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QUASE NEGROS

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QUASE NEGROS

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USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PUSP – UNIVERSIDADE DE SÃO PUSP – UNIVERSIDADE DE SÃO PUSP – UNIVERSIDADE DE SÃO PUSP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOAULOAULOAULOAULOReitor: Reitor: Reitor: Reitor: Reitor: Prof. Dr. Adolpho José MelfiVVVVVice-Reitor: ice-Reitor: ice-Reitor: ice-Reitor: ice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz

FFLCH – FFFLCH – FFFLCH – FFFLCH – FFFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA,ACULDADE DE FILOSOFIA,ACULDADE DE FILOSOFIA,ACULDADE DE FILOSOFIA,ACULDADE DE FILOSOFIA,LETRAS E CIÊNCIAS HUMANASLETRAS E CIÊNCIAS HUMANASLETRAS E CIÊNCIAS HUMANASLETRAS E CIÊNCIAS HUMANASLETRAS E CIÊNCIAS HUMANASDiretor: Diretor: Diretor: Diretor: Diretor: Prof. Dr. Sedi HiranoVVVVVice-Diretora: ice-Diretora: ice-Diretora: ice-Diretora: ice-Diretora: Profª. Drª. Eni de Mesquita Samara

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QUASE NEGROS

MARCOS ALEXANDRE CAPELLARI

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

2002

ISBN 85-7506-067-8

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Copyright 2002 by Marcos Alexandre Capellari

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USPFicha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

Editor ResponsávelProf. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação EditorialMª. Helena G. Rodrigues – MTPS n. 28.840

Projeto Gráfico e DiagramaçãoSelma M. Consoli Jacintho – MTPS n. 28.839

Projeto de CapaDiana Oliveira dos Santos

Revisão de provasThaís Totino Richter

RevisãoAutor

C238 Capellari, Marcos AlexandreQuase negros / Marcos Alexandre Capellari.—São Paulo : Humanitas/FFLCH/USP, 2002.

165p.

ISBN 85-7506-067-8

1. Romance brasileiro 2. Literatura Brasileira I. Título

CDD 869.9

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A terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam oabismo, e um vento de Deus pairava sobre as águas. DisseDeus: “Haja luz” e houve luz. Deus viu que a luz eraboa, e Deus separou a luz das trevas. Deus chamou à luz“dia” e às trevas “noite.”

Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, comonossa semelhança.”

Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no jardimdo Éden para o cultivar e o guardar. E Iaweh Deus deuao homem este mandamento: “Podes comer de todas asárvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento dobem e do mal não comerás, porque no dia em que delacomerás terás que morrer.”

Iahweh disse a Caim: “Onde esta teu irmão Abel?Ele respondeu: “Não sei. Acaso sou guarda de meuirmão?”.

(Gênesis)

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Este trabalho é vencedor do projeto Nascente, Texto - Ficção, de 1999.

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dão caminhava sozinho pela praia deserta. Não tinha pres-sa. No meio da escuridão da noite, seu corpo deslizava na

areia como uma sombra. Uma sombra que pensava. Faz quanto tempo,Adão? Deteve-se por um instante. Resmungou qualquer coisa consigomesmo. Puxou um fio de memória. Mas não soube dizer.

Não era questão de anos ou décadas. A própria eternidade perdera-se no passado.

Retomou a caminhada. Sentiu que a água salgada do mar, antesmorna, esfriava-se. O dia estava prestes a romper no horizonte. Mas aindahavia tempo. As pessoas só apareceriam mais tarde, quando o dia se tor-nasse degustável. Quando houvesse o que fazer.

É verdade, elas aparecem sempre aos bandos. Se, por exceção, acon-tecia de topar com um solitário, era alguém que sofria de depressão, aban-dono, tristeza.

Subiu os rochedos na curva da praia e sentou-se sobre o mais alto.

Pouco depois o sol despontou, tingindo as franjas mais distantesdo mar. Seus olhos brilharam. Era um brilho parecido com o brilho dasuperfície das águas azuis, quase negras. Um brilho conhecido. De quan-to tempo? Não do mesmo mar. Não do Egeu.

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ra difícil saber o que se passava na cabeça do menino. Muitofechado, raramente falava. Só o fazia em ocasiões de extre-

ma necessidade, quando tinha de prestar contas de algum trabalho. Ummenino estranho. À noite, enquanto o pai e a irmã dormiam, costumavasair sozinho pelo campo. Não tinha sono como os demais. Uma ou duashoras lhe bastavam. Mas a noite exercia uma forte atração sobre sua almae ele se deixava arrastar por ela.

Ao sair de sua casa, era como se entrasse num outro mundo. Atênue luminosidade da lua e das estrelas fazia com que o negror do céu setornasse cintilante. No meio dessa cintilância, sentia como se um par deolhos enormes o fitassem. Não eram olhos amedrontadores. Calmos e in-diferentes, os olhos invisíveis seguiam-no em seu passeio solitário.

Essas caminhadas pela noite eram ignoradas por seu pai, irmã evizinhos. Sem fazer alarde, deslizava pela janela dos fundos, brincava umbocado com os cães já acostumados com suas saídas e penetrava na mata,em direção ao grande rio. Às vezes, vagava pelas pastagens – mas evitavapassar próximo das casas dos outros colonos, pois poderia chamar a aten-ção dos cães, que certamente o denunciariam.

Quando se cansava de andar, sentava-se às margens do rio e seentretinha com os ruídos da noite e com o brilho do céu refletido naságuas. Passava horas camuflado pela escuridão.

Não sabia por que fazia isso. Apenas sentia-se bem. Era muito pe-queno quando descobriu a noite. Ouviu de sua mãe (na ocasião ainda

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viva) que a noite abrigava seres perigosos, capazes de meter medo no ho-mem mais forte e corajoso. Um dia, quando a mãe já havia partido, ouviuum som estranho. Perguntou ao pai o que era.

– É macumba, respondeu ao menino. – Coisa do demônio.

O som dos tantans vinha sempre às sextas-feiras, mas não em to-das. Chegava baixinho, de um lugar que não se podia saber ao certo qualera. Curioso, Adão decidiu que desvendaria o mistério. Não podendo dor-mir com o batuque e notando que o pai e a irmã dormiam profundamen-te, saiu pela noite adentro.

Seus olhos logo se acostumaram com a luminosidade noturna.Surpreso, percebeu que os contornos habituais do dia esfumavam-se coma noite. Pedregulhos, raízes, pedaços de pau, tudo se fundia junto ao chão.E o chão era uma simples atração que o mantinha em pé. Indistinta,escura, mais ainda que sua pele, a terra absorvia seus passos descalços; equando pisava um graveto seco, o estalido parecia vir de dentro de seupeito, como se uma costela tivesse se quebrado. Aos poucos aprendeu aevitar os ruídos. Como um gato, em vez de pisar a terra, deslizava nasuperfície macia.

Nessa noite não conseguiu atingir seu objetivo. Andou a esmo porhoras, sem descobrir de onde exatamente vinham os ruídos demoníacosque chamaram sua atenção.

No dia seguinte, depois de ajudar o pai na lida da manhã, embre-nhou-se na mata em busca de pistas. E também à noite. À medida que, acada incursão, conhecia mais e mais o território do outro lado do rio,percebeu que seu mundo se tornava maior. A colônia no meio da grandefazenda foi ficando para trás. Depois, a própria fazenda, as matas vizi-nhas, as margens próximas do grande Paraná.

O mundo e o menino cresciam. A puberdade estava chegando. Masele não entendia a razão das mudanças em seu corpo. Sentia coisas no-vas, novos pensamentos, outras curiosidades. Já tinha visto tais mudançasna natureza. Quando o pai lhe explicou, um pouco encabulado, que ele

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estava em vias de se transformar em um homem, o menino não deu im-portância. Gostava da sua vida como era.

Num dia de primavera descobriu, quase por acaso, a origem dosbatuques. Não era noite. No encalço de uma rês desgarrada, descia pelasmargens do rio a cavalo quando um negro alto surgiu repentinamente detrás de uma rocha, assustando o animal. O cavalo refugou violentamentee Adão não conseguiu manter-se na sela. Foi atirado ao solo. Com agilida-de, de pronto afastou-se do animal, arrastando-se em direção aos arvore-dos. O cavalo relinchava e escoiceava a esmo, enlouquecido pelo susto.

Num instante, contudo, tudo mudou. O negro aproximou-se doanimal e, gesticulando com uma das mãos sobre sua cabeça, agarrou seupescoço com o outro braço e lhe disse palavras incompreensíveis ao ouvi-do. O cavalo não resistiu por mais de um átimo. Em seguida balançava orabo como um cachorro, enquanto o homem lhe afagava a crina e o peitolustroso.

Com um misto de admiração e medo, Adão aproximou-se do gi-gante. Tomou-lhe as rédeas e já estava por sair a galope quando o homeminterpelou-o:

– A novilha está presa no charco, na curva do rio.Referia-se à foz de um ribeirão, duzentos metros à jusante. Mas

como sabia? Como sabia que estava à sua procura?– Meu santo me disse, explicou o homem.Curioso, Adão retesou a rédea. O cavalo arfava, sem poder sair do

lugar.Nessa noite, a convite do negro, Adão visitou seu terreiro. Ao lado

do anfitrião, assistiu ao ritual. Era dia de iniciação. A garota, pouco maisvelha que ele, foi introduzida na sala e, ao som dos atabaques, logo en-trou em transe, caindo desfalecida no centro da sala.

Ele não entendeu o que estava ocorrendo. Era algo novo e assom-brosamente excitante. Com a música envolvente, seus músculos

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involuntariamente retesavam-se no pescoço. Era o mesmo ritmo, dosatabaques e de seu coração. Um ritmo estranho, que fazia os pensamen-tos pararem.

As coisas misturavam-se em sua cabeça. A aparição intempestivado negro pela manhã, a garota caindo de testa no chão de terra batida elogo depois sendo coberta por um lençol de linho branco, as conversasnuma língua desconhecida; novamente o negro da manhã, agora para-mentado como um deus. Os risos, as cantorias. O teto girando sobre suacabeça.

Era coisa do demônio? Não sabia. Queria descobrir.

De repente, obedecendo a um gesto do deus, todos os instrumentossilenciaram. Pai Antônio – como o chamavam – voltou-se para o meni-no e sua voz, grave por natureza, ribombou no interior do aposento.

– Não tem egum! Não tem egum!

Todos, em uníssono, cantarolaram um ponto e, um instante de-pois, os atabaques recomeçaram, num ritmo ainda mais frenético. Os fi-lhos-de-santo rodopiavam no centro da sala. Deixavam de ser quem eram.Eram os deuses encarnados, dançando em círculos, às vezes falando nasua língua estranha.

De repente, algo tomou conta de Adão. Seu coração, que não batiano seu normal, parecia saltar pela boca. Ouviu um chiado e o vento var-reu o chão, levantando poeira. E algo como um braço forte, mas invisível,ergueu seu corpo no ar, lançando-o no rés-do-chão.

Adão sentiu um gosto agridoce na boca, de sangue, e por pouconão vomitou. Não sentia dor, apenas o entorpecimento esparramando-sepelos membros. Até que tudo caiu num enorme e indistinto vazio.

Já era de manhã quando acordou, nas margens do rio Paraná.Sentia frio. Suas roupas estavam encharcadas. Olhou ao redor e percebeuque não estava sozinho. Antônio fitou-o nos olhos e, aproximando-se,mandou que fosse embora e que voltasse ao local de noite.

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Precisava pensar. Consultar os deuses. Estava confuso com o suce-dido à noite.

Adão, por seu turno, apressou o passo. Tinha que achar uma des-culpa que o livrasse de ser descoberto. O que diria ao pai? O sol já subia nohorizonte quando chegou ao curral. Encontrou seu pai junto à porteira,fumando um cigarro de palha. Parecia preocupado. Mas nada falou sobrea ausência do filho.

– O patrão chega hoje, anunciou. – Vem com a família.

O menino não se lembrava de tê-los conhecido.

– São da capital, explicou-lhe, e Adão fez que entendeu. – Estejapor perto quando chegarem. Posso precisar de você.

Já passava do meio-dia quando o carro entrou pela ruela da colô-nia, estacionando ao lado da sede. Era um carro grande, todo preto, dechapa branca. O General Abel Cruz saiu pela porta de trás. Não estava defarda, apenas de paletó escuro, e usava óculos de sol. Um pouco gordo,principalmente na região abdominal, parecia cansado. Dirigindo-se aopai de Adão, que trabalhava como capataz na fazenda, mandou que oseguisse até o escritório.

– Minha família chega amanhã, avisou. – Como andam as coisaspor aqui?

– Tudo em ordem, Coronel.

– General, corrigiu-lhe o homem. Recebera a patente recentemente,sendo transferido de Brasília para o Rio de Janeiro.

Depois, à guisa de auditor, passou os papéis em revista por algunsminutos, demonstrando contentamento com os lucros obtidos. Na verda-de, ele pouco entendia de contabilidade. Deixava o trabalho aos cuidadosde um funcionário, administrador de seus negócios, que visitava a fazen-da periodicamente.

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– Parece tudo em ordem, disse por fim. Em seguida mandou quelhe trouxessem um cavalo. Desejava vistoriar a fazenda antes que a famí-lia chegasse.

Cinco minutos depois, Adão trazia dois cavalos até a porta da sedee, logo em seguida, seu pai mais o general partiram num trote ligeiro emdireção às pastagens. O rapaz ficou parado, olhando os dois vultos desa-parecerem no horizonte.

Seus pensamentos estavam em outro lugar. O que lhe teria ocorri-do no terreiro? Um desmaio? Nunca desmaiara antes. O quê, então? Antesque a noite caísse não teria como desvendar o mistério.

Pai Antônio chegou pouco antes do anoitecer. Com os olhos bri-lhando de admiração e assombro, contemplou o ocaso, a algazarra dospassarinhos, a vermelhidão do céu, o manto escuro envolvendo a vida e amorte rondando com os urros das onças pardas. O céu aos poucos en-cheu-se de estrelas e a lua crescente surgiu no horizonte. Por que o céu?Não conseguia entender.

Aliás, sua obrigação não era entender, mas cumprir. Vistoriou osarredores e sentiu a presença dos deuses, dos orixás que o seguiam comseus olhos invisíveis. Eles pressionavam sua barriga, os membros, a cabe-ça. Queriam rodar e isso era inusual. Mostravam-se estranhos, não obede-ciam ao chamado e tentavam se impor por conta própria, em local e horanão determinados.

Pai Antônio sentia-se, a um só tempo, maravilhado e temeroso.Era o desconhecido que tocava em sua porta. Nunca, desde muitos anospassados, quando foi iniciado em Salvador, presenciou um fenômeno dessanatureza.

Mas tudo corria tão bem! Quando, na mata pela manhã do diaanterior, sentiu a presença de Oxóssi, um impulso fez com que corresseem direção ao rio, e por pouco não se chocou com o cavalo que trotava

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em suas margens. Era um presságio, só podia ser. Por isso, agiu com rapi-dez. Dominou a situação e, de imediato, prendeu o menino pela barriga.Precisava fazê-lo. Ele havia sido apontado pelo próprio Oxóssi, o caçador.

Foi só um convite, mas Antônio sabia que Adão viria ao anoitecer.Mas jamais poderia supor o que viria e o que veria a seguir.

Era dia de festa. Dia de iniciação ritual. Depois de quase um mêsreclusa, a garota teria seu santo feito. Não houve problemas. Ela era ta-lhada. Bolaria com os atabaques sem dificuldade.

O problema não era a garota. Com ela tudo estava nos confor-mes. Era o ambiente que estava mudado, opressivo a princípio. Antônioachou que havia eguns demais. Mas não havia um sequer. Depois, o ar,de carregado, tornou-se rarefeito. A atmosfera esvaziou-se, como queaspirada por uma força inominável. A essa hora a garota já estava nochão, coberta com o lençol. Um impulso então fez com que Antôniofalasse qualquer coisa de que não se lembrava, e a atmosfera tornou-seainda mais rarefeita.

Faltava oxigênio no ar.

Sentiu que estava prestes a desfalecer quando o vento – não, nãoera o vento, era o próprio Céu – entrou não se sabe por onde e varreu oterreiro. O mais impressionante veio em seguida. O menino, até esse ins-tante quieto ao seu lado, suspendeu-se no ar e foi lançado como um dardona terra. Os atabaques pararam. Ninguém entendia. Os santos estavamtodos quietos, um pouco assustados talvez, pelo menos em guarda:

Olorum em pessoa desceu à Terra!

Nunca havia presenciado o fenômeno, nem ouvido falar. O Céu,Olorum, era solitário por natureza. Pelo que soubesse, não incorporava.Preferia o silêncio e a placidez do afastamento. A distância em relação aoshomens.

Pai Antônio sequer tinha-o visto antes, a não ser em sonhos. Lem-brava-se apenas dos olhos plácidos, quase indiferentes. Olhos de esfinge.

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De resto, Olorum era para ele como é para os demais: o pai dos deuses, ocriador original.

Nessa noite, contudo, o mundo era outro. As regras eram outras. EOlorum surgiu, sem aviso algum. Houvera, é claro, presságios. Mas Antô-nio não soube interpretá-los. Como poderia supor? O céu acaso estavamais azul? E quanto às estrelas, mostravam-se mais brilhantes? Era difí-cil, muito difícil entender as razões dos deuses. Quando Oxóssi apontou omenino, forçando Antônio a levá-lo, soube de imediato que algo de muitoestranho estava prestes a ocorrer. Mas não podia supor o que fosse. Comoo menino entrou em transe se não era iniciado? Mas isso não é tudo.Mesmo sendo uma raridade, é algo que acontece. O mais impressionanteveio em seguida.

O batuque cessou e os santos quietaram, espreitando o ambiente.Farejavam o ar, pois sabiam que o pai tinha vindo. Era uma brisa, umvento que soprava sobre o chão, suspendendo a poeira fina no ar. Depois,era um peso, uma compressão na boca do estômago, quase um mal-estar.

Um grande poder, mas tão leve, tão sutil que passaria despercebidoao leigo.

Antônio desejou levar-se com ele. Mas não podia, Olorum não ca-valgava. Estava presente, mas inacessível.

Só aos poucos deu-se conta do que estava ocorrendo. Era o meni-no! Mas o menino estava morrendo! O menino e Olorum. O menino, filhode Olorum? Os pensamentos coriscavam na mente. “Meu filho bem ama-do!” Sim, é isso. Mas por que o leva consigo? Antônio não conseguia en-tender. Não era um transe habitual. O menino não incorporara:

Adão era o próprio Olorum, em pessoa! Deus absorvendo-se a simesmo. Introjetando-se em sua imensa profundidade. Desaparecendo emdireção ao infinito.

Para o corpo estendido no chão, era a morte.

O choque foi tremendo. Pensou em correr pelas matas, de puropavor. Todas as regras, a tradição de séculos caía por terra. Mas Antônio

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não tinha forças. Suas pernas não o obedeciam. Ficou estático, olhandopara o corpo magro do garoto que trouxera, sem que o soubesse, paramorrer. Prostrado, impotente, esperou – apenas esperou. Ele e todo o gru-po ao seu redor, pois não havia o que fazer. Apenas esperar.

As horas corriam rápidas. Faltava pouco para o amanhecer. Antô-nio sabia, do fundo de sua alma que, tão logo o sol despontasse, tudoestaria consumado. As coisas voltariam ao seu normal. O dia e a noite. Aslutas na Terra e no mundo dos deuses. E Olorum, novamente, se afasta-ria, talvez por toda uma eternidade.

A brisa do alvorecer, fresca e cheirando a mato, entrou pelas frestasdas portas e janelas. O corpo do menino não se mexia. Era como umaestátua estirada no chão. Tocando-o, Antônio percebeu que ainda tinhavida. Uma réstia. Sem respiração há horas, o corpo esfriava. Já era quaseum ninguém. O espírito se fora, pairava sobre mortais e imortais. EraOlorum, o Céu. Pairava sobre o mundo, penetrava todos os espaços douniverso, sem conhecer limites.

Nada podia ser feito a esse respeito. Era respeitar o poder.

Mas, e quanto ao corpo? Sim, o corpo! A idéia, é claro, não foi sua.Veio trazida num relâmpago. Era deles à sua volta, de cada um dos deu-ses. Havia sim uma salvação, era perigosa, poderia sair errado, mas osdeuses não erram.

Não havia alternativa. Antônio apanhou o menino nos braços ecorreu com ele até o rio. Não sabia ao certo o que estava fazendo. Obede-cendo a uma ordem interior, rolou o corpo de Adão no barro das margens,até encharcá-lo de água e terra. Depois, cada um dos deuses assoproucalor em sua boca. Fizeram-no, cada qual, semelhante a si mesmos: vidae morte, luta e repouso, prazer e dor. E o poder de cada um.

Quando terminaram, o sol despontou no horizonte e o Céu mos-trou-se em toda sua luminosidade. Os deuses, respeitosamente, deixaramo local. Foram cada qual para a sua morada, alguns na mata, outros norio, no ar, no coração das feras e dos homens.

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Antônio ficou sozinho com o menino, que respirava. Tomando-onovamente nos braços, banhou-o nas águas claras do rio, vestindo-o emseguida. Ele dormia, embalado por um sono profundo, restaurador.

Olhando seu corpo, Antônio notou que ele tinha um pouco de cadaum de seus padrinhos. Mas não era um todo homogêneo. Eram retalhos.Fragmentos ajuntados com cuidado, mas fragmentos.

A um só tempo contente e preocupado com o feito, despediu-se domenino e foi em busca de conselhos. Precisava pensar. Descobrir a verda-deira significação do que fizeram, ele e os deuses.

Nesse dia não deu consultas às pessoas que vinham dos vilarejos ecidades em busca de consolo para suas dores. Sozinho em sua casa, jogouos búzios diversas vezes. Mas o resultado era sempre o mesmo: não davapara prever o futuro. Os deuses recusavam-se em opinar.

Viam o menino como um filho, mas um filho que não lhes perten-cia de fato. Ele era de todos e de nenhum. E, principalmente, no fundoAdão ainda era Olorum, o pai. Daí a confusão e o silêncio. O pai era, aomesmo tempo, o filho. Um filho que permaneceria, até que seu destino secumprisse, como uma incógnita.

– Você sabe o que lhe aconteceu?

A noite tinha envolvido o mundo. Adão, sentado na relva, bem àsua frente, prestava atenção às palavras de Antônio. Às margens do granderio ouviam-se grilos, cigarras e rãs. Mais ao longe, como a lembrá-los dafloresta, o esturro de um felino. Antônio sentiu um arrepio na coluna evoltou-se instintivamente para a pequena fogueira.

O menino pensava. Sentia-se estranho. Algo que desconhecia agi-tava-se em suas entranhas. Tinha vontade de correr pela mata, de se jogarnas águas do rio, de subir o morro e saltar pelos ares. Ao mesmo tempo,sentia-se bem ao lado de Antônio. O que estava ocorrendo?

– De fato não sabe!

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Antônio também não sabia o que dizer ou fazer. Ao combinar oencontro com Adão, tencionava trazer-lhe uma luz, qualquer que fosse.Mas ele próprio sentia-se confuso. Sem a direção e o sentido dos deuses,estava irremediavelmente perdido. Nessas condições não poderia ajudar omenino. O que diria? Que o seu verdadeiro pai era o Céu? E quanto aosoutros?

Não! Era melhor silenciar. Aguardar o cumprimento do destinoignorado. Antônio sempre soube que os deuses não erravam. Eram infalí-veis. No entanto, neste caso nem mesmo eles podiam saber qual seria ofuturo de sua criação.

Vera chegou com os filhos pela manhã. Não gostava de avião, maso vôo e o desembarque no aeroporto foram tranqüilos. Na infância, quan-do acompanhava o pai em viagens ao exterior, sentia-se invariavelmentemal. Mas teve que se acostumar com a fobia. O pai era embaixador e asmudanças faziam parte de sua rotina.

Não se lembrava com tristeza ou ressentimento dessa época. É claroque tivera diferenças em relação ao pai. O embaixador era excessivamenterigoroso. Mas agora, passados tantos anos, as lembranças depuravam-se.Ficou apenas a saudade.

Fazia tempo. Parecia uma eternidade os dez anos desde que o paifoi afastado do Ministério. Não, não sentia falta da vida agitada dessesanos, da atividade e do engajamento dos amigos. Não sentia falta dasreuniões em sua casa, até altas horas da noite. Nem dos discursos, dapolítica, dos debates. Apenas do pai. Quando se foi, sentiu um vazio semremédio em seu peito.

Só então decidiu aceitar o pedido de Abel.Não era uma paixão, como as tivera na adolescência. Abel era bem

mais velho. Significava o rumo certo e seguro, sem turbulências.Mas também não era um casamento por interesse. Pelo menos não

no sentido usual do termo. Filha única, Vera herdou as terras da família.Poderia, caso quisesse, viver das rendas.

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Na verdade, era a presença constante, a ausência de mudanças, asegurança de um braço forte que tornavam Abel atraente. Não que Veranão tivesse opção. Era assediada por causa de sua beleza e por ser umótimo partido. Mas os playboys da noite carioca e os membros da coliga-ção política de seu pai tinham uma coisa em comum que não a agradava:suas vidas eram instáveis. E ela desejava, mais do que tudo, estabilidade.

Mais velho, vivido, Abel preenchia exatamente a carência maior desua alma: a tranqüilidade que não tivera nos primeiros trinta anos de suavida ao lado do pai.

Para Abel era a realização de um sonho que acalentava desde o diaem que a conheceu, numa festa do Ministério.

Nessa época vinha tentando conquistar outra patente, mas a situa-ção política não era propícia. Correntes rivais à sua dominavam os maisaltos escalões do Exército, de modo que o posto de sargento era, de certamaneira, suportado por ele.

Estava certo de seus méritos e de sua capacitação. Mas isso nãobastava. Mais do que a capacidade pessoal, as relações e as condições po-líticas determinavam tudo. E elas, mais cedo do que tarde, haveriam demudar.

Quando isso aconteceu, sua amizade com Vera estava consolidada.Saíam muito juntos. Passavam horas caminhando pela praia. Às vezes,em Copacabana, paravam para tomar um sorvete. Sentada defronte domar, a cor clara de sua pele refletia a luz do sol, delineando seus contor-nos sob o vestido.

Vera era encantadora. Além da beleza e da sensualidade, sabia sernaturalmente afável. Os gestos e maneiras eram elegantes, mas nem porisso deixavam de ter a graça e a espontaneidade que não podem ser ad-quiridas pelo aprendizado. Era algo dela. Não fazia esforço para agradar,apenas agradava.

Foi num dia desses, de muito sol, que Abel reafirmou seu pedido.Vera já o havia recusado uma porção de vezes. A justificativa era igual:não pretendia se casar. Independente, não necessitava de amparo.

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Mas agora era diferente. As coisas mudaram. O mundo estava mu-dando. Tudo se tornava brutalmente inseguro e perigoso. E, acima de tudo,a solidão começava a assediá-la ainda mais que os pretendentes. A solidãoque ela não havia conhecido antes.

– Como você é linda!, disse-lhe Abel, tomando sua mão. Era umdia calmo, as turbulências já estavam sob controle. Muito contente com anova patente, de coronel, convidou a moça para um passeio. Disse-lheprimeiro que deveria assumir um posto em Brasília. Só depois, vendo nosolhos de Vera um laivo de tristeza, suspirou que não suportaria a distân-cia.

– O que vou fazer sem sua companhia?, lamentou-se.

– Outras amizades surgirão, respondeu-lhe a mulher, baixando osolhos. Mas Vera estava triste de verdade. Aprendeu a gostar de Abel e, quandoele se ausentava devido ao trabalho, sentia saudades.

– Não se trata de amizade.

– De que então?

Ele refletia sobre a forma de dizer. Pensou na distância de anos queos separava. Era um empecilho, ele sabia. Mas a dificuldade poderia serrevertida a seu favor. Abel sabia exatamente como.

– Estou ficando velho...

– Exagerado!

– Seja honesta, Vera. Você vive dizendo que não quer se casar. Se eufosse mais jovem, teria chance?

Apertando sua mão, ele procurava seus olhos. Mas Vera fitava ooceano. Seus pensamentos deslizavam sobre as ondas que, uma a uma,quebravam na areia branca. Viu, em cada uma delas, um ano que mor-reu. Já eram muitos e sentiu, pela primeira vez em sua vida, tristeza emcontemplá-las.

Antes não pensava no assunto. Havia sempre muito movimento e,mesmo desgostando da atividade incessante à sua volta, não tinha tempo

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para refletir sobre o futuro. Mas o futuro chegava. Vera estava bastanteconsciente. Era jovem ainda, mas não mais uma mocinha. Suas amigas,muito poucas na verdade, estavam todas casadas.

– Não te acho velho, respondeu, fitando-o pela primeira vez nosolhos.

Vera pensava. Havia experimentado de tudo e aproveitado o que ajuventude pode oferecer. Viveu suas paixões. Mas elas morreram como asondas na praia. Tiveram seu tempo. Delas guardava a doce lembrança deum ou dois momentos de alegria. E uma grande quantidade de mausbocados, de ciúme, de angústia, de espera junto ao telefone. E depois, osrompimentos. Meses de dor. E novamente uma luz no túnel. Outros olhosbrilhando, o ciclo se repetindo.

Ela sabia o significado exato da paixão. Era o desvario, o esqueci-mento, a amplidão dos sentidos, a deliciosa perda do equilíbrio. E depois,o caos.

Abel era o equilíbrio. O fim das turbulências. Os sentidos sob con-trole.

Até fisicamente ele representava segurança. De estatura mediana etroncudo, era difícil imaginá-lo caindo. Tinha estabilidade.

Só depois de cinco anos casados vieram os filhos. Abel tinha pressa.Mas não havia problema com Vera. E Abel submeteu-se com resignaçãoao tratamento. A cada dia, a cada nova tentativa, o desejo e a esperançaaumentavam.

A sua luta tinha o gosto de uma guerra particular. Era preciso do-brar a natureza, torná-la fiel a seus desejos. E poderia haver desejo maisnobre?

Nesse ínterim, Vera andava cabisbaixa. Tinha lá seus problemasinteriores, suas frustrações, talvez o reconhecimento de seus enganos. Nãosabia.

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Tentando animar a esposa, Abel falava sobre os filhos que viriam.Fazia menção à sua profissão, nunca exercida, dizendo que a condição demãe era o seu mais perfeito destino. Vera era educadora.

– Não existe melhor professora do que a mãe, sentenciava.

Ela concordava com a cabeça. No fundo, sentia-se frustrada pornunca ter exercido a profissão. Mas haveria uma chance no futuro.

Às vezes, Vera aborrecia-se em ficar o tempo todo em casa sem tercomo preencher o dia. Brasília era uma cidade vazia. Sentia falta da praia,dos amigos. E Abel permanecia muito tempo fora.

Vera fez, é claro, outras amizades. Reencontrou, inclusive, conhe-cidos do Rio. Mas as coisas haviam mudado. O seu mundo era outro.Nessas horas, entediada, pensava em lecionar.

Não uma classe inteira. Sabia, pelo que ouviu das amigas, que nãoera nada fácil. Não, não precisava ser uma classe. Um pequeno grupo dealunos era suficiente, ou mesmo alunos particulares.

Muito embora Abel finalmente cedesse ao seu desejo, Vera teve queadiar seus planos. Foi em 70. Julho de 70. O tricampeonato era conquista-do no México quando soube que seria mãe. A alegria de Abel foi dupla. Eseriam gêmeos.

Agora, levando o casal pelas mãos, Vera dirigiu-se ao saguão doaeroporto, onde o motorista a aguardava. Helena e Heitor estavam sono-lentos. Minutos depois de serem ajeitados ao seu lado, no banco de trás docarro, pegaram no sono. Eram crianças alegres e Vera era grata por isso.

Ela própria não foi uma criança alegre. Ou, pelo menos, não con-seguiu ser. Não teve amigos na infância. Na verdade não dava tempo.Quando estava consolidando suas amizades, o pai chegava apressado, di-zendo que tinham de partir. Sempre assim.

Lembrou-se da única vez em que esteve na fazenda, há cerca detrinta anos. Tinha oito anos na época, mas se lembrava com perfeição dos

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dias felizes que passou ao lado do pai. Em férias, em vez de viajarem parao exterior, foram descansar no interior do país. Foi uma única vez.

Mais tarde, talvez em sonhos, Vera compôs uma série com começo,meio e fim dessa viagem que ficou na sua lembrança como um dos pou-cos momentos de verdadeira alegria e descontração.

Durante os dois ou três meses que passaram no campo, ela pôde serela mesma. Não havia ninguém por perto além dos camponeses – os “co-lonos”, como o pai os chamava. Era apenas ela, os passeios pelo campo epela mata, as pescarias na beira do rio, os índios que o pai trazia para queconhecesse. E eram os “causos” contados pelo velho capataz. Sentava-seao seu lado junto com outras crianças e ouvia as mais diversas históriassobre os grandes segredos que a mata guardava. Ainda se emocionava aolembrar-se das histórias muito simples, mas cheias de mistério e encanto.

Uma lágrima rolou em sua face. O velho estava morto, assim comoseu pai. As histórias e a infância ficaram para trás. Depois da gravidez, adepressão puerperal instalou-se em sua alma. Ainda sentia os efeitos. Veranão era mais a mesma. O mundo tinha perdido o encanto. As flores dajuventude murchavam.

Lembrando-se das únicas férias que realmente apreciou, desejourecolher desse pedaço de chão ao menos uma réstia de seu perfume.

Já haviam pegado a estrada quando Vera pressentiu qualquer coisano ar. Vinha junto com o cheiro da terra vermelha. Era um bafo quenteque entrava pela janela do carro e fazia o corpo transpirar. O motoristaenxugava o rosto a intervalos.

Para Vera era diferente. Era sim uma brisa quente. Mas a sensaçãoera de frescor. Aspirando o ar carregado de terra, seu ser veio à tona, depoisde um longo tempo de esquecimento. Reconheceu, pela primeira vez de-pois de anos, seu próprio corpo. Um corpo bonito, que conservava as cur-vas e a graça da juventude.

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Vera havia se esquecido dele. Quando se olhava no espelho, a suaimagem o atravessava sem revelar os encantos que lhe eram naturais.Mas agora, a caminho da fazenda, a brisa quente da região central dopaís tocou-lhe os membros, os seios, as curvas da cintura e os cabelosclaros, jogando-os para trás. E Vera, sem saber exatamente por que, sen-tiu-se novamente mulher.

Embalada pela doce sensação de frescor e calor ao mesmo tempo,adormeceu. E sonhou sonhos há muito tempo esquecidos.

Quando despertou, o sol estava alto no céu. Não havia nuvens.

Fazia tempo tinham deixado a estrada pavimentada. Depois de ro-darem um trecho por uma estrada vicinal, o carro entrou por um cami-nho de cascalho. Tinham chegado. Olhou o nome gravado a fogo nomadeirame sobre a porteira e sorriu: “Fazenda Vera I”. Era a primeira, aúnica que Abel conservou, aplicando o dinheiro da venda das demais emnegócios no exterior.

Seus filhos ainda dormiam quando o carro, algumas centenas demetros adiante, teve que fazer uma parada. Uma grande boiada atraves-sava a alameda.

Vera olhava distraidamente a grande massa branca, quando umafigura chamou sua consciência à tona. De pé nos estribos de um cavalo,um menino magro comandava sozinho a condução da boiada. Quando oviu, o cavalo e o menino estavam estáticos, não se moviam do lugar. Eramcomo um único ser, uma escultura erguida no meio das pastagens.

Com o braço levantado, segurando uma vara de bambu verde, elenão usava botas nem camisa, apenas um calção. Seu corpo era de ummoreno especial, cor de bronze, e tinha os cabelos em cachos sobre a nuca.Devia ter, quando muito, uns treze ou quatorze anos.

Vera não conseguia desviar os olhos. Durante os poucos minutosem que o carro ficou parado, todo o seu campo visual se resumiu ao corpomagro do menino em pé sobre o cavalo. Era impossível não olhar. Umaforça magnética forçava seus olhos castanhos a contemplá-lo. E ela sen-

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tia um imenso prazer em fazê-lo. Um prazer que, se não desconhecia detodo, nunca havia sentido nessa intensidade.

O que a fazia olhar? Por que olhava? Não sabia. Só sabia que, setentasse forçar-se a desviar os olhos, não teria êxito.

Entregue à languidez do olhar, nem ouviu o motorista gritandopara o menino. Queria passagem. Mas Vera desejava que o tempo parasse.Que a paisagem a absorvesse e a tornasse parte desse sentido que nãoentendia e nem queria entender. Mas o tempo não parou. De repente, emi-tindo um assobio longo e agudo, o menino fez a boiada mudar de rumo.

No instante seguinte, ao virar-se na direção do carro, seus olhoscruzaram com os de Vera.

Um instante de silêncio.

Logo a seguir a boiada deu passagem ao carro e o menino sumiuno horizonte. Mas seus olhos ficaram. Na verdade eles penetraram fundoos olhos de Vera. Ela não soube como e também não quis evitar. Os olhosdo menino eram encantadores. Olhos que sorriam.

Não é que Adão tivesse sorrido. Impassível, nenhum músculo deseu rosto se moveu. Eram os olhos, somente eles. Azuis, de uma tonalida-de especial, quase negra, eles tinham um brilho próprio. Era como seuma chama se conservasse sempre acesa no seu interior. E ela queimava.

Vera não viu mais nada até o fim do trajeto. Seu coração batianum ritmo desconhecido. Sentia-se quente por dentro, sob o efeito de umadroga poderosa. Um pouco assustada, notou que o calor expandia-se pe-las artérias, veias e músculos, distribuindo-se sobre a pele. Quando o cor-po todo ficou quente, sua boca encheu-se de água.

Ela não pensava. Não podia e não queria entender nada. Seu únicodesejo era que as sensações não fossem embora. Há quanto tempo não sesentia tão viva? A verdade é que jamais tinha se sentido assim. Nem mes-mo na infância ou na adolescência. Era algo novo, Vera estava certa. Nãoera simplesmente sentir-se viva. Era algo mais. Intenso.

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Os últimos anos de depressão pareceram-lhe, nesse momento detotal abandono, como uma ilusão que ficou para trás. Entregue ao en-canto, Vera se deixou transportar pelo esquecimento que encontrou emum simples olhar.

Só quando o carro estacionou defronte da sede da fazenda e o ma-rido veio ao seu encontro Vera caiu em si.

– Finalmente chegaram, disse Abel, pegando as crianças no colo.Estava corado. O pouco que estivera ao sol no dia anterior tinha deixado apele da calva em brasa. Depois de entrarem, perguntou à esposa comotinha sido a viagem.

– Foi boa, respondeu-lhe Vera, lacônica. Abandonando a bolsanuma poltrona, percorreu os aposentos. Eram os mesmos, nada tinhamudado. As paredes pintadas de branco, o teto sem forro com a armaçãode madeira em forma de pirâmide sustentando as telhas vermelhas, ofogão a lenha com três bocas.

Havia sim novidades. O chuveiro elétrico, um fogão a gás junto aoantigo, novas árvores frutíferas no quintal. Mas para Vera era como sefosse tudo igual. Como se nada tivesse mudado. Vera sentia-se ela mesmanovamente.

– Já viu a menina?, perguntou a Abel, ao voltar para a sala. Elebalançou a cabeça, sem encará-la. Estava entretido com as crianças es-parramadas no chão. Depois de um lapso, em que se perdeu num vastosorriso de contentamento ao ver as estripulias dos filhos, voltou-se para aesposa.

– Esteve aqui pela manhã. Ordenei que voltasse mais tarde, quan-do vocês chegassem.

– E o que achou?– Não sei, é melhor deixá-la um pouco com as crianças.Tiveram problemas com as outras babás. Os filhos não se adapta-

ram. Além do mais, acabaram de se mudar para o Rio e Abel não confiava

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nas indicações. Tinha medo, os seqüestros estavam se tornando freqüen-tes e era preciso ter muito cuidado. Sua família era um alvo visado.

Caso as crianças se adaptassem a Joana, tudo estaria resolvido. Elaera um dos motivos da vinda da família à fazenda. Trouxeram as criançaspara fazerem um teste.

Joana era mais clara que Adão. Puxou ao pai e, além disso, não seexpunha tanto ao sol quanto o irmão. Cuidava da casa, desde que a mãese fora.

Muito inteligente, terminou o ginásio e queria fazer o colegial, masnão existia escola secundária na região. Daí o pedido do pai ao funcioná-rio de Abel que visitava a fazenda periodicamente. Queria arranjar-lhetrabalho numa casa de família. Assim ela poderia continuar os estudos.

A idéia amadureceu aos poucos. O pai já sabia que a filha era apli-cada. Tinha ouvido elogios por parte dos professores, nas reuniões de paise mestres. Mas só quando a diretora o chamou para uma conversa parti-cular é que ele finalmente tomou a decisão.

– Sinceramente? Eu acho que o senhor deve fazer um esforço.

A diretora sabia das dificuldades. Mas a menina era especial. Nãoera uma aluna comum: aprendia com rapidez e tinha engenho. Masesta não era a única razão da simpatia da diretora. Joana fazia com quese lembrasse de si mesma, da sua infância e adolescência. Também forauma aluna aplicada. Também viera de uma família pobre. E tinhavencido.

A diretora realmente se afeiçoara a Joana. Mas o seu empenho emajudar a menina tinha ainda outra motivação. Ela sentia necessidade decompensar o pouco que fizera por seu irmão.

Não que tivesse dor na consciência. Na verdade as coisas não de-pendiam de sua vontade. O que ela poderia fazer? Infelizmente a naturezanão brinda as pessoas com os mesmos dotes. Não podia conservar o meni-no na escola.

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Os problemas começaram cedo. Adão não se concentrava. Perma-necia a maior parte do tempo alheio ao ambiente à sua volta. Aconteceucerta vez de a professora tomá-lo por tolo. Um menino excepcional, che-gou a dizer à diretora.

Não que fosse indisciplinado. Isso não era. Ficava sozinho numcanto, evasivo. Não fazia amizades, talvez fosse esse o maior problema.Quieto, sentava-se à carteira e fitava o quadro-negro. Mas não acompa-nhava as lições. Quando a professora lhe dirigia a palavra, percebia queele não havia prestado atenção à aula.

O que dizer? Adão ouvia a professora, entendia que ela estava ten-tando ensinar, sabia até que era preciso se concentrar. Mas não podia.Seus pensamentos estavam lá fora, corriam pela mata fechada e depoispelas pastagens onde aprendeu a cuidar do rebanho. Ágeis, saltavam so-bre as cercas de arame farpado, deslizavam barranco abaixo até o rio emergulhavam nos trechos mais profundos. Com os olhos abertos, acom-panhava os cardumes de peixes, dourados, pintados e outros, menores,num bailado que fazia sua imaginação saltar novamente para fora daágua e voar junto com os pássaros. Às vezes, exausto, apenas flutuavacom as borboletas que se ajuntavam sobre uma moita de flores.

O que dizer? Adão mal aprendeu as primeiras letras. Tentava vernas palavras desenhadas sobre o papel as coisas que a professora dizia queelas eram: barcos, vacas, árvores, gente. Mas não conseguia.

Depois de três anos de esforços, a professora desistiu. Já havia fala-do com o pai diversas vezes e o pai já tinha chamado a atenção do filho.Mas sem resultados. Por fim, o pai se convenceu de que o menino real-mente não levava jeito. A irmã, mais velha e ótima aluna, até tentou ajudá-lo nas lições. Mas não havia meios. Seus pensamentos teimavam em nãose ajustar ao aprendizado escolar. Eles gostavam mesmo era da liberdadeque fica do lado de lá das paredes.

Pelo menos não era um menino preguiçoso. Apreciava o trabalhona roça e ajudava o pai na pequena plantação reservada aos colonos. E,

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ainda mais, gostava de lidar com o rebanho. Com gestos e, às vezes, umassobio agudo, que só ele sabia dar, se fazia entender perfeitamente. Erafácil lidar com o gado.

No fundo, a diretora não se sentia culpada. A falha não era da esco-la. A verdade é que nem todos conseguem se adaptar ao regime. As dificul-dades de aprendizado, ela conhecia na teoria e na prática, muitas vezeseram inerentes à constituição intelectual do aluno. Não são raros os quetêm dificuldades.

Mas Joana era diferente. Dava gosto olhar seu boletim. As notaseram as melhores. Além disso, era uma menina meiga e sensível. Nuncadeu trabalho aos professores. Aluna exemplar.

– E já é uma moça, continuou a diretora. – O senhor sabe, umamoça bonita e encantadora, logo logo vai ter, se já não tem, uma porçãode jovens em torno dela.

Joana realmente era bonita. Clara como o pai, nariz afilado e lá-bios carnudos, tinha os olhos muito azuis, realçados pelos cabelos negros,caindo em cachos sobre os ombros. Era uma beleza suave, mas muitosensual. O corpo de mulher, que se anunciava nos seios que cresciammoderadamente e nos quadris que se arredondavam, era esguio e tinha,ao andar, um balanço natural que logo atraía os olhares.

O pai havia notado. Mas não via problema. Era a ordem naturaldas coisas. O único senão era que fosse um bom rapaz, trabalhador esério. De resto, o ciclo devia se completar.

Mas a diretora chamara sua atenção. É claro que Joana poderia secasar e dar-lhe netos. Mas era muito cedo. Ela tinha uma vida toda pelafrente. Por que não investir em seus talentos?

– A senhora sabe que somos pobres, respondeu-lhe o pai.

Mas existia uma possibilidade:

– Eu mesma fui viver numa casa de família. Trabalhava de dia eestudava à noite.

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O pai mostrava-se relutante. Ao chegar em casa e ver a meninavarrendo o quintal, a imagem da esposa falecida veio-lhe à mente. Foramum casal feliz. Não precisavam de muito e contentavam-se apenas com acompanhia um do outro. Depois, veio a doença e a morte precoce. E atristeza ainda não o deixara totalmente.

Mas havia a presença dos filhos, cada um deles preenchendo umpedacinho do vazio que se instalou em seu coração. Amava-os muito.

Tinham uma vida simples, mas decente. Nunca pudera dar-lhesum luxo. Era sempre o estritamente necessário. Mas também nunca fal-tou comida em casa. Nem afeto. Agora, olhando a menina varrendo ochão, sentiu os olhos úmidos. Logo seria a vez de Joana. Como ele háquase vinte anos, um jovem viria até sua casa e pediria a mão de suafilha. Ele a daria. E logo Joana teria sua própria casa. Faria a sua vida.

Sentiu uma pontada no peito, como se a partida da filha fosse amorte. Mas era o destino de todos. Era a vida.

Demorou para conciliar o sono nessa noite. A imagem da esposa,com os filhos em volta, e depois a imagem da filha, varrendo o quintal,misturavam-se em sua consciência. Ao adormecer, teve um sono povoadode pesadelos. Viu a filha casada. Mas as coisas não se deram da melhorforma. O marido era um animal. Maltratava-a, fazia a filha de escrava,batia-lhe na cara. E ele nada podia fazer. Não lhe dera a mão? Pois bem,o destino de Joana não lhe pertencia mais. E a filha acusava-o com oolhar. Parecia dizer: “Veja, veja o destino que você me reservou!”

De manhã, ao despertar, Joana assustou-se ao ver o pai ao lado desua cama.

– Preciso lhe falar, minha filha.

A menina sorriu-lhe.

Mais tarde soube do interesse por parte do patrão. Teria que ir mo-rar muito, muito longe. Joana conhecia o Rio de Janeiro por fotos. Lera a

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respeito e sabia que era uma cidade linda. Mas também sabia que era umoutro mundo e que, se a recebessem, teria de se adaptar. Mas Joana sesentia capaz.

Ao se apresentar pela manhã, encontrou o general no escritório,entretido com papéis. Enquanto lhe falava, não notou que o general, emvez de prestar atenção às suas palavras, olhava, com o canto dos olhos, ascurvas de sua cintura. Nem que, ao se dobrar para pegar uma canetaderrubada de propósito no chão, seus olhos invadiram a região de seubaixo-ventre e intentaram penetrar o tecido já gasto de seu vestido de chita.

Joana tinha o corpo de mulher em formação. Mas ainda era umacriança. A ingenuidade e a confiança que sempre depositou nas pessoascom quem convivia impediram-na de perceber, numa simples troca depalavras até frias, intenções que não faziam parte de seu imaginário.

Chegou em casa preocupada nessa manhã, mas por outro motivo.Pensou que não tinha agradado.

Ao vê-la sair, o general novamente se debruçou sobre os papéis.Mas seus pensamentos não conseguiam acompanhar os números e aspalavras escritas nas notas fiscais.

Ele sentia-se velho. Nunca, como nos últimos anos, havia sentidocom tanta intensidade o próprio corpo. Não eram sensações agradáveis.Sentia dores. Era como se os músculos e ossos, antes ausentes e silencio-sos, procurassem demonstrar que estavam vivos. Chegou a se consultarcom o médico.

– É assim mesmo, disse ele.

O general entendeu. Era assim mesmo.

O que mais o incomodava não eram as dores, suportáveis em todocaso. Não era tampouco a memória, que às vezes falhava. Nem muitomenos a aparência. Ele nunca se destacou por causa da beleza, mesmo najuventude. O que mais o incomodava na sua nova condição era a força

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vital, o élan que sabia ter existido antes e que aos poucos abandonava seucorpo à deriva.

O que podia fazer?

Antes soubera dobrar a natureza. Teve filhos. Mas agora não haviaremédio que fosse capaz de pô-lo em guarda como nos velhos tempos. Asinsígnias e medalhas que tanto almejava pesavam-lhe no peito.

– Não sou um fraco, disse em voz alta.

Às vezes o general falava sozinho. Era uma mania recente. Eracomo se já se predispusesse para a solidão que costuma vir junto com avelhice.

Quando falava, procurava fazê-lo a sós. Intuitivamente sabia que,falando em público, poderia se pôr a descoberto a respeito de coisas queeram só suas. Não que temesse por sua vida pública. Pelo contrário, orgu-lhava-se de suas operações militares, de seu patriotismo, de sua condiçãode protagonista da história. Seu temor estava relacionado a outras coisas,à sua vida privada. Seu medo era que as pessoas rissem da debilidadefísica que ele disfarçava enchendo o peito de ar toda vez que passava seuscomandados em revista.

Ser descoberto em sua fraqueza representava o mesmo que perdero poder. Quem o respeitaria caso soubesse de suas nevralgias, das doresnos ossos, dos tremores que por vezes o acometiam, impedindo-o de escre-ver?

Os fortificantes, as vitaminas importadas da América do Norte ain-da surtiam algum efeito. As saunas, as caminhadas pela manhã, as ses-sões de ginástica na Academia, a disciplina da caserna, tais coisas ajudavama conservar um certo alinho. Mas, por quanto tempo? A decadência nãoera ainda perceptível, Abel apenas a pressentia. Mas isso era o bastantepara angustiá-lo e enervá-lo.

O que mais lhe doía era que a decadência se avizinhava justamen-te quanto ele tinha atingido o seu ápice. Abel Cruz havia conquistado

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tudo que ambicionara: poder, dinheiro, Vera, os filhos. Era um homemrealizado. O que mais poderia desejar? Mais poder? Mais dinheiro?

Não, já tinha o bastante.

Mas havia uma coisa. Não sabia o que era, mas havia. Talvez, sedespegasse a língua e desatasse a falar... Não, não bastava só falar. Erapreciso ouvir ao mesmo tempo. E entender. Mas como falar, ouvir e enten-der, se Abel era apenas um?

Faltava-lhe um interlocutor. Alguém que o ouvisse e que o com-preendesse. Mas esse alguém devia merecer sua confiança. E Abel só con-fiava em si mesmo.

E quanto a Vera? Não fora sua confidente tempos atrás, quandoeram apenas amigos? Ou tudo não passou de estratégia de sua parte? Naverdade Abel contava-lhe coisas sim, desde que não fossem compromete-doras. Talvez tenha sido por isso que ela aos poucos foi se afastando.

É claro que Vera lhe dedicou afeto no início. Não se fez mãe de seusfilhos por outra razão. Mas aos poucos, bem aos poucos, foi notando queo homem que tomou para si não lhe dedicava confiança.

Era como se Abel lhe contasse tudo, omitindo apenas um detalhe.

Mas um detalhe teria tanta importância assim? Por que se martiri-zar por causa de uma coisa insignificante?

O martírio é que ele a escondia. Inclusive de si mesmo.

Mas Vera, se não podia descobrir a razão, ao menos suspeitava.Eram hipóteses destiladas em noites de pesadelos. Noites tenebrosas. Mes-mo Abel se assustava ao despertar com os gritos da mulher dizendo-lhedisparates. Vera atirava-se contra o marido como se ele fosse um monstro.Mais tarde, ao acordar, não se lembrava de nada.

Os surtos de sonambulismo tornaram-se tão freqüentes depois doparto que, a conselho do médico, resolveram dormir em quartos separa-dos. Assim, a possibilidade, ainda que remota, de ser um dia ouvido ecompreendido pela esposa, caiu no vazio. O resto era apenas aparências.

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Abel sabia que eram aparências. Aliás, reforçava-as o quanto po-dia. Seus esforços em manter-se altivo e forte, a luta contra o tempo, anegação das evidências, tudo era feito de propósito e a favor das aparên-cias.

Mas de uma coisa Abel não estava ciente. Não sabia exatamente oque lhe faltava. Não sabia qual era a carência de sua alma que o impediade ser efetivamente feliz.

Minutos atrás, enquanto olhava o corpo a um só tempo inocente esensual da menina, teve um vislumbre de sua própria alma. Por pouco,por muito pouco mesmo, o pano não caiu, revelando o detalhe, insignifi-cante em todo caso, que camuflava o seu verdadeiro ser. Mas, é claro,haveria outra oportunidade no futuro.

Quando, mais tarde, ouviu o motor do carro, ainda tentava captaro sentido de tudo. Em pé diante da escrivaninha, passou toda a manhãtentando capturar, na imagem suave, um pouco morena de Joana, o tre-mor que sentiu durante sua breve presença. Era mais que um tremor. Eraquase a irrupção de sua alma. De uma alma que estava soterrada poruma fina camada de pó.

De manhã, quando partiu a galope em direção às pastagens, Adãorefletia sobre a sua última conversa com Antônio. Procurava descobrir, notom enigmático de suas palavras, o sentido para as coisas que lhe aconte-ceram nas últimas noites.

Adão sentia-se estranho. Não era o mesmo de meses atrás. Um poucotalvez por causa das transformações que ocorrem no início da puberdade.Mas não só por isso.

Pela primeira vez em sua vida ele refletia sobre o seu próprio ser.Nunca antes havia parado para pensar sobre si mesmo. Não havia neces-sidade. Ele era o que era, e só. O céu azul e sem nuvens não esconde, antesrevela a sua luminosidade.

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Mas as coisas mudaram. O céu cobriu-se de nuvens. Surgiram som-bras onde antes só existia claridade. E Adão refletia. Pela primeira vez emsua vida não sabia exatamente quem era.

Enquanto ajuntava o gado a pedido do pai, seus pensamentos nãoestavam perfeitamente alinhados com os olhos como antes. Eles volta-vam-se para dentro, para o interior de si mesmo.

Mas, ao fazer isso, a confusão tornava-se maior. Em vez de se reco-nhecer na própria visão, descobriu uma porção de elementos que nuncaestiveram ali. De onde vieram tais sentimentos? Ele não sabia. Não podiasaber.

Seu corpo vibrava de um modo estranho. Não que fossem sensa-ções desagradáveis. Não que a vibração e o calor que subiam desde a plan-ta dos pés até a cabeça o incomodassem. Eram, ao contrário, agradáveis.

Mas o intrigavam. Nunca tinha se sentido assim.

A verdade é que, pela primeira vez em sua vida, Adão tomava cons-ciência de seu próprio ser. Antes apenas vivia ou deixava-se viver. Não ha-via mistérios. Agora, ao contrário, ele sentia o reflexo de sua presença naboiada que tangia com a vara de bambu ou, e principalmente, na facebrilhante das águas do rio.

Intrigado com a visão, tentava ir mais e mais fundo. Mas só o quedescobria eram vagos contornos de um rosto e de um corpo que lhe pare-ciam familiares. Por que então o estranhamento? Ele não entendia. Olha-va seu reflexo na água e, em vez de se reconhecer, via outra pessoa.

De onde surgiu essa impressão?

Adão não sabia nem como nem por que, mas sentia que lhe tira-ram o próprio eixo. Já não era, como antes, senhor de si mesmo.

Na noite anterior, junto a Antônio, sentiu pela primeira vez taisimpulsos. Eles brotavam do seu peito e pareciam ter vida própria. Eracomo se o corpo estivesse preso por inúmeras cordas que o puxavam cadaqual numa direção. Deveria ceder? Mas a qual delas?

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Pensava, ou melhor, sentia tais coisas quando um grito interrom-peu seu devaneio. O motorista, com a cabeça do lado de fora do carro,pedia-lhe passagem. No banco de trás, um pouco escondidos pela janelasemi-aberta, notou que um par de olhos o fitavam. Eram belos. E semsaber por que, Adão sentiu uma imensa necessidade de sorrir.

Mais tarde, a caminho de casa, encontrou a irmã na companhiada mulher e seus filhos. Passeavam na alameda ladeada pelas casas doscolonos. Entretida com as crianças, Joana não notou a aproximação doirmão.

Vera, que olhava um casal de araras empoleirado no galho de umapaineira, ao ouvir o barulho de cascos voltou-se a tempo de ver o dorso deAdão contra a luz do sol poente. Apontando-o, perguntou a Joana se oconhecia:

– É meu irmão, respondeu-lhe a menina. – Chama-se Adão.

E Vera sentiu novamente um movimento, quase um nó de satisfa-ção, subindo-lhe pelas paredes internas do peito.

Nessa noite Vera teve dificuldade em conciliar o sono. Passou umtempo com o marido e as crianças na sala e, logo depois de acomodá-lasnum dos quartos, dirigiu-se para o seu. Tinha um livro nas mãos. Mas ospensamentos não se amoldavam ao sentido das palavras que percorriacom os olhos. A imaginação estava em outro lugar.

Não conseguia entender, não deveria pensar em tais coisas, era umamulher casada. É claro que o casamento não passava de uma decorrên-cia: era a continuação de suas antigas necessidades de segurança. É claroque o afeto que tivera por Abel deu lugar à indiferença. Mas nem por issotinha o direito de pensar em outro homem. Muito menos quando essehomem não passava de um menino.

Mesmo assim não conseguia reprimir-se. Era mais forte e insisten-te que sua vontade e tomava conta do corpo.

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Só não conseguia entender a razão. Por que o menino?

Refletindo a respeito, declarou-se que era tudo fantasia. Havia pas-sado por maus bocados ultimamente e, ao voltar para a terra onde umavez fora feliz, seu coração ocupou-se de prover o encanto que, ela sabia,deveria desvanecer-se no dia seguinte. Sim, dizia-se a si mesma, com olivro aberto sobre o peito, amanhã tudo será esquecido.

Ou então, ao se recordar, Vera saberia que tudo não passou de fan-tasia.

Sendo assim, podia dar asas à imaginação e permitir-se sonharnem que fosse por mais uma hora, até que o sono a envolvesse e diluísseos últimos resquícios de sua breve insanidade. E Vera sonhou. Sonhouque olhava para sua imagem refletida nas águas do rio. Viu-se nua. Eraum belo corpo de mulher.

Admirada com a visão, não notou que Adão se aproximava. Só foise dar conta de sua presença ao vê-lo refletido nas águas, e igualmentenu. Era sim o corpo de um menino. Mas seus olhos, quase chorosos, pe-diam-lhe que não o visse assim. Que Vera o visse como um homem que jáqueria ser. E que o corpo da mulher envolvesse o corpo do menino e oembalasse num sono sem sonhos. Num sono de profundo esquecimento.

Mas o sono verdadeiro não chegava para Vera. Ao contrário, excita-da pela imaginação, a mente e o corpo estavam intensamente despertos.Podia ouvir os grilos e cigarras lá fora, próximos da janela. E o pio deuma coruja. E o latido dos cães a intervalos.

Sentia calor. O tempo estava quente e Vera usava apenas uma ca-misola. Mesmo assim transpirava, grudando a pele no tecido fino. Sentiacada fibra do corpo. E sentia quando o tecido, secando num dos lados,deslizava nas pernas dobradas e entreabertas.

A insônia, se não era desagradável, ao menos incomodava a cons-ciência. Podia sentir o pulso sob a pele e ouvir as batidas do coração. E osarrepios percorrendo desde a parte interna das coxas até a região do ventree dos seios. E a imaginação.

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Sua imaginação não era silenciosa. No meio da quietude da casa,absoluta nesse momento, Vera ouvia sua própria respiração. Era forte edesritmada. Era quase um soluço. Ela chegou a temer que, dos quartosvizinhos, Abel e as crianças a ouvissem. Mas sua preocupação teve umaduração muito breve. Um instante e novamente se encontrava em pé nabeira do rio.

A cada mergulho de seu espírito nas águas, seu corpo se tornavamais macio e sensível. Aos poucos perdia a rigidez e a frieza que não eram,em absoluto, parte de seu verdadeiro ser.

Por que se tornara fria? Ela suspeitava, mas se recusava a reconhe-cer. Cometera equívocos? É claro! Mas agora não adiantava pensar a res-peito. Se não podia desfazer o passado, se não tinha forças para rompercom as aparências, pelo menos podia sonhar.

Ora, no dia seguinte tudo estaria esquecido, sua vida voltaria aonormal. Mas hoje, pelo menos hoje, Vera permitia-se não ser simples-mente o produto de um equívoco e ser ela novamente. Mais ainda, ser amulher que nunca foi, nem mesmo quando o pai era vivo.

A intervalos, detendo o sonho, refletia sobre sua vida. Por que erainfeliz se todos seus desejos se realizaram? Não fora ela mesma quem,desgostosa da vida corrida e impermanente, escolheu o conforto e a segu-rança do casamento? Não foi seu o “sim”, seguido de um sorriso, à per-gunta do padre na igreja?

Mas era infeliz.

Um pouco talvez pela incógnita que Abel se tornou logo após ocasamento. Não, não era só por isso. Vera sabia que todos, sem exceção,temos os nossos segredos. Por que Abel não podia ter os seus? Por que eledeveria ser transparente?

O lado obscuro de Abel a incomodava. Mas não era só isso. Seudescontentamento devia-se antes ao fato de que, na verdade, nunca o amou.Tivera-lhe afeto, e só.

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Desde o princípio, desde aquela tarde na praia de Copacabana,quando o então coronel a pediu, ela o aceitou pela segurança que elerepresentava. Mas o seu desejo de estabilidade não significava, no fundo,que ela, e não o mundo à sua volta, é que era instável?

Detestava a vida conturbada junto ao pai. Detestava, mais do quetudo, as viagens constantes. E o burburinho das pessoas que entravam esaíam de sua vida.

Mas, por quê? A sua carência de segurança externa era o reflexo dainstabilidade interna. Era essa a verdade.

Assustada com a descoberta, Vera sentou-se na cama. Estava ba-nhada de suor. Despindo-se da camisola, aproximou-se da janela e a abriude par em par. Era uma noite linda, cheia de estrelas. Aspirando profun-damente, sentiu o perfume das laranjeiras em flor e do bosque que desceem direção ao rio. Lá fora reinava o silêncio do sono humano. Somenteseus olhos despertos, ela pensava, contemplavam a beleza da noite que,em todo caso, estava cheia de vida.

O que havia de mal na impermanência?

Sim, o que havia de mal? Não estava tudo em movimento? Não erada natureza das coisas?

Os lábios de Vera se mexeram. Murmuraram para si mesma umaresposta audível somente por seu coração. Era um segredo. Não queriaque outros a ouvissem.

Depois, voltando os olhos para as sombras da noite, Vera sorriu.Finalmente sorriu de felicidade. E o seu peito encheu-se de um calor e deuma luz tão intensos e tão envolventes, que pareceu-lhe que todo o mun-do lá fora também se tornava luminoso.

No meio dessa escuridão que se desnudava, notou que um vultosilencioso atravessava a mata, vindo do rio. Seu coração, apaziguado pelaalegria da sua secreta descoberta, começou a bater novamente fora docompasso. Sentiu um arrepio correr-lhe pela espinha e um nó na parte de

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baixo das costelas. O auge veio um instante depois. Prestando toda a aten-ção, concentrando-se no foco que se movimentava contra o manto escuroda mata, descobriu por que perdera o equilíbrio:

Era ele, Adão.

De manhã, ao despertar das poucas horas de um sono leve eentrecortado, encontrou o marido no escritório, junto ao rádio. Fumavaum charuto, enquanto falava com seu pessoal do Rio.

Disse-lhe “bom dia” e, antes de ouvir a resposta, dirigiu-se para acozinha. A empregada tinha acabado de preparar o café. Faminta, Verafez seu desjejum sem companhia, pois os filhos ainda dormiam. Em se-guida saiu para o quintal.

Não havia nuvens no céu e o calor, nas primeiras horas da manhã,era insuportável. Mas Vera sentia-se bem. Gostava do clima.

Andando a esmo pelo pomar, sentiu bater-lhe uma brisa fresca vin-da da mata e um perfume que não era das flores das laranjeiras encheu osseus pulmões. Não se tratava simplesmente de uma recordação. Quandomenina, certa vez seu pai a levou para colher flores no campo. Era o mes-mo perfume, e vinha do lado de lá do bosque, onde começam as pasta-gens.

Sim, ela se lembrava. Foi dessa direção que viu surgir o vulto deAdão, logo depois de sentir o perfume das laranjeiras e do bosque.

Curiosa, desceu um trecho da encosta e, voltando-se na direção dajanela de seu quarto, imaginou se era possível a Adão tê-la visto debruçadana janela. Sim, era. Com claridade era bem possível. Só que as luzes doquarto estavam apagadas. E era praticamente impossível vê-la a essa dis-tância no meio da noite.

Mas ela também não o distinguiu contra a parede de escuridão damata? Não o viu, a princípio como um vulto; e depois, por um breve ins-tante, não o reconheceu? É verdade, tudo é possível. E Vera, um pouco

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encabulada com a descoberta dessa simples possibilidade, sorriu. Depois,voltou a pensar.

O que fazia ele na mata àquela hora da noite?

Pensava a respeito quando ouviu o som de gravetos que se partiam.Instantes depois, a figura de Abel surgiu enorme contra o disco solar.

– Joana chegou, disse-lhe, olhando seu corpo com curiosidade.Procurava qualquer coisa. Vera, percebendo que Abel a analisava,enrubesceu. Teria notado? Mas notado o quê? Não, é claro que não. Eraoutro o motivo de sua revista. Abel conservava a imagem de Joana nacabeça e, ao se concentrar no corpo de Vera, procurava semelhanças ediferenças entre ambas.

– As crianças acordaram?, perguntou-lhe Vera, para quebrar o si-lêncio.

Abel não ouviu. Seus pensamentos, ao contrário dos olhos que agoravagueavam pela encosta e pela mata, estavam todos fixos na figura es-guia e bonita de Joana. Não lhe saía da cabeça. Era tão jovem! Jovem efrágil, pensou.

Como os gravetos que quebravam sob seus pés.

Mais tarde Vera sugeriu que deveriam passear no rio. O generalnão podia. Tinha coisas a resolver no escritório. Na verdade queria ficarsozinho com seus botões. As idéias fervilhavam em sua mente. De modoque foram Vera, os filhos e Joana. Seria um piquenique.

– Ainda me recordo de um trecho pedregoso onde eu e papai íamospescar.

Joana sorriu-lhe:

– A senhora parece gostar daqui.

– Muito.

– Eu também gosto.

– Mas quer ir embora...

Disse-lhe que precisava estudar.

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– Isto é bom.

Depois, pesando as palavras, Vera perguntou-lhe sobre a família.

– Minha mãe morreu, disse a menina. – Meu pai cuida de nós. Demim e de Adão.

– E ele, não estuda?

Adão cuidava do rebanho. A essa hora estava longe, no meio daspastagens. Levantava junto com o pai de madrugada, para a ordenha, elogo em seguida arreava o cavalo e partia para a lida.

Nesse dia, como no anterior, Adão pensava. Sozinho no meio daspastagens, seus pensamentos corriam soltos. Vinham, a princípio, comouma pergunta. Depois, partiam em busca de uma resposta.

Não eram pensamentos formalizados em frases do tipo: “por queme sinto tão estranho?” ou “o que me aconteceu na noite em que estivecom Antônio?”, ou ainda, “quem é a linda mulher que me olhou comolhos a um só tempo tristes e brilhantes?”.

Incoerentes, as impressões brotavam do fundo do ser, impelindo-onão se sabe em qual direção. Sentia necessidade de descobrir ou de encon-trar algo que começava a lhe faltar. Mas não sabia o quê. De onde surgiuesse vazio?

Na noite passada, sentado numa rocha nas margens do rio, teve anítida impressão de que era observado. Não eram os olhos enormes e indi-ferentes de antes. Olhos que ele de algum modo conhecia e que não oincomodavam.

Eram olhos humanos. Olhos que observam com curiosidade e cominteresse.

A impressão era nítida e forte. Haveria alguém? Levantando-se, vas-culhou a mata em derredor, mas nada descobriu. Coisa estranha, poispareceu-lhe, inclusive, ouvir a respiração contida do observador secreto.

Mas se não era ninguém, de onde a impressão?

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Talvez tenha vindo de dentro.

À medida que os dias passavam, aumentava o interesse de Vera portudo o que se referia a Adão e sua família. Conversava muito com Joana.E toda vez que surgia uma oportunidade, perguntava-lhe sobre o irmão.

Desde a noite em que o viu da janela, tinha-o encontrado apenasuma vez. Mas não de relance, como nas demais. Depois desse dia passa-ram a se ver com freqüência.

Estavam todos no pomar, menos Abel. As crianças brincavam, ca-voucando a terra macia e úmida sob as árvores. Joana e Vera tomavamconta, sentadas em cadeiras de lona. Era de manhã, pouco antes do meio-dia.

Joana estava interessada pelas coisas que a patroa contava sobre oRio. Nunca tinha saído da região. Para ela, a mudança significava ir aoencontro de um outro mundo.

– Chega a dar medo, confessou.

– Não tem motivo, disse Vera. – O Rio é uma cidade linda.

Conversavam sentadas defronte uma da outra, com as crianças bempróximas. Era preciso tê-las sob o olhar.

– Dizem que é uma cidade perigosa.

– Perigo existe em toda parte.

No entanto, Vera explicou que era preciso estar sempre atenta nacidade grande. Que lá não eram as feras da natureza que estavam à es-preita, mas seres humanos. Joana era-lhe toda ouvidos. Com os dedos dasmãos cruzados sobre as coxas, mantinha os olhos fixos no rosto da pa-troa, com quem simpatizava.

De repente, levantando os olhos, Joana obrigou Vera a interrompera frase na metade.

– O que foi?, perguntou-lhe a patroa, virando-se ao mesmo tempo.

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Deu de cara com Adão. Tinha chegado de mansinho, com os olhosbaixos de timidez. Procurava pela irmã.

Vera não era tímida. Estava acostumada a todo tipo de situação eraramente se embaraçava. Mesmo assim sentiu o sangue afluir para orosto.

Levantando-se, cumprimentou o menino, que a encarou pela pri-meira vez. Os olhos de Adão brilhavam. Vera sabia que os seus tambémdeviam estar brilhando. E sentiu as pernas um pouco bambas.

– É o meu irmão, disse Joana.Primeiro Vera não soube o que dizer. Depois, controlando-se, per-

guntou ao menino se ele não se sentia triste com a partida iminente dairmã. Procurava assunto.

– Ela vai estudar, respondeu-lhe, com os olhos novamente baixos.Em seguida, olhando para Joana, sorriu por vê-la feliz.

– E quanto a você, não quer estudar?Ela sabia, pelas conversas que teve com Joana, que o irmão deixara

a escola.Sem responder, Adão endireitou o corpo. Depois, dobrando-se um

pouco para a frente, olhou sobre os ombros de Vera. Tinha os olhos frios eindiferentes. E as mandíbulas travadas.

Vera sentiu um arrepio correr-lhe pela espinha. Mas não deu tem-po de pensar. Num instante o corpo magro de Adão projetou-se no vazio,caindo bem no meio das crianças. E a mulher gritou.

Instantes depois Abel surgiu correndo pelo pomar. Encontrou o gru-po reunido num círculo. Estavam todos agachados. Observavam a urutu-cruzeiro morta, com a cabeça esmagada.

Ao notá-lo, Vera se levantou.– Não a vimos, explicou, ainda trêmula. – Foi por pouco.Seguiu-se uma discussão entremeada de lamentos e acusações por

causa do descuido. Depois, aproximando-se de Adão, o general perguntouo que ele havia usado para matar a cobra.

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O menino soergueu levemente os ombros, olhando o patrão com acabeça um pouco baixa.

– Foi com o pé.

Abel passou o corpo do menino em revista, admirado. Adão estavade calças e camisa, mas não usava botas, apenas um chinelo de couro.

– Não foi ferido?, perguntou.

– Não senhor.

– É melhor levá-las para dentro, disse em seguida, voltando-se paraa esposa. Apontava as crianças. Seguras pelas mãos de Joana, elas aindaolhavam a cobra morta.

Depois, a sós com Adão, disse que lhe era muito agradecido.

– Você é filho do capataz, não é?

Adão confirmou com a cabeça.

– Eu vim chamar minha irmã, completou.

– Joana?

Respondeu que sim.

– Algum problema?

– Não senhor, é que chegou uma carta.

Nesse momento Vera voltou, ouvindo a última frase.

– Chegou uma carta para Joana?

– Não senhora, respondeu-lhe, baixando os olhos novamente. – Épara meu pai.

Pode-se dizer que o incidente com a cobra teve o mérito de produ-zir duas conseqüências diretas:

No caso do general, ele sentiu, a um só tempo, gratidão e despeitoem relação ao menino. No fundo, sabendo-se devedor, sentiu uma certaantipatia em relação a ele. Abel não gostava de dever. Tudo o que conquis-tou acreditava ter sido por seus próprios méritos. A gratidão tinha seusinconvenientes.

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Mas desta vez não teve como evitar a verdade de que, não fosse pelapresença e coragem de Adão, seus filhos estariam feridos. Era-lhe, porcausa disso, grato.

Precisava retribuir o favor na mesma medida. Quitar a dívida.

Além do mais, o despeito se devia ao fato de que outro, e não elepróprio, havia surgido diante da esposa e dos demais como herói. É claroque Abel não estava presente no momento do perigo. Mas não era este oseu dever?

Por tudo isso, a reação de Vera pareceu a Abel a mais apropriada. Oque ela propôs e em seguida tentou realizar, de certo modo o liberou dadívida. Abel não precisava se preocupar em retribuir ao ato de coragem domenino. Vera faria isso por ele.

Assim que ficaram a sós, Vera disse o que pretendia. Abel concor-dou de imediato. Na verdade, estranhou um pouco o brilho nos olhos daesposa, ausentes desde há muito. Era um brilho de amor.

É claro que, para Abel, era o amor que as pessoas que ensinamrevelam por seus alunos. O amor da mãe que transfere parte de seus sen-timentos para seus educandos. Estaria errado? Quando Vera se propôs –caso Adão concordasse – a ensiná-lo a ler e escrever, ela realmente estavaimbuída de uma intenção missionária. Pareceu-lhe um absurdo que Adãonão tivesse condições de aprender. Era óbvio que a professora da escola emque ele estudou não compreendeu as peculiaridades da sua personali-dade.

Vera poderia ajudá-lo.

Havia, é bem certo, um desejo vocacional. Dar um pouco de si, dosconhecimentos acumulados na Universidade e nunca postos em prática.Vera se fez educadora por gosto. Não precisava de uma profissão. Mas nuncateve, ao mesmo tempo, oportunidade e energia para realizar o desejo.

Antes, muito antes, até cogitou com o marido a possibilidade detrabalhar. Mas ainda não era um desejo maduro. Era mais uma necessi-

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dade de preencher o vazio em que sua vida havia caído. Além disso, Abelopusera obstáculos.

Agora não. Ele até a estimulava. Além do quê, seria por um breveperíodo. Logo que as férias terminassem, a esposa deveria retomar suarotina.

Adão olhava admirado para a irmã. Ouviam tudo com atenção, elee o pai. Joana adiantava o que, mais tarde, Vera proporia a seu irmão. EAdão pensava. Não entendia o motivo. Era por causa do quê que a patroaqueria ensiná-lo?

– Eu contei que você largou a escola, explicou a irmã. – Ela émuito boa, quer ajudar.

Sim, ela era boa. Seus olhos eram bons, Adão havia notado. Umpouco tristes, é verdade. E belos. Brilhavam de um jeito que ele nuncatinha visto.

E faziam ele sentir coisas que nunca tinha sentido. Adão era aca-nhado por natureza, mas os olhos de Vera, como nunca outros, faziam elesentir algo subindo pela garganta.

Era uma das coisas que não entendia. Por que se sentia assim? Nãoque fossem sentimentos e sensações ruins, mas incomodavam a sua anti-ga tranqüilidade. Por causa deles Adão perdia um pouco o rumo. Nãosabia direito o que fazer e, às vezes, se distraía do trabalho. Ficava pensan-do, por horas, nos olhos de Vera.

Era algo novo para Adão.

O problema é que ele não tinha com quem dividir os sentimentosque emergiam de seu coração. Não tinha amigos. Os meninos da colôniae mesmo os antigos colegas da escola o evitavam. Costumavam caçoardele, assoprando que era maluco. Só não diziam diretamente porque otemiam.

Consideravam-no um estranho.

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Mesmo Adão se considerava estranho. E agora, mais ainda do queantes.

Ao encontrar-se com Vera, pouco mais tarde, sentiu novamente umaperto no coração. Estava visivelmente nervoso. A mulher notou, masachou melhor não dizer nada. Não queria perturbá-lo ainda mais.

Estavam no pomar, não muito distantes da casa. Vera convidou-opara uma passeio, para que pudessem conversar à vontade.

– Vamos ao rio?, propôs.

Adão concordou com a cabeça. Estava acanhado e, ao ouvir o con-vite, sentiu-se melhor. Era uma voz doce, ainda que, por vezes, um poucotrêmula. Vera também estaria nervosa?

Em seu quarto, pouco antes de ir ao encontro de Adão, ela medita-va sobre as verdadeiras razões de seu interesse em ensiná-lo. Seus olhosestavam presos às traves de madeira e ao telhado. Os pensamentos baila-vam em sua cabeça.

Vera estava plenamente consciente do que sentiu desde a primeiravez que seus olhos cruzaram com os de Adão. Não havia dúvida – daí aculpa. Mas nem mesmo a culpa era capaz de suprimir as sensações. Apartir da imagem impressa na retina, elas dimanavam pelo resto do cor-po, deslizando e aquecendo a pele. Eram sensações muito agradáveis. E,ao mesmo tempo, perturbadoras. Não lhe davam descanso.

A culpa, para Vera, não se devia exclusivamente ao fato de nova-mente sentir-se viva. Nem muito menos por ter desejos. Era, antes, a estra-nheza da situação que a perturbava. Por que um menino? Do ponto devista moral parecia hediondo. Uma criança!

Não tanto uma criança, ela sabia. Adão era já um mocinho. Masmesmo assim um adolescente. Se fosse um homem feito, ainda que jo-vem, não estranharia tanto. O esfriamento de sua relação com o marido,a distância de anos que os separavam, o amor que provavelmente nuncaexistiu, a sua juventude, tudo isso poderia torná-la predisposta. Não have-ria nada de realmente estranho.

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Mas um adolescente? Por que, meu Deus?

De repente, interrompendo o fio dos pensamentos, Vera começou arir.

Ria da sua condição, pois não podia compreendê-la. Olhando-seno espelho, viu uma mulher que, na ânsia de encontrar segurança, enter-rou os poucos sentimentos que ainda se conservavam vivos em seu peito.Ria dessa mulher. Era uma mulher cansada e triste. Antes de tudo, umamulher medrosa.

Por que tivera medo? Vera já havia pensado sobre tudo isso. Sabiaquais eram as razões. Só não concordava mais com elas.

Na verdade Vera ria de sua condição passada, do que fora. Era umriso de alívio. E, ao mesmo tempo, era um riso nervoso, histérico. Um risode quem tem diante de si uma possibilidade de reabilitação, mas, de tantodesejá-la, passa a temê-la.

Não se tratava simplesmente de um riso de ansiedade. Havia umareflexão em seu interior: sobre a situação ironicamente reeditada ao in-verso. Por medo, por ódio aos riscos de uma vida livre, Vera havia se entre-gado e se tornado esposa de um homem que representava unicamente asegurança. Agora era o contrário. Tinha a segurança, como tivera antes aliberdade. E, em vez de odiar a liberdade, ansiava por ela.

O medo estava igualmente presente, mas não como antes. Não eramais o medo de quem quer evitar a vida, como havia sido. Ao contrário,era o medo que se coloca junto com a vida, dando mais vigor ao desejo demergulhar nela por inteiro.

Por tudo isso Vera ria.

É claro que, tão logo se tornou consciente de seu desejo, soube queele era irrealizável. A liberdade era a vida, mas, ao mesmo tempo, era serobrigada a dar as costas à sua vida de até então. E Vera, como é óbvio, nãopodia. Teria sua insanidade decretada. E a reclusão. E o afastamento detudo o que ainda amava.

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Por isso Vera sonhava, apenas sonhava. Eram sonhos que brota-vam de seu peito e irrompiam através dos poros. Irrealizáveis? Sim!, pen-sava.

Decidida, disse para si mesma que sim, que eram irrealizáveis. Masisso não importava. O importante para Vera era que o desejo de liberdadee o reconhecimento do próprio corpo e de sua vontade haviam se tornadopossíveis. Só por essa razão já se sentia mais mulher e mais livre. E se davapor contente.

Mas, ao encontrar-se a sós com Adão, sentiu novamente as pernastremerem. E o calor subir pela face. E por pouco não se engasgou aoconvidá-lo para o passeio.

Racionalmente Vera havia colocado cada coisa em seu lugar. Re-conhecera seus desejos e necessidades e, talvez, a sua natureza de mulherpor inteiro. Mas, ao mesmo tempo, delimitara seu campo de ação: de fato,sua decisão era de ensiná-lo. Seu amor deveria ser revelado através de umato de doação. Nada mais que isso.

No entanto, arremessando-se contra as paredes de sua consciência,os impulsos da vida lutavam por aflorar. Foi assim que Vera sentiu umcerto tremor na voz. Um tremor próprio de quem está, por assim dizer,entregue.

Por esse motivo se viu obrigada a redobrar a atenção e a se pôr emguarda. Se não podia reprimir o que lhe passava no coração e na fantasia,se não podia sequer evitar que as palavras lhe saíssem trêmulas, passariapor cima de tudo, dando-se um ar de contenção. O desejo e a vida esta-riam lá, conservados com gosto.

Mas não seriam expostos.

Nesse primeiro dia, sentada ao lado de Adão na beira do rio, Veratentava convencê-lo a estudar. Apontava as árvores do outro lado. Diziaque cada uma delas podia ser descrita no papel e que um leitor que nuncaas tivesse visto saberia como elas eram simplesmente por ler a respeito.

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Sua voz saía contida. Às vezes detinha as palavras, temendo queelas revelassem mais do que pretendia.

Adão estava atento a elas. Não concordava, mas, mesmo assim,nada dizia. Seus olhos às vezes miravam as águas que corriam poucoabaixo de seus pés. Eram límpidas e esverdeadas, refletindo a cor das ár-vores da margem. Sem querer, notou que sua imagem também estavarefletida nelas, assim como a de Vera. E sem poder reprimir o olhar, repa-rou no seu corpo. Nas curvas dos seios e no recorte de sua boca. E na partedas pernas que a saia até o joelho não cobria. E sentiu um calor no rosto.

– Você entendeu?, perguntou-lhe Vera.

Adão se assustou. A voz era da professora, da professora da escola.Não era a voz doce de Vera.

Disse-lhe que sim com um jeito de quem ouviu uma reprimenda.Vera notou. E também se deu conta do modo como lhe havia falado.

Ficaram em silêncio por alguns instantes, cada qual com seus pen-samentos.

Adão pensava na antiga professora. Ele não conseguia entender, naépoca, como é que uma porção de letrinhas ou mesmo um desenho pu-dessem ser uma árvore. Quando a professora apontava a palavra no qua-dro dizendo “árvore”, sua imaginação saltava para fora da sala esobrevoava a floresta. Não havia uma árvore sequer na lousa. Mas nafloresta havia muitas, cada uma diferente da outra.

Ele entendia o que a professora estava tentando dizer. Sabia que apalavra rabiscada ou o desenho não tinham a pretensão de ser uma árvo-re de verdade. Que elas estavam lá apenas para nos fazer pensar e imagi-nar. Até podia reconhecer que as letras só queriam imitar a árvore real.Mesmo assim não se sentia bem. Dava-lhe náuseas.

Sua dificuldade não era relativa apenas às palavras escritas. Adãose atrapalhava mesmo quando falava. As palavras saíam sim de sua boca,mas soavam-lhe como coisa estranha, destacadas do sentido que preten-

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diam dar. Quando dizia árvore, sabia o que estava dizendo e que os outrosestavam entendendo. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia senti-la comouma árvore de verdade.

Falar, para Adão, era uma labuta. Só a custo, como um lenhador,conseguia depor na terra a árvore rebelde, que não queria se entregar. Equando afinal conseguia, sentia-se cansado.

Mas ele não queria decepcionar a nova professora. Apenas suspei-tava o porquê, não tinha muito clara a razão, mas a desejava bem perto.E ela só permaneceria próxima se ele se esforçasse. Por isso, ao cabo deum breve intervalo, pela primeira vez tomou da palavra. Por pouco nãogaguejou ao lhe dizer que tinha vontade sim de aprender. Que não queriadecepcioná-la e que se esforçaria.

Disse tais coisas olhando-a nos olhos. E Vera notou que os de Adão,se não perderam o tom azulado de antes, refletiam na beira do rio umverde oliva muito escuro, quase negro.

– Seus olhos mudam de cor?, perguntou, sem poder se conter.Adão sorriu. Era a voz doce de Vera novamente.– Sim, eles mudam, prosseguiu a mulher. – Eram azuis há pouco

e agora são verdes.– É por causa do reflexo, respondeu-lhe o menino, estampando

um sorriso luminoso.Por pouco Vera não cedeu ao desejo de tocá-lo. Mas, como Adão,

Vera apenas sorriu. E pareceu a ele que era o sorriso mais lindo que ja-mais havia contemplado em sua vida.

– O único problema, disse, baixando os olhos, é a falta de tempo.Era pela manhã. Adão havia refletido durante a noite. Não saiu

pela mata como nos dias anteriores. Ficou em casa, deitado na cama,com os olhos presos na escuridão indistinta sobre sua cabeça.

Primeiro vinha a imagem de Vera. Era linda. Seu perfil contra o solpoente, quando subiram pela encosta, ficou impresso em sua memória.

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Os cabelos loiros caindo sobre os ombros. A pele clara e levemente bron-zeada de sol. As curvas entre a cintura e os quadris. Conservava o retratode seu corpo diante dos olhos.

Não um retrato estático. Ele se movimentava. Levemente arquea-do, o corpo de Vera subia encosta acima. Às vezes, voltando-se, sorria umsorriso infantil, de criança que está descobrindo o mundo. Adão ouvia asua respiração.

Quando ela escorregou, Adão segurou-lhe a mão, que se fechouem torno da sua. Adão sentiu o calor e a maciez de sua pele. E viu o sorrisose fechar no rosto de Vera. Por que ficou tão séria?

Depois, com esforço, afastava a imagem de Vera e pensava no queo pai lhe dissera. Ele devia aproveitar a boa vontade da patroa. Não valiao esforço?

– Veja o meu caso, dizia ao filho. – Não sei ler. Dependo sempredos outros.

Adão pensava a respeito. Já havia se comprometido com Vera, como pai e consigo mesmo. Mas estava preocupado. Não queria deixar o paina mão. Quem o ajudaria na lida? Era empregado, não tinha quem tra-balhasse por ele.

Ao encontrar-se com Vera, Adão considerou que lhe devia falar. Ou-vindo-o na sala, Vera pediu que a seguisse. Havia preparado o quarto paraparte das lições. O aposento, salvo o escritório, utilizado pelo general, erao único que permitia a tranqüilidade e o silêncio necessários para as au-las em casa. As demais seriam dadas ao ar livre.

Vera fechou a porta atrás de si e disse a Adão que ele não precisavaestar o tempo todo estudando. Que bastava um período por dia.

Adão concordou com a cabeça. Mas havia um problema. O traba-lho no campo não tem hora certa. A natureza não é um relógio. Às vezes épela manhã, outras vezes à tarde e acontece até de ser de noite o períodode mais trabalho. E o pai era sozinho.

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– Eu tenho que cuidar das suas coisas.

Vera sabia que os colonos tinham cada qual uma responsabilidade.Que, além disso, cultivavam suas roças particulares. E que o pai de Adãonão fugia à regra.

Ela não queria se meter nos negócios do marido. Entretanto, tam-bém não queria abandonar seu projeto no início. Por fim, encontrou umasolução:

– A gente se encontra nos períodos em que você estiver livre. Mastodos os dias.

– Tem dia que não dá. Só se for de noite.

– Não tem problema.

Desde então passaram a se encontrar diariamente. A alternânciados períodos acabou sendo apropriada para Vera. Ela tinha outros afaze-res. Devia olhar os filhos, mesmo sabendo que eles estavam sob os cuida-dos de Joana. Além disso, Vera providenciava o abastecimento da casa.

Mas era quando estava com Adão que se sentia verdadeiramentefeliz. Perfumando-se, esperava por ele no local e na hora programados nodia anterior. Ansiava pelos momentos em que se encontravam. E quando,já instalados em seu quarto, depunha o caderno na escrivaninha e expli-cava a construção das palavras, das frases, do texto, o perfume despren-dia-se de seu corpo e inundava o aposento.

Adão sentia-se inebriado.

Outras vezes caminhavam pelos prados ou pela mata. Apontandoflores, insetos, rochas e animais, Vera explicava o funcionamento da na-tureza sob a luz da ciência. Adão ria dessas tentativas. Para ele, as coisasda natureza eram o que eram. Mas depois, repetindo a lição, demonstravater compreendido tudo.

Certa vez, sentados sob uma árvore, Vera explicava um tópico quan-do, notando um sorriso de malícia no rosto de Adão, estacou na metade.

– O que foi?, perguntou-lhe, igualmente sorridente.

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– Nada não.– Já sei, você não acredita no que estou dizendo.– Não é isso. É que o céu não é tão longe assim.Vera falava sobre o sistema solar e, além dele, sobre as estrelas, as

galáxias e o universo como um todo. Ficou intrigada com a resposta domenino. O que ele queria dizer?

Já havia notado que Adão não era tolo. Que ele tinha visõesincomuns sobre a natureza e a vida. E que suas visões não eram destituí-das de uma lógica interna. Só não estavam de acordo com a ciência.

Para Vera, bastava possuir as informações corretas, condizentes coma cultura geral, e a visão de Adão mudaria.

Para ele, entretanto, era diferente. Entendia o que Vera explicava.Até achava bonitas as explicações. Só que elas não correspondiam à reali-dade. À sua realidade. O céu, para Adão, era um lugar muito próximo.Toda noite, quando se afastava das habitações e se embrenhava na matapara depois surgir numa clareira, não era o universo longínquo que elecontemplava refletido nas águas do rio. Ou quando, cuidando do reba-nho, olhava para as nuvens que se moviam no céu, não era uma parte daatmosfera visível que se refletia em suas retinas. Para Adão, o céu estavaem toda parte. Ele podia tocá-lo.

Mas não como antigamente. Antes de seu encontro com Antônio,as coisas eram diferentes. Seu contato com o céu, de dia ou de noite, eramuito maior. De dia, a luminosidade do azul revelava-o. De noite, a escu-ridão o envolvia, protegendo-o.

Adão podia sentir-lhe o frescor e o perfume. O céu não estava lá noalto. Era um manto que o protegia em suas incursões.

E era, além disso, os olhos que ele não via, mas que o guiavam emsuas caminhadas.

– Mas agora não é tanto como antes, disse com tristeza.Pela primeira vez Adão havia revelado um de seus segredos. Vera,

admirada, ouviu toda a explicação, sem interrompê-lo. Sentiu, ao cabode sua narrativa, que tinha também algo a aprender com Adão.

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– E quanto a Antônio, não o viu mais?– Ele não quer.Ficaram calados por um tempo. Vera contente por sentir a confian-

ça que Adão lhe depositava. Adão feliz por ter encontrado alguém em quemconfiar.

– Sua visão se parece com um mito, disse ela, interrompendo osilêncio.

Adão olhou em seus olhos. Nunca estiveram tão belos. A luminosi-dade filtrada pela folhagem brincava em seu rosto ao sabor do vento. Numinstante, os olhos castanhos de Vera se obscureciam na sombra. Logo emseguida, estavam banhados de luz. Era um movimento. Para Adão, ummovimento que não era produzido somente pelos caprichos da natureza.Ele vinha de dentro da mulher e também de fora. Era uma coisa só.

Vera notou a fixidez do olhar de Adão e a sua vivacidade esmoreceuum pouco. Seu corpo, esquecido durante os instantes em que tentava umaexplicação para as visões de Adão, novamente se fez presente. Ela o sentiucomo um tremor no estômago e um arrepio percorrendo a pele. E suspei-tou que Adão sentia o mesmo. E temeu por isso.

Quando lhe perguntou, com a voz um pouco trêmula, o que Adãoestava sentindo, só ouviu um suspiro. E o menino baixou os olhos.

– O que é um mito?Dessa vez estavam às margens do rio. Adão já conseguia ler um

pouco. Fazia progressos. Além disso, desejando agradar a professora, aospoucos adaptou suas explicações científicas à realidade.

Não tinha importância. As explicações não poderiam afastar o céupara longe.

– É difícil explicar, disse ela.Vera pensava numa maneira de traduzir seus conhecimentos de

modo que eles fossem compreendidos por Adão. Ficou intrigada com oque ele havia contado. De noite, insone, abriu a janela e contemplou o

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manto de estrelas. O céu estava lá, mas o que ela enxergava era apenas aaparência. A realidade, para Vera, era uma coisa ainda maior do que seusolhos podiam ver. Não era apenas um manto escuro salpicado de pontosde luz. Cada um desses pontos era uma estrela.

– São bilhões, dissera-lhe no dia anterior. – Formam galáxias, tam-bém aos bilhões.

No entanto, ao contemplar o céu sem as explicações, ele realmentese tornava mais próximo. Não deixava de ser imensurável. Mas adquiriauma aura de mistério que o tornava a um só tempo intangível e presente.Era um céu que parecia velar pela terra.

Deve ser assim que Adão o vê, pensou. Como um céu que tem vidae consciência. Que não é simplesmente o reflexo de um universo inatingí-vel pelos sentidos.

Para Adão, como para os homens antigos, o céu era um ser aomesmo tempo pessoal e impessoal. Um ser que, ao se debruçar sobre aterra, a fertilizava. A chuva caindo nos campos era um ato de amor. Deledependia a renovação da vida.

Quando Adão olhava para o alto, não estava observando, ou ten-tando observar, um fenômeno natural. O céu era para ele mais do que umfenômeno. Eles mantinham uma relação direta entre si. De que tipo eraessa relação? Vera não conseguia saber com certeza. Tinha uma noção arespeito: devia ser uma relação semelhante à dos homens. Só que predo-minava o amor.

– Nunca tive medo, dissera-lhe Adão, ao se referir às chuvas.

Mesmo as tempestades o agradavam. Os raios uniam o céu à terrae Adão sentia seu corpo coçar nesses momentos. Era uma coceira aprazível,que começava na sola dos pés e subia pela espinha até a cabeça.

Vera refletia sobre o que Adão lhe contara. A felicidade que sentiuna hora da revelação foi tão grande que não conseguiu parar e pensar.

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Mas depois, olhando para o céu de sua janela, reconheceu que sua visão,se não era condizente com a científica, não deixava de ser maravilhosa.

Era um mundo cheio de beleza.

E por pouco ela própria não sentiu a presença dos olhos enormes,dos olhos plácidos e sorridentes que a contemplavam, enamorados da ter-ra. Quando o sono chegou, de mansinho, e Vera se estirou sobre a cama, aatmosfera à sua volta recendia a um perfume que não era nem das laran-jeiras nem da mata. Era um perfume suave, difícil de ser identificado.Vera só o captou no intervalo fugidio que separa a vigília do sono. Masnão se lembrou depois.

Na manhã seguinte, quando Adão pediu a ela que explicasse o queera um mito, já não sabia o que dizer.

O general pensava. Não na esposa ou nos filhos, mas em Joana.

Quando Vera saía com seu aluno, Abel ficava sozinho em casa.Ansiava por esses momentos. Da janela do escritório, acompanhava umpouco as brincadeiras das crianças e, em seguida, sem se deixar mostrar,prendia-se aos movimentos, aos gestos e à fala da menina.

Sua voz era macia. Os gestos e os movimentos tinham uma ele-gância simples e natural. E quando olhava para as pessoas – mesmo paraVera, o irmão ou o pai –, não as fitava diretamente nos olhos, pois sabiaque os olhos só são para olhar quando se pretende um desafio ou quandonão se pode evitar os sentimentos. Tais coisas Joana não aprendeu doslivros, mas da observação. Eram parte do costume.

Por isso, mantinha geralmente os olhos baixos. Passaria por timi-dez, mas era simples modéstia.

Abel a observava.

O que se passava em sua cabeça era diferente do que ocorria nocoração de Vera. Ela não podia evitar os sentimentos e culpava-se. Tinhanoção da insanidade e por isso a refreava. Se a vivia, era apenas fantasia,

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imaginação. Não era um gesto deliberado, não era um plano, muito me-nos um futuro para o qual se predispunha. Pelo contrário, temia-o.

É claro que, para Vera, tinha sido uma bênção. Renovara-se porcausa do amor. E, se não podia realizá-lo, bastava-lhe o fato de que, porcausa dele, renascera para a vida, podendo doá-la. Era esta a sua opçãoconsciente. O resto estava por conta do inominável.

Abel, por seu turno, não olhava Joana movido por um impulso.Não era um sentimento que brotava do peito que o obrigava a permanecerpor horas a fio com os olhos fixos em seu corpo magro de criança. Erauma vontade deliberada. Ele não sentia. Antes, queria.

– Por quê?

Lá fora, de mãos dadas em círculo, Heitor, Helena e Joana dança-vam a roda. Por que, Abel? Ele não sabia. Mas seu desejo de descobrir eraintenso. Olhava para as curvas da menina, para seus olhos claros e bri-lhantes, para a sua fragilidade e nada sentia. Por que olhava, então? Oque fazia com que o rosto e o corpo da adolescente chamassem a suaatenção?

Quando se fez a pergunta, não reparou que a empregada haviaentrado no escritório para perguntar-lhe se precisava de algo.

– Não! Não preciso de nada, respondeu com rispidez, sem se virar.

Não preciso de nada, pensava. Meu Deus, o quê, então? E sentiuuma raiva fluindo pelas veias. Já a tivera antes, mas não como agora. Eraraiva de si mesmo. Não por que tivesse sentimentos. Não, a exemplo deVera, que sentia e por isso se culpava. Com Abel era o contrário. Ele nãosentia.

Por um momento Abel pensou ter descoberto o que procurava nocorpo da menina. Era algo plausível: a juventude que ele perdera. E seriaaté natural. E honesto.

Por isso se acalmou. Sentando-se na poltrona, tomou do rádio epassou as ordens que havia anotado na noite anterior. Estava tranqüilo.

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Não havia motivos para terrores. Depois, ao terminar sua fala, desligou orádio e voltou para a janela. E novamente seus olhos se prenderam aogrupo. E, depois, se concentraram na figura de Joana.

O general não se deu conta de que havia descoberto apenas a me-tade da verdade. Não era tão-somente a juventude perdida que o faziaolhar para a menina. Não eram os desejos mortos e que tentavam reviver.Não era o despeito por não ter o que ela tinha em abundância. Era outracoisa. Algo que, por muito pouco, ainda não emergira.

A bem da verdade, havia ainda uma frágil película recobrindo-o. Emais nada.

– Temos que ir.– Como?– Tivemos problemas em São Paulo, explicou. – O Estado Maior

mandou todos os comandantes assumirem seus postos.

– O que foi?

– Parece que um acidente.

– Tem certeza?

– É claro que sim.

O general estava sério. Trancou-se com a esposa de manhã, logodepois de falar ao rádio, e deu a notícia. Teriam de interromper as férias.

Enquanto falavam, de costas um para o outro, Abel olhava pelajanela. Não havia ninguém. Apenas o vento na copa verde das árvores.

Por que as coisas nos fogem ao controle? Ele pensava. Não no aci-dente em São Paulo. Abel sabia por experiência que não era nada. Que aordem não seria perturbada. Que era fácil contornar a situação.

Estava nervoso por outro motivo. Não teve uma boa noite de sono.O som do batuque o incomodava. Além disso, havia os pesadelos. Não selembrava direito, mas ainda podia ouvir as risadas dos homens e mulhe-res que o confinaram no centro do círculo. Por que riam?

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Por que riam de mim?, pensava, acordando a intervalos. E custa-va-lhe pegar no sono de novo. Só se lembrou do último sonho. Já eramanhã e ainda labutava por dormir quando, por fim, desistiu e levantou-se. Mas ainda sonhava. Era um sonho vívido e, nele, o general sentiunecessidade de ir ao quarto da esposa. Estava desconfiado. Ouviu rumoresdo outro lado da parede e suspeitou que a mulher dormia com outro.

Ao abrir a porta e ver a cena, sua reação foi inesperada. Não moveuum músculo ao surpreender Vera com o pai de Adão. Achou graça dasituação. E instalou-se confortavelmente na poltrona de leitura para as-sistir ao resto do espetáculo. Quando Vera, totalmente nua, cruzou as per-nas em torno do corpo de seu empregado, foi o auge. O general não pôdese conter. Gargalhava sonoramente.

Ria tão alto que acabou acordando com o som de suas risadas.

Quando se sentou na cama com o rosto entre as mãos, já não ria.Estava sério.

Vera notou que Abel não estava no seu normal. Já havia se acostu-mado com o cenho fechado que passou a exibir depois que os filhos nas-ceram, ou pouco antes, enquanto lutava contra a esterilidade. Mas nessaépoca era diferente. Havia sempre autoconfiança por detrás da máscarade austeridade. Agora não. Abel parecia abatido, como se a sua vaidadeestivesse abalada.

– O que você tem?, perguntou, logo depois de ouvir a notícia.

O general levantou os ombros. Não iria falar.

Mas não foi ainda nesse momento que Vera teve medo. Sentia-semal, assim como o marido, mas por outra razão.

Não queria partir. Não agora. Quando o deixou e foi ter com Adão,sentia uma angústia no peito. Um aperto. A caminho da gruta que o me-nino havia lhe mostrado, inventava em sua cabeça um monte de peripé-cias que o destino criaria para impedir que fossem embora.

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Saiu bem antes do horário combinado e não foi diretamente aoencontro de Adão. Desejava ficar a sós e a gruta pareceu-lhe ideal. Nãoqueria chorar na frente dos outros. Quem a entenderia? Ninguém nessemundo, pensava, seria capaz de compreendê-la. Ela mesma, se estivessede fora, não compreenderia.

Como, aliás, não compreendia. Mesmo pensando bastante, não con-seguia aceitar o que se passava em seu íntimo. O tempo todo se corroía emsua culpa. Mais que isso, fazia um esforço para se sentir ainda mais cul-pada do que era.

Sabia que, na verdade, a culpa era toda do sentimento, que brotavaespontaneamente e que não podia controlar. Mas fazia das tripas coraçãopara senti-la como sua. Da sua vontade. Seu esforço tinha uma razão deser: enquanto se culpava, a fantasia e o encanto arrefeciam. Tinha-se maissob controle. Era novamente dona de si.

Desafortunadamente dona de si, eis a verdade. Sem a fantasia esem o calor do desejo, deixava novamente de ser quem era.

Mas quem era Vera?

Ela também tinha ouvido o batuque na noite passada. Imediata-mente se lembrou da história de Adão. Sim, era possível que os atabaqueso chamassem. Por que não?

Abriu as duas faces da janela e se escorou no batente. Estava umpouco frio. Havia chovido, depois de meses de seca, e o cheiro de terramolhada entrava pelos pulmões. Era um dos cheiros preferidos.

Sentiu os pêlos do braço eriçando-se. Estava arrepiada. Apanhou olençol e o enrolou no corpo. Depois, sentou-se na beira da cama, com osolhos voltados para a escuridão da noite. O que havia lá dentro? Sentiuum desejo imenso de sair pela janela e penetrar na escuridão da mata.Mas não tinha coragem. Depois, cansada da posição, estendeu-se na camae adormeceu.

Era um sonho.

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Levantou-se e, em silêncio, saltou pela janela e desceu pela encos-ta. Não conseguindo distinguir a trilha com os olhos, apenas deixou-selevar pelo instinto. Sabia que estava no caminho certo. O céu lá em cimaa guiava.

Sim, o céu de Adão.

De repente, já bem próxima do rio, Vera estacou. Sentiu-se perdida,pois descobriu, no meio do sonho, que sonhava. Não sabia o que fazer. Eraum sonho, ela tinha certeza, mas as coisas estavam todas lá. O quarto e acama que deixou para trás, as laranjeiras do quintal, a trilha pedregosa,as matas que a cercavam de ambos os lados, os ruídos da noite. E seucorpo que se movimentava e que sentia como se estivesse acordado.

Deslizando a mão sobre o peito, lembrou-se que estava de camiso-la. E se a vissem? Não tem importância, é um sonho.

Então – pensou – pode ser que Adão também esteja nele. A essahora ele deve estar na mata, ou na beira do rio.

Mas a escuridão era total. Não se via nada. Somente quando, de-pois de atravessar a vereda, aproximou-se do rio, conseguiu enxergar soba claridade da lua. Quando as nuvens se afastavam, levadas pelo vento,ela brilhava na face das águas.

Olhando do barranco, Vera viu seu corpo refletido com perfeição.

Ao apurar os ouvidos, notou que o batuque não havia cessado. An-tes, parecia mais próximo. Assustou-se. Por um instante suspeitou quenão estava sonhando, que era tudo real. Mas, então?

– Vera?!

Era Adão. Sorria-lhe com os olhos, como da primeira vez.– O que faz aqui?– Estou sonhando, respondeu, aproximando-se.– Você está perdida?Não, meu amor, não estou. Era um pensamento. E depois, acanha-

da, disse que precisava voltar.

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– Fique comigo, pediu-lhe Adão, baixando os olhos.

Vera não podia, mesmo no sonho. Soube, contudo, que Adão preci-sava dela. Viu nos seus olhos. Eles imploravam. E estavam tão próximos!Podia sentir-lhe a respiração contida.

– Venha, vamos conversar.

Tomando sua mão, desceram até a margem do rio e se sentaramna areia molhada e fria. Vera sentiu frio. E a mão quente de Adão na sua.

– O que o incomoda?, perguntou.

– Você não sabe?

– Diga-me!

E Adão falou. Contidas, as palavras tentavam se conformar com oque estava sentindo. Já lhe havia falado antes de coisas que eram suas.Mas agora era diferente. Era uma verdadeira confissão.

Engasgava-se com as palavras. Não conseguia despi-las da cruezaque aparentariam caso as dissesse tal como lhe vinham à cabeça. Sim, ossentimentos e os desejos estavam todos presentes. Não eram feios ou fal-sos. Mas, ao serem revestidos de linguagem, pareciam uma aberração.

Hesitando, Adão ainda tentou várias vezes. Gaguejava. Depois, le-vantando os olhos, sorriu. Vera soube, nesse momento, que Adão a amava.Ela própria, sentada ao seu lado, também estava entregue. No entanto,Vera também sabia que não podia dar curso aos sentimentos. E, aindaassim, não conseguia se levantar e partir em disparada para o aconchegodo lar.

Estou sonhando, dizia para si mesma, a intervalos. Mas isso nãome dá o direito. Não, não posso. Depois, sorrindo, esquecia-se de que eraum sonho e se deixava encantar com a timidez e a inocência de Adão.

Preocupava-se também por outro motivo. O sonho tinha um tem-po de duração. A qualquer momento Vera deveria despertar.

Não!

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É verdade, o sonho teria que acabar. E Vera já não poderia sentir ocalor da mão de Adão, nem seus olhos. Sem poder reprimir-se, sentiu umagota escorrendo-lhe pela face. Era quente.

Quando tentou escondê-la, era tarde. Adão tinha notado.

Pouco depois a chuva recomeçou, encharcando a terra, a flores-ta e fazendo as águas do rio correrem mais rápidas. Mas Vera não sentiumais frio.

Sentiu-se cansada ao chegar à gruta. Era um lugar afastado, pró-ximo da foz de um riacho. Da entrada podia-se contemplar as águas cla-ras da corredeira. O ruído era muito forte. Encobria todos os outros sonsda natureza.

Suada e sabendo-se isolada do mundo, Vera despiu-se e entrou naágua fresca. Depois, sentando-se nas pedras, contemplou a sua imensasolidão.

Por quê?

Loucura! Sim, só podia ser loucura. Isso não acontece na vida real.Apaixonar-se por um menino?!

E sonhar com ele. E não poder evitar o sonho.

Vera sentia as águas tocando-lhe a pele. Eram frias como a chuva.Faziam o corpo tiritar na sombra dos rochedos. Mas o frio era bem-vindo.Dava-lhe sobriedade para poder pensar.

Sim, tinha sido um sonho.

– É um sonho, nada mais, disse ainda, quando sentiu o rosto deAdão junto ao seu.

E se não fosse? E se os seus corpos nus e enlaçados um no outro nãofossem somente o produto da imaginação onírica? E se tudo fosse real,como era real a frialdade da água da corredeira em sua pele?

Vera sentia-se mal. Mas não só. Estava admirada. Não entendia. Ossonhos não costumam ser vívidos ao ponto de serem confundidos com a

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vigília. Nunca sonhara assim. Como pensar com lucidez em meio aossonhos e, além disso, sentir com tal intensidade?

Sentia ainda a textura e o calor da pele de Adão na sua. E seusbeijos inexperientes. E as palavras quebrando-se contra o céu da boca. E oespanto e a alegria estampados em seus olhos. E, ao mesmo tempo, ouviao barulho da chuva nas árvores e no rio. E o coaxar das rãs. Por fim, Verasentiu o pavor que havia experimentado por não acordar.

Adão dormia em seus braços e ela ainda estava acordada. Adãopodia dormir. O sonho era de Vera, não dele. A consciência também nãoera de Adão.

Mas por que Vera não despertava? Qual a força que fazia o sonho seestender indefinidamente no tempo, ao ponto de não se saber mais seexistia ou não um limite entre o sonho e a realidade?

Vera temia duplamente. Temia que o sonho findasse e tambémque não fosse um sonho. Aliás, por que deveria ser? Não sentia e pensavacom a mesma força e intensidade de quando estava desperta? Vera nãosabia mais o que pensar.

Quando Adão acordou, ela já estava de pé.

– Tenho que ir, disse-lhe, respondendo à interrogação em seu rosto.

– Não vá!, pediu-lhe Adão. – É tudo um sonho.

– Como saber?

Levantando-se, Adão ainda tomou suas mãos e a beijou. Depois,sem poder se mover do lugar, viu seu corpo desaparecer no meio daescuridão.

Sim, fora um sonho. Vera não se recordava de ter feito o caminhode volta, nem de como entrou em casa ou mesmo de ter se deitado. Quan-do acordou, estava deitada com as pernas dobradas para fora da cama, damesma maneira como havia se estendido antes do sonho.

Mas, curiosamente, estava nua. Despira-se durante a noite.

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Assim que Vera saiu, um empregado veio ter com Abel. Com o cha-péu na mão, disse que precisava lhe falar.

– Diga pra ele entrar, ordenou o general, com os olhos voltadospara a janela. Vigiava as crianças, que brincavam com Joana.

Pouco depois, partiram a galope em direção à floresta. O generallevava um fuzil atravessado sobre a cela.

Seu capataz já tinha avisado. A onça estava viciada. Invadia aspastagens à noite e atacava as reses. Era esperta. Quando não conseguialevar a carcaça para o mato, não voltava na noite seguinte para a segundarefeição. Não deixava pistas.

Mas desta vez havia facilitado. Topou com uma novilha desgarra-da, vara-cerca, que pastava junto ao mato e a levou consigo até a entradada grota. Estava coberta com folhas e terra, a cerca de cem metros mataadentro.

O general e o empregado tiveram cuidado em não se aproximardemasiado. Não queriam deixar cheiro. Se a onça os farejasse, não vol-taria.

Perguntado se sabia de seu paradeiro, o empregado respondeu queo capataz tinha achado as pegadas. Estava no seu encalço.

– Para onde vão?

– Na direção das corredeiras.

Já estavam montados e voltavam para a colônia. O general pensa-va. De repente estacou, puxando as rédeas até o freio machucar a boca doanimal.

– Volta pra casa!, gritou ao empregado.

Assim que viu o peão desaparecer no horizonte, o general girou epartiu a galope no sentido oposto, rumo às corredeiras.

Sentia, depois de anos, um vigor sobrenatural. Para ele, não eraapenas uma caçada. Era um jogo de astúcia e estratégia. Uma luta.

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Empertigado na sela, de longe Abel passaria por um jovem nosseus melhores anos.

Desejava surpreender o inimigo. Já havia caçado onças. Sabia queo melhor era esperar pela noite e levar os cães para encurralá-la. Ou entãoficar de tocaia, escondido no galho de uma árvore. E que era convenienteter uma zagaia nas mãos. Já havia matado onças. Se o tiro não fosse fatal,e se estivesse próximo da fera, o coice devolvido o levaria à morte. O bichoera certeiro e rápido demais para se facilitar. Recordava-se. Um de seushomens foi ferido justamente quando pensava tê-la morta. Foi por pouco,mas Abel agiu rápido e a acertou na cabeça. Sua mira era excelente.

Agora, mesmo sabendo por experiência de tudo isso, não hesitou eseguiu trilha abaixo, na direção do riacho. Para ele era uma verdadeiracampanha. É claro que as forças em jogo eram desproporcionais. Ele sa-bia que a vantagem era toda sua. Ainda assim, sentiu o tremor caracterís-tico de quem está prestes a pelejar.

Era agradável. De todos os prazeres, a luta significava, para Abel, osegundo em grau de intensidade. Somente o exercício do mando, o poder,o superava. No entanto, ele entendia que os dois se complementavam. Senão fosse por causa da luta, o poder não existia. Ou seria o contrário? Dequalquer modo, uma coisa não existia sem a outra. E isto lhe bastava.

Não estava longe do riacho, quando apeou. Deixou o cavalo amar-rado e seguiu a pé. Tinha uma caminhada pela frente e, com os olhos eouvidos atentos, tentava descobrir, no meio da folhagem, indícios da pas-sagem do inimigo.

Não, é claro que a fera não faria esse caminho. Se tivesse sede, iriaaté o rio protegida pela mata densa. Mas não era bom facilitar. O melhormesmo era seguir pela trilha. Na mata fechada a vantagem se inverteria afavor da onça.

Não encontrou nenhuma pegada na areia, além das botas – pro-vavelmente do capataz – e de sandálias. Agachado, tomou a areia nasmãos e pensou por um momento, tentando imaginar a quem perten-

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ceriam. Depois, levantando-se, seguiu com o passo um pouco mais apres-sado.

Logo a seguir ouviu o rumor das águas. Não estava longe. De ondese encontrava, era-lhe possível ver a foz do riacho, cerca de duzentos me-tros abaixo. Dali em diante era o rio Paraná.

Foi desse ponto que viu a figura do capataz esgueirando-se pelasmargens. Não levava nada nas mãos, além da camisa. Seu dorso estava àmostra, revelando um corpo musculoso e bonito. Pensou em chamá-lo,mas ele se afastou com pressa no sentido oposto. Não o ouviria.

Pouco depois, continuando na trilha, Abel se deparou com ummorro, que devia ser circundado para se atingir a foz do riacho e o Paraná,do lado esquerdo, ou as corredeiras, do outro lado. Mas ele preferiu escalá-lo. Não era íngreme e, além do mais, Abel teria sob a mira toda a regiãoabaixo, dos dois lados.

Quando se debruçou sobre as rochas e olhou para baixo, o sonhoda noite passada veio-lhe inteiro à mente. Não foi apenas um sonho, pen-sou. Foi tudo muito real, inclusive as risadas. Podia ouvir cada uma delas.E reconhecer os rostos de cada um de seus empregados, inclusive o docapataz, que vislumbrou pela última vez quando ele desapareceu no ma-tagal.

Lá embaixo, deitado na rocha lisa das corredeiras, o corpo nu deVera era a confirmação de tudo. O general não titubeou. Não precisavapensar. E, como se mirasse a onça, fez pontaria no corpo da mulher.

Quando Adão ouviu o batuque, seu pai, cansado, dormia profun-damente. Joana, na cama ao lado, tinha um sorriso nos lábios. Sonhavacom a nova vida que teria no Rio.

Mas o corpo de Adão coçava. Havia chovido pela tarde e ele sentiaum vigor incomum nos membros. Não conseguia dormir. Além do mais,parecia que os atabaques o conclamavam. Venha!, diziam-lhe no ouvido.

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Adão saltou pela janela como um gato.

Não queria chamar a atenção, mas, como alguns dias antes, des-cuidou-se e, sem saber por que, passou próximo da casa de Vera. Destavez, como da outra, os cães da sede não se alvoroçaram. Parece que oconheciam.

Ao atravessar o pomar, notou que a janela do quarto estava aberta.O quarto de Vera. E sentiu uma vontade irresistível de se aproximar. Jáestava indo na sua direção quando, novamente, o som e o ritmo dostantans soaram-lhe no ouvido. Diziam-lhe: “Não pare, venha!” E Adãoobedeceu ao chamado.

À medida que vencia o percurso até o terreiro, notou que o cora-ção passou a bater num ritmo diferente. Era o mesmo ritmo da música.Como se o batuque não estivesse lá fora, a certa distância, mas dentrode seu peito.

A noite era incerta, assim como o céu. Havia nuvens. É bem verda-de que elas se movimentavam ao sabor do vento, revelando a lua a inter-valos. Mas, afora a lua, poucas estrelas brilhavam no alto.

Adão sentia-se incrivelmente só. Não podia tirar da cabeça os últi-mos instantes em que esteve na companhia de Vera. Já sabia o que era.Descobriu o nome no meio das histórias que ela havia contado e dos mi-tos que tentava descrever. Era amor.

Conhecia a palavra. Já a tinha ouvido, em várias ocasiões. Naigreja, quando o padre explicava passagens da Bíblia. E da mãe, umavez, ao se referir aos filhos e ao marido. Mas, na ocasião, ela estavamorrendo e a palavra ficou com um sentido melancólico, de saudade.Era uma despedida.

Ao ouvi-la no meio das histórias e dos mitos, Adão descobriu umsignificado diferente para a palavra. Ela significava exatamente o queestava sentindo agora. Era ainda, como no caso da mãe ao se despedir,um sentido de urgência. E também de desamparo e de impotência ao setentar detê-lo. Irreprimível como a morte.

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Mas, ao mesmo tempo, muito doce. Provocava risos. Risos de puraalegria. E, mais tarde, saudade. Sim, é isto, é uma carência. Uma vontadede ficar junto, de não ir embora. De se esquecer de tudo e dormir em seusbraços. Dormir eternamente. É também uma morte.

Mas Vera era inatingível. Linda e mulher feita.

– Sou apenas um moleque, disse em voz alta, assustando-se com aprópria voz.

Estava intrigado. Antes não falava, senão a custo. Mas agora, nãopodendo reprimir as palavras que lhe sufocavam a garganta, as dizia alto,mesmo sozinho. Por quê? Ah!, é a tristeza, a tristeza de ter diante de si aúnica coisa que desejou na vida. E não poder tocá-la.

Sim, a tristeza o obrigava a falar. A única tristeza real – afora amorte da mãe.

Ainda pensava em seu amor quando entrou pela porta do terreiro.Viu, primeiro, a figura do mensageiro dos deuses. Baixando levemente acabeça, o saudou. Em seguida já estava diante de Antônio, que não eramais ele. Sem saber a razão, caiu de joelhos na terra e as palavras saíramde sua boca:

– Meu pai!

E o batuque parou por um momento.

Ao encará-lo, notou nos olhos negros e enormes de Antônio umbrilho que ele só revelava quando era o deus que estava na terra. Não eraAntônio, era um dos padrinhos. Os outros, parados em volta, contempla-vam a criatura.

– O caminho é perigoso!, disse Antônio, seguindo-se uma cantoriaem língua estranha.

De pé, com os ombros, Adão cumprimentou cada um dos deuses.Depois, voltando-se para Antônio, disse que se sentia perdido:

– Não sou mais quem era.

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– Sim, é Olorum!, disse Antônio, mas Adão não entendeu. – Temmuito perigo esta noite. Não é bom sair.

O que Adão mais queria era sair, era correr, não sabia por que, nadireção do rio, até o remanso próximo da colônia. Mas os deuses o cerca-ram. Não o deixariam partir. Velavam por sua segurança.

– Só de manhã, disse Antônio. – Só de manhã o perigo passa pravocê.

Mas todos na sala sabiam que não poderiam deter o menino. Se elequisesse, não haveria poder neste mundo capaz de prendê-lo. Ainda as-sim, agiram com rapidez. Primeiro, dançando e girando, deslocaram suaatenção, que se encontrava focada demais. O foco era a manifestação dopresente de um deles. Era forte, poderoso, e fazia o mundo se renovar.

Mas o amor era, além disso, o perigo que o espreitava. Adão não otinha sob controle. Era da sua natureza não ser controlável. Se fosse, seriaoutra coisa. Seria o poder? Mas o poder também estava presente, e erainominável, e estava combinado com o amor.

Quando Adão voltou-se para a porta, prestes a fugir, o negro inter-ceptou-o e desferiu um golpe certeiro em sua testa. E Adão caiu.

Ao acordar, de manhã, não sabia por que estava na beira do rio,completamente nu. Ouviu passos na folhagem e, mal acabou de se vestir,deparou-se com a figura de Antônio, que chegou esbaforido. E tudo vol-tou de uma vez. Não sabiam como, nem ele, nem Antônio ou os outrosque velavam por seu destino. Mas não havia dúvida:

Adão tinha conseguido fugir.

– O destino escapou de nossas mãos.

Antônio decidiu contar sua história. Antes até poderia omiti-la, parapreservar o menino. Mas não agora. Ele sabia que as conseqüências doocorrido na última noite seriam terríveis. E que não havia meios de detero seu curso. Mas era seu dever preveni-lo.

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– Foi um sonho?, perguntou-lhe o menino.

– Sim, respondeu Antônio. – Foi um sonho.

Depois, sentando-se ao seu lado, explicou parte do que lhe haviaocorrido noites atrás. Desde então Antônio não entendia mais o mundo.As regras tinham mudado. Disse também que vinha tentando, desde aúltima vez que se encontraram, decifrar as intenções dos deuses.

– É muito difícil, confessou. – Estão arredios, não querem falar.

Antônio estava convicto, os deuses estavam preparando algumacoisa. Mas não sabia o quê. Era um segredo.

– Parecem alegres, continuou. – Nunca estiveram tão ativos. Nãosei se isso é bom ou mau.

Ele só tinha uma certeza: a sorte de Adão estava lançada.

– Daqui por diante esteja atento. É só o que posso lhe dizer.

Depois, abanando a mão, mandou Adão embora. Queria ficar sozi-nho. Agachando-se, farejou a areia e o mato. Procurava qualquer coisa.

Adão tinha um encontro. Era quase meio-dia.

Quando chegou, apenas Joana e as crianças brincavam próximosda casa.

– Vera saiu, disse-lhe a irmã.

Onde estaria? Por um instante, sem saber por que, Adão sentiu umaperto no coração. Um pressentimento talvez. Instantes depois, ouviu osom de cascos e a figura imponente de Abel apeou defronte da casa. Não sepreocupou em amarrar o cavalo. Parecia nervoso e apressado. Em segui-da Adão viu seu pai entrar rapidamente pela porta frontal. Também esta-va com pressa.

Onde estaria Vera?

Adão sentiu um vazio no peito. Uma vontade enorme de cho-rar. Estava preocupado e, não podendo se conter, correu na direção daspastagens.

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Correu e andou por horas, sem rumo e destino certos. Andava emcírculos, perdido. E quanto mais corria, mais se desesperava. Pensou emgritar, em chamá-la em voz alta. Mas sua voz não saía do peito. Estavatrancada.

Quando percebeu que estava de novo próximo da colônia, suasforças acabaram. Exausto, sentou-se na sombra de uma grande árvore.Arfava e gemia ao mesmo tempo. As idéias, os medos, os terrores faziamsua cabeça girar. Não sabia o que pensar. Era uma grande névoa recobrindoseu campo visual. Era a tarde findando. Já era o ocaso e o azul foi dandolugar ao negror.

Foi no meio do lusco-fusco que Adão viu, com o coração saltandopela boca, a figura de Vera surgir-lhe. Quando se levantou e a fitou nosolhos, notou que ela havia chorado.

Abel tinha a mulher na mira. Era só apertar o gatilho. Por duas outrês vezes seu dedo indicador chegou a fazer uma pequena pressão. O cãoda espingarda estava puxado. A pressão necessária para disparar a armaera mínima. Mas a cada vez, a cada tentativa, o general se detinha e pen-sava. Abel era um estrategista.

Baixou o fuzil e contemplou o corpo nu da mulher. Pertencia-lhe.E, ainda assim, era como se nunca o tivesse tocado. Era-lhe, na verdade,um corpo estranho.

– Mas é meu, murmurou.

A posse era poder. E os risos que ouvira dos camponeses eram otestemunho de que roubavam o que lhe pertencia. É claro que não permi-tiria. Tinha poder de sobra para evitar a expropriação. Mas faria a coisa demodo a não se expor.

Ficou, ainda, por um bom tempo olhando a mulher. Os pensa-mentos fervilhavam em sua cabeça. Às vezes, esquecendo-se de Vera, ten-tava ver em seu corpo uma outra figura. Pensava em Joana. Sim, ele a

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levaria. Não sabia exatamente por que, mas a levaria consigo. E tambémas crianças e Vera.

E alguém teria que chorar. Já houve risos demais.

Quando, de volta, encontrou um empregado, ordenou-lhe queachasse o capataz e o mandasse ao seu encontro. Tinha um plano emmente.

– Vai ser hoje à noite, combinou com o capataz. – Vamos sónós dois.

– Já separei os cães.

– Não, nada de cães. Faremos tocaia.

Faltava pouco para o anoitecer quando partiram a cavalo na dire-ção da mata. O empregado levava uma zagaia e uma cartucheira de doiscanos. Já havia matado onças, mas não gostava de caçar. Fazia-o por obri-gação. No fundo, quando o general preferiu a tocaia, o capataz até gos-tou. Tinha esperanças de que a fera não surgisse. Sabia por experiênciaque a tocaia mal planejada estava fadada ao insucesso. A onça os fareja-ria e fugiria.

Deixaram os cavalos a uma distância segura e seguiram a pé peloterreno escorregadio da mata. As poças formadas com a chuva não seevaporaram durante o dia e a luz tênue da lanterna não possibilitavauma visão adequada. Era preciso caminhar devagar, apoiando-se nos ar-bustos e troncos de árvores.

Com cuidado, chegaram e se instalaram, cada qual em seu posto,a curta distância da carcaça da novilha. O general mantinha a retaguar-da protegida por uma grande moita de arbustos e espinheiros trançados eo capataz se postou a cerca de cinco metros ao lado, encostado a um bar-ranco. A luz da lua, filtrada pela copa das árvores, dava ao general umavisão privilegiada, tanto do alvo quanto do capataz.

A lua já estava alta no céu quando o general resolveu fazer ponta-ria. Já havia pensado o suficiente. Era hora de agir. Com um movimento

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rápido, apoiou a coronha do fuzil no ombro direito. Em seguida apontoua arma na direção do capataz.

Não sabiam o que dizer.

Adão sentiu um impulso de tomá-la nos braços e confessar seuamor. Não podia. Vera representava ainda a mulher linda e inatingível deantes. Amara-a sim, mas em seus sonhos. E, ainda que fossem sonhosvívidos, como confundi-los com a realidade?

Nem a magia dos tantans seria capaz de integrar os dois lados daexistência num todo indivisível. As fissuras, ainda que tênues, estariamsempre presentes, a denunciarem o abismo existente entre as duas condi-ções humanas.

Tivera Vera nos braços. Descobrira no seu amor o esquecimento desi e do mundo. No entanto, Adão sabia, era tudo uma ilusão. Daí o emba-raço e o olhar acanhado. Como confessar seu amor se a sua entrega dera-se nas margens de um rio que só existia no mundo dos sonhos?

Fitando-a nos olhos, Adão tinha vontade de lhe dizer tudo. De ex-por sua dúvida. De unir os dois lados de uma vida que, para ele, deixou deser simples, mas que ainda era cheia de encanto.

– Você está triste!?

Vera sorriu. Sim, estava triste. Na verdade era uma mistura: tristezae culpa. Ela também havia sonhado.

– Partiremos amanhã, respondeu-lhe.

– Como?

– Abel recebeu ordens. Temos que voltar.

Estavam em pé, a curta distância um do outro. A silhueta de Vera,destacada contra a tênue luminosidade do anoitecer, estava prestes a sedissolver. Sua voz saía-lhe trêmula e hesitante. Adão não pensou. Tomousuas mãos e trouxe Vera para junto da terra.

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Sentados, ouviram cada qual os seus pensamentos. Eram confusospara Vera. Embaralhavam-se o sonho e a realidade. Adão da fantasia eAdão real. E os dois pareciam-lhe o mesmo.

Mas não!, era preciso distingui-los. Manter cada qual no seu lugar.

Vera não era ingênua. Sabia que dar vazão ao impulso maior desua alma era condenar-se diante do mundo. Era ser excluída da sociedadereal. Era perder o respeito. As conseqüências seriam terríveis.

Mais do que isso, deixar que as mãos que seguravam as suas atocassem verdadeiramente, significava tornar-se a causa imediata do so-frimento de pessoas inocentes.

Mesmo Adão era inocente. Tinha, é certo, noções do que é certo eerrado. Conhecia as regras. Mas elas não exerciam comando sobre seusimpulsos. O comando vinha de sua vontade em formação. Das forças queinteragiam em seu interior, e que ele ainda não sabia ao certo como con-trolar.

Eram as cordas que o puxavam cada qual numa direção, como nanoite em que esteve com Antônio, nas margens do rio. Seu corpo ficavaem pé, retesado como um arco pronto a disparar a seta. Se a flecha eralançada ou não, tudo dependia da combinação de forças do momento.Quando uma corda pressionava mais do que as outras, então Adão partia,e nada o detinha.

– Eu amo uma mulher.

Vera sentiu o coração parar. Depois, controlando-se, lembrou-se detudo o que decidira, das coisas que a fizeram chorar.

– E quanto a ela?, perguntou baixinho.

– Não sei, mas seus olhos brilham.

Vera tremia por dentro. Pensou em rir, mas, em seguida, estavachorando.

– Por que chora?, perguntou-lhe Adão, enxugando suas lágrimas.Com delicadeza, Vera afastou sua mão. Disse que não podia evitar:

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– Faz parte da vida. Você nunca chorou assim, sem saber a razão?Respondeu-lhe que não, que só chorava se algo o ferisse.– É por causa da viagem?– Pode ser, sorriu-lhe.– Então não vá.– Impossível!Dito isso, Vera levantou-se.– Tenho que arrumar as malas. Partiremos amanhã.– Não vá!, insistiu Adão.Vera sacudiu os ombros. Não podia ficar. Já se punha a caminho

quando Adão a deteve. Segurando suas mãos, aproximou-se de seu rosto econfessou o que tinha na mente desde que a encontrou. Foi apenas umapalavra, suspirada com força em seu ouvido.

– Você não pode, respondeu-lhe Vera. – Não podemos!– Por que não?– É errado, não percebe?Adão conhecia as regras. Mas não conseguia ver crime no que sen-

tia. Por que tinha que ser assim? Se o sentimento era errado, por queentão existia?

– Por quê?Vera não soube responder. Estática, contemplou pela última vez o

rosto de Adão. Estava tão próximo! Podia sentir-lhe o hálito quente naface. E ver os olhos que brilhavam na obscuridade da noite.

Mas era um momento de despedida. Contendo as lágrimas e ossentimentos, ordenou-lhe que se afastasse.

Depois, percebendo sua recusa, deu-lhe as costas e sumiu no meioda escuridão.

Adão permaneceu ainda um tempo sob a árvore. Tentava pôr ospensamentos em ordem. Com a cabeça metida entre as pernas, seus olhosqueimavam. Era, de novo, como quando a mãe partiu.

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A despedida tinha um gosto de morte.

Por que então deteve o impulso? Não viu em seus olhos que Vera oamava? Era ir em frente e rasgar o véu que separava o sonho da realidade!Um impulso apenas e a teria nos braços. E tudo estaria consumado. Masnão!, Adão preferiu deter-se. Cedeu a uma ordem interior que não era aprimeira em intensidade.

Era uma ordem secundária, ardilosamente plantada em seucoração.

Ele não sabia defini-la, mas não tinha gostado. Não era como an-tes, uma dúvida entre dois impulsos contrários. Era outra coisa: um “não!”que estava lá sem uma razão visível. Um “não!” imperioso, ainda quesuave. Ardilosamente suave. Misturava-se com os sentimentos e, mano-brando-os, fazia com que se detivessem.

Eram palavras.

Quando Vera disse “você não pode”, ainda não era uma ordem. Sóquando, um instante depois, elas se transformaram em “não podemos!”,as palavras fizeram sentido. Não era mais uma proibição aos seus impul-sos. Era uma interdição mútua.

Era errado!

E tudo isso estava dentro de seu peito. Emergiu no mesmo instanteem que Vera lhe deu uma forma. Ao ser nomeado, o que era apenas umanoção se transformou em voz de comando. Não podia ser desobedecida.

As coisas se tornaram claras na cabeça de Adão. Claras e tristes. Seucorpo lhe dizia uma coisa e a mente outra. Não era mais a diferença entreo sonho e a realidade. Era a realidade detendo, com um só golpe, a pró-pria existência do sonho.

Joana abriu o caderno numa página em branco e começou a es-crever a carta. Estava sentada no chão. Podia ver, através da pequena ja-nela, o belo jardim e, pouco além, os muros altos que protegiam a casa.

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Havia se passado quase um ano. Mesmo assim, ao pensar no ir-mão, não conseguiu evitar uma lágrima. Era um sentimento confuso.Sentia saudade, é claro. Mas existiam outras coisas em seu coração que aentristeciam. Não era simplesmente a dor recorrente da perda do pai ou afalta que sentia de Adão.

Na verdade, Joana nunca havia imaginado que, na cidade grande,fosse possível ser tão só.

Ao chegar, teve a chance de maravilhar-se com a beleza e o movi-mento. Era uma cidade cheia de energia. Esteve na praia por duas ou trêsvezes na companhia de Vera e deslumbrou-se com a descontração daspessoas passeando na areia.

Mas depois, quando se incorporou ao cotidiano, o encanto deu lu-gar à realidade. Excetuando-se os colegas da escola, Joana não tinha comquem conversar. Não entendia o porquê, mas Vera tornara-se distante efechada. Raramente dirigia-lhe a palavra. Certa vez Joana ousou pergun-tar-lhe o motivo de sua tristeza:

– É saudade da fazenda?Vera não respondeu. Sorrindo a contragosto, disse simplesmente

que não era nada. E se enfiou novamente em seu quarto, de onde saíaapenas para o jantar. Ou, cada vez menos, para fazer um carinho nosfilhos.

Joana teve em Vera um vislumbre do que era a depressão.No entanto, ela própria, cada vez mais só, sentia-se mal. É claro,

gostava de Heitor e Helena. Eram crianças alegres, cheias de vida. Umpouco mimadas talvez, mas boas crianças. Estar atenta a elas, suprir suasnecessidades e ajudar a educá-las preenchia todo o seu dia. Só as deixavano começo da noite, quando ia para a escola.

Mas as crianças, mesmo presentes o dia todo, não podiam preen-cher o vazio que aos poucos roía seu íntimo.

Sua tristeza, porém, não era toda devida à solidão. Joana estavacom medo. No começo tinha sido apenas um receio, uma impressão. Sóaos poucos, ao se tornar mais atenta, passou a desconfiar.

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Já havia reparado na maneira como Abel a olhava. Era um olharfixo, mas de soslaio. Não a encarava, não olhava em seus olhos. Olhavaseu corpo. A princípio teve vergonha: sabia o que era. Havia notado, desdeque chegou ao Rio, no modo como os homens olhavam para o corpo dasmulheres.

No entanto, o olhar de Abel tinha qualquer coisa de diferente. Oshomens da rua olhavam movidos pelo desejo ou, pelo menos, para apre-ciar a beleza. Não era esse o olhar de Abel. Parecia curioso, como se esti-vesse diante de um ser estranho. Além disso, quando a observava, sua bocase repuxava nos cantos, como se reprimisse a confissão de um estado dealma que ele queria evitar. Era, não havia dúvida, um olhar de inveja.

É claro que Joana não entendeu tudo isso de uma vez. Suspeitava.

O nojo, absoluto e irreprimível, surgiu numa noite em que, ao vol-tar da escola, não conseguia pegar no sono. A luz do quarto estava apaga-da. Deitada de lado, não conseguia deslocar a visão da fresta sob a porta,por onde entrava uma réstia de luz. Joana tentava atrair o sono.

Foi nesse momento que viu a porta entreabrir-se. Assustada, mor-deu os lábios para não gritar. Com os olhos semicerrados, viu a figuragrande de Abel meter-se no vão.

Não se aproximou nem tentou nada. Encostado no batente, ape-nas olhou o seu corpo estendido na cama.

Joana não conseguiu distinguir-lhe a expressão do rosto. Mas sóde imaginá-la, seu corpo encolheu-se aterrorizado. Quando, instantesdepois, Abel fechou a porta, ela ainda ouviu seus pés se arrastando pelocorredor.

Foi obrigada a correr até a pia. Seu estômago revirava-se.

Na manhã seguinte Joana foi logo cedo ao encontro de Vera. En-controu-a sentada na cama, com as costas apoiadas num travesseiro. Dis-se-lhe que desejava voltar para a fazenda.

– Como?

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Vera percebeu uma nuvem no semblante da menina. As olheiraseram enormes.

– Aconteceu alguma coisa?

– Não senhora, sinto falta de Adão.

Adão. Fazia tempo. Quase um ano, pensou. E ainda permaneciavívido na mente. Procurava esquecê-lo, mas ele aparecia à noite, nossonhos.

Olhando atentamente para Joana, notou as semelhanças entre osirmãos: os olhos, os traços finos, a pele morena, os cabelos em cachos.Talvez por isso a tivesse evitado nos últimos meses. Joana estimulava suasrecordações.

Ainda assim, não desejava que ela partisse. No fundo, bem no fun-do, Vera não queria que o último elo entre ela e Adão fosse quebrado. Alémdo mais, as crianças afeiçoaram-se a Joana. Sofreriam se as deixasse. Dis-se-lhe isso, ponderando que ela era querida na casa e que não poderia sersubstituída. Aconselhou-a a viajar nas férias, para ver o irmão, e voltarem seguida.

– Você deve continuar seus estudos, considerou.

– Não posso, estou preocupada com Adão, insistiu, evitando os olhosde Vera. Não queria que ela desconfiasse de seus medos.

No entanto, mal terminou a frase, notou os olhos da patroa desli-zando por sobre seu ombro. Abel tinha entrado silenciosamente no quar-to, ouvindo o final da conversa.

– Mande-o vir, disse, fitando a menina nos olhos.

Joana deu um salto. Em seguida seu rosto encheu-se de sangue,denunciando o embaraço.

– Você está muito nervosa, disse o general. – Não me ouviu? Escre-va ao seu irmão e convide-o a passar uns dias conosco.

Joana olhava perplexa para o rosto bondoso do velho parado nasua frente. Poderia ser seu avô! Como pôde? Ou tudo não seria apenas

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fruto de sua imaginação? Não, neste caso não havia dúvida. Foi ele mes-mo quem entrou em seu quarto para observá-la.

Mas Joana não conseguiu dizer um não. Vera, por seu turno, nãosabia o que pensar. Como Joana, olhava com um olhar de interrogaçãopara a face serena do marido.

Quando Adão recebeu a carta e leu seu conteúdo, a noite já haviacaído sobre a terra. Estava em casa, sozinho como desde que o pai foramorto. De dia cuidava do gado ou da roça. De noite, quando voltava can-sado, comia um pouco e logo pegava no sono.

Raramente saía na noite. Mesmo assim, quando o fazia, evitavaum certo trecho do rio. Não queria encontrar-se com suas recordações.

Nessa noite, porém, tão logo terminou de ler o pedido da irmã,correu na direção do rio. O coração, que se calou durante quase um ano,novamente batia num tom a menos. Mas Adão não pensava. Era apenas avontade de sentir a brisa e os ruídos que só se encontravam no remansoarenoso onde estivera com Vera durante as aulas.

Quando chegou, surpreendeu um vulto agachado próximo da água.Parecia vasculhar o chão ao redor. Somente quando estava a alguns pas-sos de distância distinguiu quem era:

– Antônio?

– Eu sabia que você vinha, respondeu-lhe, levantando-se.

– Como?

– Eu sabia. Não sei como.

– O que faz agachado? Procura algo?

– Faz tempo, mas não consigo encontrar.

– E o que é?

– Vestígios, Adão. Apenas vestígios.

Depois, aproximando-se, disse que precisava lhe falar.

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– Você notou que os atabaques cessaram?

De fato. Desde a última vez, quando Adão escapou das mãos dosdeuses, eles nunca mais tinham tocado.

– Por quê?

– Não gostam mais de minha casa.

Com calma, Antônio disse que os deuses eram temperamentais.Além do quê, não apreciavam a desobediência dos filhos.

– Lembra-se?, eles não queriam que você saísse naquela noite.

– Mas eu não saí. Foi um sonho.

– Sim, é claro. Mas para eles tanto faz. Sonho e realidade, dá tudono mesmo.

Disse-lhe, depois de um tempo em que deixou Adão pensar, que erapreciso considerar o que ele tinha pela frente.

– O passado não importa. Mas eu tenho sonhado muito com amorte. E toda vez você está presente, com uma foice na mão.

Apanhando suas mãos, perguntou a Adão se ele tinha algo emmente. Mas Adão não compreendeu sua pergunta.

– Você odeia alguém?

Adão balançou a cabeça negativamente. Nem mesmo a onça quedilacerou a jugular de seu pai despertara-lhe ódio. Aceitava as coisas comnaturalidade, mesmo sofrendo.

– E inveja?

Adão ficou quieto. Fitando-o nos olhos, Antônio achou que existiauma névoa estorvando-lhe a visão. Quem teria posto esta névoa em seusolhos? Seriam os deuses?

– Esta tarde, quando cheguei em casa, uma brisa diferente entroupela janela. O ar se tornou carregado, como da primeira vez que vocêesteve no terreiro.

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Adão ouvia com atenção. Lembrava-se dos olhos que o acompa-nhavam de dia e de noite e do poder que o levantou nos ares e o lançou dechofre sobre a terra batida da casa de Antônio.

– Pois bem – continuou Antônio – foi por causa disso que vim aorio. O Céu me ordenou.

– Por quê?

– Não sei ao certo. Mas estou preocupado.

Em seguida, levantando-se, disse que precisava ir embora.

– A noite escura me angustia.

Caminharam um trecho juntos na margem do rio. Antes de se se-pararem, Antônio lembrou-se que ainda precisava dizer uma coisa:

– Nos meus sonhos de morte havia um mar. Não sei quais são suasintenções para o futuro Adão, mas evite o mar.

Dito isso, desapareceu no meio da noite, deixando o menino a sóscom seus pensamentos.

Na manhã seguinte, depois de arrumar a mochila e mandar a men-sagem pelo rádio transmissor da sede, Adão deixou a fazenda. Na estrada,conseguiu uma carona até a cidade mais próxima, onde tomou um ôni-bus com destino ao Rio.

O general contemplava a pele de onça estirada no chão. Estavasentado na poltrona, ao lado da escrivaninha. Com um charuto acesoentre os dedos, soltava baforadas para o alto, em círculos.

Afora os seguranças que vigiavam o jardim, estava sozinho em casa.Podia pensar.

– Foi um tiro e tanto, disse em voz alta.

Sim, foi um tiro certeiro. Abel revivia a cena com satisfação. A onçaera enorme. Nem ele nem o capataz imaginavam que ela estava no inte-rior da grota. Sentindo-se acuada, saltou sobre Abel com tamanha rapi-

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dez que o general não teve tempo de fazer a mira. Mas o capataz se inter-pôs entre os dois e amparou o golpe com a zagaia, ferindo-a no flanco. Afera, então, voltou-se na sua direção.

Abel sorriu ao lembrar-se da cena. Estava deslumbrado.

O capataz, encurralado pela fera, não teve tempo de engatilhar acartucheira. Olhava direto nos olhos da onça, que chispavam de fúria.

– Atira!, atira!, gritou ao general, que agora a tinha sob a mira.Mas Abel preferiu esperar. Num instante, o corpo do capataz tombou, feri-do de morte. E o general, com calma e segurança, apertou o gatilho e fezfogo sobre a fera.

Estava tudo consumado.

É claro que ainda odiava Vera. Mas era melhor fazer de conta queignorava seus atos. Demonstrar conhecimento era o mesmo que se decla-rar traído. E se expor ao ridículo. De mais a mais, a sua infelicidade eratão notória que o general, só por isso, já se sentia vingado.

Ele tinha outras preocupações na cabeça.

Tentava entender o que se passava em seu íntimo. Era algo novopara Abel. Nunca se voltara para dentro, em busca de saber.

Pensava sobre o que sentia.

Não era exatamente um sentimento. Era uma compulsão. Quan-do surgia, os músculos retesavam-se nos braços e no pescoço e os dentestravavam. A boca chegava a espumar. Sentia-se bem nessas ocasiões, in-teiro.

Depois que a crise se interrompia, mais calmo, procurava desco-brir o que era. Mas não entendia direito, só sabia que era bom. E quandose olhava, no espelho ou nos pensamentos, em vez de conhecimento, viaressurgir o impulso, com mais intensidade ainda.

Desde que emergiu, na fazenda, Abel não sentiu mais as dores deantes. Rejuvenesceu-se. A agilidade corporal, o prazer em inventar estra-tégias, a vontade de agir se renovaram.

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Era uma força que brotava de seu íntimo, arrasadora. Tinha, éclaro, uma direção. E Abel sabia qual era. Mas, ao detê-la a meio cami-nho, a energia se redobrava, e o punha quase louco. Só a ação, que elenão sabia ao certo qual, aliviaria a compressão sobre as costelas e o pulsardas veias no pescoço e no cérebro.

É claro que, às vezes, esquecendo-se de sua nova condição, torna-va-se o velho general de antes. No entanto, mal vislumbrava Joana e seusolhos reviravam-se.

O general sabia que não se tratava de desejo sexual. Se fosse, nãoteria dificuldades em saciar-se. O que seria, então? O seu olhar sobre a peledo felino buscava uma resposta. E, enquanto olhava, seu corpo se reme-xia na poltrona.

Estava atordoado.Na outra noite não tinha conseguido deter-se. Era um impulso ter-

rivelmente aprazível. Excitado, Abel andava em círculos. Sem poder cor-rer dentro do quarto, rugia por dentro. O suor escorria da cabeça pelasfaces e pescoço, encharcando o pijama.

Quando, após deslizar pelo corredor, chegou ao quarto de Joana,não sabia exatamente por que tinha ido. Olhou o corpo seminu da meni-na e tentou descobrir, no meio das sombras que a recobriam, algo que ofizesse entender. Pensou em se aproximar. Talvez, tocando-a, os desejos dajuventude ressurgissem.

Difícil saber.Mas uma coisa ele não podia negar: a tentação foi grande. E por

pouco não fechou a porta do quarto pelo lado de dentro.

Durante a viagem, Adão leu e releu o trecho da carta que o obrigoua partir com rapidez: “venha, pelo amor de Deus”. Joana dizia ter sauda-de. Sentia-se solitária. Precisava ver o irmão.

Adão suspeitou que era mais: Joana jamais lhe pediu algo nesse tom.

O que será?

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A viagem seria longa e ele só chegaria à noite. Tinha tempo parapensar.

– O motorista está pronto, disse Vera. – É melhor você descer.

Joana assentiu com a cabeça. Ao se encaminhar para o jardim, aindase perguntava se tinha agido certo. De que adiantava trazer Adão? Ele nãopoderia fazer nada. O melhor mesmo era ter recusado a oferta de Abel.

Aliás, Joana não entendia o motivo de sua súbita hospitalidade.

Estava preocupada. Na última noite, precavendo-se, encostou umacadeira de encontro à maçaneta da porta. Mas não conseguiu dormir. Àsvezes parecia-lhe ouvir passos no corredor. Ao se levantar e colar o ouvidona porta, não ouvia som algum.

Era uma impressão.

De manhã, passou direto pela sala de jantar. Não tomou café. Maso general não estava sozinho como das últimas vezes. Vera, aparentandodisposição, fazia-lhe companhia.

Foi um dia longo para Joana. O irmão estava prestes a chegar e elanão conseguia determinar o que lhe diria assim que se vissem. Ele desem-barcaria à noite. Tinha avisado pelo rádio e, mais tarde, telefonou da ro-doviária da cidade de onde partiu.

Joana se criticava por ter escrito aquelas palavras. Só trariam preo-cupações a Adão. E tudo continuaria na mesma: não havia alternativapara suas vidas. No entanto, Adão era a única pessoa que Joana tinha nomundo. Havia um tio, irmão do pai, mas pouco se viam. Apareceu nafazenda meses depois do incidente com a onça, quando Joana já moravano Rio. Não podia contar com ele.

Era Joana e o mundo. E agora, Adão. Mas o que ele poderia fazer?Eram, ambos, frágeis e indefesos. Principalmente na cidade grande.

É verdade, não devia ter aceito a oferta de Abel. Joana pensava erepensava o assunto. No entanto, ao encontrar-se com o irmão, num ban-

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co próximo à plataforma de desembarque, sentiu um alívio no peito. Oirmão lhe sorriu e em seguida se abraçaram. Joana sentiu uma lágrimacorrer-lhe pela face.

– O que é isso?, perguntou-lhe Adão.

– É de saudade.

– E o que mais?

– Mais nada. Vamos, me dá outro abraço!

E sentiu-se novamente em casa.

A caminho, Adão prestava atenção às luzes das ruas e avenidas e,depois de adentrarem a Atlântica, aos contornos da praia e aos recortes dorelevo. A cidade era linda. Mas havia qualquer coisa no ar que deixavaAdão inquieto. Não eram somente as palavras de Joana na carta ou aslágrimas que ele só tinha visto em seu rosto quando a mãe e o pai parti-ram. Era o céu. Podia ver com clareza, nos trechos do percurso com pou-cas luzes artificiais, as estrelas e a lua minguante. Não estavam distantesou apagadas. Mas Adão não sentiu, como sempre havia sentido em suavida, a presença dos olhos que o guiavam no meio da escuridão.

Ainda estavam abraçados quando o carro entrou pelo grande portão.Joana, que havia pegado no sono, acordou sobressaltada.

– O que foi?, perguntou-lhe o irmão.

– Nada não. Estava sonhando.

No pesadelo, o irmão era picado pela mesma cobra que havia ma-tado para salvar os filhos de Vera.

A recepção por parte de Abel chegou a ser calorosa. Adão estra-nhou. Excetuando-se a ocasião do incidente com a cobra, o general se-quer lhe dirigira a palavra na fazenda. Agora não. Chegou a abraçá-loquando se apresentou, na manhã seguinte à sua chegada.

– Você pode retomar suas aulas, sugeriu.

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A mulher, sentada na outra extremidade da mesa, olhava-o admi-rada.

– O que você acha?, perguntou à esposa.

Vera soergueu os ombros. Evitava olhar para Adão. Lembrava-secom detalhes de suas palavras de amor, ditas sob a árvore. Se o encarasse,não conseguiria evitar o rubor e, fatalmente, se denunciaria. Era o queimaginava. Mas era apenas imaginação. Abel nem em sonhos suporiaque Vera um dia tivesse caído de amor por Adão. Para ele fora o pai. E opai estava morto.

Era só pensar na palavra “morto!” para sentir de novo a satisfação.Na verdade, foi mais que estratégia: uma conspiração do destino. Insupe-rável!

– E então, o que acham?

Adão e Vera se olharam. E foi tudo como ela imaginou. Sentindo osangue migrar para as faces, baixou os olhos. E veio o temor. Denunciei-me! Mas quando, um segundo depois, fitou o marido, não viu em seusolhos o que imaginara. Ele não a olhava com ciúme ou ódio. Pelo contrá-rio, olhava de soslaio para o lado direito. Vera não percebeu por causa donervosismo, mas Abel fitava Joana.

Desde que Adão chegou, Abel parecia mudado. Joana achou queele não a procurava mais com os olhos. Teria sido uma impressão? Não!,foi ele mesmo quem entrou em seu quarto. Joana tinha certeza.

Mas, ao mesmo tempo, Joana procurava uma explicação diferentepara o ocorrido. Afinal, a casa era dele. Uma bela casa. Quem sabe ele nãoouviu um som estranho naquela noite e suspeitou fosse um assalto?! Ha-via os guardas e os cães, mas eles não eram infalíveis. Talvez Abel tivessepercorrido o corredor para averiguar. Sim, é possível que sim.

Mais calma com a presença do irmão, Joana podia novamente con-centrar-se nos estudos e no trabalho. Cuidava das crianças durante o dia,

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enquanto Vera ministrava as aulas a Adão. De noite, ao chegar cansada,estendia-se na cama e dormia um sono profundo e tranqüilo.

Nem colocava mais a cadeira na porta. Havia se recuperado dosusto. De qualquer modo, o quarto de Adão ficava bem defronte do seu.

Coisa estranha, a casa se tornou mais viva e até mais alegre depoisda chegada de Adão. Abel, de ordinário sério, às vezes contava uma piadaà mesa e fazia com que todos rissem. Ele próprio gargalhava.

Mesmo a depressão de Vera havia passado. Seus olhos apresenta-vam novamente o brilho que encantava Joana quando conversavam nafazenda. Era a Vera de antes. E tudo desde a chegada de Adão.

No primeiro dia, logo após o café, Vera o levou ao seu quarto. Adãoestava fascinado. O aposento, só ele, era muito maior que sua casa nafazenda. Olhava admirado para os desenhos dos painéis que cobriam par-te da parede, quando Vera convidou-o a conhecer toda a suíte.

– Aqui é o banheiro, disse.

Adão reparou nas torneiras da pia e da banheira.

– São de ouro?

– Não!, sorriu-lhe Vera. – Apenas folheadas.

Adão achou seu sorriso maravilhoso. Ainda não haviam se olhadode frente. Vera evitava, assim como Adão. Estavam acanhados. Adão nãosabia o que dizer, ou se devia tocar no assunto. Na verdade não poderiaevitá-lo. O silêncio era constrangedor.

A cada gesto de Vera, um sorriso, uma sombra, um fechar de olhos,Adão mudava em sua mente o que pensava em lhe dizer. Interpretava asexpressões em seu rosto não no conjunto, mas cada uma em si mesma. Enão conseguia apreender-lhe a ocasião.

Enquanto Vera propunha, como uma verdadeira professora, o quelhe poderia ensinar, Adão enxergava nas nuanças da sua fala e nas linhasde sua expressão uma incógnita que se tornava maior à medida que otempo escoava e eles não enfrentavam o assunto.

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Por fim, não sabendo ao certo o que fazer, ousou uma tentativa:

– Senti saudades.

Interrompera Vera no meio de uma explicação sobre questões rela-cionadas à Ética. Ela silenciou. Articulava mentalmente uma ordem. Pen-sava em dizer-lhe, com solenidade, que deveriam se dedicar exclusivamenteaos estudos. Que não admitiria nenhum embaraço dessa natureza. Aspalavras, no entanto, saíram-lhe tortas:

– Eu também.

A casa era enorme. Somando-se ao pavimento inferior, com suasvárias salas, no andar de cima distribuíam-se os doze aposentos, a maio-ria dos quais desocupados. Além das suítes de Abel e de Vera, dos quartosdos filhos, de Joana e de hóspedes, havia ainda dois outros aposentos nopavimento inferior. Eram reservados aos empregados domésticos.

No andar térreo também ficava o espaçoso escritório de Abel, deonde ele administrava seus negócios. A maior parte do tempo, porém, ogeneral ficava fora, no quartel ou em repartições públicas. Saía cedo eraramente voltava antes do anoitecer. Não era incomum vê-lo chegar tar-de da noite, por vezes fardado.

Nessas ocasiões, preparava uma bebida e ia direto para o escritório.Com um charuto entre os dedos, lia os documentos sobre a mesa; ou en-tão, com prazer, cuidava de suas armas. Era um hábito. Desmontava apistola e lubrificava as peças.

Tinha também um grande sabre que usava em ocasiões especiais:desfiles cívicos ou recepções no Ministério. Ficava com ele na mão, entre-tido em sonhos de batalhas. Na verdade, nunca o utilizara.

Entretanto, a despeito da aparente tranqüilidade, Abel estava ner-voso. Quando sugeriu a Joana trazer o irmão, seu propósito consciente erao de conservá-la por perto. Agiu rápido na ocasião. Não dava tempo parapensar.

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Mas agora, sentado na poltrona do escritório, sua cabeça girava.É que, desde a chegada de Adão, sentia-se disposto. Seu ânimo haviamudado e só se continha com muito esforço. Era como se estivesse nolimiar de uma descoberta transcendental que não poderia ser adiadasob pena de se perder a oportunidade. Não sabia o que era exatamente.Mas era iminente.

Daí o humor alterado, a expansão da consciência, as brincadeiras,a descontração.

Era quase uma histeria. Seus nervos não estavam exatamente sobcontrole. Abel sabia que, mais cedo do que tarde, a fina comporta quemantinha a energia concentrada se romperia. Sem saber – ou apenassupondo – o que era essa energia, ele ansiava pelo momento.

Abel nem dormia mais. Seu corpo coçava e a cabeça passou a doer.Não era como as dores que sentia antes, que dimanavam através dos po-ros, recobrindo todo o corpo. Era concentrada. Uma pressão na parte frontalda cabeça, entre as sobrancelhas. Começava pela manhã, antes de sair doquarto. No começo era tênue, não chegava a incomodar. Aos poucos, con-tudo, tornou-se praticamente insuportável.

Certa noite, com a cabeça estourando, em vez de ir direto para seuaposento, seguiu até o final do corredor e parou defronte do quarto deJoana. Sabia que ela se encontrava na escola. Com cuidado, girou a ma-çaneta e entrou.

Permaneceu um bom tempo olhando a cama. Depois, aproximou-se da cômoda e abriu as gavetas. Não tocou em nenhuma roupa. Fitavaapenas, com olhos de curiosidade, as peças íntimas da menina. Eramsimples. Aproximando as narinas, tentou sentir-lhe o perfume.

O comportamento de Adão mudou. Evitava olhar para Vera na pre-sença do marido. Tinha consciência de que seus olhos o denunciariam.Não apenas os seus. Também os de Vera. Eram olhos de desejo. E tambémde medo.

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Mutuamente conscientes de seus sentimentos, quando estavam asós evitavam tocar no assunto. Bastava o olhar. Era através dele que aenergia migrava. Sentados muito próximos, junto à escrivaninha, seusrostos quase se tocavam. Adão suspirava.

Nesse dia seus olhos acompanhavam os dedos de Vera, que desliza-vam sobre o mapa do velho mundo. Sem virar-se na sua direção, numimpulso Adão cobriu a mão da mulher com a sua. Vera calou-se. E suamão ficou por um instante estática, um pouco trêmula sob o peso da mãocalejada de Adão. Havia calor.

Só depois de alguns segundos Adão a encarou e viu em seus olhosum brilho de alegria e timidez misturado. E seus dedos se entrelaçaram,prendendo-se com força. Nada disseram. Pensavam? É claro. Queriam.

E ficaram assim por horas.Não se olhavam. Encaravam a parede pintada de creme. Apenas as

mãos, unidas estreitamente, moviam-se compulsivamente, apertando-see acariciando-se. E só.

Quando estavam no jardim à noite e as sombras os envolviam,Adão procurava sua mão. O coração de Vera batia forte. Não conseguiaevitar. Cedia e, de mãos dadas, conversavam com naturalidade sobre otema que tinham iniciado. E era só.

Sentados de frente, no jardim ou no quarto, seus olhos se perdiamno infinito de alguns palmos de distância. Vera explicava a matéria. EAdão tomava, não uma, mas as duas mãos da mulher e as segurava comforça. O abismo diminuía aos poucos. A distância tornava-se pequena. E ocalor de um corpo transferia-se para o outro, misturando-se os sentimen-tos. Era um único sentimento. Mas era só.

No intervalo de tempo entre o primeiro toque e a consumação,Adão aparecia cada vez menos na sala de estar. Evitava encontrar-se comAbel.

Não que o temesse. Adão não tinha medo. Era outra coisa. Ummal-estar que nunca havia sentido. Uma culpa que, junto com o senti-mento, crescia dentro de seu peito.

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Ele sabia que era errado.

Vera, pelo contrário, transformara-se por dentro. Toda a culpa quesentira na fazenda deu lugar a uma espécie de apreensão que crescia acada dia e noite ao lado de Adão. Não tinha mais motivo para se sentirculpada. No seu íntimo, era como se tudo já estivesse consumado.

O que não se pode evitar deve ser aceito.Seus pensamentos iam mais ou menos nesta direção. Não que pre-

tendesse se entregar ao amor de Adão. Não fazia planos. Apenas deixava ossentimentos fluírem através da pele. Permitia-se sentir calor. Só por essarazão já era feliz.

Quanto à culpa, decidira-se que não era culpada. Por que seria?Por amar? Não, é claro que não era por amar, mas por amar outro ho-mem que não o seu marido. E um homem que era ainda um menino.

Mesmo assim, não podendo evitá-los, concebeu que os impulsos ea necessidade que cresciam dentro de seu ser haviam surgido espontanea-mente. Não foi por sua vontade que eles nasceram! Não foi Vera quemestimulou os desejos. Eles surgiram sabe-se lá por que; e agora, ao toma-rem conta de todo o seu ser, Vera não tinha como suprimi-los.

Mesmo se pudesse, mesmo se tivesse forças para reprimi-los, não ofaria.

Quando, a sós em seu quarto, pensava nos olhos de Adão, concluíaque ambos tinham sido sacrificados pelo destino. Por que não o conheceuenquanto era livre para escolher? Por que ele ainda era um bebê quandoela já era mulher feita? Não foi escolha nossa. A natureza e o tempo cons-piraram em silêncio. Nada pode ser feito.

Nem por isso Vera achava que devia se entregar.É claro que seu corpo pedia cada dia mais um pouco. Várias vezes

esteve prestes a dizer a Adão que a abraçasse. Mas continha-se. Sabia oque viria em seguida.

De noite, sozinha em seu quarto, a imaginação enchia o aposentocom um perfume cada vez mais forte e inebriante. Ela podia senti-lo.

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Nua, olhava para o teto e via como se fosse um anjo descendo sobre seucorpo, cobrindo-a com seu peso. Não podia evitá-lo. Ele murmurava pa-lavras de amor.

Um dia tinha que acontecer.

Vera estava mais bonita e exuberante do que nunca. Transpiravasensualidade. De manhã, durante as aulas, evitou as mãos de Adão.

– Por quê?

– Nada não, respondeu-lhe, baixando os olhos.

Na verdade, Vera tremia por dentro. Temendo pelas conseqüên-cias, pediu-lhe que nesse dia não a procurasse. Que se concentrassemnos estudos.

Mais tarde, enquanto conversavam com Joana, Adão notou queVera o evitava. Disse qualquer coisa a Joana e, sem dirigir-lhe o olhar,afastou-se em direção ao jardim de inverno. Não haveria mais aulasnesse dia.

Adão estava preocupado.

Pensou em procurá-la, mas Vera não estava disponível. Despediu-o rapidamente, como se estivesse contrafeita. O dia todo foi assim: Adãopreocupado e Vera distante. Tão distante que meteu-se no quarto pela tar-de e não saiu sequer para o jantar.

Adão andava pela casa. Não conseguia ficar parado. Pensava se atinha ofendido com uma palavra ou gesto. O quê, afinal? Não conseguiadescobrir a razão. Seu coração batia descompassado. Nervoso, esteve maisdo que outros dias com Joana. Precisava de companhia. Mas a irmã, aten-ta às crianças, pouco lhe falou durante o dia. Ela também estava preocu-pada. De tarde, antes de ir para a escola, procurou o irmão em seu quarto:

– Precisamos conversar.

Disse-lhe que já passava de um mês e que já era hora de Adãopartir.

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– Por quê?

– Tenho pensado. Eles são hospitaleiros, mas não é bom abusar.

– Você tem razão.

Disse-lhe que anunciaria sua partida no dia seguinte. Adão con-cordou com a cabeça. Quando a irmã saiu, Adão estirou-se na cama epensou na distância que o separaria definitivamente da mulher que ama-va. E sentiu doer-lhe as costelas e faltar-lhe o ar. Era tudo inevitável. Comoda outra vez, na fazenda, sentiu que um pouco de seu corpo morreria.

Já passava das nove quando se decidiu. Nervoso, aproximou-se dasuíte de Vera. Pensou em bater. Segurando a maçaneta, hesitou um ins-tante. Mas precisava lhe falar. Precisava expor-lhe a dor e desejo que oconsumiam.

Sustando os pensamentos, girou a maçaneta e entrou.

Vera estava na cama, deitada de costas. Apenas a luz tênue do aba-jur iluminava seu corpo nu. Adão sentiu o coração saltar pela boca quan-do os olhos de Vera, à distância, o convidaram. Ela não disse palavra. EAdão, aproximando-se, despiu-se de toda a roupa. E como na imagina-ção, Vera sentiu o peso do corpo do anjo comprimindo o seu.

Quando veio o esquecimento, já era tarde. Abraçado ainda ao cor-po da mulher, Adão permitiu-se dormir um sono profundo e calmo. Esonhou por um instante que era tudo diferente. Que o corpo de Vera naverdade sempre lhe pertencera. Não!, Abel Cruz jamais foi o seu dono. Eraum usurpador. Tomou à força o que, por natureza, sempre pertencera aAdão. Não havia dúvida. Realmente tinha sido um equívoco. O amor quelhe sentia e a recíproca eram incontestáveis.

No sonho não havia mais Abel. Apenas Vera e Adão. E os dois pas-seavam pela praia de mãos dadas, iluminados pela luz do sol. Era umnovo descobrimento. E um recomeço. E tudo nesta terra era de novo puroe misteriosamente belo.

Mas era um sonho e foi rápido. Pouco depois já não era sonho ouvigília, mas uma espécie de lusco-fusco da alma. E, no meio dele, Adão

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ouviu o som dos atabaques, primeiro longínquos e depois cada vez maisaltos. Até que despertou, pois o som era assustadoramente próximo. Ao selevantar, a cabeça estourava. Havia mais do que o sonho.

Enquanto se vestia, olhou pela última vez o corpo de Vera. E dese-jou que tudo fosse diferente. Mas o batuque aumentava e, no meio dosritmos, Adão viu a figura da irmã sendo esmagada por uma força que nãoera deste mundo. Não sabia o que estava acontecendo. A visão era fortedemais. E pareceu-lhe ouvir um grito de terror.

– Meu Deus!

Era Vera.

– Não vá, pelo amor de Deus!

Já era tarde. Adão saiu correndo e atravessou o corredor de ponta aponta como um raio. Era tarde. Quando abriu a porta do quarto da irmã,ainda surpreendeu o olhar ensandecido de Abel. Ele apertava o pescoço deJoana com as duas mãos. Era um corpo mole suspenso no ar.

Por quê?

Adão estava estático, os ombros caídos. Mas seus olhos, que aindafitavam o corpo da irmã, aos poucos foram se erguendo. Indiferentes, seusolhos notaram que Abel tinha largado Joana como uma trouxa de roupasobre a cama. Adão sabia que ela não respirava. Em seguida Abel apa-nhou o sabre:

– Assassino!

Era Abel quem falava.

– Moleque covarde. Vou matá-lo, seu miserável!

Adão não disse palavra. Apenas o fitava, com uma indiferença as-sustadora. Já não era Adão quem estava ali, em pé defronte da cena. Erauma calma, uma frieza que não eram deste mundo. Quando seu corpo seretesou por completo, seus olhos não eram nem azuis nem negros. Nãotinham uma cor definida. E com esses olhos que não eram seus, encaroua figura enorme de Abel. Em seguida, num átimo, seu corpo projetou-se

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no vazio. Depois, foi apenas o som de um graveto se quebrando e o corpogordo do general caiu como uma árvore abatida.

Foi quando Vera surgiu no quarto.

Adão apenas corria. Seu corpo ganhava o espaço escuro das ruas,mas não havia direção ou sentido. Era apenas a fuga. A noite toda corren-do. Os pensamentos comprimidos dentro da caixa craniana faziam-no,mais que o esforço físico, arfar.

Eram pensamentos? Era mais. Não era um Adão. Eram muitos. Ecada um brigava com os demais. Só por causa dessa luta seu corpo nãocaiu desfalecido e morto. Era o que o sustinha. A luta. Os pensamentos.Loucos, cada um dizia-lhe um quê. Um por quê. Não sabia, apenas cor-ria, desesperado.

Vinha-lhe Antônio em socorro. Não no mar!, não no mar! E cadaum dos deuses e os atabaques. Riam-se. Riam de quem? Riam de si pró-prios. Do drama. Adão corria. Evitava as ruas movimentadas. Corria de simesmo e dos outros. Estava morto? Sim, estaria mais um pouco. Bastavaque o encontrassem.

Mas ele correu mais que todos. Passou despercebido. Por milagre?O céu o camuflava na noite escura. Faltou energia. Não havia luz paraAdão.

Quando entrou nas docas, Adão não tinha mais forças. Camba-leante, arrastou-se até um monte de fardos e enfiou-se entre eles. Estavamorto. E apagou.

No seu sonho, Adão não ouviu as máquinas trabalhando nem ovozerio dos estivadores. Nem sentiu seu corpo sendo suspenso no ar. Nemo balanço das ondas. Estava tudo negro em seu sonho. Como a noite nu-blada.

Despertou com as palavras incompreensíveis do marinheiro:

– Who are you?

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Olhava espantado. Em derredor havia meia dúzia de homens ves-tidos de branco.

– Who are you?Acuado, Adão não sabia o que pensar. O homem agarrou-o pelo

braço e o forçou a subir por uma escada. Logo depois chegaram ao convése o sol feriu seus olhos. Estavam em alto mar.

– What’s your name?, insistiu o marujo. Não adiantou. Adão per-maneceu calado. Não entendia o que estava acontecendo. Em seguidaapareceu o capitão, em companhia de um homem negro que sorriu ao sedeparar com a cena.

Adão gostou dele. Não era tão negro quanto Antônio. Vestia-se deum modo que Adão nunca tinha visto. Parecia um vestido. Era um panolongo enrolado no corpo. E usava também um turbante na cabeça. Apro-ximando-se de Adão, perguntou-lhe em português:

– Como se chama?Adão titubeou. Os pensamentos vinham rápidos à mente. Não sa-

bia mais como se chamava. Pensou em dizer Caim. Conteve-se a tempo.Não era um nome apropriado. Nada era apropriado. As coisas pesavam, oar estava carregado, não havia brisa. A tempestade estava prestes a cairsobre o mundo.

Adão chorou. E o navio continuou sua viagem rumo a Goa.

A menina estava no hospital psiquiátrico. Vera estava sozinha emcasa. Os policiais entravam e saíam. Faziam perguntas. Vera tinha quecuidar das crianças. Os olhos de Vera estavam vazios. Olhavam a paredecreme do quarto.

Vieram os militares. Fizeram perguntas. Vera respondia monossi-labicamente. Todos entenderam. Todos sabiam. Menos Vera. Ela não sa-bia mais nada. Apenas que Joana tinha sobrevivido. E já era muito.

No dia seguinte, logo após o sepultamento do general, a notíciavazou. Mas os jornais não diziam tudo. Não sabiam tudo. Apenas o que

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lhes contaram. O terrorista havia se infiltrado na mansão do general. Foitudo planejado. Mas já estavam no seu encalço. Logo o pegariam.

Suspeitava-se da existência de cúmplices e havia viaturas demaisnas ruas. Gente presa. Interrogatórios. Foi assim a primeira semana. Al-guém haveria de pagar. Prenderam alguns.

Mas Adão havia sumido. Não deixou rastros.

Vera sabia o que significava: Adão estava morto. Não restava dúvi-da. Morto e enterrado em uma vala comum. Mas Vera não enlouqueceu.Não podia. Apenas definhava.

Um ano depois mudou-se com os filhos para São Paulo. Nuncamais voltaria ao Rio. Joana já estava melhor. Levou-a consigo. Devia-lhe.

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ocê sabe o que está fazendo, Heitor?

Estavam na Biblioteca do Departamento de Ciências Sociais da Uni-versidade. O irmão comunicava-lhe que partiria em seguida para a Áfricado Sul.

– São os negócios, querida.Helena não estava convencida. Era tudo muito recente. Não fazia

um mês que a mãe havia morrido.– Não quero ficar sozinha.– Você nunca está sozinha, respondeu-lhe sorrindo.A irmã era muito bonita. Vivia cercada de amigos e era assediada o

tempo todo. Mal acabou de falar e um jovem se aproximou, convidando-a para o almoço.

– De noite a gente conversa, disse Heitor, enquanto se despediacom um riso de malícia.

Heitor tinha razão. A maior parte dos negócios estava concentradaem minas na África. O valor das ações havia caído. A produção não eramais a mesma e ele não entendia o porquê. Tiveram que ceder parte dasações e ele nada sabia sobre o novo sócio. As coisas tinham sido arranja-das pela agência.

Era hora de tomar as rédeas. Era preciso averiguar.Quando chegou em casa, pela tardinha, encontrou Helena conver-

sando com Joana. Heitor já havia lhe falado. E Joana, mais do que Hele-na, tinha motivos para se entristecer com a notícia. Mas o que podia fazer?

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Tivera sim um caso com Heitor e juraram-se amor em meio à paixão.Heitor, contudo, era mais jovem. E as coisas não duravam muito na suacabeça.

– Partirei depois de amanhã, anunciou.

Helena pensava. Depois, segurando a mão de Joana, perguntou aoirmão se era realmente necessário.

– Mas é claro. Estão nos roubando.

Joana lecionava literatura. Faltou à aula para se despedir de Heitor.Tinham passado a noite juntos. Agora, no aeroporto, Joana sabia que aseparação era definitiva. Em companhia de Helena, viu o avião levantarvôo e desaparecer no horizonte.

– Está tudo acabado, confidenciou à amiga.

– Você agüenta?

– É claro. Já passei o diabo antes.

Mas o segredo tinha se conservado. Joana e Vera eram as únicasque sabiam toda a história. E Vera estava morta.

Joana gostava muito de Helena e ainda mais de Heitor para ser-lhes verdadeira e transparente. Era melhor calar. Além do mais, tudo faziaparte do passado. O irmão estava morto. Assim como o general.

Não, o general não estava morto. Vinha em pesadelos. Aproxima-va-se de seu quarto no silêncio da noite e, antes que ela pudesse gritar,atirava-se sobre seu corpo. Sem reação, Joana apenas ouvia os sussurros eencarava os olhos maníacos do homem que a pressionava contra o col-chão.

Pressionava-a impotente. Por que a pressionava? Era um corpoinerte sobre outro. Dois corpos inertes. E um ódio que aumentava a cadagolpe. E as mãos grandes e peludas enlaçando seu pescoço e apertando-ocada vez com mais força. E a respiração que não vinha. E o grito que nãosaía.

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Até que Joana estourava de tanto gritar e acordava todos no aparta-mento. Estava banhada de suor e sangue. O sangue do general. O sangueque Adão derramou. E que se esparramava pelo quarto e inundava o cor-redor.

Helena também gostava de Joana. Eram como irmãs e trocavamconfidências. Helena foi a primeira a saber de seu romance com Heitor.Mesmo incentivando, sabia que não iria durar. Heitor era instável.

– Deve ser um mal de família, comentou, com um meio sorriso.

– Era tudo um sonho. Eu já sabia.

– Dói muito?

– O tempo cura.

Helena também achava que sim. Ela própria não havia passadopor uma rejeição, mas entendia o que significava. Seus relacionamentostambém eram instáveis. Não duravam. Tinha feito mais de um jovemsofrer.

Não que gostasse. Quisera-lhes a amizade, mas eles queriam mais.E depois, quando os deixava, tinha um amigo a menos. Por que eles nãovoltavam? A paixão acaba, todo mundo sabe. O amor arrefece. Por quenão conservar a amizade? Helena não entendia a razão. Não podia. Nun-ca fora rejeitada.

– O tempo e o trabalho, continuou Joana.

Helena sentiu um travo nas palavras da amiga. Pensou um instan-te, enquanto dirigia pela rodovia em direção à capital. Sabia que Fernandoa aguardava em seu apartamento. Haviam combinado uma noitada.

– Venha com a gente!

– Não, hoje não dá. Vou ler um livro.

Na manhã seguinte Joana chamou Helena para uma conversa.

– Estive pensando.

– E?

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– Gostaria de passar uns tempos na fazenda. Você se importa?

Helena não se recordava direito. Eram lembranças vagas. Mas nãoeram desagradáveis.

– Só se eu for junto.

– E os estudos?

– Alego qualquer coisa e tranco a matrícula.

– Por quê?

– Também preciso me recompor.

– E quanto a Fernando?

– Não tem importância.

Heitor voltou dois meses depois. Estava exultante e correu ao en-contro da irmã na fazenda. Eram muitas as novidades. Estava deslum-brado. O sócio viria em seguida.

Encontrou-se com Helena na varanda nova.

– E Joana?

– Não está bem.

O clima havia mudado. Joana andava acabrunhada.

– O que foi?

– Você sabe a história de Adão?

– É claro. Quem não sabe?

– Quando chegamos ela estava bem. De uns dias pra cá tem so-nhado com ele.

– Uma história estranha, não?

O que sabiam? Que Adão fora um terrorista? Não, a história tinhasido remendada. Na verdade Adão foi pego roubando a casa. Surpreendi-do, lutou e levou Abel à morte. Era um assassino. E fugiu. O resto eramistério.

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Joana sofria duplamente. Precisava esconder a história que conhe-cia em detalhes e recobrir suas cicatrizes com polidez e silêncio. Mas ain-da conservava o rosto do irmão sem máculas na memória que teimavaem não se apagar.

Encontrou-se com seu rosto no meio das pastagens e da floresta.Era um rosto sério. Um menino fechado. Por que ria tão pouco? Pareciaestranhar o mundo.

Joana sabia que ele estava morto. Conhecia a história. Tambémsabia do amor de Vera. Anos após a tragédia, quando o câncer já havia semanifestado, a patroa e amiga contou-lhe tudo. Joana não ficou choca-da. Achou natural. Depois da tragédia, as coisas do mundo passaram a semostrar naturais para Joana. Era o seu modo de enfrentar as chagas. Olharpara elas como parte da vida. Não como exceção, como regra. A tragédiaera a regra. O resto, ainda que incomum, era fácil de digerir.

Na fazenda, Adão voltava em sonhos. Pedia-lhe água. Mas Joananão tinha água. Perguntava-lhe por Vera. Mas Vera estava morta. Em se-guida, dava de ombros e partia correndo no meio das pastagens. E morriae era enterrado num charco qualquer. O gado vinha e pisoteava a lama. Omiasma. Um cheiro ruim de podridão. E o rosto de Abel emergia de novo.Era ele o assassino.

Joana acordava suada e tremendo. Chorava convulsivamente e nãopodia desabafar com ninguém.

A amiga se achegava e o que Joana dizia era que sofria muito. Porque Adão fez o que fez? Era seu irmão. É meu irmão. E está morto, euacho. Helena entendia. Entendia e se compadecia da amiga. Sabia dahistória ao seu modo. E até compreendia a história desse modo. Mas erapouco para Joana. A história, em vez de salvar o irmão, condenava-o.

A solidão que Joana procurou na fazenda não era para curar a dorda rejeição de Heitor. Era mais que isso. Quando descobriu, veio tudo deuma vez: sua vida era uma farsa. Desde o princípio tinha sido. A inteligên-cia, o gosto pelos estudos, a partida rumo à cidade, o pai esquecido sob

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um monte de terra, o irmão deixado por sua conta na fazenda. E depois, atragédia. Era tudo falso, artificial. Não lhe parecia real. Era uma históriaque recobria outra, muito maior e difícil de entender. Qual seria? Joanalutava com seus pensamentos, mas não conseguia descobrir. Qual seria osignificado de sua vida? Da vida do irmão, do encontro com Abel, Vera e osmeninos? Da morte do pai?

Haveria mais coisas?

Difícil saber.

Quando Heitor a encontrou no quarto mergulhada em seus pensa-mentos, suspeitou que ela sofria do mesmo mal que a mãe. A depressãoseria contagiosa? Mas disfarçou. Estava muito feliz e não desejava a com-panhia da tristeza. Sem hesitar, saltou sobre a cama e abraçou a amante.

Pouco antes do entardecer foram ao encontro de Helena.

– Tenho novidades, anunciou.

Estavam sentados na varanda. Os colonos voltavam da lida de ca-beça baixa. Ao passarem pelo trio, cumprimentaram os patrões com ummeneio. Seguiram seu rumo.

Heitor falou sobre o sócio. Sobre as aventuras na África. Narroutudo em detalhes. A irmã e Joana prestavam atenção à história. Não erabanal. Parecia uma novela: os contrabandistas, as pedras desviadas, oencontro com o sócio.

– Chama-se Caio. É uma figura!

– É de confiança?

– Não resta dúvida.

Conheceram-se nas minas. Heitor ficou impressionado com a ra-pidez com que Caio dominou a situação. Ele não hesitou. Apanhou osfuncionários em flagrante e os encurralou. Heitor presenciou tudo. Caioenfiou a garrucha na boca de um dos contrabandistas e o despediu.

– Não vou entregá-lo, disse na ocasião. – Se o vir novamente,mato-o.

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Heitor soube que matava mesmo. Havia qualquer coisa em seuolhar. Uma frieza, uma indiferença. E a voz. A voz era límpida, sem emo-ção. Suas palavras soavam como uma sentença. Os funcionários aindaesbravejaram. Juraram vingança, não diretamente no rosto de Caio. Mur-muravam. E quando voltaram, dias depois, estavam dispostos a acabarcom a vida de Heitor e de Caio. Mas o sócio agiu rápido novamente. Estavapreparado.

– E o que ele fez?

Caio os esperava. Adivinhou que viriam nessa noite. Quando os trêsentraram de armas em punho no barracão, decididos a matá-los, nãoencontraram ninguém nas camas. Em seguida, a porta se fechou nas suascostas. Mal tiveram tempo de se voltar.

– Ele os matou?

– Eram três contra um. Atiraram dos dois lados. Quando cheguei,encontrei os corpos no chão.

Caio também foi alvejado. Recuperava-se no hospital quando Hei-tor voltou ao Brasil. Viria em seguida, a convite do sócio. Desejava conhe-cer-lhe a família.

Tornaram-se amigos.

– Quem é ele, afinal?

Caio era gemólogo. Segundo sua história, tinha vindo da Índia.Heitor se lembrava da primeira vez que o viu. Encontrou-o sentado nasombra de uma árvore frondosa, nas imediações das minas. De olhos fe-chados, meditava. Quando Heitor se aproximou, levantou-se rápido e ocumprimentou num português sem sotaque.

– Você é Heitor!

– E você é Caio!

Apertaram-se as mãos. Em seguida, o desconhecido convidou-opara um passeio. Conversaram bastante. Caio estava inteirado da situa-ção e, sem delongas, informou tudo ao sócio.

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– O resto já contei.

– E quando ele vem?

– Brevemente.

Fizeram preparativos. Estavam todos ansiosos. Para Helena, eramais que curiosidade. Ela sonhava. Não que fosse dada a sonhos. Helenaera mulher prática. Mas nunca tinha visto o irmão tão empolgado comalguém. Por duas ou três vezes insistiu para que Heitor descrevesse o sócioem detalhes. Ele sorria. Dizia-lhe que era uma surpresa.

– Ele é bonito?

– Depende do gosto.

– Você sabe o meu.

– Caio não é como Fernando.

Fernando? Não sabia por que havia sido Fernando. Aliás, não sabiasequer se era realmente Fernando. Não gostava de pensar no assunto.

Mas devia!

Pensar o quê? Helena não amava Fernando. Sentia-se bem na suacompanhia. Afinal, tinham gostos parecidos, freqüentavam os mesmoslocais, os mesmos amigos. Fernando era bonito. Quer dizer, não haviadesarmonia nos traços e o corpo era bem proporcionado.

Houvera paixão? É possível. Houve um tempo em que Helena nãopensava no assunto. Bastava tê-lo consigo sempre que estava só. Era umprazer. Os passeios de conversível pela Augusta, os jantares nos restauran-tes dos Jardins, um teatro no inverno, os olhares “casal bonito”.

Por que pensar agora? Não estava bem assim, sem pensar?

Helena não era dada a pensar. Mas sabia que seu romance comFernando tivera seu tempo. Assim como os anteriores.

Sozinha em seu quarto, depôs o livro no criado-mudo e deu asas àimaginação. Já não pensava em Fernando, mas na imagem distorcida deum homem mais velho, que vagava pelos campos da África do Sul.

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Um homem violento? Talvez, mas isso não a incomodava. Pensavana parte melhor da história. Na sua coragem.

Era Sábado.

Enquanto Heitor foi recepcionar o sócio no aeroporto, Joana e He-lena recebiam os convidados na sala de estar do amplo apartamento. Eraquase meio-dia. Um dia frio de julho.

Fernando conversava com um colega da Faculdade num canto.Segurava uma taça de vinho na mão. Falavam sobre a situação política.Depois, sobre seu relacionamento com Helena.

– Quero me casar, dissera-lhe um dia antes. Helena sorriu. Brin-cou que não o merecia.

– Sou muito nova, não quero me casar ainda.

Agora Fernando dizia o inverso ao amigo. Que Helena o pressio-nava.

– É difícil resistir ao seu apelo.

– Se fosse você eu casava, provocou-o o amigo. – Ela é mara-vilhosa.

– Sei. Mas não há pressa.

Helena e Joana conversavam próximas ao vestíbulo.

– Como será ele?

– Não faço idéia. O que você acha?

Helena imaginava por cima do que Heitor havia narrado. Um ho-mem alto e forte. Sério, ria com parcimônia. E não tinha medo de nada.

Pouco depois, Heitor chegou sozinho ao apartamento. Estampavaum ar de interrogação no rosto.

– Ele não veio?, perguntou à irmã.

Em seguida o telefone tocou. Heitor falou qualquer coisa e voltou-se para Helena.

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– Está a caminho. Houve um desencontro: seu vôo foi antecipado.

Logo que desembarcou, Caio tomou um táxi. Era de manhã. Nãotinha pressa. Disse o nome do cemitério ao motorista e adormeceu nobanco de trás do carro. Uma hora depois o taxista avisou que haviamchegado. Caio pediu-lhe que esperasse. Procurou um funcionário e seencaminharam para a lápide pequena, igual às demais. Olhou o nome,as datas de nascimento e morte. Foi só um instante. Pouco depois o carroatravessava a cidade rumo ao hotel, onde deixou as bagagens. Em segui-da Caio dirigiu-se ao apartamento do sócio.

Já passava das três quando foi anunciado pela recepção do edifício.

Helena abriu a porta que dava para o vestíbulo e esperou. Heitorestava ao seu lado. Atrás, na sala de estar, umas vinte pessoas conversa-vam bebericando em taças de vinho. Estavam curiosas. Pouco depois,quando a porta do elevador se abriu, Heitor tomou o braço do sócio e ointroduziu na sala.

– Meu amigo Caio!

Helena hesitou um instante antes de cumprimentá-lo. Imaginara-o diferente. Ela e os demais na sala. As amigas, reunidas a um canto,estavam horrorizadas. Olhavam com uma ponta de desprezo a figura exó-tica para quem Heitor fez questão de dar uma festa.

– Parece um bicho, comentavam baixinho.

Realmente. A barba enorme sobre o peito e a grande cabeleira lem-bravam um urso. Das feições, apenas os olhos estavam aparentes. Tinhamuma expressão estranha, meio curiosa e meio desconfiada. Olhou cadaum dos presentes, como se procurasse por alguém.

– Esta deve ser Helena!, apresentou-se, segurando sua mão. – Éum prazer.

Helena sorriu. Gostou de sua voz grave.

– Onde aprendeu português?

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– Na Índia. Em Goa.

Depois, aos poucos, foi apresentado aos demais. Joana estava numcanto e esperou sua vez. Quando Heitor se aproximou, levantou-se dapoltrona e encarou o estranho. Olhou dentro dos olhos que a fitavam di-retamente. Percebeu que sorriam. E sentiu as pernas bambearem e a salagirar. Tudo ficou escuro.

Com rapidez, Heitor evitou que caísse. Joana havia desmaiado e sóvoltou a si no quarto.

– Causei uma péssima impressão, não?, disse Caio, referindo-se àsua aparência. – Devo tê-la assustado.

– Já estou com ciúmes, brincou Heitor. – Você está melhor, querida?

– Sim, foi a bebida.

Joana não tirava os olhos de Caio. Soube quem era pelos olhos.Não eram azuis. Eram praticamente negros.

– Vamos voltar, já estou bem.

– Tem certeza?

Pouco depois se reuniram aos convidados. Havia música. Em com-panhia de Caio, Helena dirigiu-se à sacada, de onde apontou os edifíciosvizinhos e a rua arborizada lá embaixo. Perguntou a Caio o que tinhaachado de São Paulo.

– Muito grande. Acho que vou gostar.

Helena estava atenta aos seus olhos. Curiosa. Com independênciaem relação ao rosto, eles pareciam sorrir-lhe. Eram meigos. A idéia origi-nal, de um homem que metia medo, desvanecia-se quando os fitava. Eramolhos de criança.

Reparou no corpo magro e musculoso, na testa ampla e na cabe-leira sobre os ombros. A barba o enfeiava. Mas Helena sabia que era apa-rência.

– Por que deixa a barba?, perguntou-lhe.

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– Não deixo. É desmazelo.

Caio gostou de Helena. Lembrava a mãe. Os mesmos olhos casta-nhos, a pele clara e os lábios carnudos. Mas, ao contrário de Vera, Helenaera expansiva. Mostrava-se inteira nos olhos, como uma criança que nãotem medo. Demonstrava segurança e desembaraço. Nenhum traço de ti-midez.

Caio, porém, viu mais do que aparência. Prestou atenção em seusgestos e, ao olhar fundo em seus olhos, notou a diferença. Vera era mulherfeita, plenamente constituída interiormente. Até suas inseguranças, suastristezas e seus arrependimentos estavam cabalmente delineados, confi-gurando um caráter.

Helena não. Muito embora se mostrasse dona de suas vontades, eraainda uma adolescente que tentava firmar um modo de ser. Para Caio,era sim uma mulher feita. Mas, ao mesmo tempo, lá no fundo, ele enten-deu que Helena era uma menina que precisava e pedia cuidados.

Ao sentir-se seduzido, foi pelo brotinho que devia ser orvalhado comcuidado e dedicação para crescer e brilhar. O encanto de Helena, paraCaio, residia nessa peculiaridade. Na força e segurança aparentes e nafragilidade real, invisível em todo caso.

No dia seguinte, em companhia de Heitor, Caio foi ao barbeiro e àscompras.

Joana se enfiou no quarto assim que os convidados foram embora.Estava nervosa. Trancou a porta por dentro e deitou-se. Precisava pensar.Estava atordoada. Jamais poderia imaginar.

As feições se misturavam em sua cabeça. As vozes também. Não eraa voz de um menino. Talvez fossem as mesmas feições, não dava parasaber por causa da barba. Mas os olhos não deixavam dúvida. Eram osmesmos.

Não dormiu bem essa noite. Sonhava com crianças. Vinham dasruas e das praças e pediam-lhe pão. Crianças maltrapilhas e famintas,

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aos bandos. Joana as recolhia, mas logo que Heitor chegava era obrigadaa despejá-las. São meus filhos, dizia. Heitor respondia que não. Joana es-tava errada, não eram seus filhos.

De manhã, sentindo-se enjoada, não tomou café. Foi até a sacadae passou horas olhando as alamedas bonitas lá embaixo.

Pelo meio-dia Heitor chegou em companhia de Caio. Era outrosem a barba. Joana reconheceu-lhe os traços imediatamente. Assim queHeitor os deixou a sós, os irmãos se abraçaram.

Ficaram em silêncio. Apenas olharam-se, pois não podiam falar.Não em casa. Só no dia seguinte, num restaurante, Caio contou-lhe tudo.

– O que você procura?– Não sei ao certo. Queria revê-la. Só soube que estava viva há um

ano. Foi quando decidi me associar aos negócios de Heitor.– Achávamos que estava morto.– Estive por um bom tempo. Um homem me salvou.Lembrou-se de suas palavras. Não havia glória na luta, mas era

preciso lutar. O destino era imponderável e, ainda assim, até mesmo osdeuses lutavam. Ganhavam e perdiam. Eram iguais aos homens nesteaspecto. Personagens de um drama.

Adão desejou morrer. Mas o homem o acolheu e cuidou de suasferidas. Deixou a marinha mercante para ajudá-lo.

– Como se chama?– Está morto. Chamava-se Rabindranath.Era um filósofo. A vida, uma grande ilusão: Maia. Os homens, pe-

ças de um jogo. Crédulos, pensavam que eram donos de suas escolhas. Sóassim a ilusão passava por realidade.

– Ainda não superei tudo. Mas não penso mais em morrer. Aceitomeu destino.

Joana mantinha as mãos do irmão entre as suas. Sorria e choravaao mesmo tempo. Ela própria havia pensado em morrer. Resistira. Erapreciso.

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– Você vai ser tio.

Caio ergueu os olhos e a encarou. Depois, abriu um amplo sorriso.Sentia-se feliz, depois de anos.

– Heitor?

– Sim.

– Meu amigo filósofo estava certo: o destino é imponderável.

– Heitor não sabe.

Caio entendeu o que se passava. Heitor era transparente. Com umolhar tinha-o devassado na África.

– Não se preocupe, disse Joana. – Isso não é nada.

No dia seguinte, terça-feira, Caio foi ao encontro de Helena na Uni-versidade. Haviam combinado um almoço por telefone. Depois de anos,Caio sentia-se ansioso novamente. Sabia o que era. Ou o que poderia ser,caso se permitisse. Só não sabia se devia. Já era muito perigoso ter voltado.

Mas os olhos de Helena tinham uma qualidade especial. Deixa-vam-se penetrar. Era como mergulhar num lago de águas cristalinas eencontrar, lá no fundo, uma pedra brilhante. Caio fizera isso por anos, naÍndia e na África. Descobrira tesouros. Sabia como era bom o mergulho.

Seria medo? Caio havia enfrentado todo tipo de perigo e não temiapor sua vida. Mas era medo sim. Pressentia qualquer coisa. Quando dei-xou sua terra, não foi a culpa a única razão de seu sofrimento. Eram ostraços de Vera, sua voz macia e a textura de sua pele. Eram seus olhos.Nunca mais os teria nos seus. Era a perda. Temia passar por isso de novo.

Quando desceu do táxi e a encontrou sentada num banco de con-creto, sob uma árvore, seu coração deu o primeiro sinal. Foi muito rápido,quase imperceptível. Mas Caio era experiente. Havia passado por isso an-tes. E Helena era linda. De jeans e camiseta, parecia uma adolescente. Oscabelos louros caíam-lhe retos sobre as costas.

A pele clara contrastou com a de Caio, bem morena, quando seabraçaram.

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– Que diferença!, elogiou-o. Referia-se à sua nova aparência.

Caio sorriu.

No restaurante, Helena confessou que estava curiosa a seu respeito.Na verdade, era mais do que curiosidade. Caio tinha qualquer coisa noolhar. Um mistério. Helena pensou o caso. O que significava? Não sabia.

– Quem é você, afinal?Caio a encarava, sério. Às vezes, baixando os olhos, Helena se fur-

tava de seu olhar. Era quente. Sentiu em sua espinha, na base. Pareciadevorá-la por dentro.

– Na verdade não sei, respondeu-lhe, depois de um instante.

Terminaram o almoço e tomavam uma taça de vinho. Helena apa-nhou o maço de cigarros e acendeu um, lançando um fino filete de fumopara o alto.

– Posso?

– É claro. Não sabia que fumava.

– Às vezes...

Caio fumou o cigarro sem dizer palavra. Fitava Helena diretamen-te. Ela falava a intervalos, comentando qualquer coisa. Às vezes sua vozparecia trêmula.

– O silêncio a constrange?

– Em geral sim. Não agora.

Sentiu-se bem na companhia de Caio. Era uma sensação nova. Elasabia aonde poderia levá-la, mas não se importava.

À noite, em sua cama, Helena refletiu sobre o que havia sentido emsua companhia. Não era igual ao que sentia com Fernando. Gostava deFernando. Tinham coisas em comum. Iam às mesmas festas. As ambiçõeseram parecidas. E os gostos também. E estivera apaixonada.

Mas agora!

Quem seria esse homem? Caio era diferente de todos. Sim, haviaalgo de muito especial em seus olhos. Um mistério. Helena não conseguia

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saber ao certo a razão, mas poderia ficar horas fitando-os. Ao encará-los,ela tentou ver, no fundo de sua luminosidade, os contornos de sua alma.Os olhos de Caio, porém, eram como espelhos. Refletiam apenas quem osfitava. E, neste caso, refletiram Helena por inteiro.

Talvez fosse essa a razão de seu encanto. O modo como olhavadentro das pessoas, devassando-as e revelando-as. É verdade, Helena che-gou a tremer. Durante um breve período em que seus olhos se fixaram nosde Caio, Helena sentiu-se invadida, penetrada por seu olhar.

Um deus grego?

Não, não é isso. Sim, talvez. Para mim. Um olhar de esfinge,indecifrável e penetrante. E a pele morena e o porte esguio e os cabelos emcachos sobre os ombros. Muita energia concentrada, prestes a explodir. Ese explodisse, como seria? Lembrava-se da história que Heitor contou aseu respeito. Do modo implacável como se desembaraçou dos inimigos.Um homem perigoso. No entanto, Helena sentiu-se à vontade com ele.Não sabia por que, mas confiava totalmente.

Desejava-o.

Na manhã seguinte, ao dar partida no carro, Helena pensava numamaneira de estar com ele novamente. Apertou o controle remoto e o portãoda garagem se abriu. Já subia pela rampa, quando teve que brecar. Paroua centímetros do homem que passava na calçada.

– Não viu o sinal?, gritou, apontando para as lanternas que pisca-vam sobre a mureta lateral. O homem abaixou-se um tanto e a encarouatravés do pára-brisa. Em seguida sorriu-lhe.

– Estou descobrindo a cidade, disse Caio, depois de beijá-la no rosto.

Helena sorriu, um pouco encabulada. Estava pensando em você.Não disse, apenas pensou.

– Posso ajudá-lo. Não quer entrar?

– Você tem aula, não?

– E você, está livre?

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– Ao seu dispor.

– Você está apaixonada?

– Não sei. É forte.

Estavam no quarto de Joana. Sentindo-se indisposta, faltou ao tra-balho. Helena se achegou e depois de conversarem um pouco sobre bana-lidades, passou a falar com entusiasmo sobre Caio. Joana ouviu um tempoem silêncio. Refletia. É claro que é paixão.

Pelo menos o início. Não tardaria e os sentidos tomariam conta.Recordava-se bem das palavras de Vera. Tinha começado assim. Mais oumenos assim. A história se repetiria?

– E quanto a Fernando?

– Não sei, minha amiga. Preciso pensar.

Mais tarde Joana foi ao encontro do irmão, no hotel. Combinarampor telefone. Quando chegou, pouco antes do anoitecer, e se fez anunciarna recepção, uma figura a observava do saguão.

Heitor estava intrigado. Desconfiado. Pensou em subir ao quartodo sócio e flagrá-los. Não, na verdade não valia a pena. Não era ele mes-mo quem, de uns tempos para cá, a evitava?

Gostava de Joana, mas era apenas uma aventura. Heitor não erahomem de se comprometer. Girou sobre seus calcanhares e logo depoisestava em casa. Preparou uma bebida e pensou um bocado. Depois, foipara o quarto e pegou imediatamente no sono.

– Devo voltar. Você consegue arranjar as coisas?

Joana refletiu um instante.

– Não sei. Estivemos na fazenda dias atrás.

Caio estivera pensando. Falou com a irmã sobre seu desejo de reversua casa. Sabia que era difícil. Devia ser convidado. Mas a fazenda, o rio eas matas de sua infância não significavam nada para Heitor e Helena.Eram apenas uma propriedade.

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– O que você pretende encontrar?Caio segurava um cigarro entre os dedos. Da janela da suíte, olha-

va a avenida cheia de carros lá embaixo.– Um menino.

O menino olhava as águas revoltas no meio do rio. Estava só, comoantes. O sol descia rápido no horizonte e as sombras dos arvoredos fun-diam-se com as rochas negras das margens. O céu encheu-se de estrelas.Fazia frio, mas o menino sentia-se quente. Notou que os olhos da noite ovigiavam. Era ele de novo. Era Adão.

Pensava. Não! Não eram pensamentos ou emoções. Era um senti-do. Sentia-se inteiro de novo. De pernas cruzadas, ouvia com atenção omurmúrio das águas. Os grilos, a coruja e a brisa nas folhagens. De olhosabertos, contemplava as estrelas refletidas na superfície do grande rio. Podianovamente mergulhar em suas águas.

Passou a noite em silêncio.

Não havia desejos, idéias, emoções. Um estranho vazio preenchiaa alma. Nem as culpas, antigas e recentes, o atormentavam. Mas pelamanhã resolveu refletir. E quando o fez, sua alma tumultuou-se. Quemsou eu? Não sou um menino. Sou um homem: Adão. Ou Caio?

Pensava nas palavras de Rabindranath. Na placidez de seu olhar. Ofilósofo e sua esposa o acolheram em sua casa, às margens do Ganges. Ederam-lhe um novo nome.

Mas Adão era mais que um nome. Rabindranath lhe dissera diver-sas vezes. Adão era um homem. Um homem em formação. Era precisoconhecer esse homem. Mas Caio não sabia como. Olhava-se nas rugasformadas na superfície do Ganges. E agora, nas ondas e redemoinhos queavançavam sobre as margens do Paraná. Via movimento. Tumulto. Masnão conseguia ver-se inteiro.

Somente na noite, quando olhava para o céu e o silêncio o envol-via, suspeitava quem fosse. Seria Olorum, como Antônio dissera? Não,

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Olorum era o Céu. E Adão estava na terra. Seria seu filho? O que mais?Não sabia.

Foram três noites de vigília às margens do rio. Na última, o cansa-ço o tomou e fez com que sonhasse. Não sonhou, a exemplo de anos se-guidos, com os braços e o corpo quente de Vera. Sonhou pela primeira vezcom Helena.

E seu sonho foi completo e cheio.

Mas como vivê-lo? Sim, Helena era tão inatingível quanto Vera.Por outras razões: havia um passado, atos tortuosos de um passado que seinterpunham entre ele e Helena. Havia uma omissão. Uma mentira.

Havia o inconfessável.

E Caio não sabia como resolver a questão.

Pensou em partir. Em se desfazer das ações e desaparecer para sem-pre. Seria o mais correto. Aliás, por que voltou? Tinha voltado por causada irmã. Não!, não era apenas esta a razão. Havia mais e Caio sabia. Sen-tia-se incompleto, fragmentado. Precisava se recompor, ou morreria.

Antes tivera o apoio e a força moral de Rabindranath. Mas agora,depois que seu amigo partiu, não tinha onde recostar a cabeça. Confuso,procurava um sentido que não estava nas minas de diamante. Nem nosnegócios do mundo. Onde estaria?

– Difícil dizer, respondeu-lhe Antônio.

Envelhecera.

Encontraram-se num bar, na vila próxima à fazenda. Estava sen-tado num banco comprido de madeira, com um copo de cachaça na mão.Fumava um cigarro. Ao reconhecê-lo, Caio aproximou-se e tocou em seuombro. Antônio olhou direto em seus olhos. E sorriu.

Primeiro se abraçaram. Depois, a convite de Caio, caminharamum trecho a pé pela estrada de terra, até as margens do rio.

– E o terreiro?

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– Está fechado.

Os deuses partiram. Não queriam mais nada com Antônio.

– Não me lamento. Aceito o destino.

Caio lembrou-se das palavras de seu amigo hindu. O destino era oque não podia ser previsto nem alterado. Apresentava-se como testemu-nha da impotência humana.

– O que você faz agora?

– Sobrevivo. Dou consultas.

Mantinha em sua casa, na vila, um quarto reservado para o jogo.Jogava as contas e pedras e búzios. E predizia o que os clientes queriamouvir.

– Eles me pagam. Não peço muito, é uma troca.

Ao dizer as últimas palavras, Antônio baixou os olhos.

– Eu entendo, disse Caio, segurando as mãos do velho.

Depois, pausadamente, Caio lhe contou sua vida.

Passaram o dia inteiro juntos. E veio a noite. Sentados às margensdo Paraná, o homem negro e Caio miravam as águas escuras e a noitesem estrelas. Depois da longa narrativa, já não havia o que falar. Antôniopodia entender o menino.

– Tentei poupá-lo, disse, quando o sol despontou no horizonte. –Mas não tinha poder para tanto.

Já havia se passado um mês quando Helena e Joana chegaram.Procuraram por Caio, mas o empregado informou que ele estava nas pas-tagens. Esperaram na varanda.

Helena tinha estranhado o pedido. Heitor também. Mas resolve-ram ceder a fazenda. Estavam todos no apartamento quando Caio tocouno assunto. Disse que desejava passar uns dias sozinho. E que soubera,por intermédio de Joana, que eles possuíam uma fazenda no interior.

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– Não me sinto bem, preciso meditar, explicou.Joana, do outro lado da mesa, sentiu um arrepio na espinha. E se

desconfiassem? Dissera ao irmão que era loucura. Levantaria suspeitas.Mas Caio teimou. Já não havia se arriscado voltando ao Brasil? Precisavade mais.

Mais tarde, a sós com Helena, disse que ela poderia mostrar-lhe acidade em breve, quando voltasse de seu retiro. E que sentiria sua falta.

– Não o compreendo, respondeu-lhe. – Você mal chegou.Helena estava confusa. Seu interesse por Caio era evidente. Por mais

de uma vez deixara-se penetrar pelos olhos brilhantes do estrangeiro. Ofe-recera-se no olhar. Por que então ele não se aproximava? Por que preferiase afastar?

Não entendia. Acostumada a ser desejada e assediada por todos,Helena não conseguia compreender por que este homem em especial semostrava indiferente. Quando o viu partir, sentiu um nó na garganta. Eseu interesse, já grande, tornou-se ainda maior.

Procurou por Fernando no dia seguinte. Não se viam há uma se-mana. Mas quando entraram no restaurante e fizeram o pedido, Helenapercebeu o seu erro. Jantou em silêncio, respondendo às perguntas donamorado com monossílabos.

Distraída, olhava as outras mesas, cumprimentando de vez emquando um conhecido. Seus pensamentos estavam em outro lugar. Se-guiam a figura exótica que cativou sua imaginação e que agora se afasta-va sem demonstrar-lhe o menor interesse.

À noite, em seu quarto, a fantasia tomou conta. E quando os so-nhos se tornaram recorrentes, já não podia negar que o interesse, a curio-sidade, o encanto, haviam se transformado em algo muito maior. Helenaestava entregue.

Já era de tardinha quando Helena viu, no lusco-fusco, o cavaleirochegando. Estava sem camisa e os cabelos longos caíam-lhe em cachos

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sobre as espáduas. Helena levantou-se da cadeira e foi ao seu encontro.Caio sorriu ao tomar sua mão, dobrando-se sobre o dorso do animal.

– Surpreso?

– Não. Eu a esperava.

Mais tarde, quando Joana se recolheu, Helena e Caio ficaram sozi-nhos na varanda. O silêncio instalou-se entre os dois. Helena não sabia oque dizer. A intervalos, fitando os olhos de Caio, procurava um indício deque ele também a queria. Mas não conseguia decifrar-lhe o olhar. Caionão se revelava através dos olhos. Eram sorridentes e meigos. Mas eramassim por natureza.

Na verdade, Caio lutava contra o que tinha como certo. Sabia quea desejava, que a queria. Estava apaixonado como nunca estivera desdeque se separou de Vera. Talvez ainda mais.

Mas faltava-lhe o impulso irracional de antes. Caio pensava. Equando o fazia, reparava que os traços de Vera estavam presentes nos deHelena. Que uma era, em certa medida, a continuação da outra. E que adesgraça do passado poderia ressuscitar no presente.

Não havia como evitar os pensamentos. Mas também, Caio sabia,era impossível negar os sentidos. Caso cedesse, a paixão o levaria além doprevisível e controlável. Por isso pensava.

Nessa noite, depois de responder às perguntas de Helena sobre suavida na Índia e na África, Caio recolheu-se ao seu quarto com o coraçãotumultuado. Quanto mais lutava contra os sentimentos, mais eles se for-taleciam. Eles estavam nos olhos de Helena. Eram doces e brilhantes. Erabom deter-se neles e mirá-los. Poderia passar horas assim, apenas fitan-do-os. Era uma imensidão. Era um calor. E uma vontade incontrolável demergulhar. De perder-se novamente.

Não podendo dormir, saltou pela janela e ganhou a mata. Correu,mais do que andou, pela trilha e pela encosta. E chegou ao remanso dorio onde, certa vez, tivera um sonho insólito. Deitado na areia, olhou para

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o céu. As nuvens cinzas deslizavam empurradas pelo vento, revelando, aintervalos, a lua cheia e as estrelas. Fazia frio. E Caio estava com frio.Agachado, abraçou o próprio corpo, mas o frio penetrava o tecido e o faziatiritar. Pensou em fazer uma fogueira.

Com o raiar do sol, levantou-se e, com o pé, jogou areia sobre ostições. Era hora de voltar. Antes, porém, procurou por Antônio. Era o úni-co que poderia compreendê-lo.

– Difícil dizer, respondeu-lhe o amigo.

A caminho da colônia, Caio refletia sobre a conversa que teve comAntônio. Primeiro explicou-lhe a situação. Depois, ao pedir seu conselho,ouviu do amigo um discurso que, ele próprio sabia, era o mais coerente.Só havia um caminho, e não era nesta terra. Helena nunca seria sua. Erapreciso partir.

– Fugir de novo?

– É o melhor!

Sim, era o mais acertado. De que adiantava dar início a um amorque estava fadado à desgraça? Partindo agora, Caio estaria se poupando ea Helena. E preservaria também a irmã. Caso ficasse, dificilmente conse-guiria conservar a verdade de seu passado incógnita. O amor fala por si.Não precisa de palavras. E aos poucos, gota a gota, a verdade fluiria deseus olhos. E, com ela, a amargura, o terror.

Havia, além disso, outra dúvida em sua mente. Helena era simmuito parecida com Vera, mas apenas na superfície. Tinha a mesma gra-ça e naturalidade que encantavam a todos. E a beleza. Ao fitar seus olhoscastanhos, Caio sentia a respiração acelerar-se, tal como sentia quandofitava Vera. E as sensações, o tremor, o coração batendo em ritmo diverso.E a boca seca.

Mas Helena e Vera, ainda que fossem a continuação uma da outra,eram muito distintas. Caio tinha decifrado a diferença. Vera era profunda,

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misteriosa, complexa, difícil de atravessar com os olhos. Havia uma bar-reira dentro dela. Uma contenção. Uma vontade lutando com a razão.Um medo e um desejo, o medo maior ainda que o desejo. E havia amor.Um amor que, mesmo sendo criança, e talvez por essa razão, Adão puderacontemplar em sua inteireza. E havia culpa, culpa em demasia.

Helena, por seu turno, era rasa comparada com a mãe. Caio haviapercebido. Helena era transparente. É claro que tinha seus mistérios. Semeles não haveria encanto. Mas não eram mistérios como os de Vera. Nãoeram inconfessáveis. Eram parte de seu encanto e cultivados como tal.Não tinham profundidade.

Mas, por que a dúvida? Não era esta característica, a transparência,que a tornava tão leve e desejável? Até seu corpo, mais magro que o deVera, tinha essa qualidade, essa leveza e sensualidade de quem não olhapara trás e segue sempre adiante. De quem só vê o futuro como uma rea-lização. De quem se achega sem pudores e sem olhares de través e beijacom todo o corpo e não só com a boca. E se entrega inocentemente. E seabre e diz: “veja, nada me preocupa”.

Sim, foi essa qualidade, mais do que a semelhança física com Vera,que tocou Caio em cheio. Helena estava toda nos olhos, mas não só. Erapossível enxergá-la também nos traços, nas curvas, na própria indumen-tária. Nos gestos quase adolescentes.

Quando a abraçou pela primeira vez, nos jardins da Faculdade,foram duas sensações simultâneas: Helena era a fragilidade e a força deuma ninfeta. De uma adolescente que não tem ainda uma história, umpassado, remorsos, dores, alegrias, frustrações e desejos irrealizáveis. Fra-gilidade e força. É fácil destruir e, ao mesmo tempo, é terrivelmentedestrutivo. A excitação nascia das duas e irreconciliáveis naturezas deHelena. De sua fragilidade e de seu poder de sedução.

Excitante demais. Desejável. Helena estava impressa em seus olhos.E seu perfume! Usava perfume de criança, Caio não se lembrava o nome.Mas era de criança. Um perfume suave. E quando sorria, era como se todo

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o passado, não o de Helena, que não existia, mas o de Caio, caísse noesquecimento.

Por isso a amava. Não!, não pode ser amor ainda. Não deve ser.Não posso. Por quê? Mas era. Caio sabia que era. E suspeitava que, juntocom o amor, surgiria a verdade. E com a verdade, o terror, a miséria.

Caio tinha, é claro, fome de verdade. Mas a verdade toda nunca écontada. Só a parte que interessa. Assim é a história.

O melhor mesmo seria partir. Ainda estava em tempo.

Helena estava inquieta. Foi falar com a amiga, em seu quarto. Masencontrou Joana indisposta.

– O que você tem?

– Deve ser a pressão.

Não havia lhe falado sobre a gravidez. Já passava do terceiro mês eJoana pensava o tempo todo no filho. Mas não pudera chegar ainda auma conclusão. Contar a Heitor? Seria mal interpretada. Uma aventurei-ra! Podia prever a expressão no rosto do pai. É meu? Não!, seria insuportá-vel. O melhor era tê-lo sozinha.

– Você é que me parece triste. O que foi?, perguntou a Helena emseguida.

– Não dormi bem. Sabe de Caio?

– É por causa dele?

– Temo que sim. Nunca senti isso antes.

Eram os sentidos. A noite toda. Caio vinha em sonhos. A cavalo.Encontravam-se na beira do rio. Por que o rio? Não sabia. Pensava a res-peito. Depois, entregava-se. Deitada na areia, o sol, não de inverno, aque-cia sua pele. Ouvia o canto dos passarinhos nos arvoredos. E, bem ao longe,o galope de um cavalo. Sabia quem era. Esperava por ele.

Na cama, o calor subia pela espinha e se esparramava por toda apele. Ainda era inverno, mas Helena não sentia frio. Não se recordava de

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ter sentido tais coisas antes. Era diferente. Não uma atração, que já astivera antes.

Nem mesmo uma simples paixão.

Helena tinha a mente aberta. Apaixonara-se mais de uma vez. Sem-pre soube como lidar com os sentimentos e sentidos. Tinha-os, em certamedida, sob controle; não os reprimia. Pelo contrário, permitia-se. Daí ocontrole, a ausência de conflitos. Viver as paixões era, para Helena, tãonatural quanto trocar de roupa.

Até então fora assim. Mas não agora. Era mais do que uma paixão.Ou então, era uma paixão avassaladora. Não podia controlar os senti-mentos, que transbordavam de seu corpo, fazendo o ambiente recender aum perfume doce e inebriante. Os pensamentos revoluteavam em suacabeça.

Eram mais que pensamentos. Helena sentia-se incorporada pelaimagem de Caio. Suspirava por ele. E nem sabia o porquê. Por quê? Erabelo? Sim, um deus. A imagem surgia-lhe espontânea. E a denominação.Por que um deus grego? De onde essa fantasia? Não sabia. Caio não eraexatamente um modelo de beleza.

Só sabia que não podia evitar pensar nele. O tempo todo. Na Facul-dade, enquanto o professor falava sobre questões sociais, eram os olhos deCaio que Helena enxergava em suas palavras. Era o seu porte esguio queaparecia como o líder de um movimento que ocorreu há três décadasnum recanto selvagem da América. Helena sonhava pela primeira vez.Não podia evitar.

Quando, a sós, dava curso à imaginação, via-o chegar, sempre acavalo, como nas histórias que Joana lhe contava em sua infância.

Helena, contudo, era prática. Não conseguia ficar apenas nas fan-tasias. Mesmo na infância tinha sido assim. Se desejava algo, exigia logoa sua realização. Suas vontades eram sempre feitas. Não suportava a dorde uma espera longa.

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Sim, a espera era uma dor. Quando, ainda criança, tinha que aguar-dar até o dia vinte e cinco de dezembro para receber os presentes, era umatortura. Mas, ao seu modo, evitava as torturas: exigia os presentes diasantes e brincava com eles um pouco, até perder o interesse. E estava tudoresolvido. Não ficava a angústia da espera.

Até com seus namorados era assim. Não existiam amores impossí-veis para Helena. Um homem impossível era um homem inexistente. He-lena raciocinava em termos de possibilidades. Se eram pequenas, seuinteresse caía no vazio. Se eram grandes, investia tudo de si e atingia seuobjetivo. Encantadora, sabia como se insinuar. Quando se interessava porum homem, ele invariavelmente quedava apaixonado por ela.

Por que seria diferente com Caio? Mais apaixonada do que nunca,Helena não passava um momento sem ter entre os pensamentos a ima-gem morena do homem que, mais do que todos, invadiu seu coração.Mas Caio mostrava-se praticamente indiferente...

Helena não suportava a idéia. Se era indiferença, devia deixar deser. Como? Não sabia. Não sabia como seduzir o homem que, ele sim, aseduzira. Esta a razão de sua tortura. Da angústia e do desejo que aumen-tavam proporcionalmente à indiferença do homem que a deixou em SãoPaulo e se enfiou no meio do mato.

Se fosse outro, mereceria seu desprezo. Mas Caio?! Não, ela nãoconseguia desprezá-lo. Estava maravilhada. Ele era diferente, um homemindecifrável. O mistério envolvia seu semblante.

No fundo, era como se Helena tivesse esperado a vida toda por umhomem assim. Por um homem que não se deixava seduzir com facilida-de. Um homem que, com apenas um olhar, atravessava sua alma.

Os olhos de Caio, pressionando diretamente os seus, a desnuda-vam, revelando-a como realmente era. Ainda se lembrava do dia em queforam almoçar. Enquanto sorvia uma taça de vinho com um cigarro en-tre os dedos, Caio a fitava diretamente, sem dizer palavra. Helena sentiu-se nua. E gostou.

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Era bom estar nua.

Na verdade, por mais espontânea que se mostrasse habitualmente,Helena tinha seus segredos. Não eram segredos inconfessáveis, eram ospoucos que todo ser humano conserva como um ponto obscuro que nãodeve ser revelado. Um ponto de interrogação que, aos poucos, bem deva-garinho, vamos revelando a quem amamos. Mas Helena não os revelavajamais. Tinha-o como uma retaguarda. Um ponto de apoio, no qual mer-gulhava quando estava cansada, quando as aventuras e prazeres rotinei-ros a esgotavam.

Quando foi à fazenda meses antes, em companhia de Joana, estavaem busca de seu ponto obscuro. Sentia-se cansada, entediada comFernando inclusive. Ele era muito igual aos demais, eis o problema.Fernando não tinha um ponto de interrogação. Tinha sim seus segredos,como todos. Mas faltava-lhe o mistério, a magia. Sem o mistério, a con-quista se torna fácil demais e o interesse decresce proporcionalmente. Nafazenda, a sós consigo mesma, Helena refletiu. E mergulhou em seu pró-prio ponto obscuro.

Dizer um ponto, na verdade, não passa de uma figura, e das menosapropriadas. Era mais que um ponto, era um intricado novelo de sensa-ções, lembranças e reflexões. Era uma força que aumentava à medidaque Helena se olhava e percebia que seu corpo, incluindo a alma, era algocomplexo demais e não devia se deixar conquistar.

Helena detestava ser conquistada. Seu prazer era conquistar. Tersob seu encanto, e não estar sob o encanto de outrem. E Fernando, maisdo que todos, era conquistável. Então, por que se cansou tão rapidamente?

Helena meditou por dias. E a cada dia descobria uma coisa nova.Ficava a maior parte do tempo sentada na varanda, olhando o pomar. Ospassarinhos cantavam. E Helena, pouco a pouco, foi descobrindo que aconquista tem dois lados. E que a sua auto-suficiência, antes alimentada,começava a doer-lhe. A cansar-lhe.

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Era sempre ela a dona das situações. Cada um dos homens queamou (amou?) havia caído facilmente sob seus encantos, como frutosmaduros. Se houve a angústia da dúvida, da espera, não fora sua, mas dooutro.

Era bom não se angustiar. Helena sempre detestou esperas longas.

Mas algo mudava em seu íntimo e pela primeira vez em sua vida.Pensava a respeito. As realizações, de tão fáceis, tornavam-se desinteres-santes. Não havia angústia, e isso era bom. Mas surgia o tédio. O tédio desaber que vai ser tudo igual, que cada uma de suas aventuras será, naverdade, a repetição das anteriores.

Pela primeira vez em sua vida Helena desejou o desconhecido. Nãosaber o que será, ou se vai ser, e sentir todos os sentimentos, incluindo aansiedade, era tão novo para Helena que, a princípio, não soube lidarcom a coisa.

Desejou por isso na fazenda – não um desejo inconsciente, maspensado –, e quando Caio surgiu em sua vida, já não sabia ao certo se eraaprazível.

Lá estava ele, com o cigarro entre os dedos, fitando-a através dosolhos até as entranhas. Desnudando-a. Helena estava certa, Caio a viatransparente, sem segredos. Mas Helena, ela própria, não conseguiadesnudá-lo. Por quê? Começou assim a dúvida. Desejou ser a presa, de-pois de ser toda a vida o predador. E no momento em que se sentiu esprei-tada por um olhar de caçador, temeu.

Sentimentos complexos, antagônicos e angustiantes, era isso o quehavia desejado. Um homem singular, especial. E quando tudo aconteceu,Helena perdeu o chão. E tremeu.

Mas ele não era tudo o que aspirava? Sim, é claro que era. Umpouco mais de brilho e calor em uma vida que se esvaziava. Mas era in-tenso demais. Helena desejou sim o desconhecido e o incontrolável, masnão estava preparada para ele.

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Quando, pela segunda vez, foi à fazenda, estava disposta a reajus-tar-se ao seu antigo modelo de “eu”. Pela primeira vez Helena sofria deverdade. De ansiedade, de angústia. E não gostou.

Havia sonhado um tempo e achou seu sonho bom. Mas apenasenquanto eram sonhos. Quando se viu realmente sob os pés do caçador,já não sabia se o que havia desejado era melhor do que o tédio e o controlede antes.

Era como se deparar com uma paisagem maravilhosa, nunca vis-ta, e sentir os olhos arderem ao contemplá-la. Uma ardência tão intensaque nos faz chorar. E já não podemos ver direito. Tudo se anuvia.

Helena queria ver de novo com clareza. Precisava.

– Pensei em convidá-la, disse Helena, depois de um breve intervalode tempo. – Vou ao rio.

Joana sorriu. Disse-lhe que preferia repousar, que estava cansada.

– Vera adorava um trecho, descendo a encosta logo depois do pomar.

– Então, até mais!

O céu estava claro. O vento tinha levado as nuvens e o tempoamornou. A primavera aproximava-se.

Helena andava com cautela. Do topo da encosta, avistou o reman-so na curva do rio. As árvores encobriam as margens. Ao chegar, despiu-see mergulhou na água gelada. Sentiu-se melhor.

Depois, para se aquecer, sentou-se na areia, num ponto iluminadopelo sol. Tiritava de frio.

Notou que alguém estivera recentemente no local. Havia cinzas defogueira. Encolhendo-se, esperou que o corpo secasse antes de se vestir.Mas veio o sono. E Helena se estendeu na areia e adormeceu.

No sonho, o cavaleiro apeou e acendeu uma fogueira bem ao seulado, para aquecê-la. Sorriram-se. Helena levantou-se e, segurando as mãosfortes do homem, respirou junto à sua face. O tremor comunicou-se de

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um corpo ao outro. E beijaram-se longamente. Despindo-se, o homem atrouxe para a terra e seus corpos se apertaram. Havia calor demais. E tudoà sua volta perdeu os contornos.

Só havia o homem que ela segurava entre as pernas e que a beijavasussurrando palavras de amor. E quando ela própria disse que o amava,ao abrir os olhos não era Caio que Helena tinha diante de si. Também nãoera Fernando ou outro homem com quem estivera. Era um menino. Ummenino que ela não conhecia. Que nunca tinha visto em sua vida. Ummenino que a olhava de um modo que Helena não podia suportar. Eraum menino faminto.

– Por quê?

Helena estava enojada. Juntando suas forças, empurrou o meninopara longe. Ele ficou em pé, muito próximo. Helena, deitada ainda, viu aslágrimas nos seus olhos. Mas não teve vontade de consolá-lo. E o mandouembora para sempre. Depois, tudo caiu no vazio.

Helena ainda dormia quando um vulto aproximou-se em silênciode seu corpo nu. Notou as roupas amontoadas sobre uma rocha. Depois,sentando-se bem próximo, contemplou com atenção a beleza da mulherpor quem tinha se apaixonado. E sua decisão, meditada durante horas edias, foi embora com as águas do rio.

– Você confia mesmo nele?

Heitor ouvia o amigo com atenção. Já havia afirmado a Fernandoque Caio era de confiança. Mas Fernando não se dava por convencido.

– Tenho conhecidos no Ministério. Solicitei-lhes que inquirissemjunto às embaixadas da África e da Índia.

– E?

– Ainda não obtive resposta. Estou aguardando.

– Você está com ciúmes!

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De fato. Fernando tinha ciúmes. Percebera o interesse de Helenapelo estrangeiro e não aceitava passivamente a derrota. Lutaria. Quandosoube da história de Caio, contada por Heitor, considerou-a absurda. Ha-via qualquer coisa que não se encaixava.

– Só vocês não percebem.

Dias depois recebeu um telegrama de Nova Dehli. Segundo seusinformantes, não havia nenhum registro sobre o homem. Era como se elenão existisse. Fernando foi ao encontro de Heitor e comunicou sua deci-são. No dia seguinte partiu rumo ao oriente.

Heitor matutava.

Realmente Caio era estranho. Mas, e daí? Era o jeito dele. Reserva-do demais? É claro, mas isso não invalidava o fato de que havia lutado aoseu lado. Que o protegera. Que mostrara-se honesto e corajoso.

É claro que Heitor também sentiu uma ponta de ciúme quando viuJoana indo ao hotel de Caio. Mas não era o que tinha pensado. Heitorsabia. Um absurdo. No entanto, Joana havia desmaiado quando o viupela primeira vez. O que significava? Era como se ela já o conhecesse.

Fantasia! Heitor tinha notado o interesse de Helena por seu sócio.Provavelmente Joana foi sondá-lo, a pedido da irmã. Foi isso. E quanto aodesmaio? A versão de Joana era lógica. Queda de pressão por causa dabebida.

Não existia outra explicação.

Caio voltou para casa antes de Helena. Foi ao encontro da irmã ecomunicou sua decisão. Não partiria tão já. Esperaria até o nascimentodo sobrinho.

– É só por isso?

– O que mais?

Joana sorriu. Percebeu nos olhos evasivos do irmão o mesmo bri-lho que havia notado nos de Helena.

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– É por causa dela, não é?– Também.

A noite aproximava-se, quando Helena despertou. Não se lembra-va do sonho inteiro. Apenas do abraço carinhoso de Caio. De seus beijos. Edo estranho torpor que tomou conta de seus membros. Enquanto se ves-tia, vasculhou o terreno com os olhos. O sonho tinha sido vívido demais.

Mais tarde, em seu quarto, Helena não conseguia conciliar o sono.Revirava-se na cama. Mas não havia incômodo. Avistara-se com Caio navaranda e, ao vê-lo sorrir-lhe, sentiu que se aproximava o momento emque se consumariam seus desejos.

Não era inevitável?Desde que o conheceu, esta foi a primeira vez que Helena sentiu

uma possibilidade real. No seu sorriso franco, mas um pouco pela meta-de, Helena notou a timidez natural de quem não consegue disfarçar ointeresse.

Os pensamentos corriam soltos.Estiveram tão pouco tempo juntos e a sós! Mesmo em São Paulo,

foram dois ou três encontros. E, depois, ele se afastou. Seu afastamentonão seria um indício de seu interesse? Não seria uma fuga ao inevitável?Mas, por quê?

Helena não precisava entender a razão. Bastava-lhe a certeza deque era assim. A certeza da recíproca para a paixão que a consumia. He-lena tinha insônia, pela primeira vez na vida. Mas era uma insônia agra-dável. Sonhava acordada em sua insônia. E enfeitava a fantasia ao seumodo:

Ao longe, o som dos cascos do cavalo. Depois, os passos largos erápidos do homem alto. Som de botas no assoalho da sala. Helena nãopodia se conter. Antes que o ciclo da fantasia findasse, já estava nua.

Não controlava a fantasia. Antes, era a imaginação que, por si só,tomava conta e tecia os sentidos e os atos seguintes. Não é que Helena se

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deixasse imaginar. Mesmo se quisesse, não tinha forças para deter o volu-me de imagens, odores, ruídos e toques que fluíam através dos poros desua pele. Sentia a pele arder. E na escuridão do quarto, a figura de Caiodestacava-se luminosa, ao mesmo tempo estática e em movimento, sem-pre chegando.

Podia, concentrando-se, deter-se nos detalhes de seu perfil. No na-riz reto e na testa alta, nos cabelos em cachos sobre os ombros, no dorsomagro e musculoso, nos lábios finos e nos olhos azuis. Os olhos. Sim,eram os olhos que a cativavam. Tinham luz própria, eram meigos, quaseinfantis. E, ainda assim, impenetráveis.

Eram os olhos que a mantinham hipnotizada, imóvel como umapresa ante o predador. Não podia desvencilhar-se deles e também nãoqueria.

A brisa fresca entrou pelas frestas da veneziana, contrastando coma ardência de sua pele. Era um misto de calor e arrepio. Helena afagava-se em sua alma, nos pensamentos, nos sentidos que fortalecia com a ima-ginação. Era quase um jogo. Uma espera, adiada até que a porta, com umestrondo, se abria de par em par.

Lá estava ele, em pé, pronto a se atirar sobre a presa. A luz dos olhosazuis, terríveis, penetrava suas pupilas como um punhal. E Helena levan-tava-se sobre os joelhos. De fato. Equilibrava-se de joelhos, com os braçosabertos.

Mas ele não entrava! Por quê? Helena em brasas. Soluçava.Depois, exaurida, estendia-se no leito e procurava o sono que não

vinha. Vinham o ruído dos cascos, relinchos, passos rápidos na sala. Areedição. O corpo moreno de Caio dobrando-se sobre o seu. O contato daspeles. Os beijos. A angústia. Tudo misturado. A ânsia. A dor e o prazer. Odia seguinte que não vem.

Por que demora?O sol brotando lá longe, como promessa. Entrando pelas frestas da

persiana. O sono que não houve. Era de manhã e Helena não saiu doquarto. Pediu o café e logo depois adormeceu. Estava esgotada.

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Lembranças. Eram elas que lhe falavam ao ouvido. Lembrançastão próximas e incrivelmente distantes. A distância do tempo. A mesmaárvore. A despedida. Caio lembrava-se com perfeição da face de Vera en-volta pelo entardecer. Da cor azulada do céu de um lado e negra do outro.Do seu Céu. Era o mesmo. Por que se tornou tão distante? Por que já nãodirigia seus passos na escuridão?

Caio descobriu, nesse momento, o motivo pelo qual tinha voltado.Não era por Joana, ou por causa de uma réstia de memória. Não era se-quer para reviver sua história ou tentar reconstituí-la em um móduloverdadeiro. Era pela unidade que havia se fragmentado num entardecer.Foi numa tarde assim, com o céu dividido em dois, que Adão, pela primei-ra vez, declarou seu amor a Vera.

Era o início da tragédia que o menino não podia prever.

Mas agora, refletindo sobre o passado, Caio reconheceu o erro: es-tava na proximidade entre o amor e a culpa. Na verdade, tudo não passoude um equívoco. Vera estivera equivocada. Por amor, instilou em sua almaa divisão da culpa, do remorso do não vivido. E fendeu sua alma em duas.O resto era inevitável. Anos e anos de sofrimento.

Havia, é claro, a morte de Abel. Mas a morte era parte do drama,como lhe dissera Rabindranath: os deuses jogam com os homens. Às ve-zes, disfarçados de homens, forçam as mãos. E tudo se desenrola: nasci-mento e morte, dor e alegria, amor e ódio.

Como salvar-se?

– Não há salvação, meu amigo.

Era Rabindranath.

– Na vida só há viver. De preferência sem culpas.

Mas não foi fácil. De noite, o rosto gordo e maldoso do generalaparecia-lhe no quarto. Lutavam. O corpo despencava como uma árvorevelha serrada na base. E Adão libertava-se. Mas na noite seguinte e nasdemais o drama se repetia. E o rosto de Vera. E seu corpo macio. E Joana

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estirada na cama, sem vida. E novamente o rosto odiento de Abel. Sansara.Não havia como se libertar realmente.

Sim, havia um meio.

Quando Rabindranath partiu e seu corpo foi cremado às margensdo Ganges, Caio embrenhou-se na mata e meditou dias seguidos. Nãocomia e pouco bebia. Sentado à moda de Buda, refletiu sobre o significa-do real do drama. Se era real. Mas não era! Era história, memória, e haviaos deuses. Eram os deuses os condutores das almas? Ou eram as almas ascondutoras dos deuses? Caio não podia saber. Não importava saber.

O que importava era entender que a libertação, que Rabindranathconsiderava impossível, exigia um sacrifício: a extinção do drama.

Caio, porém, relutava. Era cedo demais para ele. Tinha uma vida aviver. Se devia abdicar de algo, que fosse dos deuses. E da culpa que elesajudaram a criar.

Sob a árvore que para Adão significou a despedida, Caio retomouos fios que faltavam. O drama estava por se resolver. Mas nada estavaconcluído. Ao abdicar dos deuses e da culpa, Caio também abriu mão doCéu e ficou por sua própria conta. Sentia-se, por assim dizer, dono de seudestino. As rédeas lhe pertenciam. Tomara-as à força. E fosse qual fosse odesenrolar da história, ele era, pela primeira vez, o único responsável porseus atos. Pelo menos era o que pensava.

E Caio pensava. Já não em Vera, mas em Helena. Sim, pois Helenaera a ausência de culpas. Era apenas a vida.

A consumação é o ato mais esperado. O caminho é suave, mas sóna aparência.

– Um banquete?

– Nem tanto, um jantar.

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Joana preparou tudo. Estava feliz. Tinha meditado o seu quinhão eresolveu-se. Era a sua vez. Até então sua vida não havia sido uma farsa?Era hora de vivê-la integralmente, e por si. Pensava no filho que teria.Seria apenas seu. Não importava os outros.

– O que vamos comemorar?

– A vida. Não é o bastante?

Sem dúvida. A vida era o bastante.

Caio apenas ouvia, do outro lado do fogão a lenha. Ouvia o diálo-go das amigas. E, por vezes, seus olhos cruzavam com os de Helena. Olhosque sorriam.

Joana estava consciente. Mas não se preocupava mais. Lembrava-se de suas conversas com Vera:

– É tudo inevitável.

Lutamos contra os sentimentos e os desejos. No final, é uma luta vã.

– E se não lutássemos?

Impossível. Há sempre mais de um dentro de nós. Parte quer e par-te não quer. Ponderamos o tempo todo.

– E nem sempre vence o melhor de nós.

Sim, Joana estava convencida. Era hora de deixar o mundo girarpor sua própria conta. Aliás, não foi sempre assim? Vitoriosos e derrota-dos: no final eram sempre os mesmos. Mudavam os nomes, a partida, ageografia da peleja. O resto era igual. Há sempre um derrotado no final.

Mas não era à morte que Joana brindava com sua taça de vinho.Caio sabia a razão. Era à vida. Um brotinho que crescia no seu ventre eque traria alegrias.

Quando Helena pôs a mesa, reservou a cabeceira para a amiga.Ficaram, ela e Caio, defronte um do outro.

– Comíamos no chão, disse Caio, respondendo à pergunta de Hele-na. – Com as mãos.

– Você não é indiano!, disse ela.

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– Sou de Goa.

Joana estava atenta. Mas o irmão tinha as respostas.

– Fui adotado ainda menino.

A intervalos, os olhos de Helena procuravam os de Caio. Interessa-va-se sim pela história que ele contava. Ouvia atentamente a descriçãodos costumes em que fora criado. Mas, ao mesmo tempo, procurava, nãoem suas palavras, mas no brilho de seus olhos, os indícios que adivinhouna timidez de seu sorriso.

Ele a queria? Por vezes Helena tinha certeza. Mas eram momentosfugidios. Ao brilho de desejo seguia-se invariavelmente um olhar plácidoe indiferente, de esfinge, que demorava a se iluminar novamente. Por ummomento Helena suspeitou que era um jogo. Mas só por um momento.Caio era sério demais para jogar. Brincava, é claro, com as palavras. Eracapaz de rir de uma piada e até de contar outras. Mas não jogava.

– Você já amou alguém?

Caio segurava uma taça. Foi um instante muito breve de interrup-ção do trajeto entre a mesa e a boca, mas Helena estava atenta.

Controlando-se, Caio respondeu que sim. Que sabia o que era oamor.

– E você, sabe o que é amar?

Helena sorriu, voltando os olhos na direção de Joana.

– Todos sabemos, não é mesmo?

Joana havia tomado a palavra. Em seguida, piscando para a ami-ga, disse que precisava se recolher. Sentia-se cansada.

– Ela anda esquisita, disse Helena, já a sós com Caio.

– Sabe por quê?

– Um pouco por causa de Heitor. É o que eu acho.

– Não estão juntos?

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Estar juntos não era a palavra. Heitor era volúvel. Seus interessesmudavam. Não que fosse insensível ou desonesto. Mas não se deixavaprender. Não gostava de compromissos.

Foi, para Helena, mais do que uma surpresa, um choque ver oirmão envolvido seriamente com os negócios. Não era do seu feitio.

– Talvez seja por sua causa, disse a Caio.

– Como assim?

– Heitor sempre foi displicente. Depois de conhecê-lo, mudou radi-calmente.

Para Caio, a mudança em Heitor era apenas no tocante aos seusinteresses. Ele era como Helena: transparente. Não precisava sondá-lo parasaber o que se passava em seu coração. Era sempre o mesmo Heitor. ECaio sabia: Heitor nunca amou Joana. Fora um brinquedo, assim comoos negócios o eram agora.

Desculpando-se, Caio disse que também se recolheria. Que preci-sava descansar. No dia seguinte, tinha um compromisso pela manhã.

Foi um choque. Helena não soube o que dizer. Por quê? Não enten-deu. Na sua fantasia, tão logo ficassem sozinhos o pano cairia. E tudoseria belo e perfeito. Caio, porém, apenas despediu-se com um “boa-noite”.

– Resolvi ficar.

Antônio ponderava. Não tinha mais os deuses para consultar. Comum copo de cachaça na mão, parecia distraído com a algazarra dasmaritacas nos arvoredos. Elas anunciavam a primavera que se aproxima-va. Dois homens curvados, com as enxadas apoiadas no balcão, tomaramum trago de uma só vez. Era de manhã. Em seguida partiriam para alida.

– Não sei. Tenho maus pressentimentos.

– Não posso deixá-la.

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Realmente. Caio não podia partir. Não queria.

– Não é um capricho, você sabe.

Antônio encarou o amigo. Depois, batendo de leve em seu ombro,disse-lhe que não era para pedir um conselho que ele o procurou.

– Também tenho meus pressentimentos, respondeu-lhe Caio. –Partiremos para São Paulo amanhã.

Antônio entendeu. Caio veio se despedir. Abraçados, seguiram a pépela última vez até o rio. Antônio, mais do que Caio, sabia que era a últi-ma vez. E sentiu um nó na garganta. Ainda via um menino no homemforte e bonito que segurava seu braço. E chorou. Era o seu menino quepartia.

– Por que chora?

– Sinto que não o verei mais.

– Não diga isso.

Era a verdade.

Passaram o dia na beira do rio. Um dia encantador. Quando sedespediram, pela tarde, e Antônio viu o menino desaparecer no meio damata, sentiu pela última vez que um deus lhe falava. Era o Céu, Olorum.Dizia-lhe, simplesmente, que estava tudo bem. Era a sua vontade.

Dias depois Antônio foi encontrado morto em sua cama. Tinha umsorriso nos lábios.

Primeiro Helena ficou irritada. Sentada na beira da cama, pensavanuma maneira de fazê-lo chorar. Mas não era ódio o que sentia. Era des-peito. Por que a evitava? Helena pensava. Ele a evitava, não havia dúvida.Mas, ao mesmo tempo, Helena sabia que ele a queria.

Meus Deus!

Já não era nem ódio nem despeito. Era uma ânsia e uma dúvida.Um desejo de se reconciliar com seu próprio “eu”. De ser novamente a

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Helena de antes: altiva, um pouco desdenhosa, senhora de si. Mas nãoconseguia. Era difícil aceitar, mas o fato é que Helena era outra.

Nessa noite, ao contrário da anterior, pegou logo no sono. O vinho,mais do que os pensamentos, foi o seu aliado. E fê-la sonhar.

Ao acordar, na manhã seguinte, soube que Caio havia saído. Re-solveu esperá-lo. Esperaria o dia inteiro e à noite se fosse preciso. Esperarpassou a ser, para Helena, um exercício, uma disciplina. Mais cedo oumais tarde Caio teria que voltar. E Helena consultaria seus olhos pela úl-tima vez.

Era tudo ou nada.

Insuportável é a dúvida! Helena ainda era a mulher prática de an-tes. Mudada, mas racional. Preferia um “não” direto à tortura dos últi-mos dias. Um “não”? Mentira. Mais insuportável ainda que a dúvida é odesdém. A indiferença. O olhar terrivelmente meigo e igual para todos.

A manhã toda pensando. Depois, cansada de esperar, enfiou-se noquarto. Só de noitinha, pouco antes do jantar, percebeu que Caio haviavoltado.

Encontraram-se na varanda. Caio fumava um cigarro de palha.Estava sentado no chão, com as costas apoiadas no pilar de madeira. Aovê-la, levantou-se e foi em sua direção.

– Senti sua falta, disse, fitando-a nos olhos. Helena contraiu osmúsculos das costas, projetando a cabeça para frente. Exibia um olharinfantil, pedinte. E as pernas tremeram-lhe.

Os olhos de Caio estavam incrivelmente azuis.

– Não tinha notado, disse ela. – Seus olhos mudam de cor.

– É por causa da luz.

– Mas já é noite. Que eu saiba a pupila cresce no escuro.

– Às vezes vem de dentro.

Helena sorriu. Notou um galanteio nas maneiras de Caio. E o acei-tou com naturalidade. Somando-se ao tremor das pernas, um calor su-

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biu-lhe pelo ventre até o pescoço. E Helena sentiu-se novamente senhorade si.

– Preciso de um banho, disse, ajeitando os cabelos com a mão.

Pouco depois, ao voltar, não encontrou Caio na varanda. Procuroupela casa e, não o achando, foi até Joana.

– Disse apenas que ia ao rio, respondeu-lhe a amiga.

– A essa hora?

Joana soergueu os ombros.

Helena não hesitou. Fechou os olhos para a confusão em sua men-te, para as dúvidas e medos, e correu até o remanso onde havia adormeci-do. Sabia que Caio estava lá. Podia sentir. Já descia pela encosta quandoavistou a fogueira. Era ele, Helena estava certa. De pé, olhava para aschamas. Parecia hipnotizado. Nem notou a sua aproximação.

– Esteve aqui anteontem?

Caio levantou os olhos, aparentando surpresa. Em seguida sorriu-lhe.

– Seus olhos agora são negros, continuou Helena, a um palmo dedistância. Caio sentiu sua respiração. Era morna e úmida.

– Adoro seu perfume.

Suas bocas tocaram-se de leve. O hálito de Helena era doce e seuslábios tremiam um pouco. De mãos entrelaçadas, apertaram-se com for-ça, sem fechar os olhos. A luz das chamas brincavam no espelho da íris.Pareceu-lhes que o fogo vinha de dentro. Não podiam cerrar as pálpebras.

– Por que o amo?, disse Helena, confusa com as próprias palavras.

– Por que pergunta?

– Não o conheço realmente.

Caio segurava a cabeça de Helena entre as mãos. Afagava-lhe oscabelos e beijava-lhe as pálpebras.

– Também a amo.

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Helena sorriu de alegria. Não esperava ouvir tão cedo.

Em seguida, afastando-se um passo, Caio vasculhou seu corpo como olhar. Helena sorriu, um pouco encabulada.

– O que procura?

– O mesmo que vi ontem à tarde. Estive aqui enquanto dormia.

– E me viu nua?!

Caio não respondeu de imediato. Apertando o corpo de Helena con-tra o seu, sussurrou em seu ouvido que nunca vira mulher mais bela.

– Sou sua!, confessou-lhe Helena, também num sussurro.

E quando seus corpos se juntaram, tal como nos sonhos de Helena,todo o movimento ao redor se deteve. Não havia mais tumulto. Apenas osom da brisa nas folhagens.

Na imensidão da floresta, os dois corpos eram apenas um, aman-do-se sob a luz da fogueira. Estavam incógnitos e invisíveis para o mun-do, salvo para os olhos indiferentes que os contemplavam do alto.

Pela primeira vez em sua vida Caio se sentia inteiro. Não como nosmomentos fugidios de antes, mas o tempo todo. Helena venerava-o. Meudeus grego!

Ele estava certo de seu amor. E ela também.

O passado estava lá, mas Caio não olhava para trás. Não queria enão podia. Vivia o presente e, às vezes, deixava-se pensar no futuro. Comoseria? Era melhor não pensar. O presente era o bastante. E Helena era opresente imediato. Ternura, paixão, alegria. O esquecimento.

Alegria e ternura era tê-la aninhada nos braços, frágil como umacriança. E fitar o seu olhar pedinte, de quem realmente venera. Ternura epaixão. Era uma mulher forte, que o envolvia e colhia seus beijos comardor. Uma sede insaciável, uma espera, um tormento, misto de dor eêxtase. A mulher.

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E Caio novamente inteiro, como na infância. Sem culpa, sem medo,entregue.

Juraram-se amor eterno. Era parte do ritual. Fidelidade e compreen-são mútuas. Não haveria mentiras, enganos e sorrisos a contragosto. Atransparência seria a regra. Helena era transparente para Caio. E exigia amesma transparência de Caio. Era uma troca. Não haveria espaço paradúvidas e traições.

– Queria ser virgem de novo, disse-lhe Helena, em São Paulo. Es-tavam sentados num banco de concreto, atrás de um grande edifício envi-draçado, na Paulista.

– Por quê?

– Nenhum foi importante. Queria ser inteiramente sua.

– Mas você é.

– Eu sei, parece bobagem, mas eu não queria ter conhecido outro.

Era uma declaração.

A virgindade não significava nada e Helena estava cônscia deque Caio não se importava. Mas havia em sua fala, na sinceridade desuas palavras, um desejo verdadeiro de pertencer-lhe inteiramente. Sig-nificava desconsiderar todas as paixões anteriores e recuperar a inocên-cia que deveria ser velada pelo homem que escolheu como seu guia.Era mais ou menos isso o que Helena desejava. Um guia. Uma luz euma força que a levasse, que a modelasse como Deus havia modeladoAdão: puro e virginal.

Helena não via mais ninguém na sua frente. Se andava pelas ruas,a pé ou de carro, era o rosto de Caio que a guiava. Se estudava, no meiodas palavras e das coisas eram os olhos azuis de Caio que a ensinavam. Ese não podiam estar juntos, era a saudade de Caio.

Seu amor era tão grande, que um dia, ao vê-lo muito próximo deJoana, Helena irritou-se. Sentiu uma ferroada no peito. Ciúme. A princí-pio pequeno, mas aos poucos quase tão grande quanto seu amor. Queria-

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o inteiro, não uma parte. Seus olhos deveriam estar sempre voltados paraela, para ninguém e nada mais.

Se Caio tinha seus negócios, devia vê-la misturada entre os núme-ros, tal como ela própria o via em tudo o que olhava.

Era um amor selvagem.

Quando estavam a sós, Helena o recolhia entre os braços e pernas esó o largava depois de esgotados. Era preciso drenar a energia de um cor-po para o outro, misturando-se e confundindo-se as paixões, até não ha-ver mais diferenças.

O amor era uma espécie de morte. A morte da individualidade e aconstrução de um novo ser, híbrido, que ao invés de dialogar, monologava.Quando se fitavam nos olhos, por horas, as diferenças diluíam-se. Nãohavia Helena ou Caio. Nem gostos contrários, hábitos diversos, históriapessoal. Era uma coisa só. E para que essa coisa permanecesse, as diferen-ças, que surgiam quando estavam separados, tinham de ser suprimidas.

Helena vigiava os passos de Caio. Sabia onde estava e com quem,sempre que não estavam juntos. E estavam juntos quase o tempo todo.

Era o medo. Uma coisa nova para Helena, o medo de perder o amor.Tivera ciúme antes? Não, jamais nessa intensidade. Era como se todo ointeresse de Caio tivesse que estar voltado na sua direção. Do contrário elenão a amaria o suficiente. E o suficiente era o tanto que ela própria oamava.

Um amor estranho, selvagem e possessivo. Selvagem por causa dapaixão. Só tinha olhos para ele.

Sonhava, quando não estavam juntos, que se amavam. Sentia-sepenetrada só de ouvir suas palavras ao telefone: a barriga tremia e a ener-gia subia pela espinha, desde a base até a cabeça. Excitada, ao deitar-senão conseguia dormir. Sentia-o sobre seu corpo, como um peso. Um pesoagradável, que não deveria ir embora. Sentia-o em seu ventre, nos seios,na boca. Tinha o seu gosto na língua o tempo todo. E o seu cheiro. Caionão usava perfume. Era a pele, o cheiro de sua pele.

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Quando pegava no sono, era Caio que a visitava em seus sonhos.Não se cansava de amá-lo. Queria-o tanto, que se imaginava pegada aoseu corpo. Envolvida o tempo todo por seus braços. Até a morte.

Fugia da escola para encontrá-lo. Apanhava-o às vezes de surpre-sa. E se atirava em seus braços, despindo-o com furor.

Forçando-o contra a cama, cobria-o com seu corpo e cercava-ocom suas pernas, pressionando-o, forçando-o, até sentir que ele morria.Só então se apaziguava. E podiam conversar, com naturalidade, sobre ocotidiano de suas vidas.

Nessas palavras surgia a possessividade.

– Vamos casar!

– Devemos?

– Quem ama se quer o tempo todo.

Helena filosofava sobre a questão. Tinha suas idéias e creditava aelas um valor universal. Se havia amor, se não era falso e não existiamdúvidas, o rumo era certo e inalterável: viver juntos, ter filhos, construirum futuro. Idéias novas! Não as tivera antes.

– Por que resiste?

– Mas não resisto. Só acho que é cedo.

Era um mês, mas parecia um ano. Um mês durante o qual a barri-ga de Joana cresceu e mostrou-se. Um filho? Sim, um filho. Não importaquem é o pai, disse à amiga. Helena não se importava. Não tinha tempo.Sabia de quem era. Que Heitor e Joana se entendessem!

Helena só se importava com o amor de Caio. Quanto mais ele oevidenciava, mais Helena exigia. Passou a pressioná-lo, a contestar suasexplicações para a recusa em se casarem. Era um mês. Para Helena, eraum ano.

No segundo mês a coisa explodiu.

Foi o inferno. Caio não sabia o que fazer. Não estava preparado.Amava Helena como nunca, nem mesmo na adolescência, amara alguém.

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Amava-a ao ponto de entender sua louca possessividade. Mas não tinhacomo solucionar o problema. Era racional demais para se deixar arrastarpela loucura da menina.

Sabia onde tudo acabaria. Não só por causa de seu passado. Já ha-via se reconciliado com ele, negando-o. Não tinha mudado de nome? Poisbem, Caio não era Adão. E mesmo se fosse, mesmo se tudo não passasse deum verniz, Adão era inocente. Tinha que ser. Se cometeu um ato além, foipor força da inocência e não do saber. Agiu movido pelo impulso, não pelarazão. Agora, ao contrário, sabedor de sua vida, Caio não podia deixar-selevar. Helena que o perdoasse.

– Não vamos nos casar tão já, ponderou.

– Você não me ama!

E não adiantava explicar. As razões, para quem já tem as suas, nãopassam de balela. Mas Caio esmerava-se. Explicava a vida. Dizia que He-lena era jovem. Que era preciso ter tudo muito bem definido. Que eraarriscado, assim tão cedo. Que ela ou ele poderiam se arrepender no fu-turo. Que o amor exigia liberdade. Que a possessividade era o contrário:avidez e ciúme. Não era solidariedade. Não era bem-querer. Era apenasegoísmo. E que o melhor era se amarem sem amarras.

Se o amor se conservasse assim, seria verdadeiro. Se soçobrasse, erafalso. O casamento não passava de amarras que substituíam o sentimentogenuíno, que não precisa de algemas. Para quê alianças?

– É uma prova de amor.

– O amor não necessita de provas.

Helena não se convencia. Desconfiava. Via, na transparência doamante, intenções oblíquas. Pensava, às vezes, que não era mais que umpassatempo para Caio. Mais um entre tantos. No terceiro mês, ou terceiroano, foi o auge do inferno. Perseguição. Controle. Repressão. Brigas.

E Caio cedia. Cedia aos poucos, mas cedia. Ainda não aceitava in-teiramente os desejos de Helena, mas já parava para ouvi-la. Já não dizia

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que o amor é algo universal, que se esparrama dos olhos para todos oslados, encobrindo toda a criação. Ou que o amor dimana do coração detodos os homens e que não importa o objeto – é sempre espontâneo e umbem-querer, uma entrega, ausência de egoísmo. E que a diferença entre oamor natural, espontâneo, e o amor por uma mulher, é a paixão, facil-mente conciliáveis.

Passou a aceitar, bem aos poucos, que o amor é realmente no sin-gular. Mesmo contraditória, passou a encarar a idéia como lógica. É ver-dade, a espécie prossegue devido ao amor individual! Não é o amor portodos, e principalmente pelos mais fracos, que faz o mundo girar. É oamor egoísta que faz o guerreiro sair a campo, pelejar, matar e saquear.

Era este o amor que Helena exigia. E pareceu a Caio que haviaqualquer coisa de racional nessa expressão amorosa.

E quando passou a aceitar a idéia inteiramente, notou que amavaHelena de um modo diverso. De um modo mais calmo, de quem depôs asarmas. Finalmente, a paixão estava sob controle. Podia manobrá-la aoseu dispor, pois havia mais pela frente. Passou a existir um futuro que, aospoucos, Helena construiu na forma de uma casa. Uma casa na praia?Sim, na praia. Um filho ou dois? Decidiriam mais adiante.

Finalmente Helena estava totalmente satisfeita e feliz. Os arrouboscessaram. Podia dormir sossegada. Podia sonhar com a casa, os filhos, oesposo. E saber que o amor de Caio, mesmo quando ele estava ausente,encontrava-se guardado em lugar seguro. As preocupações cessaram. Caiose tornava transparente e decifrável. Já não era uma esfinge. E o mistério,aos poucos, foi dando lugar ao saber.

Estavam no quarto mês e era como se fosse o quarto ano.

No quinto mês, pouco antes de Joana dar à luz um menino, tudomudou. Mas não era o quinto ano? Devia ser. Caio estava entregue. Pelaprimeira vez em sua vida tinha um projeto. Uma casa no papel. E móveis.Até os filhos já corriam pelo quintal. Era a paz. Tinha invadido seu cora-

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ção de tal forma que podia se contemplar no futuro, bem velhinho, demãos dadas com sua amada.

Sentavam-se na varanda e contemplavam o pôr do sol.

Pensar o futuro passou a ser, para Caio, quase uma oração. Elesabia que um dia seriam separados pela morte. Mas partiriam juntos, nãohaveria despedidas.

Enquanto isso, viveriam a oração. O futuro. Lá estavam eles: Hele-na, Caio e o mar. E em cada ocaso se despediriam, defronte do mar. Seriaum ritual, pois haveriam de se reencontrar na outra vida. O amor não éeterno?

Sim, o amor é eterno, dizia Helena.

Calcutá era uma balbúrdia. Fernando não gostou do que viu. Pre-feria a loucura de São Paulo. Mas Fernando tinha uma missão. Tomou otrem e partiu rumo a Tiruvannamalai, onde encontrou indícios. Umaassinatura num livro do templo.

Na África tudo estava nos conformes. Caio agiu corretamente aochamar a polícia logo após o confronto com os contrabandistas. O julga-mento foi rápido, as testemunhas estavam todas de acordo: legítima defe-sa. E Caio tinha um nome.

Mas Fernando não se convenceu. Seguiu outras pistas. Tomou ocaminho inverso e aterrissou em Goa, por onde reiniciou suas investiga-ções na Índia.

De repartição em repartição, consultou os livros de registros. En-trevistou pessoas. Confrontou assinaturas, mas não se convenceu. Fernandoodiava Caio.

Uma vez por semana, pelo menos, enviava um telegrama a Heitor,informando-o das investigações. Por vezes, falavam-se ao telefone.

– Helena e Caio estão juntos, disse-lhe Heitor, da última vez.

– Não por muito tempo.

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– Por que não desiste?– Porque estou certo.De fato. Fernando estava obcecado. Não desistiria enquanto não

resolvesse a parada. Podia ser acusado de tolo, um playboy, mas não eraingênuo. Quando desejava uma coisa, ia até o fim, custasse o que custas-se. Não tinha sido assim no Centro Acadêmico? Sem o menor escrúpulo,forjou acusações contra o oponente e elegeu-se com facilidade. É claroque a verdade surgiu, anos depois. Mas Fernando já havia atingido seusobjetivos.

Agora era uma questão de honra. Precisava desmascarar o homemque roubou o que ele acreditava ser seu. Não era exatamente por amor.Fernando não amava ninguém. Helena era, de certa maneira, um bem.Desejada por todos, tê-la era para Fernando a afirmação de sua superiori-dade. Daí o ódio por Caio.

Fernando sabia que encontraria algo. Atabalhoadas, suas investi-gações iniciais não se mostraram frutíferas. Levavam de um indício pro-missor ao nada. Mas aos poucos, com mais calma e melhor municiado,encontrou uma pista que realmente o conduziria à verdade. Uma assina-tura. Justamente em Goa, há cerca de quinze anos, num livro de registros.

Antes do nome Caio, com a mesma letra, Fernando descobriu umoutro nome. Estava meio apagado, mas não o suficiente. Os olhos deFernando brilharam quando conseguiu decifrá-lo.

Se Fernando soubesse o que estava acontecendo em São Paulo,não perderia mais tempo com suas investigações. Mas ele não sabia. Nin-guém sabia. Nem mesmo Caio.

Faltava um mês para o nascimento do filho de Joana. Fazia cincomeses que Helena e Caio estavam juntos.

– Cinco meses? Parecem cinco anos.

Distraídos com as plantas e desenhos na revista, os dois mal seolhavam.

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– Que tal esta?

Era uma foto. A casa, em estilo rústico, elevava-se acima dos ro-chedos e as paredes externas estavam parcialmente cobertas de trepadei-ras. Dentro, um ambiente aconchegante, à moda colonial.

– É esta!, opinou Helena. – Vamos contratar o arquiteto.

Seria na Serra do Mar, a meio caminho entre São Paulo e o litoral.

Caio não tinha mais dúvidas. Quando as últimas se foram, a paz jáestava perfeitamente consolidada. Antes houvera meia dúzia de tentações.Uma delas, inclusive, tocando seus cabelos, deixara-o perplexo. Como erafácil sentir! A mulher convidou-o para um drinque. No bar, distraído coma música ambiente e com o vai-e-vem dos freqüentadores, Caio não no-tou que o brilho dos olhos e os sorrisos da mulher eram mais do que umasimples demonstração de simpatia. Só quando, aproximando-se, ela to-cou seus cabelos, afagando-os, Caio soube o que era. E se despediu.

Esqueceu-se de seu nome no dia seguinte. Não retornou a ligação.A mulher era encantadora demais. Seria uma tentação dar prosseguimentoà amizade. Uma coisa ou outra! Cinco meses com Helena significavam,para Caio, uma história. Dar trela para a amizade com a outra era pediruma dúvida que ele queria distante.

Caio repensou tudo isso no sexto mês. Segurava um menino nosbraços. Ao ouvir a história do nascimento, uma lágrima rolou em suaface. Ele próprio não teria um filho da mulher que amou.

– Como vai se chamar?

– Adão, disse-lhe Joana.

– Um nome antiquado.

– É o que eu mais gosto.

Ao sair do hospital, topou com Heitor, que chegava para ver o filho.Cumprimentaram-se rapidamente. Em seguida, Caio seguiu rumo aohotel. Tinha negócios a resolver. Precisava pensar. A dor consumia suaalma.

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Outro Fernando. Coincidência? Talvez. Vamos chamá-lo FernandoSegundo, para não confundir com o primeiro. Segundo era acadêmico.Estudava Letras na Universidade e já tinha feito História. Gostava do OrienteMédio. Tinha descendência. Conhecia o mundo. Viveu anos na Europa esabia se portar com elegância.

– Faz um ano que a observo, disse a primeira vez. – Permita-meconhecê-la!

Ela permitiu. É claro, Segundo era encantador. Hoje em dia, qual éo homem que abre a porta do carro para uma mulher? E que sabe lhedizer exatamente o que ela espera que se diga? Certas palavras afagam,outras mostram a verdade. Helena preferia os afagos. A verdade é durademais.

– Conheci uma pessoa, disse ao telefone.

– E?

– Um bom amigo.

Caio pensava. Por que lhe telefonou só para dizer que tinha feitoum novo amigo? Deixou a laranja pela metade, sobre a poltrona. Apa-nhou o maço de cigarros e acendeu um.

– É só isso mesmo?

– É claro. O que mais?

– Não sei, você parece entusiasmada.

– Ele é encantador!

O que significa ser encantador?

– Quantas vezes se viram?

– Duas. Na Faculdade.

Começou assim. Seria um drama. Caio teve o pressentimento cor-reto, mas na hora errada. Devia tê-lo tido há meses, antes de se entregarpor completo. Agora, desarmado, não podia abrir mão de sua via crucis eseguiu junto pelo caminho pior.

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Amava demais. Mais que Vera, Helena era alguém para cuidar. Erafrágil e forte. Rasa. Precisava crescer. Uma flor que precisava orvalhartoda manhã, antes que o sol nascesse, para que se tornasse bonita e perfei-ta.

No dia seguinte, ao se encontrarem num bar da Consolação, Hele-na disse que estivera na casa de Segundo. Tomaram vinho e ouvirammúsica.

Seus olhos tinham um brilho especial.

– E?

– E só. Ele é meu amigo.

Mostrou-lhe o livro que o amigo lhe deu. Um exemplar antigo,uma tradução do começo do século dos poemas de Safo. Belíssima enca-dernação em couro. Exalava um perfume misto de couro, pó, mofo e câ-nhamo. Cheirava, mais do que poesia, a história.

– Que mais ele lhe deu?

– Escreveu-me um poema.

Não será reproduzido. Falava da solidão, do abandono, da expec-tativa, de um olhar diferente, exótico para ele. Falava de sua dor. Do sofri-mento que precisava ser amansado a cada dia. Tudo isso era muito tocante.

Helena acendeu um cigarro no outro.

– Que olhos são esses?

– Não é nada.

– Você ainda me ama?

– Você duvida?

– Não, não duvido. Quero ouvir de você.

– Mas é claro que amo.

Pediram outro vinho e uma cerveja. Caio não gostava de vinho. Efazia calor. Lá fora os carros passavam um pouco acima do nível dos olhos.Beberam bastante. Em seguida, no hotel, pegaram imediatamente no sono.

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Antes, a caminho, Caio brincou. Disse a Helena que sabia exatamente oque seu novo amigo queria. E que poderia detê-lo.

– Como?

– Quebrando-lhe a espinha.

– Eu o odiaria.

– Sei disso. É o que me impede.

Na semana seguinte Caio resolveu visitar Helena na Faculdade.Avisou, mas não disse a hora exata. E chegou de surpresa, encontrando-ajunto a Segundo.

– Este é Fernando.

– Prazer.

– O prazer é meu.

Era mais baixo. Franzino. Aparentava cansaço. E Caio foi educa-do. Disse que tinha coisas a fazer e que voltaria mais tarde, para o almoçocombinado.

– Diga-me a verdade.

– Como assim?

– Vocês dois.

Estavam a caminho do restaurante e, antes de entrarem, senta-ram-se numa das mesas de concreto, do lado externo, onde os casais cos-tumavam beber. Mas não havia ninguém a essa hora.

– Não há nada entre nós.

– Seja sincera.

– Estou sendo.

– E quanto a ele?

Helena pensou um pouco. Notou nervosismo nos olhos de Caio.Nunca o vira assim. O sangue fluía para a face e por muito pouco ele sedescontrolaria. Ao ver Segundo passar bem próximo, não contou a Caio

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que ele tinha confessado que, se houvesse uma chance, ainda que peque-na, lutaria por seu amor. A palavra ainda soava em seus ouvidos. Duassemanas e Segundo tinha a coragem de declarar-se. De dizer, com natura-lidade, que a amava, mesmo sabendo que ela era de outro, que amavaoutro. Era assim a história.

Mas Helena silenciou. Nada disse a Caio, a não ser que eles se devo-tavam uma grande amizade, coisa que não podia ter tido com mais nin-guém. Ela e Segundo tinham muita coisa em comum. Gostavam dosmesmos filmes. Dos mesmos livros. E, ainda, havia livros que Segundoconhecia e que eram novidade para Helena.

– Minhas amizades são todas superficiais. Estou feliz por fazer umamigo verdadeiro.

– Sinto que é mais.

– Está enganado.

– Assim espero.

Caio estava apreensivo. Nesse dia mesmo, deixou Helena no ana-lista e seguiu para um bar, onde combinou esperá-la. Bebeu muito. QuandoHelena chegou, toda sorrisos, Caio chorou. Não conseguia deter as lágri-mas. Helena era transparente demais. Mesmo tentando enganar-se, o quese passava dentro dela acabava fluindo pelos olhos, gestos, modos e atitu-des. Ela realmente estava encantada. E tudo pode começar pelo encanto.

No dia seguinte e no outro, Caio esperou. Uma hora viria a notícia.Mas não tão cedo.

– Almoçamos juntos e fomos ao seu apartamento, respondeu-lheà pergunta.

– E?

– E nada.

Mas lhe contou que Segundo tinha feito considerações. Que nãodemoraria uma semana e estaria perdido de amor, como nunca esteve.

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Que ela era, sem sombra de dúvida, a mulher de sua vida. Que faria qual-quer coisa por ela. E que sem ela morreria.

Melhor mesmo seria matá-lo. É fácil. Mas não vou fazer isso.

– Estou preocupada.

– Com o quê?

– Ele está em crise por minha causa. Sofre muito.

E quanto a mim? Não lhe disse isso. Pensou. E doeu muito pensar,pois era a constatação de que Helena se preocupava, não com a história,mas com o imediato. Não com cinco anos de vida em comum, as lutas, osmedos, os obstáculos, a ajuda mútua – mas com duas semanas de encan-tamento. O que significa isso? O que é o amor para Helena? Encantamen-to ou história? Solidariedade ou imediatismo? Caio pensava o que era oamor. Já havia repensado tudo e agora voltava ao tema. Por quê? Não temde ser assim! Como acaba algo que se disse eterno? E todas as declarações?E a entrega?

Eram nada?

Ainda assim, no dia em que tudo veio à tona, soube manter o con-trole. Chorou, como é óbvio. Disse que sua vida estava acabada. Que nãohaveria meios de se recompor. Mas ouviu.

– Ficamos juntos, disse-lhe Helena.

– Por quê?

– Não sei. Eu amo você.

– Não minta para si mesma.

– Aconteceu.

– Não é apenas atração, é?

– Acho que sim.

Era paixão. Do encantamento, o tempo dado, os ouvidos à mostra,as palavras, dia a dia, todos os dias. Do encantamento à paixão. Um ca-minho suave. Mas era só ter cortado tudo no início! Não era? Caio fizera

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isso várias vezes. Viu-se encantado, quase enamorado e, como era melhor,deteve tudo com a simples vontade. Não machucaria a mulher que esco-lheu para amar.

Era mais simples deter os encantos e ficar com o amor. Por queHelena não fez o mesmo? A resposta pareceu-lhe óbvia demais para serpensada: ela nunca o amou de verdade! Não podia amá-lo. Por quê? Não!,Helena não é volúvel. Não pode ser. Ou é?

– E agora?– Não sei.– Sabemos sim.Ao partir, sabendo que Helena iria ao encontro de Segundo, Caio

pensou em morrer. Não!, não foi um pensamento. Caio morreu de verda-de. Morte grande. Não ouvia, não via, sentia apenas. A morte. Um pedaçoenorme do peito. As vísceras todas. A cabeça. Morria. Caio morreu durantedias, afundado na cama do hotel. Atendeu duas vezes ao telefonema deHelena para ouvi-la dizer que estava com Segundo. Que dormia com Se-gundo. Por que dizia? Parecia vingança, mas não era. Vingança de quê?Era maldade? Não!, não era maldade. Seria leviandade? Insensibilidadesim, como é claro. Dizer tais coisas ao homem que a amou pelo que era...Mas leviana? Não podia ser. Volúvel talvez. Instável talvez. Um pouco estú-pida pela má escolha talvez.

Caio era melhor, infinitamente melhor. Era forte e a amava. Mor-reria por seu amor. Mataria e morreria.

Segundo, jamais.Mas Helena o preferiu. Era estúpida? Talvez. O mais certo é que o

merecia. Caio chegou a essa conclusão dias depois, quando estava menosmorto.

Ela o merecia, e nada mais.

Sexto mês. Sexto mês não existe. O período terminou no quinto.Depois, foi a solidão. As noites nos bares. E a dor arrefecia. Bem aos pou-

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cos, mas arrefecia. O consolo das mulheres. A primeira foi difícil. Na cama,parecia um cadáver. A segunda foi menos duro. Era jovem. Tinha vinteanos e beleza. Olhos negros grandes e um sorriso encantador. Morena,cabelos ondulados, corpo alto e magro, sensual. Desprezou o homem quea acompanhava, negociante das relações de Heitor, e lhe disse, tão logoficaram a sós, que estava tímida por sua causa.

– Então, notou que fiquei tímida?

Caio a encarou. Sorriu com o galanteio.

– Interessante. O que faremos a respeito?, e entregou-lhe seu cartão.

– Eu ligo.

E se viram no dia seguinte. Amaram-se de verdade.

Caio não viu em seu rosto a figura de Helena. Eram outros sussur-ros. Outra força. Outros apelos. E foi nessa e noutras noites. E em seguidanão era a mesma. Quem era? Muitas. Não ficavam. Passavam, como umabrisa fresca. Um esquecimento. Ficava somente o perfume. Um sorriso.Até que o sorriso de Helena, seu perfume e seus gestos se tornaram iguaisaos demais.

A verdadeira homogeneidade.

Caio voltava a ser quem era: de ninguém.

Encontrou-se vezes com Helena. Olhou nos seus olhos e viu emseus olhos que ela estava feliz. Helena perguntou-lhe se estava feliz. Caionão respondeu. Pediu que nunca mais fizesse tal pergunta.

– Penso em partir.

– Para onde?

– África.

– Por minha causa?

– Não. Não tenho causas.

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Era uma espécie de vazio. Não o vazio límpido e sereno que experi-mentou a intervalos em sua vida. Não era um vazio azul, como na in-fância.

Cheio de rachaduras, estremecia.

Qual rumo? Tivera dois, nenhum verdadeiro.

Não seria a África.

Andava pelas ruas de São Paulo a pé. Olhava para as ruas, sarjetase sob viadutos. Era a África o rumo? A tristeza e a solidão. Quem me derapoder sorrir! Um menino se aproximou e pediu um dinheiro. Caio sacoua carteira, tirou uma nota de cem e o menino olhou assustado.

– Moço!?

– Meu nome é Adão.

– Chama-se Adão. Sabe quem é?

Heitor, do outro lado da escrivaninha, prestava atenção ao relato doamigo. Fernando chegou cerca de dois meses depois que Joana deu à luz.

– Meu filho chama-se Adão.

– Seu filho e quem mais?

– Onde quer chegar?

– Você sabe onde!

Heitor sabia. Adão tinha matado seu pai. Por que Joana deu-lhe onome ao filho? Problema dela. Heitor não tinha lhe dado o nome. Proble-ma dela. Mas, por que Adão?

– Tem certeza?

– Absoluta.

– Provas?

– Poucas, mas tenho.

E as mostrou. Fotocópias de documentos. Vistos em passagens. Re-tratos antigos. Era só comparar no Arquivo do Estado. Nos prontuários.

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E Caio sonhou tudo. Olhava pela janela do apartamento do hotel:o céu, ao invés de negro ou cinza, era azul. Seus olhos eram azuis. Sentiu,depois de anos, seus olhos. Bondosos e indiferentes, contemplavam a his-tória. Olhos igualmente azuis.

Era de tarde. Caio resolveu descansar. Pegou no sono e sonhou. Eraum cerco. Policiais à paisana e Heitor atrás, indicando o caminho. Cães.Armas em punho. E só havia a janela. E era muito alto. Mas Caio nãotemia a altura. Estava acostumado.

Saltou e desapareceu na imensidão do azul. Quando chegou aosolo, já era noite. Viu, destacado pelo luar, o recorte de uma colina. Eouviu o mar.

Sentiu-se bem, sozinho na praia. Não sabia onde era, mas sentiu-se bem com a solidão. E sentou-se, à espera da morte.

– Nunca mais nos veremos?

Caio segurava o sobrinho no colo. Estavam os três no aeroporto.Joana chorava.

– Nada é definitivo.

Caio havia agido com rapidez: doou seus bens a Joana. Tinha parasi o necessário. E partiu em seguida rumo à Grécia.

Por que a Grécia? Lembrava-se das palavras de Helena: um deusgrego. Era mesmo? Por que não mais?

Deuses também morrem.

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uanta festa!

Por que, se outros morrem tão próximo? Por que se odeiam e sematam? Já não se matam? Mas se odeiam! E aqui, por que festejam? Ano2000. Ódio ao lado e festa na Grécia.

Dez anos meditando. Por que dez anos? Uma eternidade para Adão.A história é mais complexa do que parece.

Pelo menos o mundo não acabou, como previam os crédulos.

Adão tomou o monte de cartas e as leu, uma a uma. Só os trechosgrifados.

“Helena se casou.”, “Moram em Brasília”, “Helena viaja muito aoRio”, “Helena é infeliz?”, “Helena pergunta por Caio”, “Helena é fútil?”,“Helena tem amantes”, “Helena sofre”.

Depois, jogou o monte na lareira.

Quando souberam da origem de Caio, tanto Heitor quanto Helenasofreram um choque.

Heitor pensou em procurá-lo. Mas não havia contas a ajustar. Es-tava tudo direito. Sentiu-se apenas traído. Não era bom. Odiou Joana portudo. Detestou o próprio filho. E depois se concentrou em seus negócios.

Helena, ao contrário, sentiu um estranho prazer.

Quem sou eu?

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Dez anos meditando. Um pouco em cada lugar. Muito pouco emcada lugar. Adão evitava deixar rastros.

Como na infância, não tinha amigos. Falava pouco e dormia me-nos ainda. Preferia lugares próximos ao mar. De noite, deixava sua casa eandava pelas praias. Quando possível, escalava um monte, de onde con-templava as duas escuridões, do mar e do céu. Avistava-se na escuridão.

Buscou-se também em templos e nas ruínas de outros mais anti-gos. Tentou reencontrar os deuses de sua infância. Mas não eram os mes-mos. Até eram semelhantes: estavam igualmente mortos. E só.

Lembrava-se das palavras de Antônio. Pai Antônio. Seria Olorum?

Quem era Olorum? Quem era o Céu?

Adão não podia entender as palavras do amigo. O Céu de sua terraestava muito distante. Pensando bem, não tão distante assim. Era até omesmo Céu. E também a mesma distância em relação à terra.

Mas Adão não era mais o mesmo. Só se lembrava das coisas quehavia perdido: a inocência, o amor, a ternura. A coragem?

Não! Não tinha perdido tudo.

Nessa noite, depois de vagar pela praia deserta, escondeu-se no meiodos rochedos mais altos. Olhou para o mar e seus olhos brilharam. Tinhaos olhos muito azuis, quase negros. E uma alegria insólita invadiu suaalma.

Amanhecia na Grécia. E lá longe, onde o mar toca o Céu, Adão viuos grandes olhos que o contemplavam. Olharam-se por um tempo. Nos-sos olhos tocaram-se por um instante.

Muito tempo havia se passado. Quanto? Não importa. Eram osmesmos olhos novamente. E só restava a Adão a coragem. Uma réstia dememória. E um desejo intenso de saltar.

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Mancha 10,5 X 18,5 cm

Formato 13,8 x 21 cm

Tipologia Garamond LightCondensed 13/15,6 e Tiffany 24

Papel miolo: off-set 75g/m2

capa: Supremo 250 g/m2

Impressão e acabamento GRÁFICA FFLCH

Número de páginas 166

Tiragem 500 exemplares

Ficha técnica

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