Raios cósmicos e astros humanos - Portal Unicamp · ciência foram feitas, até há pouco tempo,...

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Universidade Estadual de Campinas 10 a 16 de junho de 2002 12 Raios cósmicos e astros humanos Filme conta trajetória de César Lattes e José Leite Lopes, físicos que atuaram na fronteira da ciência DE CÉSAR LATTES A história é a mais importante das ciências. Sei que sem história não há realidade objetiva. A ciência não pode prever o que vai acontecer. Só pode prever a probabi- lidade de algo acontecer. As grandes descobertas da ciência foram feitas, até há pouco tempo, por acaso. Por gente que queria saber como era feita a natureza. Segui então um conselho de Leonardo da Vinci: “Vá aprender suas lições na natureza”. (Optar por voltar ao Brasil depois do sucesso alcançado no exterior) foi só uma gratidão de devolver o que a gente ganhou. DE LEITE LOPES A Universidade de Princeton é uma beleza e deixou em mim traços fantásticos. Além disso, tinha em Princeton os maiores cientistas da época, como Einstein. Então, a gente aprendeu como é que se fazia a Física, como é que se fazia a pesquisa e como isso contribuía para o desenvolvimento do país. Rainer Maria Hilke habitava um castelo solitário e, ali, solitário, ele inventava as poesias dele. Ouçam: “Terra, não é isto que queres? / Ressurgir em mergulho em nós / Não é o teu sonho uma vez se transformar em invisível?/ Eu acho que aqui é a Terra invisível / Nós te construímos com as mãos trêmulas / E nós levantamos as tuas torres, átomo sobre átomo / Assim te pode completar, ó catedral!”. Isso que ele diz à catedral se aplica ao conhecimento, à ciência. Quem poderá completar? Nunca será completado. E, com as mãos trêmulas, você vai construir. M éson Pi é uma subpartícula do núcleo do átomo, fundamental para as pesquisas nucleares. Sua descoberta, em 1947, causou grande impacto na comunidade científica mundial e seu descobridor foi o brasileiro César Lattes, que mais tarde viria a atuar no Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp, escolhendo Campinas para viver até hoje. Ele e José Leite Lopes, outro notável físico compatriota, atuaram na fronteira do conhecimento e participaram da implantação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF, em 1949) e do então Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq, em 1951). Lattes e Leite Lopes integraram uma geração brilhante de cientistas, oriunda da criação da USP e da Universidade do Distrito Federal (UDF), e responsável, simplesmente, pelo surgimento da ciência e da universidade mo- dernas no País. Ambos são os astros de Cientistas Brasileiros, documentário de 52 minutos que se pretende o primeiro de um projeto abordando a história de outros expoentes da ciência brasileira. O filme é dirigido por José Mariani, com narração do músico Arnaldo Antunes, música de Aluisio Didier e fotografia de Guy Gonçalves. “Não é um filme científico, é um filme sobre história da ciência”, ressalta Mariani, que vem negociando a transmissão por canais pagos e também por emissoras estatais como a TV Educativa e TV Cultura. De fato, a linguagem é televisiva. O conteúdo mescla a narração de Antunes com depoimentos dos professores Simon Schwartzman, Alfredo Marques, Fernando de Souza Barros, Marcelo Damy, Henrique Lins de Barros, Amélia Império Hambúrguer, Edson Shibuya e FRASES Humberto Brandi, além dos próprios César Lattes e Leite Lopes. E o resultado é uma história linear, simples e atraente, na qual até mesmo nós, mortais, podemos compreender o que é um Méson Pi. Cinema e ciência – “A ciência não exclui a poesia”, disse em certa ocasião o cineasta Glauber Rocha. José Mariani, diretor de Cientistas Brasileiros, antes da exibição de seu documentário no auditório do Instituto de Física ‘Gleb Wataghin’ (IFGW) da Unicamp, em 15 de maio, permitiu- se complementar com o reverso: “O cinema não exclui a ciência”. Mariani percebeu que existem poucos filmes sobre ciência do Brasil – e sobre cientistas brasileiros –, principalmente da chamada área de “ciências duras”, como Física, Química ou Biologia, de difícil compreensão pelos leigos. Ele explica que a idéia de um filme documentário é muito genérica, ampla, e que esta idéia, na verdade, surge somente à medida que se começa a estudar, a pesquisar os temas. “Lendo, descobri esta geração que começou a fazer ciência no pós-guerra aqui no País. Uma geração brilhante, a primeira que se formou na USP (1934) e, no caso do Rio, com Leite Lopes, a primeira que se formou na Universidade do Distrito Federal (1935). Essas duas instituições criaram a universidade moderna no Brasil”, ressalta o diretor. Mariani, a partir do percurso biográfico desses cientistas, coloca o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron como um legado simbólico da geração que fundou instituições hoje existentes de ciência e tecnologia, como Unicamp, UnB, CNPq e CBPF. “A própria história do CBPF possui um paralelo com o Cinema Novo: Glauber, muito jovem, obteve êxito internacional (conquistou o Prêmio de Cannes) e em cima de seu prestígio se implantou um movimento de cinema moderno. Quero dizer, com isso, que no Brasil as artes independentes (artes, ciências) têm de descobrir e criar seus espaços. No caso do cinema, temos de inventar a viabilização do cinema. Esta geração de cientistas nasceu nesse ambiente”. Cinco filmes – José Mariani e sua equipe levaram exatamente dois anos para concluir Cientistas Brasileiros (de janeiro de 2000 a janeiro de 2002). “Na construção de um documentário, leva-se muito tempo buscando recursos e é preciso transformar esse tempo em capital. Isso acabou ajudando na maturação do processo de edição”, explica o diretor. Professor de cinema na PUC do Rio de Janeiro, Mariani já foi assistente de direção de Tizuka Yamasaki, Eduardo Escorel e David Neves, e adianta que seu projeto engloba cinco documentários sobre cientistas brasileiros. O segundo deverá fazer justiça aos outros físicos da geração que encantou o diretor: Mário Schoemberg, Marcelo Damy, Jayme Tiomni e Maurício Peixoto. Biólogos e botânicos provavelmente serão astros dos filmes seguintes. FRASES O cineasta José Mariani: “O cinema não exclui a ciência” LUIZ SUGIMOTO [email protected] O físico José Leite Lopes em Astros Brasilerios: documentário é o primeiro de uma série Fotos: Antoninho Perri César Lattes, um dos pioneiros do Instituto de Física da Unicamp: descoberta de impacto mundial aos 24 anos Filme conta trajetória de César Lattes e José Leite Lopes, físicos que atuaram na fronteira da ciência

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Universidade Estadual de Campinas10 a 16 de junho de 2002

12

Raios cósmicos e astros humanosFilme conta trajetóriade César Lattes e José LeiteLopes, físicos que atuaramna fronteira da ciência

DE CÉSAR LATTES�A história é a mais importante das

ciências. Sei que sem história não hárealidade objetiva.

�A ciência não pode prever o que vaiacontecer. Só pode prever a probabi-lidade de algo acontecer.

� As grandes descobertas daciência foram feitas, até há poucotempo, por acaso. Por gente quequeria saber como era feita a natureza.Segui então um conselho de Leonardoda Vinci: “Vá aprender suas lições nanatureza”.

�(Optar por voltar ao Brasil depois dosucesso alcançado no exterior) foi sóuma gratidão de devolver o que a genteganhou.

DE LEITE LOPES�A Universidade de Princeton é uma

beleza e deixou em mim traçosfantásticos. Além disso, tinha emPrinceton os maiores cientistas daépoca, como Einstein. Então, a genteaprendeu como é que se fazia a Física,como é que se fazia a pesquisa e comoisso contribuía para o desenvolvimentodo país.

�Rainer Maria Hilke habitava umcastelo solitário e, ali, solitário, eleinventava as poesias dele. Ouçam:

“Terra, não é isto que queres? /Ressurgir em mergulho em nós / Nãoé o teu sonho uma vez se transformarem invisível?/ Eu acho que aqui é aTerra invisível / Nós te construímoscom as mãos trêmulas / E nóslevantamos as tuas torres, átomosobre átomo / Assim te podecompletar, ó catedral!”.

Isso que ele diz à catedral se aplicaao conhecimento, à ciência. Quempoderá completar? Nunca serácompletado. E, com as mãos trêmulas,você vai construir.

Méson Pi é uma subpartícula donúcleo do átomo, fundamental paraas pesquisas nucleares. Suadescoberta, em 1947, causougrande impacto na comunidadecientífica mundial e seu descobridorfoi o brasileiro César Lattes, quemais tarde viria a atuar no Institutode Física Gleb Wataghin (IFGW) daUnicamp, escolhendo Campinaspara viver até hoje. Ele e José LeiteLopes, outro notável físicocompatriota, atuaram na fronteira doconhecimento e participaram daimplantação do Centro Brasileiro dePesquisas Físicas (CBPF, em 1949)e do então Conselho Nacional dePesquisas (CNPq, em 1951).

Lattes e Leite Lopes integraramuma geração brilhante decientistas, oriunda da criação daUSP e da Universidade do DistritoFederal (UDF), e responsável,simplesmente, pelo surgimento daciência e da universidade mo-dernas no País. Ambos são os astros de Cientistas Brasileiros,documentário de 52 minutos que se pretende o primeiro de um projetoabordando a história de outros expoentes da ciência brasileira. Ofilme é dirigido por José Mariani, com narração do músico ArnaldoAntunes, música de Aluisio Didier e fotografia de Guy Gonçalves.

“Não é um filme científico, é um filme sobre história da ciência”,ressalta Mariani, que vem negociando a transmissão por canais pagose também por emissoras estatais como a TV Educativa e TV Cultura.De fato, a linguagem é televisiva. O conteúdo mescla a narração deAntunes com depoimentos dos professores Simon Schwartzman,Alfredo Marques, Fernando de Souza Barros, Marcelo Damy, HenriqueLins de Barros, Amélia Império Hambúrguer, Edson Shibuya e

FRASES

Humberto Brandi, além dos próprios César Lattes e Leite Lopes. E oresultado é uma história linear, simples e atraente, na qual até mesmonós, mortais, podemos compreender o que é um Méson Pi.

Cinema e ciência – “A ciência não exclui a poesia”, disse em certaocasião o cineasta Glauber Rocha. José Mariani, diretor de CientistasBrasileiros, antes da exibição de seu documentário no auditório do Institutode Física ‘Gleb Wataghin’ (IFGW) da Unicamp, em 15 de maio, permitiu-se complementar com o reverso: “O cinema não exclui a ciência”.

Mariani percebeu que existem poucos filmes sobre ciência do Brasil –e sobre cientistas brasileiros –, principalmente da chamada área de“ciências duras”, como Física, Química ou Biologia, de difícil compreensãopelos leigos. Ele explica que a idéia de um filme documentário é muitogenérica, ampla, e que esta idéia, na verdade, surge somente à medidaque se começa a estudar, a pesquisar os temas.

“Lendo, descobri esta geração que começou a fazer ciência nopós-guerra aqui no País. Uma geração brilhante, a primeira que seformou na USP (1934) e, no caso do Rio, com Leite Lopes, a primeiraque se formou na Universidade do Distrito Federal (1935). Essasduas instituições criaram a universidade moderna no Brasil”, ressaltao diretor.

Mariani, a partir do percurso biográfico desses cientistas, coloca oLaboratório Nacional de Luz Síncrotron como um legado simbólicoda geração que fundou instituições hoje existentes de ciência etecnologia, como Unicamp, UnB, CNPq e CBPF. “A própria históriado CBPF possui um paralelo com o Cinema Novo: Glauber, muitojovem, obteve êxito internacional (conquistou o Prêmio de Cannes)e em cima de seu prestígio se implantou um movimento de cinemamoderno. Quero dizer, com isso, que no Brasil as artes independentes(artes, ciências) têm de descobrir e criar seus espaços. No caso docinema, temos de inventar a viabilização do cinema. Esta geraçãode cientistas nasceu nesse ambiente”.

Cinco filmes – José Mariani e sua equipe levaram exatamentedois anos para concluir Cientistas Brasileiros (de janeiro de 2000 ajaneiro de 2002). “Na construção de um documentário, leva-se muitotempo buscando recursos e é preciso transformar esse tempo emcapital. Isso acabou ajudando na maturação do processo de edição”,explica o diretor.

Professor de cinema na PUC do Rio de Janeiro, Mariani já foiassistente de direção de Tizuka Yamasaki, Eduardo Escorel e DavidNeves, e adianta que seu projeto engloba cinco documentários sobrecientistas brasileiros. O segundo deverá fazer justiça aos outros físicosda geração que encantou o diretor: Mário Schoemberg, MarceloDamy, Jayme Tiomni e Maurício Peixoto. Biólogos e botânicosprovavelmente serão astros dos filmes seguintes.

FRASES

O cineasta José Mariani: “O cinemanão exclui a ciência”

LUIZ SUGIMOTO

[email protected]

O físico José Leite Lopes em Astros Brasilerios: documentário é o primeiro de uma série

Fotos: Antoninho Perri

César Lattes, umdos pioneiros do Institutode Física daUnicamp:descobertade impactomundialaos 24 anos

Filme conta trajetóriade César Lattes e José LeiteLopes, físicos que atuaramna fronteira da ciência