Que a justiça de água f ria te condene. o julgamento de um santo sertão baiano

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS XIV LICENCIATURA EM HISTÓRIA Ariene Pinto Góes Matos “QUE A JUSTIÇA DE ÁGUA FRIA TE CONDENE”. O JULGAMENTO DE UM SANTO NO SERTÃO BAIANO Conceição do Coité Fevereiro de 2010

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV

LICENCIATURA EM HISTÓRIA

Ariene Pinto Góes Matos

“QUE A JUSTIÇA DE ÁGUA FRIA TE CONDENE”.

O JULGAMENTO DE UM SANTO NO SERTÃO BAIANO

Conceição do Coité

Fevereiro de 2010

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV

LICENCIATURA EM HISTÓRIA

Ariene Pinto Góes Matos

“QUE A JUSTIÇA DE ÁGUA FRIA TE CONDENE”.

O JULGAMENTO DE UM SANTO NO SERTÃO BAIANO

Trabalho de conclusão de curso

apresentado ao curso de Licenciatura em

História para obtenção do título de

licenciada, sob a orientação da Professora

Suzana Severs.

Conceição do Coité

Fevereiro de 2010

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Resumo

Este artigo conta a história do julgamento e condenação da imagem de Santo Antônio das

Queimadas a qual foi responsabilizada por um assassinato na região de Queimadas em razão

de ter recebido toda a herança de uma devota, proprietária desta imagem e, dentre ela estar um

escravo, autor do crime. A legislação de final do século XVIII e início do XIX, quando este

episódio parece se desenvolver, atribui responsabilidade de crimes cometidos por escravos a

seus donos. Sendo assim, a imagem do santo foi obrigada a pagar por um crime e condenado à

perda dos seus bens para custear as despesas do processo. Por ausência de comprovação do

julgamento, esta história faz parte do imaginário coletivo de Queimadas sendo responsável,

algumas vezes, pelos infortúnios que ocorrem no município. E é este aspecto que apuramos

neste trabalho.

Palavras-chave: Religiosidade popular; Santo Antônio; Imaginário, Sertão baiano

Introdução

Este é um trabalho de cunho descritivo que se preocupou em levantar informações

para contar a história do julgamento civil de Santo Antônio em Queimadas, Bahia, ocorrido

em data incerta, entre o final do século XVIII ou o início do século XIX.

Queimadas, cidade do sertão baiano, foi palco de um episódio curioso. O juiz da

comarca de Água Fria teria submetido à imagem de Santo Antônio das Queimadas a um

julgamento civil, para responder por um crime cometido por um dos seus escravos, baseado

na lei imperial que responsabilizava o senhor de escravos por quaisquer delitos e danos

causados por eles. Santo Antônio era dono de terras, gados e escravos que lhes tinham sido

doado por Dona Maria Isabel Guedes de Brito. Depois do julgamento a imagem desapareceu

sem deixar vestígios, o mesmo aconteceu com o processo criminal.

Como foi impossível encontrar o processo do julgamento, história que contamos

no corpo deste artigo, optamos por levantar a história do julgamento no imaginário da

população, nos dias de hoje. Posto que encontramos em algumas falas a idéia de regresso e

decadência da cidade ligado a este fato.

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Para ajudar em nossa reflexão utilizamos como referencial teórico Jean-Jacques

Wunenburger sobre imaginário e os escritos sobre religiosidade de Luiz Mott.

Metodologicamente, para dar conta da pesquisa tão fragmentada, lançamos mão das

entrevistas nos moldes da história oral proposta por José Carlos Sebe Bom Meihy, ainda que

não classifiquemos este artigo como um trabalho de história oral propriamente dito,

utilizamos as entrevistas apenas como um recurso complementar dos textos mais estruturados.

Optamos por não identificar as pessoas entrevistadas para preservar a sua identidade.

1- Santo Antônio no Brasil

Por arte de umas leis ou do Demônio

levaram a imagem para os tribunais,

condenaram no júri a Santo Antônio

que ali mesmo perdeu os cabedais.

Perdeu tudo o que tinha de uma vez:

terras, escravos, roças e boiadas

deixaram pobre o insigne português.

O caso fez escândalo no céu,

porque foi Santo Antônio das Queimadas

o único santo que também foi réu...

Nonato Marques

Um dos traços marcantes da espiritualidade dos católicos sempre foi à devoção

aos santos, tendo uma relação de adulação e rituais. Os santos têm um papel essencial na vida

religiosa, tanto para resolver problemas mundanos quanto espirituais. Os católicos se valem

de promessas e novenas aos santos a fim de realizar seus pedidos como um mercado de troca.

A concepção de Santo é explicitada por Luiz Mott quando diz que:

Santo é que se adula... diz um ditado antigo repetido na Bahia de todos os

Santos. De fato, na religiosidade popular do Brasil de antanho, a intimidade dos devotos vis-à-vis certos santos e oragos percorria um continuum de

amor e ódio, que incluía louvores, adulação, rituais propiciatórios,

intimidação e até agressão física explicita. 1

Dentro do rol dos santos o lusitano Santo Antônio é o campeão da devoção

popular. Dedicou toda a sua vida aos ensinamentos de Deus, conhecedor e praticante dos

1 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA. Laura de Melo;

NOVAIS. Fernando (orgs). História da Vida Privada no Brasil. p.184.

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ensinamentos da Bíblia Sagrada recebeu o título de Doutor da Igreja2. Um grande pregador

dos evangelhos e apoiado por uma popularidade que sempre crescia de época em época, Santo

Antonio foi canonizado em apenas um ano após a sua morte (1232).

Santo Antônio é conhecido como Santo Antônio de Lisboa e também como Santo

Antonio de Pádua, em razão de ser o patrono de Portugal, por ter nascido na capital, Lisboa

(1195), e de Pádua (Itália), porque foi lá que passou dez anos evangelizando até sua morte, 13

de junho de 1231, data que se tornou celebrativa de sua memória e devoção. Desde então a

cada 13 de junho, fiéis o celebram com trezenas e procissões lembrando seus feitos em vida e

também os milagres realizados por ele depois de sua morte.

Santo Antônio foi uns dos santos trazidos para o Brasil pelos portugueses, os quais

eram devotos fervorosos do santo franciscano, tinham um culto com sentido patriótico. Eles

determinaram Santo Antônio como o padroeiro da Bahia, sendo que ele já era patrono de

Portugal.

Existem no Brasil diversas cidades que têm igrejas ou capelas consagradas a este

santo. E muitas igrejas que não são consagradas, possuem sua imagem em um dos altares

laterais. Além disso, muitos devotos têm em sua própria casa a imagem de Santo Antônio,

expressando a influência portuguesa aos brasileiros na veneração ao santo franciscano.

Na religiosidade popular brasileira Santo Antônio foi e continua sendo um dos

santos mais requisitado pelos fiéis. Ele é bastante procurado para resolver problemas

conjugais - o “santo casamenteiro”. Mas nem sempre foi assim, na época colonial ele era

procurado para solucionar diversos problemas dos seus devotos, desde a cura de uma doença a

achar coisas perdidas e principalmente ele era solicitado como um colaborador dos senhores

na captura de negros fujões.

Várias torturas eram aplicadas a Santo Antônio pelos fiéis - colocar pedra sobre

sua imagem, retirar o menino Jesus de seus braços, colocá-lo de cabeça pra baixo, arrancar-

lhe o esplendor - com o objetivo de realizar seus pedidos, desde a intercessões em

aproximações amorosas e enlaces conjugais, como hoje ainda acontece e também para

recuperar os escravos fugitivos e encontrar coisas perdidas.

Em um registro do século XIX, de Thomas Ewbank, viajante inglês há o relato de

uma senhora que confessa que sua mãe realizava torturas a Santo Antônio a fim de localizar

2 Na Igreja Católica, Doutor e Doutora da Igreja , são homens e mulheres cujos pensamentos, pregações, escritos

e forma de vida enalteceram o cristianismo.Todos eles foram considerados modelos de santidade e que

contribuiram de alguma forma original (e ortodoxa) para a doutrina e espiritualidade cristã, tendo sido o título

reconhecido quer por um Papa, quer por um concílio ecuménico (embora nenhum concílio tenha jamais exercido

essa prerrogativa); trata-se de uma honra rara (a Igreja conta apenas 33 doctores ecclesiæ entre os seus múltiplos

santos), atribuída apenas a título póstumo e após a canonização.

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seu escravo fugido. Dando várias receitas de como castigá-lo para alcançar suas solicitações,

as quais foram ensinadas por sua própria mãe. Ela afirmava que, ao torturar a imagem,

acelerava o atendimento do pedido e que o santo, por ter desejado em vida o sacramento do

martírio, não se importaria3.

Padre Antônio Vieira, que foi um grande admirador de Santo Antônio, a quem

dedicou inúmeros sermões e proclamava-o Santo Universal, afirmava que a prática desses

maus tratos ao santo podia ser interpretada como uma dívida, um condicionamento do santo

ao cumprimento do pedido. 4

Na mentalidade dos fiéis estas práticas eram normais, apenas uma forma de

alcançar os seus pedidos com mais rapidez e eficácia. Apesar de toda tortura, existe o respeito

e a veneração.

1.1 A patente de Santo Antônio

Durante o período colonial no Brasil a imagem de Santo Antônio recebeu diversos

títulos da graduação militar, sendo promovido a patente de capitão em várias cidades, recebeu

o título de tenente-coronel do próprio D. João VI quando ainda era príncipe regente, em 1814,

os soldos referentes ao título militar era recebido pelos responsáveis das igrejas da cidade as

quais o santo era homenageado.

No período do Brasil Colônia, pela carta-régia de 07 de abril de 1707, o governo

português facultou praça de Capitão, com o respectivo soldo, à Imagem do Santo

Antônio do Convento de São Francisco da Bahia. Em 21 de março de 1711,

confirma no posto de capitão à Imagem do Santo Antônio do Rio de Janeiro; a de

Goiás, em 19 de novembro de 1750 com o soldo de 480 mil reis anuais; em 22 de

fevereiro de 1784, é dado o posto de capitão à Imagem do Santo Antônio de Ouro

Preto. Por decreto de 13 de setembro de 1810, D. João VI eleva o glorioso Santo,

venerado aqui em nossa Cidade do Salvador, ao posto de Major de Infantaria,

percebendo o soldo desta patente; promovido a Tenente-coronel com o respectivo

soldo... 5

3 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA. Laura de Melo; NOVAIS.

Fernando (orgs). História da Vida Privada no Brasil. p.187. 4 Idem, p.187 5 Jornal A Tarde de 13 de Junho de 1970. Santo Antônio – Coronel

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Um artigo publicado na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia6

transcreve a carta de patente de Tenente-coronel feita por D, João em 1814.

Faço saber aos que esta minha carta patente virem que sendo da minha particular

devoção o glorioso Santo Antônio, a quem o povo desta corte incessantemente e

com a maior fé dedica os seus votos; e tendo o céu abençoado os esforços dos meus

exércitos com a paz que se dignou conceder a monarquia portuguesa, crendo eu

piamente que a eficaz intercessão do mesmo santo tem concorrido para tão felizes

resultados: Hei por bem elevai-o ao posto de Tenente-Coronel de infantaria e com

ele haverá o respectivo soldo...

Estes títulos foram dados à imagem de Santo Antônio como forma de pagamento

pela proteção dada durante batalhas e invasões de povos inimigos. O governador da capitania

de Pernambuco concede o título de Praça a Santo Antônio antes de sair para Guerra dos

Palmares.

O governador desta capitania, João do Souto Maior, por portaria datada de 13 de

Setembro de 1685, mandou abrir assento de Praça a Santo Antônio, afim de seguir a

sua viagem para a guerra dos palmares e proteger as armas reais na conquista desse

quilombo; e ao mesmo tempo expediu as necessárias ordens, para que se pagasse ao

sindico do convento de Olinda o soldo e importância do fardamento que lhe

competiam. 7

Com toda esta veneração, encontramos Santo Antônio em Queimadas, terra do

sertão baiano, como herdeiro de uma fazenda, gados e escravos. Herança esta que lhe rendeu

um processo na justiça como veremos adiante.

2- Santo Antônio no banco dos réus

2.1 As Terras de Guedes de Brito

No início do século XVI, Portugal instituiu doações de terras com o objetivo de

povoar as regiões em que viviam populações indígenas e as terras que eram sempre

ameaçadas por invasores estrangeiros.

No início do século XVI, quando Portugal, no reinado de D. João III, estabeleceu

concessões de terras com o fim de povoamento em vastas regiões, nas quais viviam

populações indígenas e cujas terras eram ameaçadas constantemente por invasores

estrangeiros, no caso, os holandeses. Através desse processo de ocupação territorial os capitães donatários recebiam gratuitamente 50 léguas de costa, tornando-se reais

proprietários de apenas 20% das terras. Os outros 80% deveriam ser distribuídas

6 Revista Trimestral do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Ano VI, Vol. VI, n. 21. Setembro de 1899.

Variedade Histórica: A patente de Santo Antônio. P. 469-472 7 Idem; p 470

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sem qualquer ônus, a título de sesmaria, cujos sesmeiros se obrigavam a cultivá-las

num prazo máximo de cinco anos. 8

Através desse processo de ocupação territorial, as terras mais afastadas do litoral

eram doadas a títulos de sesmaria. Tais concessões deram origem à formação de grandes

latifúndios como é o caso dos Guedes de Brito.

O vasto império dos Guedes de Brito foi iniciado por Antônio de Brito Correa e

sua esposa Maria Guedes, e teve continuidade pelo herdeiro da família, Antônio Guedes de

Brito9. A vasta extensão territorial do patrimônio dos Guedes de Brito percorria a distância

entre Morro do Chapéu, Ba. até Ouro Preto, Mg, isso significava 1.333 km de terras.

Antônio Guedes de Brito anexou essas terras a outras que herdara dos pais e tios

no norte da Capitania da Bahia formando o segundo maior latifúndio da América portuguesa,

superado apenas pelos D‟ávila, da Casa da Torre, cujos domínios estendiam-se por áreas

atualmente sob jurisdição de várias unidades da federação, desde a Bahia até ao Maranhão.

A leitura realizada no documento também mostra a grandiosidade das posses

territoriais que os Guedes de Brito amealharam durante o período colonial seja por

via familiar (herança), seja por ocupação forçada. A incorporação de outras

sesmarias ao patrimônio Guedes de Brito deu-se também mediante serviços

prestados à Coroa por esta família ajudando na defesa da Colônia e através do

acolhimento que dava às tropas portuguesas em suas terras, Em conseqüência

desses relevantes serviços, foi concedido a Antonio de Brito Correa e depois legado

ao seu filho - Antonio Guedes de Brito - o título de Mestre-de–Campo. 10

Em 1676 a Coroa portuguesa designou o desembargador Sebastião Cardoso

Sampaio para fiscalizar a situação das sesmarias que até aquela data haviam sido concedidas.

Todos os sesmeiros fizeram declaração das suas terras com provas dos respectivos títulos.

Dentre estes declarantes estava Antônio Guedes de Brito, cuja declaração de bens foi

publicada na integra na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia11

8 NEVES, Erivaldo Fagundes. Da Sesmaria ao Minifúndio (um estudo de história regional e local). Apud

VASCONCELOS, Suani de Almeida. Carta de Sesmaria- Seculo XIX: Edição Semidiplomática e Estudo

Histórico. www.filologia.org.br/.../Carta_de_Sesmaria_–_Século_XIX 9 O qual se transformou em um dos homens mais importantes da Bahia seiscentista, conquistando também vários

títulos como: Mestre de campo, Fidalgo de Sua Majestade, Provedor da Santa Casa de Misericórdia (1663) e

Capitão de infantaria, por carta patente de 26 de fevereiro de 1667. 10

VASCONCELOS, Suani de Almeida. Carta de Sesmaria- Seculo XIX: Edição Semidiplomática e Estudo

Histórico. www.filologia.org.br/.../Carta_de_Sesmaria_–_Século_XIX_ 11 Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 1916. Ano XXIII, Vol. XI n.42. As Terras de Guedes de

Brito, p. 69-74

Page 9: Que a justiça de água f ria te condene. o julgamento de um santo sertão baiano

„As fazendas de Curráes de gados nos districtos dório Real, possuo por título de

herança de meu pai Antonio Brito Correa [...] as Fazendas de Itapicurú desta parte

da Bahia por escritura de compra [...] as Fazendas dos Tocós por hum título de

sesmaria dado a minha Mãy Maria Guedes [...] Possuo metade da Matta de S. João,

por arrematação [...] Tenho huma Fazenda de Cana em Maré...‟

O documento mostra a grandiosidade das posses territoriais que os Guedes de

Brito possuíam durante o período colonial sejam por sesmarias, por herança, compradas, ou

por ocupação forçada. Muitas vezes ele declara o pedido de ampliação de determinados

territórios às autoridades responsáveis.

Acima destas Fazendas do Itapicurú merim pedimos meu pai e eu ao Conde de

Castelo melhor Governador que foi deste Estado em 26 de Outubro de 1652,

principiando no Caguague, ou Caguaguena até a Serra do Tuyuyuba com oito

léguas de largo. E em 2 de Março de 1665, pedi na mesma Caguague, junto ao

Itapicurú por ele acima até as suas nascenças com seis léguas de largo por haverem

muitos matos e serras com que não fazia toda a distância habitável, logo as povoei

de meus próprios currais ... 12

Dentro desta minuciosa declaração Antônio Guedes de Brito mencionou as

fazendas dos Tocós, que segundo Nonato Marques13

foi nesta parte do território dos Guedes

de Brito que o município de Queimadas foi fundado.

Possuo as Fazendas dos Tocos por um título de sesmaria dado a minha mãe Maria

Guedes, ao Padre Manoel Guedes Lobo, a Sebastiana de Brito, a Ana Guedes em

14 de Dezembro de 1612 pelo Governador D. Diogo de Menezes. E dito Padre meu tio me fez a doação do que lhe tocava... E o Capitão Francisco Barbosa Paiva,

marido de minha tia, Sebastiana de Brito fizeram venda ao meu pai do que lhes

pertencia ... as quais terras povoei, descobrindo-as, fazendo estradas e pazes com os

índios Cariocas, Sapoias e Carapaus ... 14

A margem direita do rio Itapicuru-Açu, existiam duas fazendas chamadas “As

Queimadas”, ambas pertencentes à Dona Isabel Maria Guedes de Brito herdeira de imensos

territórios deixados por seu pai Antônio Guedes de Brito. As fazendas eram chamadas de

Queimadas, por causa das constantes queimas que faziam na caatinga para conseguir espaço

para plantação.

Durante todo processo de elevação da fazenda seja em arraial, depois em freguesia

(1842), e anos depois em vila (1884) o nome do santo esteve presente na denominação desta

12 Idem, p. 70 e 71 13

Nonato Marques foi um memorialista queimadense que escreveu um livro relatando toda a história de

Queimadas, desde o desbravamento das terras pelos Guedes de Brito até 1980. 14 Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 1916. Ano XXIII, Vol. XI n.42. As Terras de Guedes de

Brito, p.71

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localidade. Apenas em 1915, com a lei estadual nº 1.081, que a cidade passou de Santo

Antônio das Queimadas para ser simplificado apenas a Queimadas.

E foi aí que começou a história do julgamento de Santo Antônio das Queimadas, a

qual abordaremos a seguir.

2.2 Aparecimento da imagem de Santo Antônio em Queimadas

Foi neste espaço do sertão nordestino que ocorreu a curiosa aparição de uma

imagem de Santo Antônio. Segundo a história transmitida por gerações, a imagem deste Santo

apareceu, inexplicavelmente, debaixo de uma árvore no alto de uma colina, local em que mais

tarde, a igreja de Santo Antônio das Queimadas foi construída, lá permanecendo até hoje. A

imagem foi encontrada por um vaqueiro debaixo de uma árvore, e infelizmente perdeu-se no

tempo. Depois do julgamento, a imagem teria sumido e ninguém sabe seu paradeiro.

Autoria: Rosa Ramos, 1980. Acervo de D. Minita. Igreja de Santo Antônio. Queimadas-Ba. Foto: Ariene Góes

Queimadas-Ba Matos. 2009

As entrevistas realizadas com moradores da cidade mostram certa contradição em

relação ao tipo de árvore onde a imagem teria sido encontrada. Temos várias versões:

licurizeiro, pindobeira, arirí, quixabeira, figueira. Não há um consenso em relação a isso, já

que a árvore foi arrancada para a construção da capela e afirmam que onde se encontra o altar

principal foi o local que encontraram a imagem de Santo Antônio.

Ao se deparar com a imagem, o vaqueiro a levou para a casa da dona das fazendas,

Dona Isabel Maria Guedes de Brito, e ela o colocou no seu oratório. Curiosamente, no dia

seguinte a imagem havia desaparecido. Mais tarde, foi encontrada no mesmo local que tinha

aparecido pela primeira vez. Esse deslocamento ocorreu diversas vezes: ao sumir da casa da

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fazenda a imagem era sempre achada no local em que o vaqueiro a encontrou pela primeira

vez. O fato foi dado como milagre.

[...] Queimadas começou a surgir ao redor dessas queimas da fazenda então daí o

nome de Queimadas, e também tem uma ligação com a imagem de Santo Antônio, o

povo conta que apareceu essa imagem dejunto [sic] de uma pindoba e então os

escravos que encontraram levaram até a casa da fazenda. A senhora da fazenda

muito piedosa chamou todo mundo para avisar e deixou a imagem dentro da casa

da fazenda, daqui a uns dias a imagem desapareceu e foi achada de novo no lugar

onde tinha sido encontrada no início e assim outras vezes [...]15

Os sucessivos aparecimentos e desaparecimentos da imagem de Santo Antônio

chegaram ao conhecimento de alguns missionários capuchinhos que lá estavam de passagem.

Eles aconselharam Dona Isabel Guedes de Brito a construir uma capela em consagração ao

santo no mesmo local onde a imagem apareceu transformando, daquele dia em diante, Santo

Antônio em padroeiro da localidade, que passou a se chamar Santo Antônio das Queimadas.

A história do aparecimento da imagem de Santo Antônio em Queimadas logo foi

conhecida por toda redondeza. Logo após a construção da capela, começou as romarias e

peregrinações dos sertanejos, os quais vinham conhecer a imagem que tinha aparecido

misteriosamente. Vinham prestar veneração, fazer e pagar promessas ao Santo tão milagroso.

Depois da construção da capela, Dona Isabel franqueou terras a quem quisesse

morar naquela localidade. Assim o povoado começou a se formar a margem direita do rio

Itapicuru. Muitos destes novos moradores eram peregrinos que vieram para venerar a imagem

de Santo Antônio e resolveram residir no local.

Neste espaço nordestino que por si só é um local místico, onde o povo tem muita

fé, Santo Antônio recebeu de Dona Isabel Maria Guedes de Brito, a dona das fazendas, uma

herança. Segundo Nonato Marques, memorialista queimadense, após a morte de Dona Isabel

seus bens foram legados àquela imagem de Santo Antônio: terras, escravos, gados. Estes bens

eram administrados pela freguesia de Sant‟Ana do Tucano, que jurisdicionava Santo Antônio

das Queimadas16

.

2.3 - A prisão de Santo Antônio

15 Entrevista realizada com Sr. Marcelo* no dia 23 de julho de 2009* (Os nomes dos entrevistados são aqui

substituídos por nomes fictícios a fim de preservar suas identidades.) 16 MARQUES, Nonato. Santo Antônio das Queimadas. Salvador, 1984. p.94

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Segundo a memória coletiva dos queimadenses, entre o final do século XVIII e

início do século XIX (não temos como comprovar com exatidão data por falta de

documentação), Queimadas teria passado por um dos episódios mais pitorescos da história da

religiosidade brasileira: o julgamento civil da imagem de Santo Antônio.

Depois de uma noite de louvação a Santo Antônio, um homem foi assassinado e o

corpo foi colocado no adro da igreja. No sertão daquela época se fosse encontrado um morto

na frente da porta da casa de qualquer pessoa, o dono da casa seria responsável pelo crime.

Nós sabemos que a lei daquela época quando tinha um crime, uma morte violenta

de alguma pessoa onde se encontrasse o cadáver da pessoa o dono da casa

respondia processo. Dizem os antigos que houve uma festa e uma briga entre os

escravos e então houve um crime e deixaram o corpo na frente da igreja Santo

Antônio e por isso foi como a lei mandava, foi aberto um processo contra Santo

Antônio.17

Tinha aquela lei que onde aparecia a arma do crime, quem era condenado era o

dono da casa onde a arma tinha aparecido, aí eles mataram um escravo e

deixaram a arma, a faca lá na igreja, aí quem foi condenado foi Santo Antônio.18

Sendo assim o crime foi atribuído a um escravo que pertencia a Santo Antônio,

pois o mesmo teria desaparecido neste dia sem explicações e nunca mais foi encontrado.

Diante do acontecido à imagem do santo foi responsabilizada pelo crime cometido por seu

escravo.

Isso se deu por causa de uma lei do período que penalizava o senhor pelos delitos

cometidos pelos seus escravos, caso este não o entregasse na mão da justiça.

[...] um escravo de Santo Antônio que cometeu o crime e fugiu, e tinha uma lei

naquele período que era muito respeitada, nessa região, que afirmava que se um

escravo cometesse um crime qualquer, quem pagaria por aquele crime era o dono

do escravo [...]19

Segundo alguns entrevistados era uma lei colonial, mas Câmara Cascudo comenta

sobre o episódio do julgamento de Santo Antônio citando que era uma lei do código criminal

do império, artigo 28, que segundo ele dizia que “o senhor do escravo era responsável pela

17 Entrevista realizada com Sr. Marcelo* no dia 23 de julho de 2009 18 Entrevista realizada com Sr. José * no dia 13 de novembro de 2009 19 Entrevista realizada com Marcelo* no dia 19 de outubro de 2009

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pena pecuniária devida pelo servo até os limites do seu próprio valor”. 20

Mas o código

criminal do império, artigo 28,21

diz o seguinte:

Art. 28. Serão obrigados a satisfação, posto que não delinqüentes:

1º senhor pelo escravo até o valor deste.

2º que gratuitamente tiver participado dos produtos do crime até a

concorrente quantia.

Em razão da interpretação desta lei, a imagem de Santo Antônio teria sido

obrigada a pagar pelo crime do seu escravo. Aprisionaram a imagem do santo nas terras dos

Guedes de Brito amarando-a no lombo de um jegue ou de um burro e levaram para a comarca

de Água Fria a mando do juiz, pois a localidade de Santo Antônio das Queimadas pertencia à

comarca de Água Fria.

O Santo passou 30 dias preso na cadeia local no quarto da forca, e o místico pavor

dos moradores fez com que enquanto durasse a prisão do Santo, a cadeia se

transformasse na igreja da cidade. Centenas de pessoas iam para ali rezar e pedir perdão ao Santo. Mas os juizes, famosos pela sua austeridade, submeteram Santo

Antônio a um longo julgamento. (...) sabe apenas que a imagem participou de duas

audiências, sentou-se no banco dos réus, teve defensor e que duas testemunhas da

apresentação da prisão foram ouvidas. 22

A justiça de Água Fria que tinha um poder temido em toda região, julgou e

condenou a imagem do santo à perda dos seus bens, os quais herdara, como já foi

mencionado, de sua devota, Isabel Maria Guedes de Brito.

Os bens de Santo Antônio foram confiscados e levados hasta pública para pagar à

custa do processo. Segundo Nonato Marques, um coronel chamado Francisco de Paula Araújo

Brito, fazendeiro da Inhambupe comprou as terras, mas não foi tomar posse.

Naturalmente Santo Antônio não podia ter feito esse crime não é, mas foi a

julgamento justamente para ser esclarecido que Santo Antônio não foi o criminoso,

e sim que tinha que encontrar criminosos em outras bandas né! [...] mas tinha que

pagar as custas do processo, então o único que tinha bens era Santo Antônio, então

correu pra achar os bens de Santo Antônio que era gado , era escravos, que era as

terras, e correu pra achar esses bens , sobretudo das terras , por que as donas do

terreno tinha deixado 6 léguas em volta de propriedade de Santo Antônio. 23

20 CASCUDO, Luiz da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 4ª Ed. São Paulo. Melhoramentos, 1979. p. 62

– 63 Verbete: Antônio 21

Código Criminal do Império do Brasil. Parte Primeira. Dos Crimes e das Penas. Art. 28. Disponível em:

<www.ciespi.org.br/base_legis/legislacao/COD11a.html> 22 Jornal da Bahia, Edição Especial, 10-05-1976. Prisão de Santo foi maldição para Queimadas e Água Fria. 23 Entrevista realizada com Sr. Marcelo* no dia 23 de julho de 2009

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Anos depois da compra destas terras, os herdeiros de Francisco de Paula é que

foram reivindicar estas terras, porém boa parte delas já estavam sendo habitada por muitas

pessoas. Estes herdeiros começaram a cobrar imposto destas pessoas, os chamados foros das

terras.

Esse leilão vamos dizer assim ficou deserto , ninguém queria arrematar essas

terras, até quando apareceu um português que tinha um pouco de condição né, em

Salvador, então disseram: olha tem umas terras ai assim, assim, no leilão...vai lá

no fórum, e ai ele foi e adquiriu essas terras, né. Mas nunca veio tomar posse,

então as terras ficaram indivisas. Cada qual construiu a sua casinha onde queria e

pronto. Até esse senhor português morreu teve dois filhos, não é, então um dos dois

filhos achou que podia explorar isso, chegar em Queimadas e dizer essas terra é

minha , eu sou o herdeiro, então cada qual me paga a sua taxa da terra onde

construíram.24

Não temos a data em que estes herdeiros chegaram a Queimadas, apenas a data de

1943 em que alguns moradores se uniram e compraram as terras a estes herdeiros.

Segundo alguns entrevistados, os moradores que compraram estes terras tinham um

poder aquisitivo melhor que os outros, se uniram e fizeram uma sociedade para comprarem a

metade das terras de Queimadas, dividindo a quantia para cada um, mas há uma contradição

na quantidade destes moradores, tendo uma variação de 25, 35, quarenta e 42 pessoas. Existe

uma certidão de compra de terras expedida pela comarca de Bonfim, em 1943, que especifica

os 36 moradores que tinham comprado as terras de Queimadas nas mãos do Senhor Eduardo

Pondé de Mendonça e sua esposa Olinda Brito Pondé25

.

Outro senhor chamado Jaconias comprou a outra metade das terras de Queimadas.

Não temos conhecimento das mãos de quem o senhor Jaconias teria comprado a outra parte,

pois não tivemos acesso a nenhuma documentação sobre o assunto. Apenas a fala de um dos

entrevistados que diz que havia seis herdeiros das terras de Queimadas, e que este senhor teria

comprado a parte das terras de cinco herdeiros e os outros que se associaram compraram a

parte de apenas um herdeiro.

Estes novos donos das terras de Queimadas passaram a doar e a vender os lotes

destas terras. Nas entrevistas, muitos dizem ter conhecido alguns desses compradores,

testemunham também que as terras onde moram foram compradas por seus pais e familiares

nas mãos de alguns destes sócios.

Na entrevista com um filho de um desses sócios, ele afirmou que já deu várias

escrituras das terras e que até hoje ele tem poder pra fazer isso. Ele pode expedir escritura das

terras em qualquer local da cidade de Queimadas, pois os sócios não dividiram as terras por

24 Idem 25 Livro. 3-D. Transcrição das Transmissões: As fls 94. Ano de 1943. Nº de ordem: 5.611.

Page 15: Que a justiça de água f ria te condene. o julgamento de um santo sertão baiano

lotes. A parte que eles compraram pertencia a todos. E que o pai dele foi um dos poucos que

deixara um inventário para os filhos.

3- A idéia de castigo

Depois do processo criminal a imagem de Santo Antônio supostamente

desapareceu. Ninguém sabe o paradeiro da imagem, como dissemos acima. O mesmo

aconteceu com a documentação do processo judicial que até hoje não foi encontrada nos

arquivos de Água Fria, de Queimadas, de Irará, pra onde foi transferida a sede da comarca,

nem no Arquivo público da Bahia.

Décadas depois, alguns políticos locais tentaram reaver o processo e recuperar a

imagem para trazê–la à cidade de Queimadas, mas a tentativa foi inútil: eles não conseguiram

encontrar nem a imagem, nem o processo judicial.

Não se sabe precisamente a data desse acontecimento. Não foi encontrado nenhum

documento que indique uma data precisa para esse processo de julgamento civil. Tem

algumas especulações por alguns jornais e um memorialista local sobre datas prováveis, final

do século XVIII, início do século XIX, mas nada decisivo. “Assim corre e ressurge para os

moradores da região a velha história da maldição, que data dos fins dos séculos XVIII.”26

.

Os entrevistados afirmam que esta história era contada por seus bisavós, avós,

pais, tios ou pessoas de mais idade.

Desde quando eu me entendi por gente que eu lembro que as pessoas mais velhas

falavam que Santo Antonio, a imagem de Santo Antônio apareceu lá onde é a

igreja de Santo Antônio hoje, e depois prenderam esta imagem levaram pra Água

Fria e depois de Água Fria sumiu, ninguém sabe pra onde. 27

Depois do episódio do julgamento foi cultivada uma idéia de castigo e maldição,

tanto para Água Fria, quanto para Queimadas. “Eu acredito (na idéia de castigo), Água Fria

acabou, não tem nada. Aqui o povo ainda faz alguma coisa, mas a cidade é fraca, é

derrubada.”28

.

Água Fria, era um centro comercial muito importante, era sede da comarca de toda

a região. Segundo o jornal da Bahia, foi depois do julgamento da imagem de Santo Antônio,

que Água Fria perdeu sua autonomia de comarca para Irará, que foi um dos seus distritos. A

26 Jornal da Bahia, 13 de junho de 1972. Preso o Santo, esta cidade deu pra trás. 27 Entrevista realizada com Dona Maria* no dia 22 de Outubro de 2009 28 Entrevista realizada com a Srª Joana* no dia 15 de novembro de 2009

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cidade começou a perder sua importância e sua riqueza, muitos moradores se mudaram para

outra cidade, a cidade começou a “morrer”. Até hoje a cidade não conseguiu se desenvolver.

A partir da prisão do Santo Antônio e do seu julgamento, a miséria se abateu,

principalmente sobre Água Fria, onde ele ficou enclausurado no quarto da força, da

cadeia local. Se verdade ou não, o certo é que Água Fria que exercia domínio

econômico de Juazeiro ao porto de Cachoeira, hoje não passa de ruínas. Perdeu

inclusive, dias após o julgamento de Santo Antônio sua autonomia para Irará. 29

A partir daí a cidade de Água Fria começou a morrer. Hoje, do importante centro

comercial que foi outrora, não passa de ruínas, silencio. Com menos de mil

habitantes, ruas vazias, a grande praça verde, a grandiosa igreja de outrora, as

ruínas da cadeia antiga vai desaparecendo aos poucos. 30

Em Queimadas esta idéia de maldição também foi cultiva, por muitos

supersticiosos, ligando tudo o que acontecia de ruim à cidade a prisão de Santo Antônio.

Entre 1910 e 1911, Queimadas sofreu a duas enchentes do rio Itapicuru-Açu a

primeira em 26 de dezembro de 1910 e a segunda no final de fevereiro de 1911. Estas

enchentes consecutivas destruíram a cidade, das 450 casas existentes só restaram cinquenta. A

população de 2.500 habitantes foi reduzida a mil. Isto só fortaleceu a idéia de castigo sobre

Queimadas.

Em menos de vinte e quatro horas a impetuosidade do Itapicuru-Açu arrastou rio a

baixo quase que totalidade das casas, restando em pé 28 residência erguidas em

1845 e mais 22 outras, nas colinas a margem esquerda da ferrovia. De 2.500 foi

reduzida para mil a população da cidade e isto provocou em 6 de março de 1911, a

transferência da sede do Termo para o arraial de Itiúba . Era a maldição que se

repetia.31

Até hoje encontramos escombros das casas que foram destruídas nesta época, boa

parte da igreja Matriz, que estava sendo construída toda de pedra, foi derrubada ficando

apenas a fachada, até hoje existente nas intermediações dos Lions Clube.

Depois deste episódio, Queimadas foi reconstruída distante das margens do rio

Itapicuru, onde está localizada a prefeitura e a cadeia pública. As casas foram construídas

nesta área, mas com o aumento da população muitas pessoas construíram suas casas no

mesmo local onde as enchentes destruíram as antigas casas de Queimadas. Essas sofreram

29 Jornal da Bahia, Edição Especial, 10-05-1976. Prisão de Santo foi maldição para Queimadas e Água Fria 30 Idem 31 Idem

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várias outras enchentes e permanecem erguidas graças ao material utilizado atualmente que

são mais fortes, como tijolo, cimento, cal..., do que o adobe, a taipa, o barro que era usado pra

construir as casas antigamente.

Queimadas sofreu com mais dois acontecimentos catastróficos que para muitos

místicos só é mais uma prova de que Queimadas é um lugar amaldiçoado: a guerra de

Canudos (1896) e um assalto cometido por Lampião (1929) os quais tiraram à paz da cidade.

Durante a Guerra de Canudos, Queimadas serviu de ponto de chegada e de partida

das tropas dos soldados, jornalistas, médicos e políticos, que vieram combater em Canudos.

Assustando os moradores a ponto de largarem suas casas e se esconderem dentro do mato.

Da mesma forma, o assalto que Lampião realizou em Queimadas em 22 de

dezembro de 1929 foi também um momento muito difícil para seus moradores, pois além de

saquear toda a cidade ele assassinou sete soldados que prestavam serviços na segurança da

cidade. Este episódio foi interpretado como mais uma forma de castigar a cidade de

Queimadas por causa da condenação de Santo Antônio.

Em algumas entrevistas ainda vemos que esta idéia de maldição ainda permanece

no imaginário das pessoas, fixando a idéia que os moradores de Queimadas pagam pelos erros

cometidos no passado por seus antepassados, pois a cidade não progride, até consegue

algumas vitórias, mas logo depois as perde. Como afirma Wunenburger “o imaginário serve

para dotar os homens de memória fornecendo-lhes relatos que sintetizam e reconstroem o

passado e justificam o presente.32

Santo Antônio foi um Santo muito sofrido eu lembro que a minha avó falava que na

época tinha um padre que saiu de Queimadas e bateu a terra das sandálias dizendo:

que Queimadas era de ser queimadas pro resto da vida. E dessa vez, acho que nós

hoje não temos nada com isso, estamos pagando alguma coisa, né?33

Depois disto vieram àqueles capuchinhos e disse que Queimadas tinha que ser

queimadinha, que ia ter um dilúvio que ia acabar com a cidade, justamente no ano

de 11, passou a enchente carregou a metade da igreja da Matriz e aí vem

acontecendo isso, Queimadas ta cada vez mais afundando e parece que tem que ser

Queimadinha mesmo! Tudo indica que parece, cada vez vai piorando.34

32 WUNENBURGER. O imaginário. São Paulo. Loyola, 2007. p.63 33 Entrevista realizada com Dona Maria* no dia 22 de Outubro de 2009 34 Entrevista realizada com Sr. João* no dia 10 de Julho de 2009

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Queimadas é chamada por muitos dos seus moradores da cidade do “que já teve”,

pois durante os seus 125 anos de existência já foi bastante próspera, com o maior núcleo

populacional da região. E hoje é uma cidade sem muitos progressos.

Cidade do que já teve, consolidou como um ditado popular por causa das coisas

que já existiram em Queimadas e que com o tempo não progrediram, ao contrário se

dissiparam. Queimadas vivia praticamente da produção de sisal, hoje quase que não

encontramos cultivo de sisal na cidade, as batedeiras – locais onde se processava o sisal para

depois ser exportado para outras cidades – quase que não funcionam mais. “Os homens

inventam, desenvolvem e legitimam suas crenças em imaginários na medida em que essa

relação como imaginário obedece as necessidades, satisfações, efeitos a curto e a longo prazo

que são inseparáveis da natureza humana.”35

Houve várias agências bancárias – Baneb, Brasil, Nordeste - hoje apenas existe

Banco do Brasil e uma cooperativa de crédito de produtores e cooperados - ASCOOB. Teve

duas filarmônicas; Queimadas foi sede da COELBA – empresa responsável de distribuição de

energia da Bahia; as tradições populares estão minguando a cada ano que se passa existiam

várias festas populares como cantos de reis, carnaval, São João, desfile cultural no dia da

lavagem da igreja de Santo Antônio, hoje transformada em micareta, dentre outras.

“Queimadas já teve, já teve várias coisas que acaba! Várias coisas e caiu, teve duas coletorias,

teve federal e teve estadual, perdeu. Até a Coelba que era daqui perdeu também, foi pra outra

cidade, até a embasa é dominada de Santa luz.”36

Queimadas já teve algumas fábricas que possibilitaram a muitos jovens e pais de

família a terem um emprego na própria cidade, mas infelizmente não durou muito tempo

fechando e forçando a ida de muitas pessoas tentarem melhorias de vida em outras cidades

maiores com mais chances de empregos.

Outro fato que entristece a população inteira é o abandono do rio Itapicuru, rio que

banha a cidade, que sustenta muitas famílias e que poderia sustentar muito mais, está

morrendo a cada dia. Recebendo os esgotos da cidade inteira, sem tratamento, entulhado por

areia em pontos centrais, as encostas estão sendo devastadas, as pessoas jogam lixo na beira

do rio.

A cidade hoje é sustentada basicamente pelos empregos que a prefeitura

disponibiliza alguns empregos estaduais, pelos aposentados que às vezes sustenta famílias

inteiras, pelo pequeno comércio local, por pequenos agricultores e pecuaristas. Nada muito

35 WUNENBURGER. Op.cit. p.54 36 Entrevista realizada com Sr. João* no dia 10 de Julho de 2009

Page 19: Que a justiça de água f ria te condene. o julgamento de um santo sertão baiano

significativo, grande prova disso é que a maioria dos jovens sai em busca de condições

financeira para uma melhoria de sua vida.

Este ditado da cidade do que já teve é conhecido também em várias outras cidades,

pessoas que já moraram ou que tem parentes em Queimadas ou turistas atribuem este ditado a

cidade diante dos acontecimentos.

Muitos dos entrevistados concordam com o ditado e afirmam que é resultado da

prisão de Santo Antônio, como uma forma de castigo para pagar tal atitude que envergonha a

cidade.

Mas também temos muitas pessoas que concordam com o ditado da “cidade do

que já teve”, porém não concordam com a idéia de castigo. E sim que as coisas que deixaram

de existir em Queimadas é reflexo das atitudes do corpo administrativo que desde o início

comandam a cidade, os quais só pensam em crescer suas contas bancárias e não pensam no

bem do povo e da cidade.

Bem esse ditado é interessante né, por que as vezes as pessoas fazem essa gozação

da própria cidade , né, mas se a gente observar bem toda cidade, é cidade do já

teve, né, por que as coisas se evoluem, então hoje tem precisão de ter uma coisa,

uma organização, e bom tem, amanha as coisas mudam, também essas coisas vai passando vai se multiplicando ,essa gozação que o povo tem é por que as vezes

umas coisas que parecem que florescem, não é , de uma hora pra outra esmorecem,

mas isso é na minha opinião é coisa comum, não é só em Queimadas que acontece

isso!37

A idéia do já teve existe. O que a senhora pensar Queimadas já teve. Queimadas já teve três bandas de músicas, Queimadas já teve três clubes, hoje não tem

nenhum funcionando, né, agora, é uma infinidade de coisas que Queimadas já teve

que não tem mais. (...) Mas não tem influência disso (a prisão de Santo Antônio). É

que nossos políticos não se interessam em adquirir as coisas...38

Queimadas é uma cidade centenária que tem um desenvolvimento tardio, seus

moradores terminam se acomodando com a situação uns atribuindo isto ao julgamento do

santo como forma de pagar por este pecado e outros culpando a ação dos administradores em

geral, mas sem se colocarem como agente ativo deste desenvolvimento e também responsável

pelo retrocesso da cidade.

37 Entrevista realizada com Sr. Marcelo* no dia 23 de julho de 2009 38 Entrevista realizada com Sr Zeca* no dia 18 de agosto de 2009

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Conclusão

A história da fundação da cidade de Queimadas está atrelada ao suposto

aparecimento da imagem de Santo Antônio. Depois da construção da capela os romeiros

vinham venerá-la e muitos desses ficaram definitivamente morando em Queimadas. E com a

facilidade dada pela dona das fazendas, Maria Isabel Guedes de Brito, para quem quisesse

residir, a localidade começou a crescer e se desenvolver.

As trezenas que acontece todo ano, 1 a 13 de junho, atraem várias pessoas de

cidades vizinhas e dos povoados em torno de Queimadas, para acompanhar as procissões, as

orações e os leilões.

O julgamento da imagem de Santo Antônio é um episódio misterioso, não temos

explicações para tal atitude na lei humana. Levando em conta que a veneração e o respeito

que era prestada a todos os santos, principalmente a Santo Antônio que era um santo muito

requisitado pelos fiéis para resolver todo o tipo de problemas, passando por arrumar um

marido, achar coisas perdidas até curar doenças. Até títulos militares ele ganhou por causa da

sua proteção.

Mesmo não tendo fontes documentais que comprove que a imagem de Santo

Antônio das Queimadas passou por um julgamento criminal, esta história foi passada por

gerações através da oralidade, ficando viva até hoje no imaginário dos queimadenses, sendo

um forte fato que faz parte do histórico da cidade.

Diante de todas as observações leva-nos a pensar que houve uma necessidade da

população de apropriar-se da representação da condenação de um santo para justificar a

decadência da cidade.

Apesar da idéia de castigo ainda permanecer no imaginário de alguns moradores

queimadenses, muitos já se libertaram desta idéia responsabilizando o homem como o único

culpado pela regressão acontecida a cidade. E que o homem é também responsável pelo

progresso e que deve lutar por isso, sem ficar se escondendo atrás de uma lenda, usando-a

para querer justificar tudo de ruim que acontece.

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