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QUEM LÊ VYGOTSKY? REFLEXÕES ACERCA DO QUE É LIDO SOBRE A TEORIA DE VYGOTSKY NAS LICENCIATURAS Liliam Cristina Caldeira - UFMS 1 Sônia da Cunha Urt - UFMS 2 Ler pelo não, quem dera! Em cada ausência, sentir o cheiro forte do corpo que se foi a coisa que se espera. Ler pelo não, além da letra, Ver, em cada rima vera, a prima pedra, Onde a forma perdida Procuras procuras seus etcéteras. Desler, tresler, contraler, Enlear-se nos ritmos da matéria, no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora, navegar em direção às Índias e descobrir a América. (LEMINSKI, 1991, p.87) A origem do estudo As reflexões propostas, nesse trabalho, acerca do que se lê sobre a teoria de Vygotsky nas licenciaturas têm origem no projeto de pesquisa intitulado Inventário da Obra de Vygotsky, desenvolvido no Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicologia e Educação – GEPPE da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. 3 Esse projeto foi iniciado no ano de 2006 e continua em andamento, seu propósito inicial é a organização de um banco de dados das obras de Vygotsky, de seus seguidores e intérpretes publicadas no Brasil. Esses procedimentos vêm sendo realizados em bibliotecas universitárias, sítios de busca on line, livrarias e acervos pessoais. O levantamento das obras editadas no Brasil será seguido da busca por obras e trabalhos de pesquisa editados no exterior, em um processo de atualização contínua das informações registradas. As obras já levantadas foram registradas em planilhas individuais 1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicologia e Educação – GEPPE; bolsista FUNDECT. 2 Profa. Dra. da UFMS/CCHS/DCH/ PPGEdu; coordenadora do GEPPE (orientadora). 3 Vale ressaltar o estudo de Martins (1999, 2005) contendo um significativo levantamento da bibliografia básica sobre Vigotsky e outras referências, tais como site.

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QUEM LÊ VYGOTSKY?

REFLEXÕES ACERCA DO QUE É LIDO SOBRE A TEORIA DE VYGOTSKY NAS

LICENCIATURAS

Liliam Cristina Caldeira - UFMS1 Sônia da Cunha Urt - UFMS2

Ler pelo não, quem dera!

Em cada ausência, sentir o cheiro forte do corpo que se foi a coisa que se espera.

Ler pelo não, além da letra, Ver, em cada rima vera, a prima pedra,

Onde a forma perdida Procuras procuras seus etcéteras.

Desler, tresler, contraler, Enlear-se nos ritmos da matéria,

no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora, navegar em direção às Índias

e descobrir a América. (LEMINSKI, 1991, p.87)

A origem do estudo

As reflexões propostas, nesse trabalho, acerca do que se lê sobre a teoria de

Vygotsky nas licenciaturas têm origem no projeto de pesquisa intitulado Inventário da Obra

de Vygotsky, desenvolvido no Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicologia e Educação –

GEPPE da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS.3

Esse projeto foi iniciado no ano de 2006 e continua em andamento, seu

propósito inicial é a organização de um banco de dados das obras de Vygotsky, de seus

seguidores e intérpretes publicadas no Brasil. Esses procedimentos vêm sendo realizados em

bibliotecas universitárias, sítios de busca on line, livrarias e acervos pessoais.

O levantamento das obras editadas no Brasil será seguido da busca por obras

e trabalhos de pesquisa editados no exterior, em um processo de atualização contínua das

informações registradas. As obras já levantadas foram registradas em planilhas individuais

1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicologia e Educação – GEPPE; bolsista FUNDECT. 2 Profa. Dra. da UFMS/CCHS/DCH/ PPGEdu; coordenadora do GEPPE (orientadora). 3 Vale ressaltar o estudo de Martins (1999, 2005) contendo um significativo levantamento da bibliografia básica sobre Vigotsky e outras referências, tais como site.

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contendo dados bibliográficos e uma síntese produzida a partir de informações presentes na

capa, sumário e/ou na introdução do trabalho encontrado.

Em seguida, os dados registrados foram dispostos em tabelas assim

classificados: livros completos, capítulos de livros, artigos de periódicos, teses e dissertações.

Os modelos de planilhas e tabelas utilizados estão apresentados a seguir:

a) Modelo de planilha destinada ao registro das informações bibliográficas e

breve síntese de cada produção localizada.

PROJETO: Inventário sobre a Produção de Vygotsky

PLANILHA PARA LEVANTAMENTO DAS PRODUÇÕES PARA LIVROS

Registrar os termos utilizados para busca:

I- Dados de Identificação Instituição onde foi localizado : UFMS( ) UCDB( ) UNIDERP ( ) OUTRAS ( )IDENTIFICAR Título: Autor: Editora: Número de edição: Local de publicação: Ano de publicação: Síntese: Nº. na biblioteca (localização): Planilha 1 – Para livros completos

b) Modelos de tabelas produzidas com a finalidade de organizar os trabalhos

encontrados a partir do seu portador de texto: livro completo, capítulo de livro, artigo de

periódico, tese e dissertação.

ANO TÍTULO AUTOR EDITORA LOCAL SÍNTESE Tabela 1 – Livros completos

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ANO TÍTULO AUTOR UNIVERSIDADE ORIENTADOR LOCAL SÍNTESE Tabela 2 – Teses

A partir desses procedimentos pretendemos organizar um acervo para

consulta que será disponibilizado aos pesquisadores da área por meio das atividades e

publicações do GEPPE.

No decorrer dos levantamentos realizados em bibliotecas universitárias

constatamos o destaque às obras de intérpretes nacionais de Vygotsky nesses locais, em

detrimento da presença das próprias obras desse pensador e dos seguidores diretos da sua

escola, como Luria, Leontiev e outros. Essa constatação nos levou a indagar o que é lido

acerca da teoria de Vygotsky nas licenciaturas.

Foi a partir desse questionamento que desenvolvemos o estudo aqui

apresentado. Então, para essa finalidade coletamos informações de acadêmicos inseridos em

licenciaturas de instituições de ensino superior localizadas em Campo Grande - MS, de

caráter público e privado.

Os licenciandos que concordaram em colaborar com nosso estudo

responderam a um formulário composto por questões fechadas/objetivas (com alternativas) e

dissertativas acerca do que leram sobre a teoria formulada por Vygotsky e também sobre o

que conhecem acerca de sua vida e suas idéias.

O questionário foi organizado em duas partes, sendo que a primeira

objetivava registrar as concepções acerca da Psicologia da Educação e a segunda,

especificamente a obra de Vygotsky. Dentre as questões propostas centramos nosso foco de

análise no conhecimento do acadêmico sobre a vida e a obra de Vygotsky, sobre o que foi lido

acerca desse teórico e de que forma essa atividade ocorreu.

Para explorar as contribuições das leituras sobre pensamento desse autor

para o docente em processo de formação inicial tomamos, nesse texto, uma trajetória de

reflexão que tem início com a apresentação das origens desse estudo, da consideração da

leitura como prática histórica e cultural e, também, seu espaço na formação do professor.

Depois disso, buscamos articular os subsídios que a teoria de Vygotsky pode

proporcionar à formação docente e ao processo de constituição desse educador. Então, nesse

momento discutimos mais objetivamente os dados levantados.

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Para um começo de conversa: a historicidade da leitura e do leitor

Até o final do século XVIII, os livros eram muito diferentes do que são hoje

e o prazer do leitor não se limitava apenas ao texto. Havia um prazer estético, ligado ao

aspecto gráfico, relacionado às letras góticas, páginas com iluminuras, xilogravuras para as

ilustrações, etc. O leitor tinha um objeto de arte nas mãos e era com essa expectativa estética

que se aproximava do livro. Só após desfrutar desse prazer gráfico ele se mobilizava em busca

do texto. Segundo Barbosa (1990):

O livro nos séculos compreendidos entre o fim da Antiguidade e a alta Idade Média, e com ele a escrita, sofre um processo de transformação que o faz passar de instrumento de transmissão de cultura, como acontecia na Idade Clássica, para símbolo sagrado, que o povo pode venerar, mas não entender (p.98).

Nesse momento, o ato da leitura ainda tinha muito da aura religiosa dos

livros sagrados da Idade Média. O monopólio da instrução ficou com a Igreja, restringindo-se

a vida intelectual aos mosteiros. Assim, só fazia sentido aprender a ler ao se seguir a vocação

religiosa. A leitura era ensinada em latim, decorando o Livro dos Salmos, livro de leitura

elementar. Ensinar os Salmos significava ensinar a ler.

Aos monges também cabia a tarefa de copiar os códices, a fim de conservar

o patrimônio acumulado pela humanidade e isto era feito nos scriptorium, conforme Eco

(1983).

Enquanto os monges copiavam, liam “murmurando”. A oralização da escrita

era a forma habitual do leitor encontrar, através do sinal gráfico, o significado da escrita. A

leitura era concebida como um ato realizado em voz alta, através da subvocalização, ou

vocalização da escrita. Considerava-se inconcebível ler sem apelar para o som da escrita.

O abandono da leitura oralizada e a adoção da leitura silenciosa ocorreram

nos séculos IX e XV, no interior dos mosteiros e isso se justificou por dois motivos

principais:

Primeiramente, a compreensão dos autores clássicos da Antiguidade exigia do leitor do século IX procedimentos mais complexos de leitura do que mera reprodução sonora da palavra manuscrita. Em segundo lugar, a introdução de inovações técnicas na reprodução dos manuscritos antigos resultou numa maior legibilidade do texto. Assim, o uso recente de um novo tipo de letra – a Carolina; mais regular, arredondada e sem ligadura; a adoção da prática de separar as palavras por espaços em branco e a introdução dos sinais de pontuação; e a normatização da ortografia latina, levada a cabo pelos gramáticos de Carlos Magno, certamente representaram um grande avanço no sentido de reduzir obstáculos gráficos do texto. Todos esses aspectos

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técnicos criaram uma nova arquitetura da paginação do manuscrito, resultando em um texto reconhecível visualmente e, portanto, mais legível; poderiam ter provocado, desse modo, estratégias de leitura mais elaboradas e eficazes (BARBOSA, 1990, p.100).

Em meados do século XI, a Igreja perdeu progressivamente o monopólio do

ensino e a educação foi se propagando para fora dos muros dos monastérios tornando-se laica.

De acordo com o mesmo autor, o acesso às obras de grandes pensadores e

filósofos autores da Antiguidade, antes trancados em mosteiros, passou a estimular a leitura,

reflexão e liberdade de pensamento, anunciando os perigos da aliança entre a razão e a fé.

Assim, o livro se tornou o instrumento de trabalho do professor. O ensino era calcado na

oralidade e o professor, então apelava para o ditado como recurso didático.

Novos recursos como paginação, sumário, listagens de abreviatura

utilizadas no texto, a pena de cana trocada pela pena de ganso, que agilizava o ato de escrever,

facilitavam o trabalho dos copistas que procuravam atingir a demanda de leitores que

aumentavam cada vez mais. Também os óculos foram inventados nos século XIII (1444) e,

mais tarde, a imprensa, por Gutenberg, nos meados do século XV. Esses fatores constituíram-

se decisivos para o universo da leitura.

Conforme Manguel (1997), até o final do século XVII, a relação do leitor

com o livro restringia-se aos livros sacros, principalmente a Bíblia. A partir do século XVII o

mercado foi invadido por obras profanas como os almanaques, calendários, contos amorosos e

populares, que por sua vez tiveram grande repercussão nas camadas menos favorecidas da

sociedade.

Com a Reforma Protestante, Martinho Lutero estabeleceu uma

transformação na relação do homem com Deus e vislumbrou a obrigatoriedade da escola,

considerando que a salvação do homem só podia ser alcançada na relação direta com o Livro

Sagrado, a Bíblia. Suas idéias em pouco tempo foram expandidas pela Europa e a prática da

leitura ganha novos adeptos.

A Contra Reforma, preocupada com Lutero e seus procedimentos em

relação à Igreja e às escolas, elaborou uma ideologia da escola, que era tida como inseparável

da educação cristã. Com isso, surgiram colégios jesuítas que se propagaram por diversos

países da Europa e Continente Americano.

Com esses movimentos pode-se dizer que teve início a história da

alfabetização em massa.

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No século XVIII, os escritores ainda não eram considerados como grupo

social distinto sendo que, o monopólio dos direitos autorais de suas obras era dos editores. Os

romances não eram vistos com bons olhos, principalmente se tratavam de amor e se seus

leitores eram mulheres, sendo considerados moralmente suspeitos ou forma inferior de

literatura.

Em 1761, o romance La Nouvelle Héloise, de Rousseau, marcou uma

revolução na leitura, pois as pessoas chegavam a alugar o livro por dia ou por hora para ler.

Surgiram também escritores de todos os segmentos da sociedade: nobres, padres, médicos,

advogados. Com isso, surgiram os clubes de leitura (cabinets litteraires), onde a aristocracia

se reunia para ler os mesmos livros.

Multiplicaram-se bibliotecas, estimulando o mercado de livros, de onde se

destacaram livros de viagens e história, sentimentais e obras moralistas. Também se

enfatizaram obras pedagógicas e infantis, divulgando uma atitude moral para com as crianças

e uma nova forma de supervisionar a educação.

A leitura passou a ser concebida como formação para a vida, principalmente

a familiar, com um sentido utilitário e não como algo que gera prazer.

O século XVIII marcou a formação de um público leitor em razão de fatores

como: a ampliação das oportunidades de acesso ao saber em razão da invenção da imprensa e

do desenvolvimento de técnicas de reprodução gráfica e da ampliação do sistema escolar para

diferentes camadas da população.

Nesse momento, a leitura e a escrita tornaram-se de fato aprendizagem

escolar. As mudanças ocorridas no desenvolvimento da imprensa e os novos estilos de obras

aconteceram devido às exigências do público leitor.

Se a formação de um público leitor cada vez mais exigente promove transformações nos processos de circulação da cultura, por sua vez, a nova indústria – a tipografia – transforma-se e se desenvolve, gerando a necessidade de formação de um público leitor – consumidor em número cada vez maior. A habilidade de ler gradativamente toma conta de amplas camadas da população, graças à ação da escola; a literatura popular amplia seu público, gerando a “leituromania” – que levou pedagogos da época a campanhas de esclarecimento e alerta contra os perigos da leitura em excesso (BARBOSA,1990, p.106).

O leitor do século XVIII também viu a necessidade e a urgência de receber

notícias e, a precariedade dos meios de comunicação colaborou para surgirem os pombos-

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correio, em 1840 e os primeiros anúncios publicitários surgiram no primeiro jornal cotidiano

Il Século Gazzeta de Milano (ibidem, p. 108).

Segundo Chartier e Cavallo (1998), desde a Antiguidade, o ato de ler foi

assumindo novas dimensões a partir da transformação do texto, da sua condição de produção

material. O ato de ler passou a estabelecer novos parâmetros para a constituição do leitor que,

cada vez mais, pôde ampliar seus conhecimentos e possibilidades.

Muitas foram as transformações produzidas sobre o texto, o leitor e a prática

da leitura, desenvolvemos diferentes tipos e portadores de texto.

No Brasil, até meados do século XIX quase não existiam livros de leitura nas

escolas brasileiras, sendo que documentos de cartório, cartas, Constituição do Império,

Código Criminal e a Bíblia serviam como manuais de leitura nas poucas escolas primárias

existentes.

Nesse mesmo século, com a implantação da imprensa régia, em 1808 e

depois com as tipografias que apareceram no Rio de Janeiro surgiram editores como

Laemmert, Garnier e outros, que foram preenchendo lacunas; livreiros como Paulo Martim e

Manuel Jorge da Silva, Evaristo da Veiga e Mongie, Paula Brito. Vale ressaltar que só a partir

da metade do século é que começaram a surgir livros de leitura destinados às séries iniciais da

escolarização.

A partir de 1900, o público leitor sofreu um aumento justificado pelo

surgimento das primeiras grandes editoras brasileiras e também dos autores brasileiros.

Os livros de leituras e didáticos foram muito mais produzidos no período

que compreendia a década de 20 até meados da de 50. Ao mesmo tempo, algumas Reformas

do ensino aconteceram, novos métodos de ensino surgiram sob a influência do movimento

Escola Nova. Com isso, novos modos de ler e novos papéis foram atribuídos à leitura na

escola e na formação docente assim, a leitura silenciosa foi tomando espaço no ambiente

escolar.

Muitos alunos liam obras clandestinamente. A escola, prática e aplicada,

considerava a leitura de obras indesejada e insistia em aboli-la. Considerava-se que a escola

estaria rompendo com o pacto educacional se patrocinasse leituras que atendessem apenas à

imaginação e ao gosto dos alunos.

De acordo com Lajolo e Zilberman (1996), algumas leituras como histórias

em quadrinhos eram proibidas e os alunos liam somente às escondidas, o que demonstra que

havia muitas leituras em circulação, independente do que a escola previa. Esse foi um

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momento em que aumentaram as editoras no Brasil, as produções de livros didáticos se

expandiram e a própria produção literária brasileira, sendo que, os livros de literatura infantil

expandiram-se juntamente com a clientela de leitores antes com pouco destaque, ou quase

esquecida, especialmente pela escola.

Entre os anos de 1950 e 1970, os meios de acesso à leitura aumentaram e,

em conseqüência disso, a quantidade de bibliotecas populares, de bibliotecas ambulantes e de

livrarias também aumentou em diversas cidades do Brasil.

A partir da década de 1970, as séries dos livros de leitura passaram a ocupar

um tempo menor de utilização nas escolas, sendo que, antes eram usadas por 40 a 50 anos.

Isso aconteceu em decorrência da necessidade de atualização do conteúdo,

do desenvolvimento de pesquisas que modificavam o conhecimento pedagógico e das

necessidades comerciais dos editores. Juntamente com os livros de leitura, estavam os de

literatura infantil, que começaram a fazer parte do cotidiano escolar e foi nesse momento que

a literatura infantil se escolarizou de fato.

Desse modo, em muitos períodos da história da humanidade, formar leitores

significava transmitir conteúdos instrutivos, regras, modelos de comportamentos, através de

conceitos centrados em aspectos morais e ideológicos de uma época.

Através da história da leitura em diferentes contextos e tempos é possível

compreender que, para cada comunidade de leitores há normas e convenções sócias de leitura,

usos legítimos do livro, maneiras de ler, instrumentos e processos de interpretação de textos.

Os diferentes grupos de leitores investem na prática da leitura a partir de

suas expectativas e interesses e, disso dependem as maneias pelas quais os textos podem ser

lidos atribuindo diferentes significações e valores a um gesto aparentemente idêntico: ler um

texto. Sobre isso, concordamos com Chartier e Cavallo (1998), ao afirmarem que:

Uma história sólida das leituras dos leitores deve ser a da historicidade dos modos de utilização, de compreensão e de apropriação dos textos. Ela considera o “mundo do texto” um mundo de objetos, de formas, de rituais cujas convenções e disposições incitam e obrigam à construção do sentido. Considera, de outro lado que, o “mundo do leitor” é constituído por “comunidades de interpretação”, segundo a expressão de Stanley Fish, às quais pertencem os leitores (e leitoras) particulares (p. 7).

Desse modo, a concepção de leitura de um indivíduo está relacionada

diretamente com o seu contexto histórico e social. Soares (1986) aponta que a leitura tem

significados, diferenciados para os indivíduos de cada um dos segmentos sociais.

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O sentido que a leitura terá para o sujeito depende das relações que este

estabelece com outras leituras e do momento histórico-social que ele vivencia. O próprio

material que será lido também tem sentidos possíveis de serem atribuídos, nos limites da

materialidade discursiva, mas o resultado da leitura não pode ser totalmente previsível.

Assim, o texto a ser lido e o leitor trazem cada um, as marcas do seu tempo.

E, do encontro que estabelecem não se sabe o que pode surgir. Conhecer o tempo histórico em

que uma obra foi produzida possibilita ao leitor um diálogo mais profundo com o texto.

Nessa perspectiva, ao pensamento de Vygotsky não cabe uma leitura

desenraizada da história. Além disso, ler o texto produzido pelo próprio autor confere um

desafio maior ao leitor futuro professor, desafio esse, à altura do sentido que deve ter a

educação na contemporaneidade.

De acordo com Orlandi (1998), todo leitor tem sua história de leitura e,

portanto apresenta uma relação específica com os textos. Ele se constitui leitor dentro de uma

memória social de leitura. Os resultados obtidos com sua leitura estão sujeitos a muitas

variantes relacionadas à historicidade do leitor e do autor. Leitor e autor ocupam lugares

socialmente determinados: o leitor, seu lugar na estrutura social, suas relações com o mundo e

com os outros; o autor seu universo, seu lugar na estrutura social, suas relações com o mundo

e os outros.

Por isso, a leitura na formação docente merece um espaço cuidadosamente

criado para contribuir com a constituição de sujeitos não alienados.

Têm sido disseminadas pelos discursos liberais, idéias acerca da condição

de leitor no atual contexto social. Veicula-se que é possível ler tudo e o que quiser. Outra

alegoria suposta é de que se pode conhecer todos os sentidos possíveis e ter acesso facilmente

aos textos, como se a leitura e o acesso a ela fosse uma prática simples e superficial. Mas, o

verdadeiro leitor, aquele que interroga os textos que lê, não se constitui na calada da noite,

torna-se leitor por um exercício processual e sistemático.

Ao futuro professor atribui-se a responsabilidade exclusiva pelo seu

desempenho enquanto leitor, atribuindo os méritos e fracassos à sua iniciativa própria,

desconsiderando-se de censura, orientações ou de condições materiais.

As idéias que todos podem e têm condições de tudo ler e interpretar,

independentemente do processo formativo em que estão inseridos mascaram a importância do

trabalho de leitura como uma atividade formativa e confere ao sujeito a tarefa de construir

livremente sua história de leitura.

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A formação docente também tem aderido ao discurso do fazer individual,

reforçado pela precariedade nas instituições de ensino, no que se referem às bibliotecas,

recursos para aquisição de livros, direcionamento do trabalho com as leituras e até

desinteresse político das instituições.

Nesse sentido, Soares (1986) afirma que:

O espaço da leitura fica reduzido ao domínio, por um lado, do literário e por outro lado o científico, de modo a evitar outros sentidos para a leitura, outras possibilidades de filiação para o sujeito-leitor. É necessário considerar a prática da leitura não como atividade neutra ou definitiva, mas como determinada pelas práticas sociais e, portanto, relacionável ao espaço de representações possíveis nesse contexto.(p.26)

Podemos ultimar que as concepções de leitura variam em função das

práticas sociais de leitura e das características do suporte da escrita de cada época. Segundo

Barbosa (1990) a leitura é histórica e tais concepções entorno dela também se estruturam em

decorrência de fatores econômicos, sociais, culturais e políticos.

O papel ocupado pela leitura na nossa sociedade, em especial na formação

docente, pode contribuir para a produção de uma existência humana cada vez mais livre, uma

vez que, a produção do novo implica na apropriação do que já foi produzido pela humanidade

e esse percurso prevê a passagem do docente, inevitavelmente, pela leitura.

Uma sociedade que prioriza o desenvolvimento humano para além da idéia

de escolarização e certificação considera e reconhece o ensinar e o aprender como ato

político.

Dessa maneira, a prática de leitura corresponde às finalidades de um

processo educativo transformador com implicações diretas na constituição do sujeito

professor e de sua coletividade. O espaço produzido para a leitura na formação docente tem

implicações políticas.

O pensamento a ser lido.

Ler Vygotsky implica em ler seu tempo histórico, em ler o estado do

conhecimento no campo da psicologia e da educação na sua época. Essa é uma leitura

desafiadora que não pode ser simplificada, reduzida às sínteses superficiais do seu

pensamento.

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A produção teórica de Vygotsky foi marcada por profundas mudanças de

orientação que incluem diferenças de assunto, estilo e conceitos que, segundo Minik (2002),

possibilitam classificar o seu trabalho em três fases.

A primeira (1925-1930) que foi caracterizada pela atenção dada à mediação

e as funções mentais superiores pode ser contextualizada em meio a três grandes tendências

da psicologia assinaladas por: foco tradicional na consciência como objeto de investigação

psicológica; restrição ao estudo do comportamento, dos reflexos ou da reação; síntese das

duas perspectivas anteriores.

Entretanto, Vygotsky rejeitou as três criticando-as por: separar mente e

consciência do comportamento levando a uma falsa definição do objeto da investigação

psicológica e desconsideração do comportamento; por voltar-se para o comportamento, porém

isolando-o do conceito de mente; por rejeitar uma psicologia unificada, composta pela mera

junção dos construtos behavioristas e subjetivistas.

Foi a partir dessas críticas, dado ao seu juízo rigoroso, que Vygotsky

direcionou-se para a premissa de que para se construir uma ciência psicológica

verdadeiramente unificada seria necessário superar o isolamento conceitual de

comportamento e consciência, por meio do desenvolvimento de um novo sistema de

conceitos.

De 1925 a 1930 Vygotsky se concentrou numa atividade analítica –

conceituar consciência e comportamento como aspectos de um todo unificado. Porém, de

acordo com Minik (2002), ele não tinha uma solução satisfatória para a problemática que

levantou, mas desenvolveu conceitos essenciais para os trabalhos posteriores.

O esforço de resolver tal questão conceitual resultou naquilo que ficou

conhecido mais tarde como teoria da atividade1. No seu empenho em obter uma ciência

psicológica unificada, Vygotsky primou por defender a idéias de que os processos

psicológicos tinham que ser explicados ao invés de simplesmente descritos.

Vygotsky considerou consciência e pensamento características

essencialmente humanas, diferenciando homens de outros animais. Para ele, a fonte de

consciência e pensamento não estaria em estruturas biológicas, ou na aprendizagem do

indivíduo isolado, mas na experiência sociocultural historicamente desenvolvida. Nesse

percurso, a linguagem foi concebida como o mecanismo comum tanto ao comportamento

social quanto aos processos psicológicos que são exclusivos dos humanos.

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Porém, esses conceitos não deram conta de todo o arcabouço teórico dessa

nova psicologia. Com isso, diversos pontos foram mantidos em aberto e acabaram se tornando

aspectos frágeis da psicologia que ele almejava construir.

Em meio a esses avanços e percalços nasceu a preocupação com a conexão

entre interação social verbalmente mediada e o desenvolvimento das funções psicológicas. De

modo que, de 1926 a 1930, ainda na primeira fase, Vygotsky intensificou seus esforços em

demonstrar que a linguagem e a interação social subjazem ao desenvolvimento dos processos

psicológicos.

Em razão disso, suas pesquisas foram direcionadas para o estudo das

funções mentais superiores compreendidas por atenção voluntária, memória voluntária e

pensamento racional, volitivo.

Assim, o indivíduo se apropria tanto da organização, quanto dos meios da

atividade social e depois, esses são internalizados levando ao desenvolvimento das funções

mentais historicamente produzidas.

Essas funções são sócio-culturais, suas transmissões dependem de um

processo de ensino e aprendizagem e qualquer função mental superior foi inicialmente externa

e social antes de ser interna.

A segunda fase do pensamento de Vygotsky teve como marco a Conferência

realizada em 1930, nomeada “Sobre sistemas psicológicos”. As reflexões por ele

desenvolvidas assinalaram sua saída da unidade analítica relacionada ao ato instrumental e

funções mentais superiores, para o sistema psicológico, a partir da coleta de material sobre o

uso de sistemas de signos externos rudimentares na mediação do comportamento.

Em decorrência dessa questão, um novo problema de pesquisa foi por ele

proposto: Como o comportamento da criança é estruturado mediante a introdução de signos-

meios externos? Como esse comportamento é internalizado?

Mesmo com esses novos passos, segundo Minik (2002), Vygotsky ainda

deu a devida atenção à pesquisa sobre o desenvolvimento de processos mentais em interação

social. As razões para isso se resumem ao fato de que seu intuito foi demonstrar que a

estrutura e a origem das funções mentais superiores diferem das do comportamento baseado

em instintos ou reflexos condicionados.

Naquele momento, Vygotsky também abandonou o pressuposto de que a

linguagem funciona como um sistema de estímulo no comportamento humano. Evidenciou

isso em seu artigo: As raízes genéticas do pensamento e da linguagem.

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Assim, Vygtsky avançou em seus estudos para a suposição de que todo

comportamento animal não se restringe a um sistema construído com base em unidades de

estímulo-resposta.

Ao abdicar da concepção de que comportamentos complexos se constroem

sobre o fundamento da unidade estímulo-resposta, uma nova perspectiva entre a relação

pensamento e linguagem emergiu, liberando-o de demonstrar como as funções complexas e

volitivas emergem com base na mediação do comportamento por signos. Logo, incorporou

mais plenamente seu conhecimento de semiótica e comunicação na análise do

desenvolvimento psicológico.

Então, dessa fase emergiu também uma concepção mais geral do

desenvolvimento psicológico a partir dessa perspectiva sobre a relação genética entre o que

Vygotsky passou a representar como as funções independentes de pensamento e linguagem.

Com isso, ele avançou na análise do desenvolvimento para além dos processos cognitivos,

incluindo o estudo da motivação e do afeto.

No entanto, ele não conseguiu adaptar seu arcabouço explanatório a essa

nova concepção das funções mentais e seu desenvolvimento. Desse modo, abandonou a

tentativa de explicar o desenvolvimento psicológico em termos da participação do indivíduo

na interação social.

Os anos de 1933 e 1934 marcam a sua terceira fase, balizadas também por

conferências nas quais ele expôs a tentativa de desenvolver um sistema de construtos

psicológicos para analisar os processos psicológicos em conexão com as interações concretas

do indivíduo, diminuindo assim, seu foco na relação entre as funções mentais específicas em

sistemas psicológicos.

Vygotsky começou a enfatizar que a análise do significado das palavras

devia ser empreendida em conexão com a análise do desenvolvimento da função do

significado das palavras na comunicação.

Dessa maneira, ele passou a destacar o significado da palavra na

comunicação e como um componente decisivo da prática social. Em meio a esse lineamento,

a função comunicativa do discurso não pode ser dissociada de sua função intelectual e o

discurso da criança quando visto como atividade social é uma peça chave para o entendimento

de suas mudanças.

A palavra é finalmente trazida à tona como mediadora da interação social e

da comunicação. Com isso, o uso da palavra emerge da prática de gestos indicativos e de

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início, a palavra tem função oral indicativa e não significante, funciona apenas como um

“gesto oral”.

Indo além da interação social, Vygotsky dedicou atenção ao estudo do

desenvolvimento da imaginação da criança por meio da brincadeira, voltando-se para isso, em

um artigo escrito no ano de 1933 e em palestras sobre o desenvolvimento infantil proferidas

entre 1933 e 1934.

Ao explorar o papel da brincadeira no desenvolvimento da imaginação da

criança, ele considerou que a brincadeira evolui de uma forma primitiva como memória da

ação, para brincadeiras onde ela consegue, por meio do uso de “pivôs” em situações lúdicas,

separar o pensamento da coisa. Nesse processo, o brinquedo constitui um instrumento de

transição e a brincadeira compõe um fundamento para a emergência de novas formas de

comportamento e para o desenvolvimento de formas de imaginação e pensamento abstrato.

Portanto, o pensamento de Vygotsky desenvolveu-se pelas seguintes

tendências: a) tentativa constante de estudar o desenvolvimento da consciência em conexão

com o desenvolvimento do comportamento; b) destaque à importância da mediação de

processos psicológicos pela linguagem e a natureza sócio-histórica de certos processos

psicológicos; c) tendência a não abandonar conceitos que tinham sido centrais em seu

trabalho, integrando-os em arcabouços mais gerais.

São muitas as contribuições que o entendimento do pensamento de

Vygotsky pode proporcionar ao educador em formação inicial. Elas se referem à possibilidade

de decifrar os processos internos e externos que dizem respeito ao percurso da aprendizagem,

ao papel da educação na constituição do sujeito, à compreensão do educando como um sujeito

que constrói sua história pessoal a partir das relações sociais que estabelece e também, à

função social da educação no nosso tempo histórico.

Por que ler Vygotsky na formação inicial?

Nas últimas décadas diversos pesquisadores brasileiros têm se dedicado a

investigar em maior profundidade o pensamento de Vygotsky, preocupando-se em situar

historicamente a sua obra.

Conforme Mainardes e Pino (2000) foi de maneira gradual que a teoria de

Vygotsky passou a ser inserida no meio acadêmico brasileiro, o que ocorreu a partir da

segunda metade da década de 70. Já nos anos 1980, em contexto de redemocratização da

nação, alguns grupos de pesquisadores organizaram-se para estudar com maior rigor a obra

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desse autor, que trazia em seu bojo uma abordagem inovadora para os sistemas de ensino,

naquele momento.

O Brasil não fugiu à regra dos demais países ocidentais que passaram

produzir as leituras mais diversas acerca da obra deste teórico, marcadas muitas vezes por

entusiasmo pelas próprias preocupações pedagógicas ocidentais, conforme ressalta Daniels

(2002).

Desse modo, para Mainardes e Pino, foram as necessidades internas do país

que determinaram o sentido da produção desse teórico para os seus estudiosos do ocidente e a

chegada suas idéias na formação docente. Com isso, Vygotsky que passou a ser lido a partir

dos anos 70 no ocidente se difere muito daquele mesmo estudioso dos anos 20 e 30, na União

Soviética.

Isso se deve ao fato de que algumas interpretações do seu pensamento

desvirtuaram, de certo modo, a essência de sua obra, a exemplo de certas traduções que

suprimiram o suporte marxista por ele adotado, acarretando em uma leitura a-histórica de suas

idéias.

São marcos bem mais recentes as produções que recuperam a essência

marxista do pensamento de Vygotsky, com base nas traduções das obras completas em

espanhol e, dessa forma, mantêm maior fidelidade às concepções de mundo e de homem que

se encontram presentes nos seus trabalhos.

A compreensão dos percalços em relação às primeiras interpretações da obra

de Vygotsky no Brasil tem levado os interessados nessa perspectiva a recorrer às traduções

mais recentes, que podem ser consideradas mais fieis às suas idéias.

O acesso às obras de Vygotsky, por si só, também não garante ao educador

em formação a apreensão de suas contribuições, pois essa é uma leitura que precisa ser

orientada, debatida e situada.

A presença ou ausência das obras do próprio pensador nas bibliotecas

universitárias onde o levantamento foi realizado constituiu, para nós, indícios das leituras em

circulação no espaço acadêmico, meio de formação e constituição do sujeito professor.

Então, tomamos a leitura de Vygotsky na formação docente como objeto de

estudo com o intuito de discutir como a Psicologia Histórico-Cultural tem sido trabalhada

nesses espaços de formação.

Trabalhamos com um total de 20 acadêmicos, oriundos de instituições de

ensino superior de natureza pública e particular. Os colaboradores que responderam ao

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questionário estão inseridos em cursos de formação de professores, nas áreas de letras,

pedagogia e geografia.

Ao responderem sobre os teóricos da Psicologia que conhecem cinco

alunos disseram que estudaram e fizeram leituras sobre Vygotsky; seis deles assistiram aulas

expositivas, seis apenas ouviram falar dele e três declararam não conhecer esse autor.

Aqueles acadêmicos que tiveram alguma forma de contato com o

pensamento de Vygotsky relataram que o contexto social do sujeito é um elemento relevante

nessa teoria e que tem contribuições diretas sobre a compreensão acerca do processo

educativo. Essas idéias foram expressas por meio de construções como as expressas nos

depoimentos dos acadêmicos a seguir:

[...] importância de pensar na realidade da criança [...]. (1) O social influencia na formação do indivíduo. (2) [...] trabalha com o conhecimento de mundo da criança. [...] o desenvolvimento do indivíduo é um processo sócio-histórico. (3) [...] a interação da criança exerce um papel fundamental no campo da cognição. (4)

De fato, o contexto social tem papel singular no desenvolvimento do

sujeito e constitui um marco de sua teoria. Para Vygotsky, o funcionamento mental envolve

ferramentas culturais. Nesse sentido, o desenvolvimento dos seres humanos está sempre numa

relação de dependência de interferências externas.

Mesmo quando um indivíduo age isoladamente, seu comportamento é

sociocultural, por ter incorporado as ferramentas culturais socialmente evoluídas e

organizadas.

No entanto, críticas às primeiras apropriações da obra de Vygotsky no

Brasil ressaltam a redução do pensamento desse autor exclusivamente ao “papel do social” no

processo educativo. Dentre nossos colaboradores, aqueles que conhecem Vygotsky, o

conhecem somente por esse prisma.

Os acadêmicos que leram sobre Vygotsky, vivenciaram essa prática no

decorrer das atividades da graduação, em situações de formação continuada nas escolas onde

já atuam e também, em grupos de estudos. Além disso, entre esses, encontramos um

acadêmico que assinalou ter realizado essas leituras por iniciativa própria e dois futuros

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acadêmicos lembraram títulos de obras lidas e somente uma era do próprio Vygotsky, com

Luria e Leontiev: Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem.

Foi fator de grande relevância o fato de que os demais colaboradores que

tiveram contato com o pensamento desse estudioso não se recordam de títulos de trabalhos do

próprio autor ou de seus intérpretes que foram empregados nesses estudos.

Ao serem convidados a registrar o que sabem sobre a vida de Vygotsky,

uma parte expressiva dos nossos colaboradores revelou não ter conhecimentos acerca do

contexto histórico e social em que ele viveu e desenvolveu suas idéias. Três acadêmicos

registraram que esse pensador nasceu na Rússia, dois sabem que morreu jovem, um o

identificou como psicólogo, outros três como teórico/pensador dos problemas sócio-

educacionais e um acadêmico lembrou que ele foi contemporâneo de Piaget.

Sobre a forma como a produção teórica de Vygotsky foi trabalhada na

graduação entre aqueles que mostraram conhecer esse pensador na graduação, prevaleceu a

prática de aula expositiva e desenvolvimento de seminários de pesquisa. Porém, os

acadêmicos que registraram essas experiências também se posicionaram criticamente quanto a

superficialidade com que o em questão tema foi tratado nesse processo.

O resultado desse estudo veio confirmar aquilo que temos constatado

informalmente no meio acadêmico: apesar da dimensão que a teoria de Vygotsky tem tomado

no pensamento pedagógico no Brasil, o espaço destinado ao conhecimento dessa perspectiva

na formação inicial do professor continua minimizado.

Os depoimentos coletados revelaram que a obra desse teórico, quando dada a

conhecer na graduação, costuma ocorrer via a leitura de “terceiros”. Ou seja, o futuro

professor conclui sua formação inicial lendo aqueles que “falam” sobre Vygotsky, aqueles

que o interpretam ao invés de ter acesso às suas idéias pela produção do próprio pensador,

pelos seus trabalhos originais.

As constatações que fizemos nessa breve investigação têm implicações sobre

duas dimensões. A primeira delas diz respeito ao conhecimento enviesado da obra de

Vygotsky que pode ocorrer quando o acesso à sua produção teórica ocorre somente via seus

intérpretes contemporâneos, em alguns casos inclusive deslocando o seu pensamento do

contexto histórico e social de sua produção. Tal fato pode vir a comprometer o sentido dos

conceitos por ele desenvolvidos.

Já a segunda dimensão aborda o fato de que o acadêmico de hoje é o

formador de amanhã e diante disso cabe indagar: qual é a condição leitora, ou condição de

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letramento do educador que pouco lê as teorias que fundamentam o processo educativo e seus

sentidos sociais?

Em nosso entendimento, a formação do docente não compreende apenas o

processo de graduação, porém consideramos que esse espaço é primordial para o

aprofundamento acerca das concepções de educação, de homem e de sociedade que

constituirão bases para o trabalho desse educador.

De forma alguma, as informações coletadas para esse estudo compreendem

a totalidade do processo de formação docente nas licenciaturas. Apesar disso, elas constituem

elementos que nos permitem colocar em pauta a temática da leitura na formação docente e

convidar nossos interlocutores para reflexões sobre a forma como o professor tem acesso ao

pensamento de Vygotsky.

Muitas vias de acesso à sua obra têm tomado um caminho que não distingue

conhecimento de informação. Assim, o futuro professor pode estar apenas sendo informado

sobre essa perspectiva teórica ao invés de se apropriar dos seus conceitos e re-significa-los.

Desperdiça-se com isso uma rica possibilidade de atribuir à prática educativa de formação

docente a dimensão constitutiva de sujeitos, capazes de transformar a si próprios e ao seu

meio visando uma condição de existência mais justa.

O direcionamento das leituras do futuro educador rumo às fontes diretas e a

contextualização das mesmas é um dos grandes desafios que nos é colocado no cenário atual.

Assim, falamos de uma leitura que transforma, como escreve Foucambert (1994): ser leitor é

sentir-se comprometido com seu estar no mundo e com a transformação de si, dos outros, das

coisas; é acreditar que se apreende o mundo quando se compreende o que o faz ser como é.

Essa compreensão é inseparável da ação para transforma-lo [...].

Reforçando o que já apresentamos, a informação tem sido posta como

sinônimo de conhecimento, as produções humanas de tempos passados perdem espaço para

respostas superficiais que ganham a conotação de atualidade e o ambiente escolar nos dias

atuais passa a ser esvaziado de sua função social, sendo concebido como espaço de “aprender

a aprender”, mas nunca de apropriação efetiva, no sentido da apreciação crítica feita por

Duarte (2001).

O espaço da leitura e do debate na formação inicial deve assemelhar-se a

uma arena de luta, onde a língua é concebida como “expressão das relações e lutas sociais

veiculando e sofrendo o efeito dessa luta, servindo ao mesmo tempo, de instrumento e de

material”, segundo Bakhtin (1997).

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No meio acadêmico, o espaço produzido intencionalmente para a leitura

configura-se em mais uma das circunstâncias onde o sujeito professor se constitui, em meio

`as leituras essenciais para a compreensão dos processos de aprendizagem e desenvolvimento

Urt e Morettini (2001). Sobre isso, as autoras destacam que:

[...] o “saber docente” é um conhecimento que o professor adquire a partir da internalização das diferentes contribuições, nas trocas vivenciadas, o que significa dizer que, se o professor tiver oportunidade de acesso ao conhecimento produzido, que é repassado e consumido, ele terá mais condições de melhorar a sua prática docente. (p.29)

Nesse trajeto, o aprendiz-futuro, educador, é provocado e transforma a si

próprio, mas leituras como as clamadas aqui precisam ser historicizadas e orientadas. Pois,

como na Pandúria, país imaginado por Calvino (2001), o leitor revisita suas concepções e

transforma sua mentalidade, assim como o ocorrido com os soldados do Estado Maior que

foram enviados a biblioteca local para fazer um levantamento das obras existentes que podem

ser ameaçadoras à nação.

No caso da fantasiosa Pandúria, essa mudança foi ocorrendo de maneira

sistemática e motivadora, com a presença de um bibliotecário, provocador, de nome Crispino,

que, face à inexperiência dos recém-chegados em lidar com tais assuntos, passou a ajudá-los

em suas pesquisas, colocando-os em processo de leitura.

Podemos encerrar essas reflexões sobre leitura e leituras, interpretações e

releituras com a voz de Calvino que com propriedade e clareza nos diz:

Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. [...]Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram(ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). [...] Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. (1993, p.13;14;21)

1 Desenvolvido por Vygotsky e aprimorado por Leontiev, o conceito de atividade foi relacionado à atividade socialmente significativa, serve de princípio explanatório em relação à consciência humana e, também gerador dessa. Para maior aprofundamento ver Leontiev (1978).

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REFERÊNCIAS

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MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras. 1997. MARTINS, J.B. (org.) Na perspectiva de Vygotsky. São Paulo: Quebra Nozes/ Londrina: CEFIL, 1999. MARTINS, J.B. Vygotsky & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. MINIK, Norris. Desenvolvimento do Pensamento de Vygotsky – uma introdução a pensamento e linguagem. In: DANIELS, Harry (org). Uma Introdução a Vygotsky. Trad. Marcos Bagno. São Paulo, Loyola: 2002. ORLANDI, Eni Puccinelli. A leitura e os leitores. São Paulo: Pontes, 1998. SILVA, Ezequiel Theodoro. da.; ZILBERMAN, Regina. Pedagogia da leitura: movimento e história. In: ZILBERMAN, Regina e SILVA, Ezequiel Theodoro da (orgs). Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática,1988. SOARES, Magda Becker. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1986. URT, Sônia da Cunha; MORETTINI, Marly Teixeira. A Difusão do Pensamento da Escola de Vigotski nos meios educacionais. Aquidauana – MS: Mimeo, 2001.