Ramon Ferreira - Encontro (2013) Conto

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55 Antologia de poesias, contos e crônicas Ramon Ferreira Nasceu em Paripiranga–BA, em 29 de março de 1989. Criou-se na mesma cidade, transferindo- se para Salvador–BA, onde se formou em Letras. Especializado em Leitura e Produção de Textos, tem atuado como professor em diversos cursos de graduação. Manteve, em 2010, o blog Impressões leves. Tem contos publicados nas Antologias de Contos, Crônicas e Poesias da All Print Editora lançadas na Bienal do Livro de Minas Gerais (maio/2012) e de São Paulo (agosto/2012). Publicou, em janeiro, a série de contos Correspondências íntimas em sua página oficial, onde tem lançado inúmeras outras produções. Para saber mais: www.ramonferreira.com.br ENCONTRO Bem, continuou então: fechou o apartamento e olhou rapidamente o corredor vazio – seu vizinho não percebera que ele estava saindo e, por isso, não abriu a porta para espiar de novo a sua vida – seguiu, assim,

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Ramon Ferreira - Encontro (2013) Conto

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  • 55Antologia de poesias, contos e crnicas

    Ramon Ferreira

    Nasceu em ParipirangaBA, em

    29 de maro de 1989. Criou-se na mesma cidade, transferindo-

    se para SalvadorBA, onde se formou em Letras. Especializado

    em Leitura e Produo de

    Textos, tem atuado como

    professor em diversos cursos

    de graduao. Manteve, em

    2010, o blog Impresses leves. Tem contos publicados nas

    Antologias de Contos, Crnicas e Poesias da All Print Editora lanadas na Bienal do Livro

    de Minas Gerais (maio/2012) e

    de So Paulo (agosto/2012).

    Publicou, em janeiro, a srie

    de contos Correspondncias ntimas em sua pgina oficial,

    onde tem lanado inmeras

    outras produes.

    Para saber mais:

    www.ramonferreira.com.br

    ENCONTRO

    Bem, continuou ento: fechou o apartamento e olhou rapidamente o corredor vazio seu vizinho no percebera que ele estava saindo e, por isso, no abriu a porta para espiar de novo a sua vida seguiu, assim,

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    sozinho, rumo ao lugar onde talvez Ulisses o esperasse. Marcaram o en-contro no Lder s dez horas e aquela deveria ser uma noite especial, pois tudo estava meio fresco e bom. Arrumou um pouco a camisa enquanto descia o elevador e sussurrou um boa noite quase inaudvel ao porteiro que raramente lhe dava alguma ateno. Antes de sair, no entanto, olhou mais uma vez a carteira: no estava mesmo esquecendo-se de nada a noite poderia ser longa.

    Seguiu indiferente pelas ruas mal iluminadas.

    O bairro estava sempre muito movimentado com todo tipo de gente que se possvel imaginar Cristiano se sentia enojado quando via no caminho as pessoas que ficavam a essa hora vendendo o corpo pelas ave-nidas: no entendia como algum poderia transgredir quele estgio de vida.

    Sentia muito medo ainda: no sabia o que o futuro lhe reservava.

    Era mesmo possvel viver dessa maneira? perguntava-se. E, enquan-to caminhava por entre as caladas, ia percebendo que ele prprio estava sujeitando-se a viver sob aquela condio que, inclusive, todos aqueles perdidos na noite escura tambm viviam. Preferiu no pensar.

    Tudo bem: Cristiano sabia que Ulisses no o amava nem mesmo seria capaz diante do que houvera construdo em toda a sua vida, mas, com certeza, no mnimo, Ulisses sentia um carinho muito especial por Cristiano. Impossvel deitar-se com algum na mesma cama e se prestar a todas as suas vontades daquela maneira por todo esse tempo. Sim, Ulisses no o amava era um fato , mas isso nunca aproximou Cristiano quela mesma condio dos que viviam a vender-se nas avenidas imensas.

    Conheceram-se por acaso num desses becos meio imundos que cos-tumam ficar conversando com os amigos e bebendo alguma coisa gelada para lhes aliviar o calor insuportvel que fazia sempre naquela cidade. Olharam-se por um instante o suficiente para que Cristiano o convidasse

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    para tomar alguma coisa e, como era de costume, Ulisses aceitara sem nenhuma objeo: no tinha mesmo nada a perder. Terminaram a noite num motelzinho desses que existem aos montes em qualquer esquina Cristiano mal cabia em si de tanta emoo: Ulisses era mesmo desses que raramente esto por a assim disponveis.

    Depois de quase seis meses de relaes espordicas, finalmente hou-vera chegado a hora de Cristiano saber o que Ulisses queria afinal: conti-nuaria a sua vida medocre ao lado de uma esposa raqutica e um filho que nem o tratava como pai ou seguiria ao lado de Cristiano nessa coisa absur-da que era o relacionamento que possuam? O resultado dessa conversa, no entanto, poderia machuc-lo profundamente, bem sabia Cristiano: a grande pergunta poderia ser perigosa demais e Ulisses, como um animal selvagem, quem sabe fugisse de repente na primeira tentativa de aprisio-n-lo. Ainda assim, o risco, mesmo sendo fatal, era tambm extremamente necessrio para os planos que Cristiano tinha em mente. Ele no poderia simplesmente desperdiar mais o seu tempo ao lado de um homem que mal acreditava na possvel relao que estava se concretizando entre eles afinal, estavam j h quase seis meses encontrando-se trs ou quatro vezes por semana e realizavam-se juntos mesmo diante das diferenas que en-tre eles persistiam. No havia mais como esconder esse desejo irrefutvel que Cristiano nutria; precisavam estar cada vez mais prximos estavam planejando inclusive fazer uma viagem para Recife logo em breve.

    Sentou-se finalmente numa das mesas do Lder e esperou que algum o atendesse as pessoas caminhavam indiferentes pelo Largo e, de vez em quando, um casal passava abraado. Um homem gordo na mesa ao lado falava muito alto e parecia estar com muita fome, pois quando se calava, finalmente, enfiava um pedao grande de carne na boca e masti-gava-o com prazer.

    Pediu uma gua, mesmo no estando com tanta sede assim, mas estava com a garganta seca e o fato de beber a gua, quem sabe, mostrasse para os

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    outros que ele estava por fazer alguma coisa ou esperando algum. Olhou o relgio impaciente: faltavam ainda alguns poucos minutos para as dez horas Ulisses no poderia fazer isso ele no poderia simplesmente deix-lo esperando em vo. Com certeza, logo em breve ele apareceria de repente e sentaria ao seu lado com aquele jeito que era unicamente seu aquele modo de se comportar que acendia tanto os desejos de Cris-tiano. Olhou o relgio novamente e segurou o cardpio como se estivesse escolhendo o seu prato. Estava to concentrado e, ao mesmo tempo, to ansioso que nem percebeu quando Ulisses sentou-se sua mesa e olhou-o fixamente. Cristiano no se mostrou surpreso; pelo contrrio: estava in-diferente sua presena e falou um como vai insignificante, sem sabor algum. Voltou para o cardpio logo em seguida e, lendo ainda os pratos disponveis, perguntou a Ulisses se ele estava com fome ou se iria preferir beber alguma coisa antes do prato principal. Faa como quiser, respon-deu Ulisses.

    Cristiano percebeu de imediato que eles estavam em guerra, pois sa-biam exatamente o que pretendiam dizer um ao outro naquela noite. Fe-chou o cardpio educadamente e pediu whisky para ambos, depois olhou finalmente para Ulisses e disse rispidamente estar surpreso com as coisas que, at ento, estavam acontecendo e, principalmente, estavam ainda por acontecer. No entendo aonde voc pretende chegar com essa conversa sussurrou Ulisses enquanto Cristiano olhava o homem gordo na mesa ao lado: Sim, voc entende, respondeu ele. E continuou: eu sei que voc capaz de entender aonde eu quero chegar porque, ao que parece, desses seis meses que se passaram, at agora eu no cheguei a lugar nenhum. Ulisses estava inquieto quem sabe ele no conhecesse realmente com quem estava envolvido at ento: no comeo, ele acreditava se tratar de um caso extraconjugal, como outro qualquer, dentre os vrios que arru-mou durante toda a sua vida. Por isso, naquele momento, ele talvez no estivesse compreendendo a profundidade dos fatos estava impaciente

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    e mexia com esforo o anel que carregava consigo no polegar respirou profundamente e agradeceu ao garom a bebida forte.

    Pretende mesmo colocar tudo a perder s porque eu no poderei ir contigo nessa viagem a Recife?

    Voc mesmo sabe, Ulisses, que este no o problema de fato: exis-tem muitas outras coisas que precisamos acertar. No suporto mais v-lo ir embora deitar-se todas as noites com outra pessoa.

    Ela a me do meu filho, respondeu Ulisses, voc precisa entender que eu quero estar presente na vida do meu filho, pois ele a nica coisa que tenho na vida ele a coisa que mais amo nesse mundo e quero que ele perceba o quanto importante para mim parou um instante, bebeu um gole e continuou: desde o comeo voc sabia da existncia do meu filho e da me dele em nenhum momento eu escondi isso de voc. Cris-tiano o olhava com indiferena.

    Estou farto dessas suas histrias, Ulisses. Voc mesmo sabe que mal consegue sustentar o seu prprio filho com o salrio miservel que recebe a me dele precisa trabalhar o dia inteiro para que no lhe falte nada. Aquele garoto pode, sim, ser o seu filho tambm, mas ele , acima de tudo, filho daquela mulher que se mata para poder cri-lo e educ-lo. Cristiano passava o dedo na borda fria do copo que pairava sobre a mesa. A grande questo essa: eu preciso apenas saber onde fico nessa histria toda ou pretende esconder isso pra sempre? e repetiu com fora: At quando voc pretende continuar nessa?.

    Voc fica onde est agora, respondeu Ulisses.

    Eu no estou em lugar algum!

    Espero que fique feliz ento acabando logo com tudo isso porque no suporto mais essa culpa toda em cima de mim.

    Culpa? espantou-se Cristiano.

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    Voc sabe que no gosto de homens.

    Eu no acredito mais nisso. Depois de todas as coisas que fizemos juntos, voc no me convence mais.

    Eu acho que seja hora de voc ir embora da minha vida, ento. Disse Ulisses.

    Cristiano finalmente fora atingido pela angstia pela angstia que era viver e precisar estar ao lado de algum para sentir-se forte e capaz de enfrentar todas as coisas que nos so to comuns em nossa vida. A simples possibilidade de no mais ter Ulisses ao seu lado o assustava. Respirou profundamente e olhou Ulisses com certo desprezo; pensou por um instante: sim, era uma guerra, mas no havia porque temer ele era mais forte que Ulisses. Depois disse, finalmente: sei que voc no quer que eu v embora eu sei que voc me ama e est confuso diante disso.

    No, respondeu Ulisses, eu no o amo.

    Cristiano bebeu um pouco mais e sentiu-se um degrau acima de Ulis-ses: estava forte e repleto de si continuou: voc me ama, sim, pois, se no o fosse, j teria me deixado h muito tempo.

    Neste momento, Ulisses se manteve em silncio fora humilhado, atingido. Sentiu-se agora indefeso e sem resposta alguma como no tinha mesmo nada a dizer, preferiu permanecer calado.

    Cristiano ainda mais forte continuou: no me venha tambm falar que est comigo por interesse eu no acredito: raramente o ajudo com qualquer coisa ou, por acaso, esqueceu-se que, por vrias vezes, voc mesmo pagou o motel?

    Ulisses no compreendia aquilo no era possvel ser compreendi-do: logo ele, que agora tinha um filho e uma mulher sorridente, logo ele se sentia meio perdido com aquele sentimento-que-no-tem-nome. Era

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    mesmo possvel amar um homem? Mas aquilo feria todos os seus princ-pios: desde pequeno fora educado a no aceitar aquela incoerncia.

    O que ele, ento, estava fazendo ali?

    Tudo era muito divertido, tudo estava sendo muito divertido, mas ele no poderia aceitar que tudo ali ultrapassasse a barreira intransponvel da diverso. Atravessar essa barreira seria quebrantar a sua condio de homem. Amanh mesmo, certamente, Ulisses voltaria para sua casa e deitaria com a sua mulher: o que fazer quando a prpria vida nos in-tolervel? Era mesmo possvel ser ainda feliz diante de todas as coisas que ele havia construdo at ali? Ulisses amava, sim, o seu filho e tinha, apesar de tudo, muito orgulho dele, mas lhe faltava alguma coisa ainda essa coisa desconhecida. Ele acreditava que fosse talvez o amor da sua mulher, mas com um pouco mais de tempo, percebeu que no era neces-sariamente aquilo.

    Em busca dessa coisa-meio-sem-nome, arranjou-se em diversas aven-turas extraconjugais, mas nada adiantava.

    No final, acabava sempre sozinho e culpado.

    At que, numa noite dessas, Ulisses se deparou com aquele rapaz bo-nito e extremamente educado que, do nada, convidara-o para beber al-guma coisa. Sim, ele aceitara realmente porque estava ainda em busca de alguma coisa que nem ele, ao certo, sabia o que era. Aceitou e, aos poucos, foi percebendo que aquele rapaz to inteligente era capaz de ou-vi-lo como ningum no mundo fora, alguma vez, capaz. Aquele rapaz era Cristiano que olhava Ulisses de uma maneira extremamente nica desde todo o incio. Ulisses j sabia o quanto Cristiano o desejava. Ningum, em toda a minha vida, desejou tanto estar comigo, pensava. Cristiano o procurava no somente como fonte de prazer e sexo: buscava-o tambm como companhia e, muitas vezes, convidava-o para conversar at bem tarde em uma casa noturna qualquer.

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    Gostavam, tambm, de ir praia aos domingos o Porto ficava ain-da mais belo nestas manhs ensolaradas de domingo. Ulisses nadava como ningum enquanto Cristiano, muito raramente, atravessava as poucas ondas que rebentavam contra ele. Divertiam-se bastante estando um a lado do outro e, depois da praia, um banho frio, doce e uma cama fresca com janela aberta bem ventilada para matarem a tarde juntos. S mesmo noite, quando chegava em casa, daria uma ateno qualquer sua mulher.

    Sim, pensava Ulisses, ele vivera mesmo inteiramente ao lado daquele homem que agora o olhava meio com desprezo.

    Voc no pode fazer isso, disse Ulisses.

    Acha mesmo que sou eu quem est fazendo todas essas coisas?

    Sim, acho.

    Talvez, disse Cristiano, se voc percebesse as coisas que voc mes-mo tem feito, tudo seria diferente.

    Eu no sei ao certo o que fazer.

    No?

    Simplesmente no sei ao certo o que fazer, pois essa uma situao completamente diferente de todas as coisas que vivi.

    Voc o responsvel pelo seu destino.

    Eu nem mais tenho um corao, disse Ulisses.

    Sim, voc tem, pois se no tivesse, eu nem teria me aproximado de voc.

    Talvez voc no tenha me compreendido: eu tenho um corao, mas que nunca se mostra.

    Cristiano se calou.

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    O melhor que eu posso fazer, talvez, mesmo ir embora de uma vez por todas, continuou Ulisses.

    Afastou-se finalmente. Cristiano no estava ainda acreditando no que houvera acontecido: sim, ele escolhera ele escolhera deix-lo. Cris-tiano engolia o orgulho a vontade de dizer que as coisas no precisa-riam tomar aquele rumo lhe assolou o esprito, mas, se o fizesse, talvez demonstrasse todas as fraquezas que levava consigo. Cristiano assistia sentado o desmoronar de uma relao completamente distorcida que mu-dara para sempre o rumo do seu caminho e mostrava, ainda, o quanto a vida poderia ser inesperada e ao mesmo tempo feliz. Ulisses o fazia feliz. Mesmo diante de todas as limitaes que ele carregava; talvez isso o fizesse ainda mais especial. Ulisses o fazia feliz como em toda a sua vida ningum o fizera. Lembrou-se, tolamente, de quando Ulisses batia sua porta ou ligava para desabafar algum problema ou uma preocupao qualquer eles se abraavam, mesmo diante da porta entreaberta, depois se olhavam pacientes: nunca, em toda sua vida, houvera experimentado aquela sensao que pulsava ele olhava o rosto frgil de Ulisses que, tentando esconder algumas lgrimas que vez ou outra estancavam nos seus olhos. Beijavam-se depois e, na tentativa de encontrar-se naquela vida to aturdida que ambos levavam, deitavam-se abraados e olhavam-se com grande prazer.

    Ulisses parou um instante na porta do bar e olhou Cristiano que con-tinuava, aparentemente, indiferente diante de todas as dores que lhe asso-lavam o esprito naquele momento. Ulisses o olhou rapidamente e, num impulso nico, lanou-se ao Largo at perder-se dentre as muitas outras pessoas que passavam por ali.

    Cristiano agora completamente sozinho.

    Ele foi embora, pensou consigo.

    Ele me ama, disse ainda.

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    Cristiano mantinha ainda a esperana: deveria haver alguma possibi-lidade de ser feliz deveria haver algo no mundo que o fizesse olhar em volta e perceber o quanto a vida lhe era grata, sim. Pagou a conta e foi at a sada o mundo continuava acontecendo ainda como sempre fora desde o incio o mundo lhe pertencia todo agora como nunca pertencera.

    Cristiano estava confiante em relao a todas as coisas que estavam ainda por acontecer.

    Sim Ulisses o procuraria novamente, assim como das outras vezes que, por alguma bobagem qualquer, eles se desentendiam.