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Rapariga Guerra em

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RaparigaGuerraem

Título original: Girl at WarAutora: Sara Nović

© 2015, Sara NovićTodos os direitos reservados.

Tradução: Rita Carvalho e GuerraRevisão: Isabel NevesPaginação: João JegundoCapa: Design de Paulo Caetano – dascinzasdesign sobre fotografia de Julia Malafaia

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação

NOVIC, Sara, 1987-

Rapariga em guerraISBN 978-989-99785-6-0

CDU 821.111(73)-31”20”

Depósito Legal n.º ?????

Impressão e acabamento: ??????paraMinotauroemmarço de 2017

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida,no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,

incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor.Qualquer transgressão à lei dos Direitos de Autor será passível

de procedimento judicial.

Sara NovićRaparigaGuerraem

Sara NovićRaparigaGuerraem

Para a minha família, e para A.

Decidira visitar a Jugoslávia para ver o significado da história em carne e osso. Agora que um império desabou, percebi o que dela poderá resultar, aprendi que um mundo repleto de homens e mulheres fortes, de pratos ricos e vinhos inebriantes, poderá, ainda assim, parecer um espetáculo de sombras; que um homem de toda a excelência se pode sentar à lareira, aquecendo as mãos, na vã esperança de lançar um arrepio que não viveu na pele.

Rebecca West,Black Lamb and Grey Falcon

Vejo imagens que se fundem no olho da mente – cami-nhos através dos campos, prados junto a rios e pastos nas montanhas que se misturam com imagens de destruição –, e, estranhamente são estas últimas, não as recordações com-pletamente irreais e idílicas da minha primeira infância, que me fazem sentir de regresso a casa.

W. G. Sebald,História Natural da Destruição

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Os Balcãs, 1991

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I

Caíram os dois

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A guerra em Zagreb começou por causa de um maço de cigarros. Já existia alguma tensão, ouviam-se rumores de distúrbios noutras cidades, sussurrados na minha presença, mas nada de explosões, nada declarado. Entalada entre as montanhas, Zagreb suava no verão e, durante os meses mais quentes, a maior parte das pessoas trocava a cidade pela costa. Desde que me lembro, a minha família passava sempre as férias com os meus padrinhos, numa aldeia piscatória no sul. Mas os sérvios tinham bloqueado as estradas para o mar, pelo menos era o que todos diziam, e por isso, pela primeira vez na minha vida, passámos o verão no interior.

Tudo na cidade era pegajoso, as maçanetas das portas e os corri-mões dos comboios haviam-se tornado escorregadios com o suor das outras pessoas, o ar estava pesado com o cheiro do almoço do dia ante-rior. Tomávamos banhos gelados e passeávamo-nos pelo apartamento em roupa interior. Sob o jorro da água fria, imaginei a minha pele a crepitar, libertando vapor. De noite, deitávamo-nos por cima dos len-çóis, aguardando por um sono agitado e sonhos febris.

Fiz dez anos na última semana de agosto, a data assinalada com um bolo ensopado e eclipsada pelo calor e pela inquietude. Os meus pais convidaram os seus melhores amigos — os meus padrinhos, Petar e Marina — para jantar nesse fim de semana. A casa onde costumá-vamos passar os verões pertencia ao avô de Petar. A pausa no ensino permitia à minha mãe gozar três meses de férias. O meu pai apanhava

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o comboio e juntava-se a nós mais tarde e vivíamos os cinco juntos nos penhascos, ao longo do Adriático. Agora que estávamos sitiados, os jantares de fim de semana haviam-se transformado numa ansiosa charada de normalidade.

Antes da chegada de Petar e Marina, discutia com a minha mãe porque não me queria vestir.

— Não és um animal, Ana. Vais vestir os calções ao jantar ou ficas sem comer.

— Em Tiska só uso a parte de baixo do fato de banho — ripostei, mas a minha mãe olhou para mim e eu fui-me vestir.

Nessa noite, os adultos estavam ocupados, como de costume, a discutir exatamente há quanto tempo se conheciam. Ainda eram mais novos do que eu e já eram amigos, gostavam de dizer, independente-mente da minha idade, e depois de quase uma hora e de uma garrafa de FeraVino ficavam-se por aí. Petar e Marina não tinham filhos com quem pudesse brincar; por isso, ficava sentada à mesa, com a minha irmã bebé nos braços e ouvia-os a competir pela recordação mais dis-tante. Rahela tinha apenas oito meses e nunca vira a costa, por isso falava-lhe do mar e do nosso barquinho e ela sorria quando eu fazia caretas, imitando os peixes.

Depois de termos comido, Petar chamou-me e deu-me uma mão--cheia de dinares.

— Vejamos se és capaz de bater o teu recorde — desafiou-me. Era um jogo entre nós: eu corria até à loja para lhe comprar cigarros e ele cronometrava-me. Se batesse o meu recorde podia ficar com alguns dinares do troco. Enfiei o dinheiro no bolso dos calções de ganga e desci a correr os nove lances de escadas.

Tinha a certeza de estar prestes a estabelecer um novo recorde. Aperfeiçoara o percurso, sabia como apertar as curvas em redor dos edifícios e quando evitar as lombas nas ruas laterais. Passei pela casa com o grande sinal cor de laranja que dizia cuidado com o cão (embora não me conseguisse lembrar de ali ter morado algum cão), saltei por cima de um conjunto de degraus de cimento e desviei-me dos contentores. Ao passar sob uma arcada que cheirava sempre a mijo, sustive a respiração e acelerei em direção à cidade. Contornei o buraco maior, em frente ao bar frequentado pelos bêbedos diurnos, abrandando apenas ligeiramente ao passar pelo velhote que vendia chocolates roubados na sua mesa desdobrável. O toldo vermelho do

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quiosque dos jornais oscilava na brisa fraca, fazendo-me sinal como se se tratasse da bandeira da meta.

Pousei os cotovelos no balcão para chamar a atenção do empregado. O senhor Petrović conhecia-me e sabia o que queria, mas naquele dia o seu sorriso parecia-se mais com um esgar.

— Queres cigarros sérvios ou croatas? — perguntou-me. A ma- neira como realçou aquelas duas nacionalidades não me soou natural. Devido aos confrontos que decorriam nas aldeias, já ouvira falar assim acerca dos sérvios e dos croatas nas notícias, mas era a primeira vez que alguém usara aqueles termos comigo. E não queria comprar os cigarros errados.

— Posso levar os mesmos que levo sempre, por favor?— Sérvios ou croatas?— O senhor sabe. Os do invólucro dourado? — estiquei-me para

tentar ver o que estava atrás dele, apontando para a prateleira. Mas o homem limitou-se a soltar uma gargalhada e a acenar ao cliente seguinte, que me fitou com um certo desdém.

— Ei! — tentei chamar a atenção do empregado, que me ignorou e fez o troco ao homem que estava a seguir na fila.

Já perdera a aposta, mas corri para casa o mais depressa possível.— O senhor Petrović queria que eu escolhesse entre cigarros sér-

vios e croatas — contei. — Eu não sabia a resposta e ele não me vendeu nenhuns. Desculpa.

Os meus pais trocaram olhares e Petar fez-me sinal para que me sentasse no seu colo. Ele era alto, mais alto do que o meu pai, e estava corado do calor e do vinho. Trepei para a sua coxa larga.

— Não faz mal — acalmou-me, batendo ao de leve na barriga. — De qualquer maneira, estou demasiado cheio para fumar.

Tirei o dinheiro dos calções e entreguei-lho. Ele colocou alguns dinares na palma da minha mão.

— Mas eu não ganhei.— Não — confirmou. — Mas hoje não foi por culpa tua.Nessa noite o meu pai entrou na sala de estar, onde eu dormia,

e sentou-se no banco do velho piano vertical. Havíamo-lo herdado de uma tia de Petar — ele e Marina não tinham espaço —, mas não nos sobrava dinheiro para o mandar afinar, e a primeira oitava estava tão grave que todas as teclas emitiam o mesmo som cansado. Ouvi o meu pai carregar nos pedais seguindo o seu ritmo, com os habituais

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movimentos nervosos da perna, mas não tocou nas teclas. Ao fim de algum tempo, levantou-se e veio sentar-se no sofá, onde estava dei-tada. Em breve compraríamos um colchão.

— Ana? Estás acordada?Tentei abrir os olhos, senti-os estremecer sob as pálpebras.— Acordada — consegui articular.— Filtro 160. São croatas. Para a próxima, já sabes.— Filtro 160 — repeti, gravando o nome na memória.O meu pai plantou-me um beijo na testa e deu-me as boas noites,

mas senti-o parar junto à porta durante alguns instantes, o seu corpo bloqueando a luz que vinha da cozinha.

— Se ao menos eu lá estivesse — sussurrou, mas eu não tinha a certeza de que estivesse a falar comigo, por isso fiquei muito quieta e ele não disse mais nada.

De manhã, Milošević apareceu na televisão a discursar, e, quando o vi, ri-me. Tinha orelhas grandes e um rosto achatado e vermelho, as bochechas penduradas como as de um bulldog infeliz. A sua pronúncia era nasalada, nada que se parecesse com a voz calma e profunda do meu pai. Com um ar furioso, batia com o punho ao ritmo do seu dis-curso. Dizia algo acerca de limpar a terra, repetindo-o uma e outra vez. Eu não fazia ideia do que estava a falar, mas enquanto falava e gesti-culava, ia ficando cada vez mais vermelho. Por isso, ri-me e a minha mãe espreitou para a sala, para ver o que seria tão divertido.

— Desliga isso — ordenou. Senti as minhas bochechas enrubes-cerem, pensando que estava zangada comigo por me ter rido e que se devia tratar de um discurso importante. Mas o rosto dela depressa se suavizou. — Vai brincar — disse. — Aposto que o Luka já está na Trg à tua espera.

Eu e o meu melhor amigo, Luka, passámos o verão a andar de bicicleta em redor da praça da cidade e a conviver com os colegas da escola, com quem jogávamos futebol. Estávamos sardentos e bronzea-dos, perpetuamente manchados de relva; e agora, que nos restavam

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apenas algumas semanas de liberdade antes do recomeço das aulas, encontrávamo-nos ainda mais cedo e ficávamos juntos até mais tarde, determinados a não desperdiçar um segundo das férias. Encontrei--o no caminho que costumávamos fazer de bicicleta. Andámos lado a lado, Luka virando o pneu da frente contra o meu, ocasionalmente, de tal modo que quase caíamos. Era uma das suas brincadeiras pre-feridas e riu durante todo o percurso, mas eu continuava a pensar em Petrović. Na escola, haviam-nos ensinado a ignorar fatores de dis-tinção étnica, embora fosse fácil discernir a ascendência de alguém através do apelido. Em vez disso, éramos ensinados a regurgitar slogans pan-eslavos: Bratstvo i Jedinstvo!, «Irmandade e Unidade». Mas agora parecia que as diferenças entre nós eram, afinal, importantes. A família de Luka era originária da Bósnia, um estado misto, uma terceira cate-goria confusa. Os sérvios escreviam em cirílico e os croatas usavam o alfabeto latino, mas na Bósnia usavam os dois e as diferenças ao nível da oralidade eram ainda mais minuciosas. Perguntei-me se também existiria uma marca especial de cigarros bósnios e se o pai de Luka os fumaria.

Quando chegámos à Trg, a Praça Ban Jelačić, esta encontrava-se apinhada e percebi que algo de errado se passava. À luz desta nova divisão entre sérvios e croatas, tudo — incluindo a estátua de Ban Jelačić, com a espada desembainhada — parecia agora uma pista para tensões, que até então não me apercebera. Durante a Segunda Guerra Mundial, a espada de Ban estivera apontada para os húngaros, num gesto defensivo, mas depois os comunistas removeram a estátua numa neutralização dos símbolos nacionalistas. Logo após as últimas elei-ções, Luka e eu havíamos sido testemunhas do esforço dos homens que, com cordas e maquinaria pesada, repuseram Jelačić no seu lugar. Estava agora virado para sul, na direção de Belgrado.

A Trg sempre fora um local de encontro popular, mas naquele dia as pessoas apinhavam-se junto à base da estátua, parecendo agitadas, avançando com dificuldade através de um emaranhado de carrinhas e tratores parados em cima da Trg de pedra, onde, em dias normais, não era permitida a circulação de automóveis. Malas, caixas de viagem e uma miscelânea de objetos domésticos enchiam a traseira das carrinhas e espalhavam-se pela praça.

Pensei no acampamento de ciganos que vira durante uma viagem com os meus pais, com destino a Čakovec, para visitar as campas dos

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meus avós. Lembrava-me de caravanas, de vagões e rulotes onde eram guardados instrumentos misteriosos e crianças roubadas.

— Eles deitam-te ácido para os olhos — avisou a minha mãe, quando me remexi no banco, enquanto o meu pai acendia velas e rezava pelos seus pais. — Os pequenos pedintes cegos ganham três vezes mais do que os que conseguem ver — segurei-lhe a mão e man-tive-me em silêncio durante o resto do dia.

Luka e eu descemos das nossas bicicletas e avançámos cuidado-samente na direção da massa de pessoas com os seus pertences. Mas não havia fogueiras nem espetáculos de circo; não havia música, não se tratava dos povos migrantes que vira nos arredores das aldeias do norte.

O acampamento era feito quase exclusivamente de cordão. Cor-das, cordel, atacadores e tiras de tecido de diversas grossuras estavam pendurados dos carros para os tratores e as pilhas de bagagem num emaranhado elaborado. Os cordões sustentavam os lençóis e os cober-tores e as peças de vestuário de maiores dimensões serviam de tendas improvisadas. Luka e eu fitámo-nos, alternadamente, um ao outro e aos estranhos, sem saber que palavras correspondiam ao que estávamos a ver, mas compreendendo que não se tratava de nada de bom.

Velas rodeavam o perímetro do acampamento, derretendo ao lado de caixas onde podíamos ler «Contributos para os Refugiados». A maior parte das pessoas acrescentava algo à caixa, algumas esvazia-vam os bolsos.

— Quem são? — sussurrei.— Não sei — respondeu Luka. — Devíamos dar-lhes alguma

coisa...Tirei do bolso o dinar de Petar e dei-o a Luka, temerosa de me

aproximar demasiado. Luka também tinha algumas moedas, e segurei a bicicleta enquanto ele se aproximava da caixa. Quando se inclinou para depositar a moeda, entrei em pânico, temendo que a cidade de cordão o engolisse como as trepadeiras que ganham vida nos filmes de terror. Quando voltou para trás, empurrei o guiador na sua direção, fazendo-o cambalear. Afastámo-nos e senti o meu estômago contor-cer-se num nó que só anos mais tarde aprenderia a identificar como culpa do sobrevivente.

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Eu e os meus colegas de escola encontrávamo-nos frequentemente para jogar futebol na zona leste do parque, onde a relva tinha menos altos. Era a única rapariga a jogar à bola, mas, por vezes, outras tam-bém iam até ao campo para saltar à corda e conversar.

— Porque te vestes como um rapaz? — perguntou-me uma delas, certa vez.

— É mais fácil jogar futebol de calças — respondi-lhe. Mas, na verdade, eram as roupas do meu vizinho e não tínhamos dinheiro para mais nada.

Começámos a trocar histórias, através de correntes de relaciona-mentos complexos — o primo em segundo grau do meu melhor amigo, o tio do meu patrão —, e quem conseguisse pontapear a bola entre os marcadores de baliza improvisados (e sempre negociáveis) podia ser o primeiro a contar a história. A partir daí, desenrolou-se uma espécie de competição não declarada pela história mais sanguinolenta, que premiava quem conseguisse descrever com maior criatividade o cérebro derramado de meros conhecidos. Os primos de Stjepan tinham visto uma mina a estraçalhar a perna de uma criança, tendo os pequenos pedaços de pele permanecido agarrados aos sulcos do passeio durante uma semana. Tomislav ouvira falar de um rapaz que fora atingido num olho pelo tiro de um sniper em Zagora — o globo ocular transformara--se em líquido, como a clara crua de um ovo, ali mesmo, à frente de todos.

Em casa, a minha mãe andava de um lado para o outro, na cozinha, a falar ao telefone com as amigas que viviam noutras cidades, depois inclinava-se da janela, transmitindo as notícias a alguém no prédio do lado. Mantinha-me à escuta, enquanto ela debatia a tensão crescente nas margens do Danúbio com as mulheres do outro lado da corda da roupa, absorvendo tanto quanto me era possível antes de correr em busca dos meus amigos. Éramos uma rede de espiões que cobria toda a cidade, transmitíamos todas as informações que ouvíamos, repe-tindo histórias de vítimas cujas ligações se tornavam cada vez menos remotas.

No primeiro dia de aulas, a nossa professora fez a chamada e deu pela falta de um dos nossos colegas.

— Alguém tem notícias do Zlatko? — perguntou.— Talvez tenha regressado à Sérvia, onde pertence — replicou

Mate, um rapaz que sempre considerara detestável. Algumas pessoas

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riram às escondidas e a professora mandou-as calar. Ao meu lado, Stjepan levantou a mão.

— Ele mudou-se — disse Stjepan.— Mudou-se? — a nossa professora percorreu alguns papéis na sua

prancheta. — Tens a certeza?— Ele vivia no meu prédio. Há duas noites vi a sua família a trans-

portar malas grandes para uma carrinha. Ele disse-me que tinham de se ir embora antes que começassem os raids aéreos. Pediu-me que dissesse adeus a toda a gente.

A turma irrompeu numa conversa sonora a propósito de tais notícias:— O que é um raid aéreo?— Quem será agora o nosso guarda-redes?— Que faça boa viagem!— Cala-te, Mate — ordenei eu.— Basta! — ripostou a nossa professora. Acalmámo-nos.Um raid aéreo, explicou, era quando os aviões sobrevoavam as cida-

des e tentavam derrubar os prédios recorrendo a bombas. Desenhou mapas a giz que mostravam os abrigos, fez listas dos objetos que as nos-sas famílias deveriam levar consigo quando recorressem à sua proteção: rádio am, garrafa de água, lanterna e pilhas. Eu não compreen - dia de quem eram os aviões nem que prédios queriam fazer explodir, nem sabia a diferença entre um avião normal e um avião mau, embora não tivesse ficado muito aborrecida com a pausa no ensino. Mas a pro-fessora depressa começou a limpar o quadro produzindo uma nuvem furiosa de pó de giz. Suspirou como se os raids aéreos a deixassem impaciente, sacudindo o pó de giz que se instalava nas pregas da saia. Avançámos para uma divisão maior e nem nos deram a oportunidade de fazer perguntas.

Tudo aconteceu quando estava a fazer recados para a minha mãe. Era suposto ir buscar leite, vendido em sacos de plástico escorregadios, que se contorciam quando nos tentávamos servir ou nos esforçávamos por agarrá-los e costumava prender numa caixa de cartão ao guiador da minha bicicleta para transportar a carga pouco cooperante. Mas não havia em nenhuma das lojas mais próximas — agora, as lojas estavam a ficar quase sem nada — e chamei Luka para que se juntasse à minha

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demanda. Expandindo a busca, aventurámo-nos para o interior da cidade.

O primeiro avião voou tão baixo que, mais tarde, eu e Luka jurá-mos a quem nos quisesse ouvir que tínhamos visto o rosto do piloto. Baixei-me, o guiador contorcendo-se por baixo de mim, e caí da bici-cleta. Luka, que estava a olhar para o céu, esquecendo-se de parar de pedalar, chocou contra a minha bicicleta acidentada e caiu de cara ao chão, cortando o queixo nas pedras da calçada.

Levantámo-nos apressadamente, a adrenalina a sobrepor-se à dor, enquanto tentávamos endireitar as bicicletas.

Depois ouvimos o alarme. Os estalidos granulosos dos altifalantes de fraca qualidade. O uivar da sirene, uma mulher a gritar através de um megafone. Corremos. Percorremos a cidade e as ruas laterais.

— Qual é o mais próximo? — perguntou Luka, tentando sobrepor--se ao ruído. Visualizei o mapa no quadro preto da escola, as estrelas e as setas que marcavam os percursos diferentes.

— Há um por baixo do infantário.Debaixo do escorrega do nosso primeiro recreio, alguns degraus

em cimento conduziam a uma porta de aço, de tripla espessura, grossa como um dicionário. Dois homens seguravam a porta aberta e as pessoas acorriam de todas as direções, desaparecendo nas sombras. Relutantes em deixar as bicicletas abandonadas à sua sorte no meio do caos iminente, Luka e eu largámo-las o mais perto possível da entrada.

O abrigo cheirava a bafio e corpos sujos. Quando os meus olhos se adaptaram, analisei a divisão. Havia beliches, um banco de madeira perto da porta e um gerador movido a bicicleta no canto mais distante. Eu e os meus colegas de turma passaríamos a lutar pela bicicleta nos raids subsequentes, acotovelando-nos uns aos outros por uma oportu-nidade de pedalar para gerar a eletricidade que alimentava as luzes do abrigo. Mas, da primeira vez, mal reparámos nela. Estávamos dema-siado ocupados a observar o estranho grupo de pessoas ali reunidas, arrancadas às suas atividades quotidianas e apertadas num covil da Guerra Fria. Estudei o grupo mais perto de mim: homens de fato, ou com macacões e batas de mecânico, como o do meu pai, mulheres de collants e saias afuniladas. Outras de avental, com bebés ao colo. Perguntei-me onde estariam Rahela e a minha mãe; não havia nenhum abrigo público perto do nosso edifício. Depois ouvi Luka a chamar por mim e percebi que tínhamos sido separados pela torrente de

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recém-chegados. Tateei na sua direção, identificando-o pelos contor-nos do seu cabelo desgrenhado.

— Estás a sangrar — disse-lhe.Luka limpou o queixo com o braço e tentou distinguir na manga

a marca do sangue.— Pensei que ia acontecer. Ouvi o meu pai falar disto a noite

passada.O pai de Luka trabalhava na academia de polícia e era responsável

pelo treino de novos recrutas. Fiquei irritada com o facto de Luka não ter referido mais cedo a possibilidade de um raid. Parecia confortável, ali, no escuro, o braço a envolver o corrimão da escada de um dos beliches.

— Porque é que não me disseste?— Não te queria assustar.— Não estou assustada — retorqui. Não estava. Ainda não.A sirene voltou a tocar, assinalando o fim do raid. Os homens

empurraram a porta e subimos as escadas, sem saber ao certo o que esperar. À superfície, ainda era de dia e o sol obscureceu a minha visão, tanto quanto a escuridão no abrigo. Vi manchas. Quando elas se dis-siparam, o recreio recuperou as suas formas, tal como as recordava. Nada acontecera.

Em casa, irrompi pela porta da frente, anunciando à minha mãe que já não havia leite em toda a cidade de Zagreb. Ela afastou a cadeira da mesa da cozinha, onde estivera a corrigir uma pilha de trabalhos de escola, e, ao levantar-se, apertou contra o peito Rahela, que estava a chorar.

— Estás bem? — perguntou, apertando-me num forte abraço.— Estou ótima. Fomos para o infantário. Para onde é que tu e a

Rahela foram?— Para a cave. Junto ao šupe. A cave do nosso prédio tinha apenas duas características dignas de

nota: sujidade e šupe. Todas as famílias tinham um šupa, um pequeno espaço de armazenagem em madeira. Adorava encostar o rosto à frincha entre a porta e as dobradiças para espreitar para o interior, observando as posses mais modestas da minha família. No nosso, guar-dávamos batatas e elas davam-se bem na escuridão. A cave não parecia muito segura; não havia qualquer porta grande de metal ou camas de beliche e um gerador. Mas a minha mãe pareceu triste quando lho perguntei mais tarde.

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— É um abrigo tão bom como qualquer outro — respondeu.Nessa noite, o meu pai chegou a casa com uma caixa de sapatos

cheia de fita-cola castanha que roubara nos escritórios do elétrico, onde trabalhava às vezes. Traçou grandes cruzes diagonais nos vidros e eu seguia-o, pressionando a fita contra as janelas, alisando as bolhas de ar. Pusemos uma camada dupla nas portas de vidro que davam acesso à pequena varanda da sala de estar. A varanda era a minha parte pre-ferida do apartamento. Sempre que regressava de casa de Luka, cuja mãe não tinha de trabalhar e dormia numa cama a sério, e sentia uma pontada de desilusão, saía para a varanda e deitava-me de costas, dei-xando os pés pendurados, a balançar, pensando com os meus botões que ninguém que residisse numa vivenda podia ter uma varanda como a minha.

Agora, contudo, temia que o meu pai fechasse as portas com fita--cola.

— Vamos poder continuar a ir lá fora, certo?— Claro, Ana. Estamos apenas a escorar o vidro — era suposto

a fita-cola prender as janelas em caso de explosão. — De qualquer maneira — disse o meu pai, parecendo cansado —, um bocadinho de fita-cola não serve de grande coisa.