanto suspirar, ele interpelou -me:

— Que é que tanto “suspira”, Olavito? Já está a “enervar” seu pai.Preciso é que se diga, que apesar de meu pai ser um homem de

grande tamanho e de voz de trovão quando necessário, não lhe tinha o menor medo. “Farinha do mesmo saco”, conforme dizia minha mãe, vi sempre no meu pai um grande amigo e protetor. Sendo assim, como não achava outra forma, fui logo honesto:

— Cansa -me brincar sozinho, meu pai. Gostaria de ter um compa-nheiro para brincar comigo.

Franzindo o cenho, ele me respondeu:— É... mas não tem irmão por aqui, nem ninguém da tua idade.

Que queres que eu faça? Não posso eu, na idade em que me encontro, brincar contigo.

Dito isto, voltou a se concentrar na leitura de um jornal que já havia chegado há dias. Ainda que meio desanimado eu não esmoreci. Continuei com a cabeça apoiada nos joelhos a olhar sério para o ho-rizonte. Vendo Estevão se aproximar com os outros negros, tornei a puxar conversa.

— Esse menino parece tão fraco para a roça, meu pai. Não ficaria melhor trabalhando no curral, pegando o leite?

Meu pai finalmente baixou o jornal, e olhou interessado:— De que menino fala, Olavito?Apontei então para Estevão, que vinha entre os últimos da fila.

Meu pai apertou os olhos para enxergar melhor, afinal, nunca tínhamos

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conversado sobre qualquer assunto dos negros. Ao olhar o pequeno Estevão sorriu, e me disse:

— De fato, é um moleque bem simpático. Mas parece mesmo meio magrinho para a lavoura.

Ficou a mexer no bigode e a sorrir de leve, por fim me disse:— Vá chamar a Januária, que eu quero ter com ela.Sem me fazer de rogado, levantei -me rapidamente e pus -me a ca-

minho da cozinha, trazendo Januária pela mão e só desapertando o passo quando perto de meu pai. Ele olhou Januária que parecia confu-sa, e disse:

— Januária, não está precisando na cozinha de um moleque para trazer o leite e moer o café?

Januária não soube bem o que responder. Afinal, nunca tinha sido consultada para coisa alguma. Fazia o seu serviço e assim funcionava, desde que se entendia por gente. Mas, ao sentir meu aperto na sua mão, respondeu com humildade:

— Pode ser, sinhô... se não lhe fizer falta na lavoura.— Pois então trate de arrumar um canto naquele quartinho do lado

da cozinha, arrume uma esteira e providencie umas roupas para aquele menino que vai lá no final da fila. Como é mesmo o nome dele, Olavito?

— Estevão... – disse eu.Januária continuou com seus olhos de pasmo, mas rapidamente

concordou com meu pai:— Pode deixar, sinhô, o menino vai pra lá hoje mesmo. Estava

mesmo precisando de um moleque assim.— Não lhe dê vida mansa, hein?Soube mais tarde (anos mais tarde) que não fosse a intervenção de

meu pai a favor de Estevão, provavelmente ele não teria sobrevivido à lavoura. Com sérios problemas de coluna graças a uma infância passa-da entre maus-tratos, Estevão passou sua vida a sentir sempre fortes dores, o que reduzia sua produtividade na lavoura e fazia com que Joaquim o tomasse sempre como exemplo para combater a “preguiça”. Minha mãe estranhou um pouco ao ver o moleque, vestido de roupas simples, mas muito limpas, que Januária tinha colocado. Encolheu -se num canto ao ver “a senhora” da casa, que interpelando Januária so-

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bre a novidade, estranhou a atitude do marido. Mas, como nada hou-vesse contra, deu -se por satisfeita ao saber que a ordem tinha vindo do patrão.

Estevão adaptou -se logo à nova vida, engordando com o leite que Januária lhe dava diariamente, misturado ao melaço. Mostrava -se sem-pre muito atento na cozinha, tentando sempre ajudar Januária que, às vezes, chegava a tropeçar nele. Quando por fim, ela viu -me chegar com brinquedos e me encaminhar para o quintal da fazenda, ela finalmen-te sorriu. A me olhar, desconfiado com a sua boa sorte, Estevão logo sorriu ao ver os soldadinhos. Feliz por finalmente ter conseguido um companheirinho de aventuras, nos demos bem desde o início.

Soube depois de sua história por Januária. Tinha sido comprado novo, quase um bebê, por meu pai. Numa negociação que envolvia dí-vida de jogo, o antigo senhor tinha perdido pequena fortuna, e sem ter muito com o que honrar a dívida, ofereceu como parte dela, Estevão, com dois anos, e sem a mãe que havia falecido há pouco. Ao ver pe-quena criança sem a mãe, meu pai não quis fazer o negócio, pois quem cuidaria da criança? Pôs -se então o senhor a louvar as qualidades dos pais do menino e a dizer que em pouco tempo seria uma peça valiosa. Assim, Estevão foi levado para a nossa senzala, e uma velha negra foi posta a cuidar dele.

Logo, cresceu assim meu pequeno amigo, sem carinhos ou mimos como eu os tinha. Apesar disso a alma boa e alegre também demons-trou inteligência rápida. Não o tratava como a um escravo, mas vindo de mundo tão diferente do dele, não o compreendia totalmente. Muitas vezes o surpreendi a olhar ao longe, os bracinhos cruzados ao peito, a pensar “sabe lá no quê”. Januária logo afeiçoou -se a ele e cozia para ele roupinhas feitas dos sacos de arroz que chegavam à fazenda. Logo se tornou “cria da casa”, e me acompanharia ainda por muitos anos, em-bora fosse breve a sua estada na Terra.

Quando fiz oito anos, minha mãe resolveu interpelar meu pai so-bre a necessidade de meu estudo, afinal, meu irmão não faltava muito para sagrar -se sacerdote, e eu ainda não tinha tido acesso às primeiras letras. Sua primeira proposta foi mudar -se comigo para a casa da ci-dade, e assim, eu frequentaria um educandário de razoável nome nas

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redondezas. Meu pai, já acostumado comigo, ou em sua garupa ou seguindo -o em outro cavalo, não achou graça na coisa. Depois de mui-to discutir e finalmente dando razão à dona Carlota, concordou que eu precisaria de instrução. Dispôs -se a me trazer um tutor particular, que me ensinasse as letras, a matemática e conhecimentos gerais. Não me queria na cidade com minha mãe, longe de seus olhos, e disse a ela em seu bom português:

— Não quero este menino para ser um “janota”, desses enfatio-tados que ficam cercando os salões da cidade. Olavo, assim como eu, vai ser é fazendeiro. Sendo assim, sabendo as letras e fazer as contas, o resto se resolve.

Não é preciso dizer que eu nada disse que o contradissesse. Não sabia como seriam as tais “aulas” e nem tinha por elas grandes expec-tativas. Criado um tanto solto pela fazenda, sempre acompanhado de Estevão, já me dei por feliz de não sair de lá. Uma só coisa me atraía em todas aquelas conversas sobre minha educação: queria aprender a ler. Não raras vezes via minha mãe a debruçar -se sobre os livros, e muitas vezes a me contar histórias, ela me despertava a curiosidade. Sim, pois eu era realmente curioso, e nunca me dei por satisfeito em saber menos do que deveria. Minha atração natural por saber “o porquê” das coisas vinha de muito cedo, e eu encarava os livros de nossa pequena biblio-teca com respeito, pois sabia que ali poderiam estar explicações que de outra forma não me seriam dadas.

Livros eram palavras a ser ditas, por pessoas mais sábias. Meu pai, embora estivesse muito mais ligado ao lado prático da vida, respeita-va porém, os filósofos de que falava meu avô, e ouvia com atenção a opinião de meu tio Flávio, advogado já famoso na região. Tendo tido meu avô só esses dois filhos, que se davam bem entre si, estava feliz com seu destino e valorizava igualmente o tino para os negócios de meu pai, como o conhecimento jurídico de meu tio, tendo esses dois em muito contribuído não só para manter, mas aumentar a fortuna da família.

E, muito embora minha mãe apenas suportasse a vida na fazenda, dispôs -se ela a ficar por lá ainda mais uns anos, longe de sua adorada vida citadina e de sua amada igreja. Foi então tratado entre eles e con-

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tratado na cidade o professor, de nome Amaro, que deveria vir três vezes por semana para cuidar de minha instrução.

Tinha esse professor um aspecto pouco saudável. Era “amarela-do”, magro e com alguns fios de cabelo colados com pasta à cabeça. Vinha muito bem recomendado, e trazia consigo rota malinha recheada de livros, alguns bem “ensebados” pelo tempo. Estevão e eu muito nos admiramos de ver tal figura, muito cheio de “rapapés”, a beijar a mão de minha mãe e a dizer elogios sobre a beleza da casa da fazenda e da gentileza da proprietária. Notei em Estevão desde o início a vontade de aprender também, mas não sabia como introduzir o assunto, já que mi-nha mãe podia não aprovar que o escravo se sentasse na mesma mesa que o patrão para assim ter lições.

Porém, não me fiz de rogado: esperando o momento de solidão de meu pai ao entardecer, sentei -me novamente a seus pés esperan-do a chance de tocar no assunto. Preciso é que se diga, que meu pai já simpatizava muito com Estevão, embora escravagista ferrenho, considerava o negrinho alegre e vivaz, rindo -se muito de nossas brin-cadeiras juntos. Era como se Estevão fosse seu protegido, e ambos tí-nhamos por ele grande apreço. Ao contrário de minha mãe que não aceitava a presença do menino em nossa sala, e o olhava sempre com desconfiança, meu pai gostava de passear conosco, trazendo -lhe al-gumas vezes mimos (geralmente balas e doces), assim como trazia para mim.

Ao ver -me sentado a seu lado, com o semblante bastante sério, olhando fixamente para o horizonte, logo viu que eu queria lhe fazer algum pedido. Como não atinasse qual fosse, e cansado de meu silêncio e mistério, puxou assunto comigo:

— Anda... que quer, Olavito? Quando me cerca assim já até adivi-nho...

Olhei para meus pés um tanto sem jeito. Mas, lembrando -me de Estevão e de sua vontade em aprender as letras, não pude deixar de pedir, medindo cuidadosamente as palavras:

— Pai, haveria mal em Estevão também assistir as aulas?— O negrinho falou em ir contigo?— Sim – respondi sem levantar os olhos do chão – afinal, se o pro-

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fessor vai ensinar a mim, porque não ensinar também a ele? Estevão é bem inteligente, e pode nos ajudar com as contas no futuro.

Meu pai recostou -se na cadeira de balanço larga, forrada de vime, e olhando para o horizonte, assim como eu, me respondeu:

— Pois diga que ele pode. Vou providenciar para ele cadernos e lápis.

Ao ver -me feliz com a resposta, emendou:— É preciso que saiba, Olavito, que Estevão não é como você. Não

sei se acompanhará as aulas com a mesma facilidade, e pode se sentir cansado. E depois, lembra sempre que ele é um escravo... não me agra-da nada escravo tendo instrução como branco. Se Deus fez eles dessa cor, algum motivo deve ter. Mas, gosto do negrinho, e não lhe fará mal algum aprender as letras, se assim deseja.

Pois Estevão mostrou -se não só inteligente, mas perspicaz e com-portado. Sabendo que a chance que lhe era dada também era rara, entre os da sua raça, fazia de tudo para acompanhar as lições do professor, que de início se mostrou bastante resistente à ideia de ensinar também a um negro. Mas teve de admitir, com o tempo, que o pequeno em nada lhe atrapalhava, mesmo porque sabia que quanto menos falasse, mais chance tinha de continuar a assistir as aulas.

Desse professor lembro perfeitamente até hoje, do nariz adunco, da testa coberta por poucos e raros fios de cabelo. Lembro também do cheiro, que era o de homem que não primava muito pelo asseio. Mas, devo a ele o aprendizado das letras, da matemática elementar. Ao con-trário de Estevão, calado por medo de ser mandado embora, eu man-tive acesa a minha curiosidade, fazendo também diversas perguntas sobre os assuntos que me interessavam. Ele falava com olhar sonhador, de grandes metrópoles espalhadas pelo mundo. Assim, eu soube que o mundo era infinitamente maior que a fazenda, da existência de outras línguas e outros costumes, alguns dos quais ele condenava veemen-temente (mulheres em bares, jogos e qualquer tipo de libertinagem). Dizia -se casto por opção e acreditava na Igreja Católica que só permite “certas coisas” para fins de reprodução.

Devo dizer que minha mãe muito bem se dava com ele, mandando a mucama trazer -lhe sempre no meio da aula, pedaços de pão de ló

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fresquíssimos, recheados com doce de leite, limonada fresca no verão, e café forte no inverno. Às vezes assistia conosco às aulas, quando en-tão o professor dava ênfase ainda maior na moralidade dos costumes, tencionando assim a aprovação da anfitriã.

Tive aulas com o professor Amaro por quatro anos. Anos dos quais partilhei com Estevão, que sempre tinha um rendimento melhor ou igual ao meu, muito embora nunca tivesse notas melhores na avalia-ção. Estávamos enfim nos tornando rapazinhos, quando em determina-da aula, o professor nos trouxe um assunto que muito nos vexou: falou conosco dos perigos de termos qualquer envolvimento com as escravas da fazenda ou quaisquer outras moças. Através de gravuras fez lon-ga preleção sobre as doenças venéreas e a consequência apavorante da sífilis, que quando não cegava, trazia loucura a seus portadores. Ora, nem eu nem Estevão (acredito) pensávamos em tais coisas ainda. Po-rém, meu crescimento começou a se fazer rápido, e com isso o professor achou por bem nos orientar o mais rápido possível.

Olhamos, Estevão e eu, bastante consternados as figuras que ele nos mostrava. Sabíamos que Joaquim, o feitor, mais de uma vez im-portunava as escravas mais jovens da fazenda, vivendo já por lá um número razoável de mulatinhos, alguns sobreviviam à infância, outros não. Meu pai sempre se manteve à parte dessas histórias. Dizia (muito sabiamente, aliás), que trazer essas “aventuras” para perto de casa, era acabar com a paz existente. E minha mãe nunca pôde dizer ou insinuar coisa alguma a respeito de seu comportamento com as escravas. Quan-to aos meses em que ele ficava longe, a negociar gado e preço do açúcar, o que não se sabia, não se sofria.

Meninos que éramos, não falávamos nesses assuntos, que tínha-mos por proibidos e que agora, com a franca exposição dos perigos apresentados pelo professor, o medo passou a fazer parte de nossos pensamentos. Fiquei um tanto mais retraído e quando via alguma for-mosa negrinha a passar por nós, baixava imediatamente a cabeça, ver-melho como um pimentão. Meu pai, astuto, logo deu boas risadas, mas ao ver meu retraimento, de imediato começou a pensar da necessidade que eu teria de logo me “tornar um homem”. Mas, para isso ainda ha-veria tempo...

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Estevão, por seu lado, era discreto nesses misteres. Muitas foram as vezes que o vi baixar a cabeça quando alguém do belo sexo lhe cha-mava a atenção. Era mais velho que eu uns dois anos, creio, mas era me-nor. Logo, não faltaram roupas a meu bom amigo enquanto crescíamos: ele as herdava de mim. Quando criança não reparara na vestimenta sempre simples de meu amigo, roupinhas feitas de sacos incrivelmente brancos, areados por Januária. Ao ganhar sua primeira “roupa de bran-co” o vi primeiro meio desajeitado com o laço bonito da gravata, mas logo se habituou a elas, e devo dizer que, apesar das costas que estavam ficando um tanto arqueadas pela enfermidade, ele ainda assim fazia boa figura: os dentes muito brancos e fortes contrastando com a pele negra, e a carapinha sempre muito bem escovada.

O fato é que nos tornamos inseparáveis, ele muito bom compa-nheiro, sem ser servil para comigo. Não me incomodava sua situação de escravo, pois simplesmente não era assim que o via. Lembrava -me disso raramente, principalmente quando minha mãe implicava com sua presença dentro de casa, dizendo que “esse negro ainda vai aprontar das suas”, ou ,”lugar de negro ou é roça ou senzala”. Mas, como meu pai simpatizasse muito com ele, foi deixando que ele ficasse. Mesmo porque, tinha dona Carlota outros planos para o seu “caçula”.