Quanto vale um cigarro?

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Quanto vale um cigarro? _ Me vê um cigarro de palha picado. _ 75 centavos. _ E pensar que eu já comprei isso por 25. _ Oi? _ Nada. Acendi meu cigarro, ventava, mas _ pra alguém com mínimo de prática isso não é nada – pensei. Engraçado, naquele momento tive certeza que eu seria capaz de acender um cigarro dentro do olho de um furação. Mas era preciso andar, e andei, andei de olhos cerrados pelo sol que ardia, andei de cabeça baixa com a morte na boca. Nos dias quentes de sol sempre existe o que fazer, mesmo não querendo fazer nada, não há escolha. As horas passam sem demora, numa vagareza arrepiante. Dia perfeito para matar alguém. Sacudi o suor e o sol. Pensei em como eu desejaria um pedaço de terra no meio do nada para construir uma casinha, estacar minha cruz e sangrar em paz. Depois pensei nas pessoas que desejam algo semelhante. Continuei. Lembrei: Foi assim, numa tarde feito essa, que uma conversa mudou minha vida. Fui lançado ao abismo ou acima das nuvens, não sei bem. Escutei em algum lugar que a queda livre e o voo são semelhantes quando se fecha os olhos. Não é por menos que meu companheiro de conversa seja um miserável. Por toda minha vida procurei um grande pensador metódico e lúcido que me ensinasse a caminhar por linhas retas, mas por um golpe do acaso sucumbi diante de um vagabundo com andar ziguezagueante, semibêbado. _ Continue caminhando para frente e não olhe para os lados – disse repentinamente um mendigo que me seguia.

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Quanto vale um cigarro?

_ Me vê um cigarro de palha picado._ 75 centavos._ E pensar que eu já comprei isso por 25._ Oi?_ Nada.

Acendi meu cigarro, ventava, mas _ pra alguém com mínimo de prática isso não é nada – pensei. Engraçado, naquele momento tive certeza que eu seria capaz de acender um cigarro dentro do olho de um furação. Mas era preciso andar, e andei, andei de olhos cerrados pelo sol que ardia, andei de cabeça baixa com a morte na boca.

Nos dias quentes de sol sempre existe o que fazer, mesmo não querendo fazer nada, não há escolha. As horas passam sem demora, numa vagareza arrepiante. Dia perfeito para matar alguém. Sacudi o suor e o sol. Pensei em como eu desejaria um pedaço de terra no meio do nada para construir uma casinha, estacar minha cruz e sangrar em paz. Depois pensei nas pessoas que desejam algo semelhante.

Continuei. Lembrei: Foi assim, numa tarde feito essa, que uma conversa mudou minha vida. Fui lançado ao abismo ou acima das nuvens, não sei bem. Escutei em algum lugar que a queda livre e o voo são semelhantes quando se fecha os olhos. Não é por menos que meu companheiro de conversa seja um miserável. Por toda minha vida procurei um grande pensador metódico e lúcido que me ensinasse a caminhar por linhas retas, mas por um golpe do acaso sucumbi diante de um vagabundo com andar ziguezagueante, semibêbado.

_ Continue caminhando para frente e não olhe para os lados – disse repentinamente um mendigo que me seguia._ Ha ha – congelado de medo, soltei minha costumeira gargalhada que nunca enganou ninguém, e completei_ não me faça rir.

Andei subitamente para frente e me virei para ver o sujeito que me espreitava, que dizia: _ Sua cara de pavor é deliciosa._ O que tem com isso?_ Tenho tudo com isso, sou dono de tudo isso aqui e não há quem me convença

o contrário. Sou dono de nada, por isso tudo._ Você é louco – Exclamei com mais calma e curiosidade._ E você me parecia mais esperto quando calado. – disse o mendigo com certa

arrogância._ Então quer dizer que além de ser rei, é também juiz. Quando pretende ser dono

e juiz de si mesmo? – falei palsadamente, pois precisei pensar muito._ Pensar em si significa morrer para o mundo. Eu não tenho tempo, teto nem lei,

meu rumo é dado pelo tocar dos ventos. Velejo feito um velho marujo. Estou em guerra.

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– E completou subitamente com um grande paradoxo que me encheu o peito deixando sem ar: _ Olhe pra mim, eu sou dono e escravo de mim mesmo. Cúmplice da minha própria morte diária.Logo percebi que a conversa tomou rumos inimaginávies. Exclamei:

_ O que quer? _ Nada, não quero nada. O que um cão de rua busca nas latas de lixo? Eu farejo

almas humanas que aprodecem nas esquinas e nos becos escuros._ Então, minha alma é uma dessa?_ Ainda não é, mas negar é impossível. Você tem a liberdade em uma mão e o

destino em outra. Sua vida é uma tragéria._ Você mente._ Que importa? Você é mau, e sabe disso.

Você é mau, você é mau, você é mau, você é mau, você é? mal você é, mau, você é você? mau você é, é mal você... tal afirmação ecuo no abismo dentre de mim. Depois disso meu amado louco cínico foi-se num estouro surdo, feito rojão que esplode perto de criança. O que restou? Otimismo e temor. Foi a primeira vez que me vi humano, miserável poeira diante da natureza, miserável instante do tempo. O suor deixou meu rosto a brilhar, meus olhos vacilavam, tornaram-se opacos. Aperta o peito, aperta. Aperta até doer. Meu coração diminuia e doia, doia. Meu coração almentava e doia, doia. Andei cem ou mil metros pra frente e olhei pra traz, mas frente e traz já se confundiam. Estava só: compreendi a tristezalegre da vida.Foi então que eu disse SIM. A hora derradeira chegara. Pensei em negar, mas não se nega o SIM tito pelo corpo. Ah! Quanta vontade de viver! O tempo perdido nos torna secos e surdos, simplesmente não sabemos o que falar. Desejei arder-me embrasas. Mais adiante encontrei um buteco. Sentei. Pedi um dose de canhaça que bebi num trago. Ardeu. Olhei para o lado, vi um senhor a tomar sua cerjeva numa paz que tanto invejava. Perguntei a hora._ Duas e meia.Senti-me atrazado, mas já não sabi para o quê. Para algo se ênfase, pensei e disse. _ Uma cerveja, por favor.Acendi meu cigarro. Olhei para sua brasa vermelha alaranjada. Imaginei uma mulher nua. Me trouxeram a cerveja e a bebi demoradamente. Fiz isto diversas vezes. Matei meu maço que estava pela metade. Voltei para casa, já era noite.

Continuei a andar para frente, o sol nunca descansa, meu cigarro apagou quando eu relembrava alucinadamente daquele dia. Pus-me a olhar um cão do outro lado da rua que parecia um Deus a ignorar tudo e a todos. Mas logo distraí minha vista com uma bunda que passou ao meu lado, não vi a cara da moça, somente senti seu perfume de flores noturnas que exalava sexo. Sua pele era morena, tinha cabelos ao vento e estava de salto, porém nada disso importava, sua bunda era incrível. Olhando para trás, queria dizer algo a ela.

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Finalmente cheguei na casa de Willian, estava uma zona. Willian era motorista e alcoólatra, tinha uma conversa sempre animada, amava seus três filhos e sua ex-mulher que o abandonara no ano passado. Nunca conheceu sua mãe, foi adotado quando bebê pela Dona Inês e Sô Raimundo que já eram mais de idade. Dona Inês morrera de câncer quando Willian tinha apenas oito ano. Sô Raimundo nunca conseguiu controlar as travessuras do moleque Willian que rapidamente se envolveu com más companhias. Os dois se separaram quando nosso amigo ficou maior de idade e começou a trabalhar. Sô Raimundo morreu sozinho num asilo, Willian recebeu um telefonema e ficou triste. Hoje ele trabalhava um dia sim outro não no ônibus coletivo, antigamente possuía um caminhão que comprara penosamente. Na época, Willian trabalhava com transportes interurbanos, juntou um pouco de dinheiro e financiou o resto de um caminhão já bem usado, foi através deste serviço que conheceu Caetana num pequeno vilarejo que não me lembro mais o nome, rapidamente se casaram, Caetana era linda, tiveram dois filhos. Willian começou a trabalhar dia e noite, começou a usar dragas para ficar acordado. Duas ou três veze teve sorte, porém, certo dia ele dormiu ao volante e enfiou seu caminhão na traseira de um fiat, matou o cachorro da família. Não sei se ele me escondeu algo, mas isto é tudo que eu sei.

Peguei duas cervejas na geladeira. Brindamos e sentamos numa mesa de plástico que estava na sobra. Nos fitamos e ele soltou uma frase típica e sorriu:

_ Tirando os problemas, está tudo bem?

_ Tudo bem. Estou procurando um emprego que me dê um pouco mais de grana. Mas é foda, para tudo neste país é necessário uma indicação. – Disse a ele de maneira cortante e direta, completei – Nunca tive um padrinho nesta vida, nem penso em ter.

Willian me olhou com seus olhos brilhantes. E não relutou muito, logo concluiu:

_ Melhor assim. Ficar preso por causa de favores e favores é uma merda.

Perguntei-lhe como a vida ia, como andavam as coisas. Ele falou três ou quatro palavras. Levantou e ligou seu rádio. Escolheu a sétima faixa de algum disco da Cássia Eller, logo reconheci, era Bete Balanço de Cazuza. Foi então que ele começou a falar do seu último quebra pau com um maluco no boteco do Joaquim.

_ Já era tarde da noite, o filho da puta veio me dizer que não gostava de como eu olhava para ele. Que porra!!! Eu sou lá de ficar olhando pra homem? Você me conhece.

Concordei com a cabeça, mas eu só conseguia pensar em Bete. Ele seguiu dizendo.

_ Foi quando eu virei para trás, peguei um banquinho, joguei e pulei no filha da puta, soquei o cara todo com vontade. Tiveram que separar. O cara saiu dizendo que ia pegar o revolver. Não dei mole e saí de lá ligeiro.

_ Que merda. – exclamei.

_ Tô de boa. – disse Willian fazendo gestos com as mãos. Passaram-se breves minutos.

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_ Cigarro tá caro pra caralho. – Mudei de assunto sem mais. Aproveitei para acender o resto do meu de palha no fogão.

Willian concordou comigo e falou dos impostos. Eu queria dizer-lhe algo sobre a disciplina dos hábitos, sobre a docilização dos corpos. Mas calei, ele não entenderia ou saberia daquilo mais que eu, quanta ironia. O papo foi bom, não deu tempo para falar sobre mulheres, de fato, se nossa conversa demorasse mais um pouco certamente cairíamos neste assunto. Precisava ir pra casa tomar um banho gelado. Me despedi sem muito cerimônia, disse que voltaria para vê-lo em breve. Andei um pouco, e resolvi tomar um caminho diferente na volta. Já estava de tardezinha, o sol se punha entre as casas e os prédios. Parei, serrei os olhos e contemplei aquele magnífico acontecimento. O céu laranja intenso, ardia. Na extremidade do horizonte algo grande pegava fogo, uma fumaça preta inundava aquela o entardecer que o tempo parecia não consumir. Estava de pé, encostei no muro e finalmente fechei os olhos: vi meu sangue ferver e escutei a sirene de uma ambulância que vinha zunindo em minha direção. Abri olhos, os carros continuavam parados nos mesmos lugares, uma mãe com seu filhinho andavam sem pressa. Continuei a seguir para casa, havia muitas folhas no chão, algumas flores também. Passei diante de uma padaria, lembrei que o pão tinha acabado. Entrei, mas nem olhei para a cara da adolescente que trabalhava ilegalmente naquele lugar insuportavelmente quente e nada limpo. Escolhi metodicamente cinco pães, pensei na minha ex-namorada. Caminhei até a balança, olhei, finalmente, para a adolescente negra e baixinha, era ainda uma criança e dei um amistoso “boa tarde”, sorri levemente. De fato, aquela tarde estava perfeita. Porém, ela me respondeu rapidamente com a cabeça baixa, estava mais preocupada em colocar meus pães no saco de papel. Pesou e escreveu com uma canetinha 2,90, quis logo me entregar, mas relutei em receber até que ela me olhasse. Quando olhou, sorri novamente de forma leve com olhos miúdos, peguei o saco e me dirigi ao caixa. Saltei para o outro lado da rua e entrei no copo sujo mais perto de minha casa, numa placa vermelha e velha lia-se: Bar do Chico. Cumprimentei com um gesto os três bêbados que tomavam uma cerveja, dois conversavam e o último, mais afastado, só observava. Tinha os olhos presos ao nada.

Estendi minha mão e disse:

_ Tudo bem, Chico?

_ Tudo bem. – Murmurou o tono do bar ao me cumprimentar apenas com as pontas do dedo.

_ Me vê um Coiote.

Trouxe a caixa, escolhi um aleatoriamente. Entreguei 0,50 centavos para ele, lá era mais barato que o resto do mundo. Despedi-me e acendi o cigarro num isqueiro que ficava preço a uma corrente no canto da parede. Pensei em incendiar algo grande, pensei no fogo incontrolável e devastador. Voltei para casa.