Rascunho ebook

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Fire Nation spin off.

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CAPÍTULO I

FRANCIS

TERRITÓRIO UNIFICADO

LESTE – CORTE VALOUIS

– Quando criança o senhor me sugeriu que a mesma deusa que criou os malditos Davis, criou a nós Valouis. Não há nada a fazer por agora, papai – pontuou Francis que seguia olhando o céu. – A não ser olhar essa lua que está tão linda.

Franchesco não se daria o trabalho de retrucar. A idade avançada e os males que vinham com ela impediam o idoso sentado logo ao lado de enxergar algo que fosse além de seu rosto rabugento quando estava diante do espelho.

De certo a herança de sua vaidade, velho narcisista. Pensou Francis no alto daquela fortaleza. Seus olhos esverdeados como esmeraldas se perdiam em devaneios aleatórios fitando a lua cheia e avermelhada que pairava no céu límpido e azulado dali. Não havia sequer uma nuvem. Era a primeira vez em seus pouco mais de vinte anos que testemunhava aquele fenômeno. As chamadas ‘luas sangrentas’ volta e meia eram vistas naquela parte do planeta, especialmente após invernos rigorosos como os que haviam ocorrido ultimamente. Francis sequer sentia medo de estar na torre mais alta da imensa fortaleza Valouis. Na verdade, em sua cabeça, Valouis nasceram para temer apenas uma coisa: os Davis – a família ‘prima’ deles. Com a voz falha e quase gaga, seu pai interrompera suas reflexões.

– Eu deveria me preocupar com a situação das plantações, da peste, dos vassalos, não em tentar ver bobagens tão triviais como essa – resmungou Franchesco pensando que de algum modo seu filho fosse ver relevância em sua fala. Estava errado.

– O senhor não deveria se preocupar com nada, meu pai – Francis parou de encarar a lua, passou os olhos pela imensa mata de grandes pinhais cobertos por uma fina camada de gelo. Voltou o olhar ao pai e concluiu. – Primeiro, porque sua idade é avançada demais para isso. Em segundo, porque todos sabemos que eu ainda não ocupo o seu trono e nem uso sua coroa por meras formalidades.

Franchesco claramente não gostou. Mas as palavras não saiam de seus lábios para argumentar. O silêncio calmo e profundo perdurou por aquela noite, ouvia-se apenas uma leve brisa esvoaçando os cabelos longos castanhos escuros de Francis.

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O silêncio pareceu ser quebrado. Ao distante, bem ao distante no interminável horizonte, foi ouvido o que pareceu ser o som de uma trombeta. Um leve sorriso cínico desabrochou na face do príncipe.

– São os Davis! – supôs o idoso com um pavor nítido em sua fala.

Antes que Francis fosse mencionar algo, a porta amadeirada atrás deles rangeu enquanto se abria. Uma voz masculina macia e calma pronunciou a Francis.

– Milorde, Sor Meryn demanda vê-lo urgentemente.

– Achei que trataram bem nosso convidado – Francis destilou sua ironia.

– Suas tiradas levam um péssimo humor negro – balbuciou Franchesco irritado, já que sempre odiara os sarcasmos de seu filho.

– Aprecie essa lua, pai. Na sua idade, de certo é a última que verá.

Francis saiu calmamente. Fechou a porta detrás dele e seguiu pelo corredor, onde diversos criados o seguiam iluminando seu caminho com tochas. O corredor era obscuro, as paredes pareciam gastas e o som de rangido era ouvido a cada passo que Francis dava. Sua expressão se fechou em um sadismo enquanto caminhava. Agora se escutavam gritos. De ajuda, de horror, eram agonizantes. Estressavam mais o príncipe Valouis, os servos perceberam, ficando em nítida aflição.

– Ele está nesse quarto, Milorde – disse um servo, temeroso.

– Eu ouvi pelos gritos dessa peste. Limpe minha espada.

O servo saiu correndo após a ordem de seu amo. Francis empurrou a porta dura de ferro que separava o cômodo, adentrou no local escuro e insalubre. A iluminação pelas tochas dos servos fez um incontável bando de ratos sair correndo e barulhando de cima do corpo de Sor Meryn. Seu corpo estava em carne viva, o sangue escorria por todos os seus orifícios. Estava débil, frágil na escuridão.

Atas prendiam suas mãos e pés presos a cama de pregos. Ele ofegou ao ver Francis, parecia desesperado. O príncipe deu um único passo até ele. Aumentou o temor daquele refém, que no estado deplorável e sub humano em que estava mal teve palavras para falar. O sorriso sádico desabrochou de Francis.

– Para que me chamou?

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– Eu... – tentou indagar algo, lágrimas saiam de seu olhar e um nó estava em sua garganta. – Eu tenho sede. Misericórdia, por favor, misericórdia, Milorde!

– É Majestade para você. Mas estou piedoso essa noite.

Lentamente se locomoveu até uma caçapa com vinho sobre uma tábua amadeirada. Pegou e voltou até o refém aproximando dele lentamente.

– É vinho. E das terras que eu te cedi, alias. Deve matar a sede, não?

Sor Meryn sorriu com os olhos brilhando, já passava sede há metade de um dia. Fora privado de comida por mais de três noites, mas só desejava aquele gole. Sadicamente, Francis ingeriu todo o vinho da caçapa, e vendo o sorriso de Sor Meryn se apagar, jogou o objeto no chão pisando em cima.

O príncipe virou aos servos que estavam atrás dele.

– Dêem as costas – ordenou, sendo prontamente obedecido.

– Majestade... – indagou o refém em tom de súplica.

– Não quero que os servos vejam o que todas as garotas do reino se matariam para ter. – Francis aproximou mais da cama de pregos e do refém, retirou a fivela do cinto e abaixou as calças diante de Sor Meryn.

Já enojado, fechou os olhos, sentindo a urina cair em sua face ele tossia com ânsia de vomito, querendo não encarar enquanto Francis seguia sua sessão de tortura. Após dar-se por satisfeito, fez menção de balançar seu órgão genital o pondo dentro das calças novamente. Sor Meryn tossiu no chão, escorrendo o líquido de sua boca ao máximo que podia. Francis estalou os dedos e os servos se desviraram. Um deles se aproximou.

– Por favor, majestade, por favor. Acabe logo com isso.

– Implore com mais vontade, conspirador – Sor Meryn se calou com o olhar psicótico de Francis sobre ele. – Eu odeio gente pedante! – berrou o príncipe com fúria, socando o tórax dele contra a cama de pregos que havia abaixo.

Ele berrou de dor mais uma vez. Não aguentava mais tudo aquilo.

– Eu imploro! Eu imploro, Milorde. Eu pequei! – disse Sor Meryn debulhando-se em lágrimas. – Eu errei na minha ambição contra sua casa, me puna como mereço de uma vez! Mate-me, Majestade! Mate-me de uma vez!

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Agora ele fez como devia fazer. Ocorreu pela mente de Francis que ficou calado.

– Milorde... – iniciou o servo que estava ao lado. – Sua espada já está limpa.

– Ótimo. Sirvam água ao nosso hóspede e noticie vossa família, se tudo ocorrer como planejado, os urubus farão festins pela manhã.

Francis preparou-se para sair, vitorioso. Seus planos não poderiam sair melhor, exceto por algo. A porta de ferro se abriu, por ela entrou uma típica serva franzina, pré-adolescente que olhou aterrorizada para seu líder. Antes que fosse falar algo, o som de um canhão disparando ao longe, o eco de um berro e o barulho de cavalos avançando do lado de fora foi ouvido intensamente.

Era tarde demais para o recado que a serva trazia.

– Os Davis... – ofegou. – Adolph IV e suas tropas estão vindo nos atacar Milorde, querem usurpar vosso trono! – Disse com o pavor expresso no rosto.

Agora sim. O futuro rei esboçou seu clássico sorriso sarcástico, se antes faltava algo para completar seus planos, agora tinha ciência de que tudo estava perfeito.

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CAPÍTULO II

ADOLPH IV

Adolph IV não via. Mas o relinche de seu cavalo branco era quase um grito de desespero enquanto suas patas, assim como a de toda a multidão de cavalos pela frente e a multidão de cavalos atrás, trotavam ágeis contra a neve dura no solo. Os homens avançavam pela mata, se esquivavam por entre as altíssimas árvores, erguiam espadas e lutavam com elas, rompiam a calmaria sóbria da noite de lua sangrenta. Pouco a pouco, Adolph via a fina camada de neve no solo se manchar com um tom vermelho sangue.

– Avante, homens! Avante. – gritou o escudeiro que tocava o som infernal daquela trombeta e balançava o grande estandarte casa Davis. Ele foi o primeiro a cair morto quando um soldado Valouis flechou direto em seu tórax.

O cabelo dourado-escuro e comprido do Davis balançava com a ventania forte e a correria, ele ergueu a espada, agora comandando seus homens. Passou a frente dos outros na zona de ataque. Arqueiros deles saltaram de cavalos, começaram a disparar flechas em bestas contra os rivais. Adolph via-se cercado. Saiu logo da mata marchando com os homens rumo ao castelo, de onde vinha uma interminável frota de soldados em posse das espadas, liderados por Francis montado num imponente cavalo negro.

A espada do príncipe se sujou de sangue. Um homem da casa Davis caiu decapitado no chão, sua cabeça parou bem longe do corpo.

É uma questão de honra! Repetia continuamente como um mantra na mente do zardan. Tinha de tirar o príncipe sádico da fortaleza e pregar sua cabeça na

estaca. O povo do Oeste jamais mereceria um rei tão sádico.

– Ataquem-no! Derrubem-no do cavalo e o tragam para mim vivo! – ordenou o Valouis aos berros com seus olhos outrora esverdeados, agora, quase num tom rubro como a lua.

Os homens de Adolph se puseram em formação em sua frente. Era nítido como os Valouis já estavam preparados para a batalha como se já soubessem. Aquela era só mais uma de muitas que vieram antes, mas Adolph sentia que na hesitação de Francis em simplesmente exigir sua cabeça havia algo de diferente.

– Eu não vou morrer essa noite, Francis! – berrou Adolph. – Desista! E devolva o que me é de direito!

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Adolph estava mais próximo da entrada do castelo. Não viu o arqueiro no alto de uma árvore atirar uma flecha contra ele. Atravessou seu ombro, o fez berrar de dor. Mas ele resistiu. Ergueu a espada com a outra mão da qual não tinha habilidade, tremeu um tanto, mas ainda conseguiu cravar num cavaleiro que vinha logo a sua frente e o derrubou. O sorriso pela vítima que fez se apagou quando olhou ao redor. Foi o que dissera Francis que o fez perceber a real situação.

– A peste e a fome não matou gente o bastante em seu exilio, priminho? – gritou aos risos erguendo a espada. – Então trouxe os poucos que a guerra e a praga deixaram vivos para vir morrer a entrada da fortaleza!

O Oeste sempre revida. Retrucava Adolph mentalmente. Não era um homem de muitas palavras, os Davis ainda não eram criados para ser bons oradores. Entre seus mantras e preces mentais, rezava para algum deus ajuda-lo no impossível: arrancar a cabeça de Francis. Fazia isso e invadir o castelo para matar um idoso adoentado e assumir o trono que fora roubado de seu pai e de outro Valouis pelo mesmo não seria tão difícil.

Numa jogada arriscada, ele ergueu a rédea do cavalo e o chicoteou. Diversos grupos de homens apressaram seus cavalos e puseram-se na frente dele. Atacaram com toda a força a tropa dos Valouis, os minutos do conflito pareciam eternos para Adolph. Mas não para Francis cuja vitória era certa. Os mortos já se acumulavam pelo campo branco. Com aquela quantidade de mortos, os abutres dariam banquetes à entrada do castelo até o fim daquela estação.

Adolph fazia-se cauto em meio à batalha, enquanto Francis o cercava e o encurralava ainda mais, arriscou tudo saltando de seu cavalo e partindo para cima de Francis. Ele sentiu apenas o toque gélido de metal afiado em sua boca e um rasgão subsequente da espada que torou um pedaço de sua língua. O sangue encharcou o chão, onde ele caiu em seguida urrando de dor.

– É para matar, Milorde? – ouviu um homem questionar.

– Pergunte ao pai dele que nem hesitou em cravar uma espada na barriga da minha mãe quando ela estava parindo meu irmão. – retrucou Francis. Adolph não via, mas sabia que Francis o observava.

Sua dor era estridente. O corpo não aguentou muito e ele teve uma súbita perca de consciência. Quando seus olhos se abriram de novo, ouviu risos, era motivo de piada. Ainda tentava assimilar o que estava havendo. Viu muitos de seus homens mortos, caídos ao lado dele. Alguns com membros variados do corpo

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decepados, outros haviam se virado ao inimigo, mas ele ainda estava vivo e não podia entender o porquê.

Ouviu um rugido bravo que silenciou as gozações. Olhou zonzo o que havia a frente. O sadismo típico dos Valouis – que tão logo não seria exclusivo a eles – fizera Francis ir longe demais. Um leão albino, forte e impotente rugia bem a frente de Adolph e era segurado por Francis com uma corrente que o prendia. Era um esforço para tortura-lo que Francis não precisava fazer. Mas fazia questão.

– Você sempre disse em suas cartas carregadas de desprezo que Francis Valouis não tinha a força de um guerreiro zardan – provocou o príncipe. – Mas para o seu próprio bem é bom que eu tenha força o bastante para conter essa fera faminta.

Adolph tentava falar algo. Mas havia um vão, um rasgo imenso em sua boca que o impedia com aquela nova circunstância. Estava farto dos gracejos do rival. Discretamente, tirou de dentro de sua roupa uma faca extremamente afiada. Num ímpeto súbito correu para cravar no coração do Valouis, mas seus passos não foram rápidos o bastante. Uma pancada o acertou por trás, bateu forte em sua cabeça e agora ele caia novamente inconsciente à mercê do inimigo.

• • •

– Beba. Meu próprio filho se certificou que não há veneno. – ouviu uma voz idosa e já trêmula o dizer. A visão se clareou abruptamente, Franchesco o estendia um chá. O ambiente não era desconhecido, pois Adolph crescera ali.

Era o escritório da fortaleza do Leste, onde o trono vermelho constituído por quilates imensos de rubis decidia o destino do Leste e do Oeste daquelas terras. Haviam mapas, escritos em cuneiforme pelo ambiente que velas iluminavam. Adolph IV pegou desconfiado o chá das mãos de Franchesco. Bebeu com raiva explicita na cara e jogou a xícara no chão, estilhaçando-a. Foi quando notou que vários homens a porta armados com espadas e lanças o rendiam. Se recompôs.

– Por que ele ainda não me matou? Se esse infeliz pensa que me manterá prisioneiro...

– Não é esse nosso interesse – cortou Franchesco. – Não desperdiçamos comida com forasteiros e muito menos com convidados da sua estirpe.

– Então por que eu ainda estou vivo e preso aqui?

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– Francis responderá melhor do que eu.

O silêncio perdurou por algum tempo. Franchesco sinalizou para um servo ajuda-lo, o homem o pegou nos braços e o guiou até uma poltrona onde o mesmo se sentou. Soltou um longo arroto, sendo servido de uma taça de vinho em seguida. Adolph observava arredio. Franchesco o estendeu a taça que foi recusada.

– Onde está teu pai, meu jovem? – Questionou com o ar sarcástico que tanto odiava no filho. – Sim, pois mandar um filho tão despreparado para a guerra, francamente, tinha que ser coisa de um Davis mesmo.

Adolph o encarou atravessado, o mataria ali mesmo se pudesse. Porém, apenas fez questão de não responder no mesmo tom.

– Faleceu há duas primaveras. E você sabe muito bem disso.

– E essa lua vermelha, não? É tão bonita no Oeste como é aqui? – tossiu e gaguejou nas palavras em seguida. – Perdoe a pergunta, mas meus olhos já não enxergam tão bem como antes.

– A lua é igual em todos os lugares.

O velho nem para o sarcasmo presta. Pensou, vendo quão limitado era o humor negro de Franchesco. Sequer passou por sua cabeça questionar o que haveria consigo a seguir; Francis apreciava o pavor de seus inimigos, ele queria esse pavor em Adolph. Queria ver o medo no inimigo antes de contar-lhe seu destino. E isso fez com que Adolph ficasse cara a cara com Franchesco no mais profundo silêncio por horas a fio sem que Francis desse as caras. Após mais um longo tempo, a porta daquela sala foi se abrindo. O invasor conteve o suspiro de alivio da tensão que aquela espera o havia causado. Francis adentrou cercado de homens com diversos papeis em mãos, fez sinal para todos colocarem sobre a mesa que havia e ali foi colocado junto com um vidro repleto de tinta preta e uma longa pena quase mergulhada no vidro.

– Seu jantar está servido, pai. Logo o chamarei de volta.

– Eu já jantei esta noite, Francis. Não tenho fome.

Francis olhou para seu servo e fez um gesto com o olhar. Franchesco não acreditara no que via, o servo se aproximou e pegou Franchesco no colo.

– Ora, Francis, tire-me daqui! – bradou.

– Essa conversa é privativa. Tirem-no.

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Franchesco foi levado do escritório sobre protestos pelo servo, logo que a porta foi fechada seus gritos já não eram mais ouvidos. O príncipe puxou a cadeira e fez gesto para Adolph sentar. O ‘convidado’ se manteve imóvel.

– Não me faça exigir duas vezes. Eu não sou o tipo de rei que faz isso.

Adolph seguiu a ordem de Francis e saiu do sofá onde acordara, sentando-se numa cadeira a frente dele. O príncipe sinalizou a um servo que guiou a cadeira de seu pai até a mesa. Francis sentou de frente ao invasor.

– Até que a sua prepotência nos serviu de algo, não Adolph? Deixe-me adivinhar, os corvos que sussurram no Oeste disseram que minha situação estava teoricamente fragilizada aqui na fortaleza, não? Problemas com aliados, talvez. E você se aproveitou dessa ocasião para virar seu exército contra nós.

– Pelo visto meus corvos estavam enganados.

– Homem sábio, muito esperto – ponderou sorrindo, ele desfez o sorriso e seriamente abriu um papel que estava na mesa, exibindo ao outro, onde havia um mapa dividido em dois. Adolph o encarou desentendido. – Mas eu suponho que seus corvos não o puseram a par de qual a real situação, não é mesmo?

– Alguns de seus aliados. A casa Hendrix e a Dorian, lideradas pela casa Meryn se voltaram contra você.

– Olha, mas quem diria... – Francis ironizou a própria surpresa. – Parece que os corvos dos Davis não são tão mal informados. Mas não o bastante porque não te contaram a real situação.

– Francis… acabe logo com esse circo.

– Um bom rei não se esquece de seus inimigos, mas também jamais tira o olho daqueles que considera seus amigos. Memorize isso.

O silêncio perdurou por poucos instantes. Francis tirou a fita que enrolava uma carta e desdobrou estendendo a Adolph que pegou e leu, desconfiado.

– Sor Meryn não estava simplesmente pretendendo se rebelar contra nós e se aliar a vocês Davis na nossa ‘disputinha’ pelo trono. Nem de longe essa era a intenção.

Oh meu Deus. Era tudo o que se passava na mente de Adolph após ler o que havia lido, com força nas mãos amassou a carta e a deixou sobre a mesa, extático.

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– Sim, uma casa tão insignificante como a casa Meryn pretendia derrubar a casa Valouis, derrubar a casa Davis e assumir o trono eles mesmos.

– Então você não me matou porque quer minha ajuda? Para domar os seus aliados traidores? – frisou na última frase.

– Não. Com certeza não – riu Francis, que lançou um olhar a um servo que o serviu com vinho novamente; pausou para beber e continuou em seguida. – Eu massacrei o movimento. Matei nobre por nobre do Leste que conspirou contra eu e meu pai. Mas o Sor Meryn, o líder de toda essa farsa eu fiz questão de deixar vivo. E é claro que não você não deve supor que eu fiz isso por bondade.

– Vá ao ponto.

Francis sorriu complacente. Saiu de sua cadeira. Pegou um imenso livro da estante cuja forma de uma ninfa esbelta com formas de sereia estampava a capa, colocou sobre a mesa e abriu numa página marcada. Sentou-se e começou a ler.

– E então, no início de todos os tempos, os deuses viram que ambos homens distintos de terras tão próximas eram bons. E os deram os dons para guiar seus povos, mas quando a ganância e a ambição de um único homem unificou as duas terras, a fúria dos quatro deuses recaiu sobre o planeta.

Adolph cortou a leitura de Francis, concluindo-a.

– E o deus da terra lançou sobre os povos as pragas, o solo infértil e fez chuvas de larvas escorrerem pelas colinas durante as noites mais quentes do verão e as mais frias de um longo inverno. E enfurecido com o despeito e a ambição, o deus do caos praguejou 20.000 anos de guerras dinásticas entre as duas famílias que cruzariam gerações e espalhariam o ódio e o sangue por todos que nascessem envolto em sangue azul.

– A Fúria dos Quatro Deuses e a Saga dos Anjos do Fogo, a obra magna de Heliseu – disse Francis, suspirando e fechando o livro, o servo o tirou da mesa e guardou sobre a estante. – Demorei sete anos para terminar de ler esse livro. Sete longos anos, Adolph. Mas essa página jamais saiu de minha cabeça. Quando seu pai matou meu irmão na barriga de minha mãe e nem a deixou para contar o resto da história, eu orei aos deuses para poder entender a razão e eles me responderam naquele trecho.

Pela primeira vez, uma lágrima desceu do olhar do Valouis que rapidamente a enxugou e manteve a pose na frente do inimigo. Adolph sugeriu um sorriso no rosto, mas a apreensão da situação o impediu.

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– Quando mataram meus tios, meu avô e meus primos eu busquei entender o porquê. Mas quando só restou meu pai e eu para continuarmos essa história, eu vi o que os deuses queriam de nós.

Tudo silenciou por ali. Adolph sentiu como Francis engolira seu orgulho diante das trágicas memórias que o ocorreram. Francis notou o desprezo de Adolph.

– Eu pararei de fingir que não sei o rumo dessa conversa quando você disser com palavras inteiras o rumo ao qual anseia levá-la.

– Nós destruímos esse trono, nós fundimos nossa coroa e queimamos nossa bandeira. Teremos duas novas coroas e dois tronos para dois reis. Eu exijo a separação de Leste e Oeste – Adolph já o encarava atravessado, no fundo dos olhos, Francis o enfrentou cara a cara. Sequer hesitou em continuar. – Eu exijo que pelo fim dessa guerra, a coroa e o território se partam em dois.

O choque de Adolph com as palavras de Francis foi intenso. Queria ter uma

faca para matá-lo ai mesmo. Ocorreu na mente do refém, mas olhou para os lados, os homens do príncipe armados até os dentes logo à porta não o deixariam dar um

passo se ousasse por as mãos sobre Francis. Não havia opção.

– Tragam o rei de volta. Esta noite meu pai fará história.

O lacaio assentiu e deixou o ambiente, deixando a porta aberta. Logo trouxeram Franchesco carregado no colo, ainda rezingava pela forma que foi expulso. O servo fechou a porta, Francis apontou para que pusesse o pai em sua cadeira. O colocaram. Todos se entreolharam tensos ali, o domínio de Francis sobre a situação era uma coisa que amedrontava até mesmo seu próprio pai.

– Você ainda não assinou o papel, Adolph.

– Meu pai jamais concordaria com algo assim. Ele não passou a vida perseguindo a coroa que seu pai roubou dele para que eu acabe com o legado assim! – gritava Adolph histérico, com o rosto vermelho de raiva. Francis mantinha-se calmo.

– O que você fez, Francis? – interrogou Franchesco pausadamente, apreensivo com a resposta que teria. Seus olhos míopes tentaram focalizar o filho.

– Faremos um Tratado esta noite. O território se torna duas nações independentes.

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– Como é que é? – berrou injuriado. Tentou se erguer e bater na mesa exigindo o fim do que considerava loucura, mas suas pernas não o ajudaram a ser erguer. Francis manteve-se firme.

– É a única saída coerente, meu pai – se exaltou. – Nós não podemos continuar morrendo, matando nossos homens e lidando com conspirações de nossos aliados enquanto essa guerra entre as duas grandes casas continuar! Não há sentido.

– Eu sou o rei disso aqui! O destino da nação ainda está em minhas mãos! – a voz falha e grave de Franchesco berrou.

Agora havia irritado Francis. O filho o ergueu pela gola de suas vestes e o encarou nos olhos, raivoso.

– Você é só um velho! Um velho vaidoso, decrépito e inválido! – todos estavam pasmos pelo semblante de Francis. – Você sabe que até o próximo inverno já estará morto de velhice e que eu só não pego sua coroa ainda só por formalidade porque o rei disso aqui sou eu! – Francis soltou o pai sobre a cadeira. Franchesco caiu abalado com o que ouviu. Queria cair morto ali mesmo a tolerar aquilo.

– Você… você… não tinha esse direito.

– Me perdoe, papai. Exaltei-me – Francis se recompôs, como um mero espectador, Adolph apenas observava. – Mas o fato é: do jeito que está, não há mais como ficar. Enquanto lutamos uns contra os outros, metade do mundo conspira contra nós. Eu só preciso que assinem a droga desse papel e o banho de sangue terminará.

O silêncio perdurou por instantes. Adolph e Franchesco se olhavam.

– Você será o primeiro, papai.

Francis estendeu o papel sobre a mesa, pegou a pena que estava mergulhada no vidro de tinta preta e passou ao pai. A mão trêmula de Franchesco pegou, o ódio estava nítido em seu olhar, sequer queria olhar para o filho e acreditar o que

ele havia feito. De certo ele tramou o circo todo. Pensava Adolph, com a ligeira sensação que Franchesco compartilhava de sua conclusão.

Uma lágrima desceu do olhar de Franchesco, ele era orgulhoso demais para fazer aquilo sem sentir a dor de uma facada por dentro. Ele sabia que para o bem ou para o mal, o destino daquelas duas nações já não mais seria o mesmo. Com a mão falha, com dificuldades de segurar a pena, ele rubricou o papel. Passou a

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Adolph e jogou a pena sobre a mesa com raiva. Francis deu um leve sorriso, pegando a pena e estendendo ao rival.

– Eu não vou assinar isso.

– Vamos relembrar sua situação... – Francis puxou uma cadeira e sentou–se na lateral, ainda segurava a pena querendo Adolph a pegasse. – Você invadiu a fortaleza do rei, tentou me matar, matou alguns de meus homens, sairá daqui com no máximo um quarto do seu exército porque metade eu vou pegar como tributo pela invasão e o resto está morto naquele campo e eu ainda estou te dando a chance de sair daqui vivo, de não ter sua família caçada e chacinada até o inferno e de ainda por cima ter uma coroa e um trono só seus...

– Nós somos uma só nação! Os Davis nasceram para governar as duas terras!

– Assine – ordenou raivoso entre dentes. – Eu, o futuro rei do Leste e do Oeste te dou a chance de sair daqui como o rei da sua própria nação ou como um morto.

Não haviam mais escolhas. Percebeu Adolph, com ódio no olhar pegou a pena, não fez muita cerimônia em assinar o Tratado, ele sabia que apesar de por fim a uma das guerras mais dinásticas da História, os destinos de Davis e do Valouis, das terras do Oeste e das terras do Leste estariam sempre entrelaçados.

Francis sorriu singelamente vitorioso. O asco do pai e do rival era idênticos na forma de encará-lo agora, mas ele realmente não se importava. Encarou o papel assinado com um imenso sorriso no rosto e o dobrou, o estendendo a um servo que se retirou com o Tratado dali. Em silêncio, Adolph se levantou.

– Fez o que devia ser feito pelo melhor de todos nós.

– Estou livre para ir? – o Davis estava cabisbaixo, sentindo-se humilhado.

– Não antes de uma última cerimônia. Agora não temos mais uma nação em guerra, nós temos duas nações amigas, não?

Amiguíssimas – retrucou Adolph baixo, com sarcasmo.

– E para provar que não há conspiração que retire os Valouis ou os Davis do poder, haverá uma linda cerimônia antes do nascer do sol. Você cortará a cabeça do conspirador para mim. Eu disse que não dou ponto sem nó, não?

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Adolph o olhou frio. Franchesco mudo como se não estivesse ali, olhou de relance para Francis balançando a cabeça em desacordo. O novo rei notou que os homens já não estavam mais ali o vigiando no escritório, haviam deixado. Adolph fez o mesmo. Nem olhou para ambos e deixou a sala ficando no corredor de piso amadeirado, onde nada se via devido a grande escuridão além da grande lua cheia vermelha refletida nas vidraças góticas. Parou e encostou-se à parede, ao lado da porta do escritório. Começou a ouvir a conversa que se seguia.

– O pai do Adolph teria vergonha dele como eu tenho de você – desabafou Franchesco, com a voz abafada dentro da sala.

– Mas diferente do senhor, aquele outro não está mais vivo para fazer história e testemunhar os novos tempos – Adolph ouviu um riso contido de dentro da sala e o tom de voz de Francis se abaixou em seguida. – Ou você acha que mandei nossos espiões envenenarem o velhote até a morte de graça? – pausou antes de concluir. – O melhor de tudo isso é que o Adolph jamais saberá.

Uma lágrima de ódio escorreu do rosto de Adolph.

Regicida! Como não pensei nisso antes!? Berrava consigo mesmo. Mas já era tarde demais, agora ele já havia caído na cilada de armar contra o inimigo mais forte, já não havia nada que pudesse ser feito, muito menos na situação em que ele estava. Adolph só caminhou pelo castelo. Relembrou de partes soltas de sua infância que vivera ali até que tiraram o trono de seu pai e eles se exilaram para o Oeste do território. Agora aquela fortaleza em que Adolph vivia, tão pomposa, grandiosa e tão medonha como aquela seria também a sede do reino, não tirava isso da cabeça.

Foi melhor dessa maneira. Adolph repetia para si mesmo como um mantra. Ele sabia que de fato foi o melhor a ser feito, mas queria realmente se convencer disso, fora criado com o pensamento de que ou os Davis ou os Valouis dominariam todo o território. Estava mais triste pela desonra de dividir metade do

território com os rivais do que feliz por continuar vivo. No fundo, preferia estar

morto. O rei caminhou pelo castelo. Corredor por corredor, passando pelas vidraças e sacadas que cobriram todo o estreito e cumprido corredor e iluminado pela lua vermelha, ele aproximou-se de uma das sacadas. Viu uma dezena de homens do lado de fora da fortaleza recolhendo os corpos e pedaços dos mortos.

Deviam ser centenas deles que no fim morreram em vão, como tantos e tantos e tantos outros morreram.

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O rei seguiu até um quarto. Abriu a porta e entrou em seguida, fechou a porta. Muitas velas penduradas no alto iluminavam. No ambiente havia uma cama, um pinico e um barril com uma torneira, perto de um copo de metal. Ele abriu a torneira despejando vinho no copo, bebeu até notar um bilhete sobre o barril.

– O melhor vinho das terras Valouis. Cortesia para o novo rei – Leu a escritura.

Após beber, deixou suavemente o copo sobre o barril. Nitidamente ele andava sem um rumo, andava pelo quarto até notar um espelho atrás da porta, pegou uma vela que iluminava sua face e seguiu até diante do espelho. Viu a mais horrenda cicatriz que vira na vida. Havia um corte ainda aberto que pegava da ponta direita dos lábios percorrendo até o fim da maçã do rosto, era grande, medonho e simplesmente bizarro, desfigurava a face do rei.

Seria aquela cicatriz que ele carregaria pelo resto da vida que lembraria a todos da noite histórica da qual ele fez parte.

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CAPÍTULO III

SOR MERYN

Passaram-se poucas horas desde sua última tortura. Mas em sua mente atormentada parecia que foi um dia. Agora uma vela iluminava o rosto enrugado pela meia-idade de Sor Meryn, o ruído dos ratos naquele lugar era infernal. Queria gritar, queria berrar com a sensação agonizante das dezenas de roedores em cima dele comendo lascas de sua pele, mas ele sabia como seria pior. A cama onde o torturador girava uma alavanca e esticava os membros de seu corpo como se fosse arrancá-los era bem pior. Ele sabia que iria morrer, então passava os minutos pensando em qual forma o príncipe escolheria para executá-lo.

Enforcamento é muito trivial. Passaria batido e ele sabe que eu mereço mais, acho que ele amarrará meus membros a cavalos e irá me esquartejar em pleno salão. Seria épico... Se bem que o rei Francis é até sádico, mas não é tão criativo para inovar quanto os Davis.

– Limpem minha espada e levem até o alto da Fortaleza.

Ouviu a voz de Francis dizer ao lado de fora. Um sorriso bobo despontou em seu rosto, agora Sor Meryn sabia de seu destino e tinha acertado quanto o modo de sua sentença. E ainda sim não se arrependia por um minuto do que fizera, mas sim de ter sido pego. Com o jogo doentio que Francis vinha exercendo com ele, nas últimas quatro semanas em que o fez refém, outros presos políticos, em seu lugar, estariam crentes que pela espera de Francis para executá-lo, haviam de sair dali vivos.

Errados. Todos tolamente errados. Mas não Sor Meryn, este sabia que coisas aconteciam além da porta de seu quarto, além das muralhas da fortaleza que ele sonhou dominar, mas de onde queria fugir agora. Fugir para longe e para nunca mais voltar. Sor Meryn sabia que pelas coisas que aconteciam, sua morte não seria apenas mais uma morte de um conspirador, seria um evento. Ele conhecia seu rei suficiente para saber suas pretensões, mas não o bastante para não subestimar sua esperteza. Os pensamentos aleatórios se acabaram com o barulho.

Um feixe de luz penetrou pela fresta da porta. Ficou maior e maior e então Sor Meryn se deu conta que a porta estava se abrindo, entraram dois homens

encapuzados. Executores, pensou. Os homens foram até ele e o tiraram de suas correntes. Foi com força e brutalidade que o agarraram pelo braço. Ele não tinha forças para correr ou tentar algo contra os mesmos. Estava rendido e a truculência era desnecessária. Francis entrou no calabouço, sorriu para ele.

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– Você será um dos pouquíssimos homens a ter a sorte de morrer em noite de Lua Sangrenta. Essa é uma noite que já entrou para a história, Sor Meryn. Se orgulhe porque eu o deixei fazer parte dela – pausou e encarou os algozes. – Levem-no.

O nobre com roupas sujas e fedorentas, a pele devastada foi tirado dali, quando a porta se abriu ele viu dezenas de pessoas encostadas na parede do corredor, olhavam para ele como se o aguardassem. Os olhos marejaram ao notar nos observadores a esposa Mary abraçada com sua linda e jovem amante Shae, elas choravam inconsoláveis, contrárias à multidão que o olhava atravessado e o vaiava.

– Shae... – balbuciou com a voz falhando a garganta. Ele lembrava-se de tudo o que fizeram um pelo outro, ele a tirou da casa de prostituição, a fez uma

mulher rica, amada e feliz. Mas sua esposa complacente sempre o avisará “Mulher

sua sou eu, Shae é mulher da vida, é mulher do mundo”. Shae era mulher de quem pagasse mais. Foi mulher dos nobres e errantes de todo o Leste, foi mulher de Franchesco e recorreu ao filho após o pai. E foi na oferta mais generosa, de um futuro rei que curiosamente já reinava, que Shae contou tudo o que deveria manter secreto.

Mas diferente do que pensava Sor Meryn, Francis tinha alguma piedade, tanto que passou por aquele corredor sem sequer tripudiar a traição que Shae cometera. Fingia não conhecer e nem lidar com damas de sua estirpe, ele deixaria Sor Meryn morrer sem a decepção da única mulher que ele amou.

– Traidor merece morrer! – ele ouviu um homem da corte berrar a ele.

A mulher ao lado escarrou em sua cara, ele não se moveu para enxugar. Deixou o cuspe escorrer por sua face.

– Oh, Vossa Majestade, eu imploro! – disse a esposa dele, debulhando-se num estado deplorável de lágrimas. Atirou-se aos pés de Francis que a ignorava, Sor Meryn ouviu suas súplicas de cabeça erguida. Não dizia uma única palavra.

Entre um berro e outro, alguém berrava ofensas contra ele e sua família (sua mãe falecida era o principal alvo de ofensas), outro o atingia com tomates podres. No fundo, humilhações supérfluas não o atingiam. Francis já havia lutado uma batalha naquela noite, mas não estava cansado o bastante para caminhar desde o calabouço até a sacada externa da torre onde seria a execução. Detrás dele um padre rezava o terço seguindo os passos do traidor, rezando em língua latina coisas que Sor Meryn não conseguia compreender.

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Ele curvou para outro corredor. Francis atrás dele estava sorridente, a caminhada vexatória seguia. Ele já estava cansado, não tinha forças para andar.

Mas não cairei, eu não vou cair. Pensava. Queria chegar até sua morte com suas próprias pernas, queria estar de cabeça erguida até que o carrasco a arrancasse.

Guiado pelos homens, o prisioneiro subiu uma grande fileira de escadas intermináveis. Estava mais perto e agora sua respiração estava rala. Prometeu a si mesmo que não sentiria medo, mas agora ele sentia. E o medo o afligia. Não havia ninguém além dele e os carrascos ali. Francis começou a entrar na escadaria e a

segui-lo. Passou pela mente dele se rebelar, agredir os guardas e tentar correr, mas

quão longe iria? Ele não iria. Seria morto sem qualquer dignidade assim que desse o primeiro pé para fora da escadaria. Escolheu seguir.

A interminável caminhada finalmente acabou. Ele se viu no alto de uma das torres da fortaleza, era uma espécie de sacada suspensa, ampla, bela e externa, muitas velas iluminavam. Via-se a lua sangrenta ainda mais brilhante no céu daquela madrugada. Sor Meryn olhou para um aparato montado quase na beira do espaço na torre como espécie de altar com espaço para ele ajoelhar e prostrar sua cabeça sobre uma grande tora de madeira. Tentou achar a espada com o olhar.

– Não espere que eu o dê a honra, Sor Meryn – a voz de Francis o disse ao longe, ficou mais próxima agora. – Meu convidado especial fará isso.

Ele deu as costas, não podia acreditar no que via. Adolph com a cara fechada e semblante gélido estava em pé, ereto passando despercebido no ambiente, apoiava a grande espada de Francis ainda dentro da bainha.

– Você!? – pasmou o prisioneiro.

– Eu disse que você faria história.

Francis se aproximou da sacada e saldou os cortesãos que acompanhavam. Foi exaustivamente ovacionado. Quando ele deu às costas aos cortesãos e se virou a Sor Meryn, um frio o percorreu dos pés a espinha. Seu pé tremeu como vara fina, achou que ia cair ali mesmo, estava trêmulo para dar um passo, sentia um ar denso no ambiente. Foi então que se virou de costas ao rei, viu dois seres másculos, fortes, com vestes uniformemente pretas que iam do pescoço a ponta dos pés não mostrando nada do corpo deles ali, eles usavam uma máscara de touro vermelho que davam um contraste medonho ao que eles vestiam. A máscara do

touro simbolizava a figura de Deotaurum, dos quatro deuses, o deus da morte. Segundo a mitologia daquelas terras, perdia apenas em crueldade ao deus do caos.

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– Hoje, eu reúno meus cortesãos aqui para a execução de um condenado por traição. O homem que ousou conspirar contra a casa Valouis e contra a casa Davis. Um homem de cuja pretensão ameaçou um reino, um povo e duas dinastias – fez uma breve pausa, encarou Adolph e lançou um olhar para que ele se aproximasse. – Também esta noite iniciamos uma longa e próspera amizade com a nossa nova nação vizinha.

A população se calou como em luto. Estava perplexa com o escutado, num misto de alegria, perplexidade e tristeza. Sor Meryn não se surpreendeu com o inevitável. Na verdade, ele sabia que cedo ou tarde isso acabaria acontecendo, e por isso agiu de forma afobada em sua conspiração.

– Nós, homens e mulheres legítimos e juramentados a casa Valouis, soberanos do leste das terras nortenho-ocidentais, que a partir hoje passam a denominar-se como Winster, reconhecemos e recebemos Adolph IV, juramentado a casa Davis como supremo líder e rei do Oeste destas vastas terras.

Adolph aproximou-se da sacada. Um riso cínico despontou de Sor Meryn, era o momento que achou que jamais viveria para viver. Curiosamente, era de certo o último momento que veria. O povo encarou Adolph sem saber o que fazer, Franchesco que estava sentado na sacada com a cara amarrada notou o choque de todos, a situação era desconfortável ao novo rei e Franchesco sabia.

– Aplausos a Adolph IV, meu povo – clamou Franchesco. O ‘rei-pai’ foi imediatamente obedecido e uma salva de aplausos falsos e vazios foi dada ao novo rei Davis. Com o tempo eles aprenderiam a lidar bem com a situação, mas aquela notícia foi claramente indigesta naquela hora.

– Vida longa ao rei de Zardan, vida longa a casa Davis! – gritou Francis.

– Vida longa ao rei de Zardan, vida longa a casa Davis! – ecoou o povo ali.

Passada as apresentações, os homens com máscara de touro guiaram Sor Meryn até a sacada dali. Ele viu toda a multidão que o aguardava, olhou para a lua.

– Nesta noite, as casas Davis e Valouis dividem seus territórios, mas se unem em laços de amizade e cumplicidade. Nossas coroas e nossos tronos não serão usurpados por qualquer um que não tenha sangue azul. Nós condenamos os nobres sobreviventes da casa Hendrix, da casa Dorian e de Meryn que conspiraram contra as coroas quando ainda eram só uma terra, ao exílio permanente para além de nossas penínsulas. E condenamos os lideres desse movimento à morte por decapitação – Francis olhou para Sor Meryn. – Quais são suas últimas palavras?

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Sor Meryn estava mudo até o momento. Desejava continuar assim, mas aquelas seriam as últimas palavras de um homem condenado. O silêncio se apossou dos cortesãos, a expectativa era grande para as últimas palavras do primeiro executado por um Davis e um Valouis na história. Ele hesitava em dizer, até que um pequeno burburinho começou na multidão exaustada pela demora.

– Não há últimas palavras, Sor Meryn? – perguntou, provocando. Sor Meryn tomou coragem. Afrontou os presentes com um semblante transtornado.

– Malditos sejam seus reinados e suas casas! – praguejou aos berros.

Francis não conseguia apagar o sorriso de satisfação do rosto, Adolph IV continuou a manter sua pose de inatingível. O Valouis sinalizou aos carrascos. Os homens pegaram Sor Meryn e o puseram de joelhos sobre o altar, agacharam seu pescoço sobre a tora de madeira. Adolph não estava disposto a fazer discurso, somente encarou profundamente a espada e foi se aproximando. Aguardava apenas um olhar de Francis e acabaria logo com aquele circo.

Ele ouviu o barulho da espada ser retirada da bainha. Todos ouviram aquilo. Ele encarou a multidão com seu coração disparado, sua visão estava zonza e ouvia seu coração batia forte, tão forte como nunca batera antes. O frio percorria toda sua espinha, parecia que estava gelando. Ele olhou para a esposa e Shae em parantos. Queria sair daquela posição e registrar uma última vez o rosto de Francis Valouis. Não foi permitido isso.

Ele só ouviu a espada ir mais ao alto e então, pensou.

Que todos os deuses estejam comigo. Sentiu um único golpe atravessar-lhe o pescoço e já não pôde sentir mais nada. A espada nas mãos do Davis ainda pingava sangue no chão e a cabeça rolava lentamente espalhando um rastro sangrento até parar justamente nos pés do príncipe Francis, que sobre a salva de aplausos dos cortesãos, pisou sobre o membro do defunto.

O sacrifício do nobre estava feito. E mais uma vez, as dinastias daquelas terras veriam o sol nascer no horizonte ao dia seguinte. Mas certamente não seria o mesmo horizonte de antes.

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CAPÍTULO IV

RHAEL

WINSTER — CORTE VALOUIS

CENTO E CINQUENTA ANOS DEPOIS. Era um dia ensolarado de um verão chuvoso como não se via há tempos

naquelas terras. Um rei Davis como Rhael no auge de seus trinta anos, alto, de olhos azuis e longos cabelos loiros bebia uma dose de vinho no escritório da Fortaleza Valouis, fitava o mundo exterior que parecia haver fora daquela janela.

– Divine, a mãe do meu filho Nyan, se foi há dois anos. No parto de meu primogênito – suspirou Rhael, lamuriando-se. – Nas mesmas circunstâncias nas quais Diane se encontra agora. Que os deuses me confortem.

Um sacerdote idoso, portando uma batina preta, que estava logo atrás o observando discordava de Rhael.

– As circunstâncias são bem diferentes, filho meu – contrapôs o sacerdote.

Rhael ignorou e se embebedou mais, serenamente.

– E depois de tudo aquilo, na visita dos Valouis ao meu castelo, mesmo eu sabendo que entre um rei Davis e uma princesa Valouis não era certo, era sujo, perigoso, nós não resistimos. Nós pecamos – disse com um carregado tom de pesar. – E agora eu só quero meu filho e a mulher que amo nos braços.

Rhael notou como o sacerdote foi sábio e incisivo na escolha das palavras.

– O nobre do Oeste pode ter as mulheres que desejar, mas jamais uma senhora do Leste – concluiu sabiamente. – Conforme-se se os deuses permitirem que o fruto desse pecado que a princesa carrega se crie entre os Davis, Milorde.

Rhael bebeu mais uma dose e outra em seguida. Sequer notou que o padre

havia saído, ele via o sol brilhar próximo a sua face, refletindo na janela. Como

odiava estar naquele lugar! Pensou apenas para si mesmo. Absorto em seus pensamentos, sequer viu o futuro rei Valouis adentrar pela porta. Sebastian II a fechou, Rhael virou-se ao quase anfitrião olhando seus cabelos castanhos e olhos verdes e claros o encarando atravessado.

– Beber antes da justa é pedir para ser morto – advertiu.

– A mulher que amo está em trabalho de parto de meu filho agora e vocês sequer me deixam chegar perto dela. O que queria, Sebastian?

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– Diane não é sua mulher! – se exaltou o príncipe. – Minha irmã é uma Valouis, você é um Davis e sua mulher já está morta! Que você aceitasse isso e não tentasse tirar o trono de minha família engravidando uma princesa de Winster! – voltou a abaixar o tom. – Por um século e meio, Rhael. Por um século e meio desde que Adolph IV e Francis I aceitaram a separação, a paz tem se mantido entre Davis e Valouis. Uma paz que a sua inconsequência e de minha irmã fez questão de destruir ponto um sangue misto entre as duas famílias.

Rhael já estava estressado com a eloquência de Sebastian. Tratou de olhá-lo nos olhos, pondo o copo de vinho sobre uma mesa.

– Davis e Valouis nunca deixaram de ser mais do mesmo. No fundo, o sangue de um sempre correu nas veias do outro.

– Você está bastante enganado, meu caro. O aguardo na arena e nem pense em olhar por Diane antes disso, ela estará melhor sem você.

– Prepare-se, Sebastian. Não será fácil se frustrar com perder em casa.

– Isso é o que nós veremos. Aquela criança foi concebida por um Davis, será parida por um Valouis e entre Valouis ela será criada.

– Que os deuses decidam através dessa justa qual clã criará o sangue misto.

A resposta foi seca e silábica de Rhael, Sebastian saiu sem alarde em seguida. Por algum tempo, Rhael ficou a encarar o que há pela janela, no fundo escondia o temor de sair de lá. Se embebedava na esperança que o vinho espairecesse sua tensão, mas o álcool não o subia fácil à cabeça.

Rhael deixou lentamente o cômodo andando pelos clássicos corredores da fortaleza Davis, o solo ainda de madeira rangia menos do que há um século e meio atrás. Ele via homens à espreita no corredor, mesmo com a amizade ‘recente’ entre as casas, a desconfiança ainda reinava, principalmente com um ‘sangue misto’ por nascer. Rhael sabia que estava sendo vigiado. Queria apenas um sinal de sua amada e seu ímpeto o fez entrar num corredor. Os homens começaram a segui-lo. Ele ouvia os berros dela de longe, estava em contração. Sofria. Aquilo o despertava memórias mistas, das noites tórridas de inverno na fortaleza dos Davis em que ambos tiveram um caso, da morte no parto de Lady Divine que berrava do mesmo modo que Diane no dia do parto.

O servo já o perseguida pelo corredor dali. Era expressamente proibido contato entre ele e Diane antes da ‘amigável’ torneio que viria minutos após, mas algo nele precisava vê-la. Os gritos dela pareciam mais próximos, porém notava-se

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que estavam sendo abafados, quando o Davis começou a correr encontrou de onde viam os berros. Parou na frente de um quarto, pela fresta da porta viu a amada.

– Está doendo! Está doendo demais – gemeu dentro do quarto. – Rhael! Eu quero vê-lo agora, Rhael! Aaaahhh! – ela berrava como se fosse expelir aquele bebê a qualquer instante.

– Calma, Milady, tenha calma – pedia uma parteira passando um pano úmido na testa dela. A mulher de olhos castanho-esverdeados e longos cabelos

pretos sofria na cama onde dava a luz. Eu preciso estar com ela agora.

Rhael foi para agir conforme seu ímpeto. Foi para abrir a porta do quarto, mas uma mão apoiou-se em seu ombro. Ele virou para ver quem era. Deu de cara com um servo que sorria para Rhael, o som de uma trombeta tocou do lado de fora. O servo noticiou sorrindo de orelha a orelha.

– Milorde, a hora da justa chegou.

• • •

A multidão estava ávida por sangue. Rhael concluiu isso ao sair do castelo prestes a entrar na cumprida arena que estava montada, usava uma armadura com destreza, com uma espada nas mãos. Na plateia havia no mínimo mil pessoas entre nobres, senhores, populares e servos. Todos unidos berravam e se divertiam no êxtase daquela tarde de verão. O rei Sebastian I, idoso, muito alto, de olhos verdes estonteantes e com pose imponente, sempre de cara fechada sentava num assento de honra, lado a alguns outros seletos senhores e senhoras dali.

O visitante sequer olhava o anfitrião. Notou que servos arrastavam um corpo de um morto com a armadura encharcada de sangue dali, metade da espada de madeira estava largada ensanguentada na lama. A outra metade atravessava e desfigurava a cara do morto.

– Hoje o povo está animado mesmo, hein – ouviu um servo comentar enquanto arrastava o corpo com indiferença. – Esse foi o quarto do dia e olha que só estamos na metade.

Os servos saíram rapidamente ao notar o olhar de Rhael ameaçador. Notou que havia uma cerca onde ocorriam as justas entre as plateias. Uma madeira que ia de uma ponta da cerca à outra dividia em dois, no lado esquerdo já estava Sebastian com a pesada armadura de ferro e nas mãos uma lança, alisando seu robusto cavalo negro. Rhael entrou pela direita já montando em seu cavalo dourado.

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– Que preparem-se os duelistas para o torneio! – anunciou um juiz. Só se ouviram os gritos de euforia da multidão. Apontou para o príncipe Valouis. – De um lado, o príncipe Valouis, o segundo de seu nome e o futuro rei de Winster, Sebastian II Valouis!

Os aplausos da multidão. Sebastian II os abria os braços, prestava

reverências. Todos eram claramente devotos do futuro rei ali.

– E do outro lado, o segundo duelista, Rhael, rei de Zardan. Aplausos ao competidor pela casa Davis!

Todos também o aplaudiram, mas ele sequer encarou a aglomeração. Tinha apenas olhos para a lança em sua mão e a vontade de acabar logo com aquilo ali, de preferência derrotando publicamente o ‘cunhado’ da casa Valouis. O juiz saiu da cerca e sentou-se numa cadeira de honra a frente do rei. O príncipe montou seu cavalo. Fez que sim, balançando a cabeça e junto de Rhael abaixou a viseira da armadura. Agora restava apenas o comando. A multidão silenciou. Todos os olhares estavam voltados ao rei de Winster, Sebastian I ensaiou um curto sorriso. Curvou o corpo para ver o filho e o homem que engravidara sua filha lutando. Bateu uma única palma. E com os berros de euforia da multidão, o silêncio se quebrou. Era o sinal para a batalha começar.

Rhael ergueu a rédea do cavalo, Sebastian fez o mesmo em seguida. Eles correram um na direção do outro velozmente, Sebastian ergueu a lança, Rhael com a espada abaixada. Quando os cavalos se cruzaram, Sebastian foi para atingir Rhael no tórax com toda sua força, mas o cavalo relinchou. Ergueu as patas como num susto e Sebastian se segurou para não cair. Rhael correu até a ponta direita da cerca. Agora Sebastian estava na ponta esquerda. Imediatamente puseram os cavalos para correr de novo, a cara do rei ao assistir estava fechada, tensa como se ele estivesse naquele torneio.

Os cavalos estavam para se cruzar de novo, agora Rhael erguera sua espada com força total. Sebastian fez o mesmo, o cavalo de Rhael trotava mais rápido que o do Valouis, a espada e a lança se bateram forte. Um tentava desarmar o outro, os cavalos pararam ali. Sebastian tentou acertar com força a lança no tórax de Rhael.

Errou. Rhael bateu com força a espada na lança dele, quase a jogou longe. Sebastian reluta para conseguir atingir o inimigo, mas sempre falha. Rhael deu um giro rápido com a espada até acertar forte o cabo dela na cabeça do rival.

– Vença! Vença esse torneio, Sebastian! – bradava o rei exaltado em seu assento.

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Ambos pegaram nas rédeas dos cavalos e correram para os extremos da cerca. Rapidamente aceleraram em confronto novamente, mas o cavalo de Sebastian desacelerou a corrida. Rhael o encurralou próximo ao extremo da cerca, num salto o cavalo do príncipe joga a viseira dele no chão. Rhael se preparava para atacar Sebastian na cara, desprotegido. Todos na arena se ergueram em desespero.

No ímpeto, Sebastian atravessou a lança no pescoço do cavalo de Rhael e a puxou bruscamente. O cavalo e seu rei caem no chão ao mesmo tempo em que o cavalo negro do príncipe relinchou, e num salto, o jogou no chão lamoso.

– Desgraçado!!! – berrou alto o rei de Zardan para todos ali ouvirem, se levantando. Sebastian havia burlado uma regra do torneio e sabia disso. Mas como a viseira caiu e Rhael estava prestes a atacá-lo, não viu outra opção.

O juiz foi até a arena a passos largos, nitidamente nervoso.

– Abaixem as viseiras. Sem mais cavalos, sigam o torneio! – exigiu o juiz a mando do rei. A população estava mais excitada e apreensiva com a batalha do que nunca. O primeiro torneio ‘amigável’ entre Davis e Valouis estava rendendo.

Sebastian levantou-se. Rhael recuou dando as costas para o público até o limite da cerca, encostando na madeira. Sebastian pulou a cerca com a lança em mãos, Rhael com a espada ainda agachada, a segurava firme.

Esse desgraçado vai apanhar como nunca apanhou antes.

Sebastian partiu para cima dele com a lança. Tentou atacá-lo entre as pernas, errou e agiu novamente contra as regras que para ele não importavam. Rhael se agachou, debaixo acertou seu tórax com a espada. Sebastian sentiu o impacto recuando, tentou acertar a lança na cara de Rhael, errou. Mas o Davis segurou firme a lança do rival. Sebastian foi tentar puxar sem ver o imenso sorriso de satisfação que Rhael ocultava detrás da viseira. O rei quebrou a lança dele e jogou metade no chão. Sebastian I estava extremamente nervoso com a situação.

– Vença logo, Sebastian! – motivava o rei aos berros.

Rhael empurrou o rival na lama. A plateia mais nervosa. Sebastian ainda tentou se levantar, mas com força, o loiro enfiou a espada contra sua armadura. Bateu forte contra o tórax três vezes. Não iria quebrar as regras e dar golpe baixo, embora vontade não faltasse. Sebastian se ergueu do lamaçal e se atracou contra o rei. O empurrou e o desequilibrou na madeira da cerca, quando se agachou para pegar a lança, Rhael o avançou com ódio. A espada brilhou com a luz do sol.

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Sebastian estava agachado e de costas para ele, mas Rhael não hesitou em

cravar a espada pelas costas dele. Agora sou eu quem burla as regras. O horror de todos se deu ao notar que a espada atravessou a armadura. Sangue escorreu da veste metálica. A multidão já estava de pé, boquiaberta com a luta.

– Chega! Basta! Basta! Se renda agora Sebastian! – berrou o rei se levantando de seu assento, nervoso. Sentia uma forte pontada no peito, o branco de seus olhos se tornou vermelho de fúria. Levou a mão ao coração, o filho era quem havia perdido e estava ferido, mas o morto parecia que seria ele.

– Intervenha, seu filho da mãe! – berrou ao juiz que estava sem ação.

A multidão perplexa com o que vira. Se for sangue que eles queriam, foi sangue o que Rhael os deu. Sebastian ainda virou ficando de frente ao inimigo. Pegou um pedaço da lança e se preparou para fincar entre as pernas de Rhael, mas com ódio e força Rhael acertou a espada em sua mão. O corte pegou fundo no pulso dele; se não fosse pela armadura, Sebastian já não teria mais duas mãos.

É só erguer a viseira. Pensava Rhael. Era só Sebastian seguir o comando que pouparia a si mesmo de uma morte desnecessária, e iria viver com a vergonha de ter perdido mesmo jogando baixo. A mão que Sebastian tinha para lutar não tinha mais forças. Rhael sentia seu temor e agora era hora do golpe final.

–Erga a viseira, Sebastian!!! – berrou o rei de Winster, apavorado. – Não!!!

Rhael desceu com toda sua força a espada rumo ao pescoço do adversário. Sebastian moveu a outra mão no desespero. Quando a espada estava prestes a feri-lo drasticamente, o Valouis ergueu a viseira. No último segundo, Rhael abaixou sua arma. O rei caiu sobre seu trono improvisado num suspiro aliviado. Rhael jogou a espada no chão. Sabia como Sebastian ficaria tentado a pegar aquela espada e machucá-lo fatalmente. O juiz correu até Rhael e ergueu sua mão direita, ele foi vencedor. Os aplausos da plateia foram ouvidos. Lentamente, um tanto dolorido, foi até o rei que sentava em seu trono com a cara mais fechada de ódio que ele já viu, Rhael estendeu a mão ao rei diante de todos. Levou alguns instantes, mas o rei se levantou e a imenso contragosto cumprimentou o rei.

– Agora, se me permite Majestade, vou assistir o meu filho vir ao mundo.

Sebastian olhou para o filho homônimo com sangue nos olhos. Mas já não havia nada que pudesse ser feito. E então, no meio daquela tarde quente e ensolarada, repentinamente o céu límpido se encheu de nuvens negras e a lama da arena ficaria ainda mais encharcada com a tempestade que começara a cair.

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CAPÍTULO V

DIANE

As crianças que nasciam no inverno eram protegidas ao deus do caos. Aquelas sortudas que nasciam no outono, tinham como deus regente, o deus da terra. As da primavera pertenciam à deusa mãe. E aqueles que como o filho que Diane paria, nasciam no verão pertenciam ao deus da morte.

– Deus da morte, deus da morte... – invocava uma parteira segurando firme as mãos de Diane. Ela se contorcia e se debatia na cama. Urrava de dor como nunca. A ventania entrava pela janela junto da chuva na tarde tempestuosa. Através dos sons de raios e trovões parecia que o deus a estava respondendo. – Guie suas criaturas através da escuridão. Dê a vida a vosso filho, traga ao mundo essa criança. Deus da morte, deus da morte, dê a luz ao seu protegido.

Os cabelos morenos, volumosos e lisos dela balançavam com o vento. Ela berrava de dor, chorava. Fazia um esforço brutal, conforme as parteiras seguravam sua mão e passavam panos em sua pele. Seus berros eram ouvidos por todo o castelo. Ela só queria ver Rhael ali, que ele estivesse junto dela, pensava exatamente no momento em que Rhael entrou pela porta e correu até a amada. Ele não disse nada, apenas segurou sua mão. Ela o olhou firme nos olhos. Sofria.

– Respira, Diane. Respira e seja forte! Seja forte, Diane! Forte! – ele exigia.

– Ah! Meu Deus, está doendo! Ah!

– Força, Milady, força! Está coroando – disse uma parteira.

Diane fez um esforço descomunal, ergueu parte de seu corpo. Subitamente a ventania que bateu forte uma janela apagara uma vela. Tudo estava escuro, parecia que a noite cairia cedo demais para uma tarde de verão. Os sons da tempestade eram escutados. Os raios e trovões pareciam se mesclar aos berros da gravida. Por entre as pernas de Diane, suja de sangue a cabeça de um bebê começava a surgir. A parteira demandava força da grávida. Ela já estava frágil, sua pele pálida como a neve. Sangue escorria por entre suas pernas. Rhael se desesperava notando aquilo.

– Diane, Diane, eu imploro! Não me deixa, Diane! Seja forte! Seja forte!

Através da porta, Sebastian I e Sebastian II observavam mudos. Uma parteira que limpava o suor dela correu até a janela que insistia em bater e

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barulhar contra a parede pelo vento. Ela escancarou as janelas, pegou uma cruz e estendeu ao céu.

– Deus da morte, deus da morte. Guie suas criaturas através da escuridão!

Ela bradava. Um raio seguiu de sua fala, como em resposta. Ela repetiu. O raio também insistiu em cair em seguida, o vento entrava, parecia tomar forma de uma sombra negra naquele quarto, jogava objetos no chão, batia outra janela.

– Deus da morte, deus da morte, dê a luz ao vosso filho!

Eu não aguento mais! Está doendo tanto, eu não aguento mais. Diane não tinha forças para falar. Fechava os olhos e gritava como nunca. Berrava. Um sorriso se abriu no rosto da parteira, a criança estava sendo expelida por entre suas pernas. Diane tratou de fazer mais força, segurando a mão do amado. No estrondo de um raio, escutou-se um choro de um bebê. Diane pareceu extasiada.

A dor havia acabado. A ventania bizarra que tomara o ambiente pareceu se dissipar após rondar o corpo da criança que logo abriu seus pequenos olhos. Rhael e Diane deram um sorriso bobo, Diane sequer teve tempo para segurar o filho. Virou-se a Rhael.

– Obrigado... Obrigado por estar comigo – ela apenas balbuciou isso.

– Diane, Diane, fale comigo! – ele percebeu algo errado, que Diane não percebera. A dor parecia não existir, apenas havia um cansaço. Um cansaço e um grande vazio. E o árduo cansaço tornava sua visão ficava mais zonza e embaçada. Ela apenas viu o desespero de Rhael pela última vez. E sua visão escureceu.

Lentamente tudo fora ficando às claras novamente. Diane notou ainda estar seu quarto, aias a cercavam encosta nas paredes, as velas iluminavam a noite. Rhael

sorriu para ela. Eu... eu estou viva. Falou consigo mesma como se não acreditasse.

– Fiquei preocupado. Achei que não a veria acordar mais – desabafou.

– Eu dormi por quanto tempo?

– Não muito. Em algumas horas o dia nascerá novamente – Rhael fez uma pausa e percebeu que estava segurando a mão da princesa. Tratou de afastá-la, constrangido. – Os físicos vieram vê-la no começo da noite. Dizem que é muito provável que você não consiga ter mais filhos e que tenha contraído alguma infecção durante a gestação, Diane.

Ela não se importava. Deu um sorriso singelo para Rhael.

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– Isso não importa, Rhael. Eu tive um sonho nesse período. Foi tão real – iniciou Diane, ela fez um esforço para se erguer, mas tudo doía em seu corpo. –

Deotaurum me recebia à porta do paraíso. Ele disse que minha missão estava cumprida. Eu o ouvi dizer que Aryn era minha missão.

Àquela época, os zardans não creiam tanto no politeísmo como os winsterlens, mas Rhael, em particular acreditava em algo sobre isso. Encarou Diane intrigado.

– Aryn? Como sabe que é um menino se nem chegou a vê-lo?

– Eu sei que esse deve ser o nome de nosso filho.

– Não trás mau presságio?

– Não ao nosso Aryn – Diane pegou na mão de Rhael em seguida. Ela fazia o grande rei parecer um adolescente apaixonado, mas nos últimos tempos, Rhael lutava para manter a postura. Manteve-se firme diante da amada.

– Assim será então. Será Aryn Davis Castillo Valouis.

Rhael saiu do cômodo por algum tempo. Diane estava na cama como

inerte. Um pensamento rodeava sua mente... Eu sei que não viverei para vê-lo crescer. Ela repetia para si mesma como se tentasse aceitar uma verdade inquestionável. Minutos após, Rhael chegou trazendo Aryn no colo. Diane abriu um sorriso lindo ao vê-lo e estendeu os braços, Rhael o deu a ela. Diane notou a beleza da criança que lentamente abriu os olhos para ela. Ela encarou o que via com uma enorme surpresa, voltou-se a Rhael que sorriu.

– É. Eu ainda não entendi o que os deuses quiseram nos dizer com isso.

Rhael também olhou para Aryn, um olho da criança era verde como esmeraldas assim como os da mãe, o outro extremamente azul como os do pai.

– O duelo... eu ouvi falar que meu pai demandou um duelo para decidir qual família criaria a criança – disse ela cabisbaixa, encarando Aryn como se fosse uma das últimas vezes. – Você ou meu irmão, quem ganhou?

– Eu. Assim que as negociações diplomáticas entre Zardan e Winster acabarem, eu o levo para minha terra, Diane. E é muito provável que eu nunca mais o traga aqui.

– Tudo bem – ela foi sucinta. Fazia questão de sempre se fazer de forte.

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– Você sabe que jamais poderíamos cria-lo juntos. Que foi um erro.

– Ela foi uma consequência, Rhael. Não um erro – rebateu.

– Mas sempre que quiser visitá-la em Zardan, as portas estarão abertas.

Diane se comoveu. Uma lágrima insistiu em cair do olhar, mas ela logo a enxugou. Rhael cabisbaixo, tentava não encará-la, olha o bebê.

– Eu sinto que não viverei para poder ir visitá-lo. O próprio físico falou da infecção, Rhael. É uma questão de tempo até se espalhar por todo o corpo.

– Não diga isso, Diane! – repreendeu Rhael com a voz embargada. Agora ele a olhava nos olhos e segurava seu queixo. – Você ficará bem. E essa criança será muito amada. Haja o que houver, ela vai saber quem foi, quem é a mãe dela.

– Eu tenho certeza que sim, Rhael.

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CAPÍTULO VI

RHAEL

Haviam se passado seis meses daquele parto como se fossem seis décadas.

Rhael ainda estava na fortaleza Valouis, sentado num descampo ermo com grama seca, a frente dele, servos pregavam uma cruz de madeira no chão, atrás da terra remexida onde Diane havia sido enterrada. Os assuntos que Zardan e Winster tratavam desde que Rhael foi visitá-los, dois meses antes do parto, haviam acabado de serem resolvidos. Já se passaram duas semanas desde que Diane havia morrido pela infecção contraída no final da gravidez, e por mais que Rhael fingisse

que já havia superado, não havia.

Aquela era sua última visita ao túmulo. Ele já estava preparado para voltar a Zardan, deixara a nação sobre os cuidados do irmão Adolph VI, já que seu filho com sua falecida esposa tinha apenas dois anos. Rhael respirou fundo, se levantou em seguida e caminhou pelo vasto campo até adentrar no estábulo.

Havia diversos cavalos ali, mas parou diante um em especial. Era negro, muito robusto e forte, só eram comuns cavalos assim ao mais Leste daquele território, mas aquele presente do rei Sebastian era um agrado pela – detestável – visita diplomática de Rhael e também ao neto recém-nascido que Sebastian culpava pela morte de Diane e desejava nunca mais ver em sua frente. Foi justamente ele que entrou no estábulo, aproximando-se passo a passo do rei da nação vizinha.

– Embarcará ao meio do dia? – Questionou o idoso.

– Sim. Obrigado pela visita foi bastante agradável – Rhael se esforçava para não exalar ironia ou falsidade. – Mas da próxima vez, vocês irão a Zardan.

– Da última vez que fomos lá, você engravidou minha filha. E agora ela está morta. Dou-te um conselho, quando você amar uma mulher, não a engravide.

Rhael fez questão de ignorar o sarcasmo de Sebastian. Aproximou-se de seu cavalo e começo a afivelar a cela nele. Sebastian o afrontou de canto de olho.

– Sabe? Nós dois sabemos a razão pela qual eu fiz questão de uma justa ‘amigável’ para decidir o destino da criança. Você sabe que grandes sacrifícios são feitos por bens maiores, não?

Sebastian iniciou nas entrelinhas. Mas Rhael já havia se dado conta.

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– Eu venci aquela justa, pois sei que não importa o tempo que passe, um Valouis não teme nada no mundo como a força do nome Davis – Rhael fez uma pausa. Sequer encara o rei. – Mas eu imagino o que seria de Aryn se eu perdesse.

Sebastian era conhecido por suas medidas práticas. Não questionava, não pensava emocionalmente, apenas fazia o que julgava correto, e era muito amado

por isso. Apesar de ser Valouis, no fundo não era um homem ruim... Julgava Rhael.

– Meu jovem, partindo do suposto de que você é letrado, já leu Heliseu, não? – na visão dos Valouis, a ignorância estava para os Davis; como para os Davis, a histeria e a fraqueza estavam para os Valouis.

Rhael riu ligeiramente. Amansava o cavalo, fazendo carinho em sua cara.

– A Fúria dos Quatro Deuses e a Saga dos Anjos do Fogo... Qualquer letrado nortenho-ocidental já teve contato com essa obra.

– Pois bem... – pontuou Sebastian. – Você deve saber que é narrado que o homem que ambicionou dominar as duas terras era conhecido como Aryn, numa língua morta da época.

Rhael parou de amansar o cavalo e virou-se ao anfitrião, esboçando um riso.

– Aryn é apenas um nome mitológico. Todos sabem que o verdadeiro Aryn que existiu foi o nobre, pai do autor, Heliseu. Ele ambicionava derrubar os Valouis e os Davis e dominar as duas terras, mas ao perder a esposa na peste negra e se dar conta que era uma ambição impossível, ele enlouqueceu. Então, no auge de sua loucura, ele trancou todos os filhos e filhas na torre mais alta do castelo e começou

a... – Rhael buscava um eufemismo para concluir. – ‘Usá-los’. Usá-los como se fosse a finada esposa. Até que Heliseu matou o pai e o eternizou dando seu nome ao monstro mais conhecido por todo esse canto da Europa.

Sebastian expressou indiferença para Rhael.

– Pensei que soubesse da historia detrás do livro de Heliseu que é quase tão conhecida quanto A Fúria dos Quatro Deuses, mas a diferença é que essa é real.

Rhael deu as costas para Sebastian, foi checar as patas e ferraduras do cavalo enquanto o mesmo comia grama dentro do estábulo. O rei de Winster o encarou.

– Rhael, pela amizade de quase dois séculos entre as duas casas, devo alertá-lo que essa criança foi um erro! – Sebastian indagou firme. – E você sabe que eu não falo isso apenas porque essa criança matou minha filha para nascer.

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– Foi um erro do qual eu cuidarei daqui em diante, dispenso seus conselhos – retrucou rispidamente, continuando em seguida. – Mas se a sua preocupação é que Aryn chegue ao trono de Zardan e dali tente dominar Winster, lembre que Aryn é meu filho mais novo. E que Nyan, dois anos mais velho, é o Davis sangue-puro que vai comandar Zardan.

Sebastian calou-se. Foi até a saída, mas parou na entrada do local. Quando Rhael pensara que o rei já o tinha deixado livre, Sebastian conclui.

– Que os deuses preservem a vida de seu primogênito... – antes que Rhael pudesse agradecer os bons votos do Valouis, Sebastian ameaçou. – Porque se Aryn sentar naquele trono, meu amigo... Guerras dinásticas voltarão!

– Então proteja sua fortaleza, meu caro. Porque eu cumprirei meus deveres.

Após essa, Sebastian I finalmente deixou o zardan em paz. Ele bufou após a saída do rei, logo conteve a ira e deixou o local. Rhael organizou tudo o que tinha de organizar ao longo daquela manhã ensolarada de inverno. Era anormal um dia ameno como aquele numa estação tão gelada naqueles cantos. Foi ao começo daquela tarde, na entrada da fortaleza, uma imensa comitiva aguardava o rei. Uma criada segurava Aryn que dormia em seus braços, Rhael deixou o castelo seguido de Sebastian I e seu filho.

– Adeus, Majestade – estendeu a mão ao rei que a apertou.

O irmão de Diane o olhava atravessado com ódio, ele nunca mais andaria com a mesma agilidade desde o golpe desferido pelo Davis durante a justa. Rhael apenas olhou em deboche e desprezo para Sebastian II e adentrou na carruagem.

Só tenho pena dos winsterlens tendo um futuro rei como aquilo ali. Pensava em desprezo. Finalmente ele ouviu o condutor estralar o chicote no cavalo e a imensa comitiva deixava a fortaleza Valouis regressando a terra natal.

– Só sinto que esse garoto fará história, Majestade – disse a serva puxando assunto. Os Davis eram extremamente frios com seus criados, apenas os falavam menos que necessário para lhes ordenar, mas daquilo, o rei não pôde discordar.

– Com certeza ele fará.

Rhael sequer imaginava, mas não podia estar mais certo sobre os fatos.

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CAPÍTULO VII

ARYN

ZARDAN — CORTE DAVIS

DEZ ANOS DEPOIS. Apesar de um dos verões mais rigorosos dos últimos tempos, os dias

andavam amanhecendo frios e nublados naquela época. Mas dentro da carruagem estava quente. Com dez anos agora, Aryn buscava encarar-se num pequeno espelho no teto da carruagem que trepidava. Seus cabelos prateados e lisos contrastavam com um olho esverdeado e o outro azul que possuía. Aryn, junto do pai, do irmão dois anos mais velho e de Puck, um cão que o príncipe levava para cima e para baixo, partiram ao amanhecer para ver a execução de um herege acusado de matar duas crianças num castelo aos arredores da pomposa corte Davis.

Como ele pode estar tão animado com um evento desses? Pensava o garoto notando seu irmão mais velho com uma feição descomunal de animação. Fazia meses que Nyan não assistia um assassinato, estava extremamente excitado para ver cabeças rolarem, de novo. Falou disso pela viagem inteira, embrulhava o estomago do menino. Logo chegaram ao destino. A carruagem parou, o servo abriu a porta e os quatro saíram. O acusado já estava amarrado e com a cabeça posta sobre uma tora. O vassalo de Rhael aproximou-se dele, o cumprimentou e já o estendera o machado. Entendeu na carta que recebeu mais cedo que o rei não estava paciente para aquilo. Nyan e Aryn se posicionaram para assistir a execução.

“Mata logo”. Era o que faltava o futuro rei gritar ao pai, mas se conteve. Aryn sabia que não deveria desviar o olhar ou seria punido por sua fraqueza. Rhael pegou o machado e se aproximou da vítima que pedia misericórdia.

– Eu, Rhael I, rei de Zardan e senhor de todo o reino executo este homem por práticas hereges que causaram danos irreparáveis a duas famílias e seus filhos. Pronuncie suas últimas palavras – foi bem mais sucinto que normalmente.

– Por favor, Majestade – implorou o homicida desesperado.

Rhael sequer o ouviu e atingiu logo a cabeça dele. Não caiu de uma vez só, e precisou de outro golpe mais certeiro para que a cabeça rolasse pela grama fresca.

O sorriso de excitação de Nyan era descomunal. Como ele era ruim. Após cumprir com seu dever, Rhael largou o machado com seu vassalo enquanto os homens vinham recolher o corpo. Ele aproximou-se do filho mais velho, se agachou até sua altura e delicadamente apoiou a mão nos ombros dele.

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– Quando a hora de reinar essas terras chegar, sei que cumprirá seu dever, mas não deve sentir prazer ao fazê-lo, filho. Só homens maus sentem prazer nisso.

Logo Aryn notou Puck correndo pela grama, azucrinando os criados dali. Aryn se agachou e sinalizou para o cão, Rhael continuou falando com Nyan.

– Mas também não deve hesitar e nem fraquejar em seu dever quando tiver de fazê-lo, me fiz claro? – interrogou Rhael, após dar sua lição de moral do dia.

Seu filho balançou a cabeça, complacente.

– Puck, Puck, vem garoto, vem – Aryn disse ao cachorro que correu até ele e pulou em seu braço. Girando enquanto brincava com o dono, Puck bateu a cauda levemente na perna de Nyan que encarou o animal com ódio.

– Quando eu for rei, eu vou matar todos que encherem meu saco. Inclusive esse cão pulguento que não para de lamber meu sapato – disse Nyan olhando para o cachorro. Aryn se levantou ao ouvir a clara ameaça. – Ainda vou servir essa peste num jantar para você comer, escreva o que eu digo – ameaçou.

Rhael fez sinal para Aryn ignorar a provocação do irmão. E ele o fez. No

fundo não era Puck a quem ele odiava. Concluía o garoto consigo mesmo. Calado, ele pegou Puck no colo e correu para a carruagem. Esperou alguns instantes que montassem nela e partissem de volta a corte. O clima era entediante ali dentro, após algum tempo estavam diante da grande fortaleza Davis. Quando as portas se abriram, cada um foi para um lado. Nyan foi se divertir com seus cães de caça e colegas de companhia, Aryn, como sempre, se viu sozinho a vagar pelo castelo.

Já havia se perdido de Rhael há algum tempo, sabia que seria por aquele dia que a jovem Sansa e seu tio Clements chegariam à corte, haveria um grande jantar para celebrar. Sansa tinha a idade de Aryn e já era prometida em casamento a Nyan, logo ambos nunca puderam ter muito contato, mas Aryn sempre admirou

sua beleza. Será que jantaremos juntos esta noite? Ocorria na mente dele, porém, para sua surpresa, quando foi virar um corredor ouviu uma voz que não era desconhecida. De um homem de meia-idade calvo, loiro, de olhos pretos. Era Clements, o tio de Sansa a falar com Rhael sorrateiramente no corredor.

– Escute, você já me estressou em suas cartas com essas insinuações inoportunas sobre meu filho – alegou Rhael já estressado com Clements. Aryn sentia que no fundo era ele o assunto da conversa, e para variar, não estava errado.

Aryn (que antes pensava em ser cordial e se mostrar no corredor cumprimentando Lorde Clements) preferiu se esconder para ouvir a conversa.

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– Eu falo para o bem de Zardan, Milorde! Aryn é nitidamente uma ameaça. Ele tem modos estranhos, fica o tempo inteiro calado, encarando o irmão de canto de olho, como um parasita zanzando pela corte. Perdão, eu sei que ele é seu filho.

– Então nunca mais se refira a ele assim. Ele ainda é um príncipe de Zardan, lembre-se disso – o cortou de modo grosseiro.

– Aquele garoto tem sangue Valouis nas veias! Sem querer questionar sua decisão de criá-lo, Milorde, mas é nítido que ele é um risco para essa casa e para as duas nações, ele põe a paz entre vocês a perigo! Eu, em nome de todos os nobres, quero aquele garoto o mais da longe da minha sobrinha e daquele trono possível – sussurrou corajosamente Clements.

Ele viu a ira no olhar de Rhael com suas palavras. Aryn vira isso também, mas Rhael não pôde abrir a boca para defendê-lo simplesmente por não conseguir discordar. E como isso doía em Aryn. Ficou sem reação com o que ouvira às escondidas, mas não foi a primeira vez, muitos antes de Clements deram a Rhael o mesmo conselho: “Livre-se dele”. A única diferença no discurso que o garoto já conhecia, era que o ‘livre-se’ de alguns era mais drástico do que o de outros.

• • •

Pássaros voavam por entre as árvores à beira do lago da fortaleza, Aryn buscava a calmaria daquele lugar que adorava. Enquanto treinava com uma espada pequena, de madeira e sem ponta movimentos aleatórios no ar, nem notava seu adorado Puck balançando o rabo para ele, queria brincar também, de certo.

Aryn olhava fixo para o nada como se fosse um alvo. Esquivava de golpes imaginários e agachava passando a ‘espada’ por entre as pernas do adversário que teria aproximadamente sua altura, pelo visto. Estava animado. Os minutos que passou no treino o ajudaram a esquecer do que ouviu no castelo. Nesse momento, Sansa saiu por entre os arbustos e sorriu para o futuro cunhado. Tinha a idade dele. Sua pele clara, olhos tom de âmbar e cabelos arruivados fascinavam o menino. Ele retribuiu o sorriso, tentando ser ao máximo impessoal para com ela.

– Posso brincar também? Parece interessante – constatou sorrindo.

– Só tenho essa espada, infelizmente – tentava simular, escondendo a outra espada de madeira idêntica a que ele tinha que estava de reserva no chão.

– Ah, mas para isso não há problemas – Sansa sempre foi muito sagaz. – Já encontrei outra espada igualzinha a sua ali, olha – apontou com o dedo.

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O menino sorriu constrangido enquanto Sansa pegou a espada.

– E aí, vamos ou não? Eu estou bastante entediada aqui nessa corte.

– Devo alertá-la que esse não é um esporte para garotas. Além do mais, se alguém me pega te ensinando esses ‘maus modos masculinos’ eu estaria encrencado, certo?

– Mas eu insisto. Ninguém virá aqui. Além do mais, já estou enjoada lendo Heliseu há dois anos, aquele livro é gigantesco, parece que não acaba nunca.

O sorriso que ela dera ao garoto foi mais do que convincente.

– Está bem. Vamos então. Primeiro, o mais importante para ferir o rival é inicialmente se esquivando dele e depois o golpear. Vamos, tente me acertar.

Sansa sorriu, tentou acertar Aryn com certo medo de feri-lo. Ele fechou a cara como se pedisse para ela tentar de verdade. Sansa foi atingi-lo com a espada na barriga, mas Aryn esquivou, deu um leve giro e rapidamente se posicionou atrás dela, imobilizando a mão dela que estava com a espada e passou muito de leve a espada nas costas da mesma. A soltou em seguida.

– Falta de prática, não? – brincou Aryn. Sansa fez que sim. E num movimento inesperado, ela acertou-o no tórax.

– Nunca baixe a guarda. Essa lição eu aprendi ouvindo os cavaleiros.

Até que ela era ótima para uma iniciante. Aryn riu, ambos começaram de verdade a brincar com os objetos. Cruzavam a espada de um lado e do outro, tentavam acertar-se, agora, batendo a espada com mais força. Conseguiu. Acertou Sansa na barriga, ela se desequilibrou no susto e caiu na grama. Aryn se desesperou. Correu, estendendo-a a mão e a puxando. Nesse instante, Aryn ainda não vira, mas Nyan surgia por entre as árvores da clareira.

– Me perdoa, me perdoa, Lady Sansa. Eu avisei que não deveríamos.

– Não. Está tudo bem, nem me machuquei. De verdade – disse aos risos.

– Golpeando uma dama indefesa, seu crápula! – bradou Nyan ao irmão.

– Não, Nyan, não foi assim! Eu insisti para treinarmos, ele não quis, foi um acidente! Ele não fez nada comigo – Aryn encarava encantado, sem palavras sendo defendido por Sansa. Nyan sabia que foi um acidente, mas o ódio que ficou de ver sua prometida com o irmão foi imenso. E ela ao defendê-lo o deu ainda mais ódio.

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– Ora seu, você pagará por isso! – avisou truculento, já indo para cima de Aryn indefeso no chão, dando com força um chute em sua costela. Os olhos dele se encheram de lágrimas vendo Sansa o olhando. Nyan notou.

– Fracote! Você é um invejoso patético, Aryn! Só serve para lutar sozinho ou com garotas porque não é pálio para alguém que veste calças. Você é uma piada, Aryn! – Nyan dizia enquanto pisava na barriga de Aryn, o soltou. – Vem, vem se meter à besta comigo, para ver se eu não te ponho no seu lugar, pirralho! –a vontade de se exibir para Sansa e se mostrar superior era enorme.

Puck que estava deitado na grama avançou para eles. Começou a latir para Nyan, Sansa correu até o cachorro e o acariciou. Queria evitar uma confusão ainda maior caso o cão de Aryn atacasse Nyan. O garoto ainda estava extático no chão.

– Você não serve nem para isso, Aryn. Você envergonha essa família. Você envergonha meu pai, envergonha a mim e a todo mundo aqui.

– Nyan! – disse Sansa alto, totalmente incrédula com as palavras dele. Mas Nyan não se importava.

– Você não podia nos fazer o favor de só deitar e morrer duma vez?

– Cala a boca! – gritou Aryn. Espantou até Nyan que deu um sorriso. Aryn se levantou e fora para cima do irmão, quando foi para socá-lo, um empurrão de Nyan o jogou no lago, Puck escapuliu dos braços de Sansa e correu até Nyan mordendo forte seu calcanhar. O futuro rei berrou de dor.

– Ah, peste! – bradava. Enquanto Aryn tentava nadar no lago, batia os braços em desespero, Nyan pegou a espada de madeira e com força bateu contra Puck. O cachorro chorou. Não satisfeito o bastante, Nyan ainda o puxou pela cabeça e o jogou violentamente no lago, junto com o dono.

– Façam-me um favor e morram afogados vocês! – gritava Nyan que ainda cuspiu contra o irmão no lago, errou. Sansa estava pasma, uma lágrima estava em seu olhar com o que vira. Só sentiu Nyan a puxando pela mão e a tirando dali.

Aryn se conteve para não chorar, totalmente humilhado, saiu com Puck do

lago. Não tinha a quem contar. Pensou entre uma lágrima que o escorreu do rosto.

Mas Nyan tinha. Nyan dará um escândalo contra mim e, só para variar, ele conseguiria o que quer.

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CAPÍTULO VIII

SANSA

– Eu quero que você diga a verdade, Sansa – ouviu docemente de Rhael num dos quartos da fortaleza, bem à frente, Nyan a lançava um olhar ameaçador.

Seu tio estivera minutos antes naquela sala e a forçou a confirmar a versão dos fatos do noivo. Sansa não queria, queria dizer a verdade. E aquele era o momento. Rhael a sua frente estava paciente e calmo, mas ainda aguardava a resposta.

– Sansa? Foi mesmo assim que aconteceu?

– Sim – ela respondeu silabicamente, contra a própria vontade. Rhael assentiu positivamente, acariciou seus cabelos longos enquanto ela olhava a Nyan.

– Está vendo, pai? Eu não menti. O Aryn é culpado de tudo! Ele forçou a Sansa a participar daquilo, quando eu o questionei me agrediu e mandou aquela peste do cão dele para me atacar. E ainda por cima ele é o maior mentiroso!

– A versão que o Aryn deu para essa história é bem diferente. Mas de qualquer forma, ele já está sendo punido – informou a Nyan, Sansa abaixou a cabeça, se sentia culpada por ser complacente, viu que Nyan despontava um sorriso.

Mas é o irmão dele! Como o Nyan pode ser tão cruel assim com ele? Pensou.

– Tente ser um irmão melhor para Aryn, Nyan.

– Mas pai, ele é um Valouis! – protestou Nyan. – Eu não sei nem o que ele

faz nessa casa. E o próprio Meister me ensinou a não confiar num Valouis.

– Valouis são nossos amigos, Nyan! – disse alto para que soasse claro para Nyan. – Nossos melhores amigos, ultimamente. Do clã que veio os Davis, veio os Valouis também e independente do sangue que o Aryn tem, ele é um de nós. E lembre-se que caso você não produza herdeiros, ele ocupará o trono em sua falta.

Nyan riu em deboche. O pai estava claramente insatisfeito.

– Isso nunca. Ele teria que matar primeiro – conclui num tom ameaçador. – Só que é mais fácil eu o matar.

– Só tente ser mais paciente com seu irmão. Ele não anda numa fase fácil.

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O rei saiu em seguida. Sansa estava acuada, ela sentia medo de Nyan que percebia isso. Ele a deu um sorriso sádico. Levantou-se da cadeira em que sentava e passo a passo caminhou até ela. Ela queria recuar, mas já estava encostada na parede. Ele sorriu sadicamente para ela. Agora, de Nyan, ela sentia certo pavor. Ele pegou em sua mão. Ela deu um sorriso amarelo de medo para ele.

– Vamos passear, Milady? Há algo que quero mostra-la.

Sansa não queria. Mas acabou aceitando. Ele a puxou pela mão suavemente, andaram ambos pelo corredor com os nobres que passavam por ali olhando admirados, apreciando o casal que – graças aos interesses políticos das famílias – foram feitos um para o outro. Logo eles saíram do castelo.

O sol não brilhava no céu nublado, parecia que ia chover naquela tarde. Ele a levava por meio das árvores a passos largos. Ela começou a se soltar, ele soltou de sua mão no meio da mata e começou a correr. Sabia que ela não conhecia muito bem o local e por isso o seguiria. Ela tratou de tentar se distrair, abrir um sorriso e correr atrás de Nyan.

– Vem, vem logo Sansa! Ou vai ficar tarde demais hein.

– Já vou, já vou. Eu não sei correr muito, Nyan.

Ela se perdeu dele por instantes. Corria pelas árvores, buscava a voz dele que estava mudo. Ouviu um latido e seguiu correndo na direção do barulho, estava sorrindo, até que gostava daquele tipo de jogo. Até que parou, viu que Nyan já não corria mais e também havia parado. Ele estava sentado na frente do lago da corte, de costas para ela. Sansa o chamava, mas Nyan não respondia. Fez questão que ela desse a volta e parasse na frente dele. Sansa notou que ele segurava Puck nos braços, o cachorro tentava sair.

– Calma Puck, calma, amigão – disse o garoto amigavelmente abrindo um sorriso. – Eu só pareço meio durão com o Puck, porque eu queria que ele fosse um cão de caça, sabe? Que nem os quatro que eu mantenho no canil, mas o Aryn... é o Aryn, você sabe né? – tratou de desconversar e acariciar Puck sorrindo. O cão queria escapulir. – Eu também adoro esse cachorro, no fundo.

Sansa riu para ele, estava para sentar ao lado do noivo, mas desistiu. Melhor

não. O silêncio durou por alguns instantes, Nyan encarou o lago, acariciando o cão. Puck era muito dócil e amigável, se deixou ficar no colo de Nyan.

– Gosta de cozinhar, Sansa? Ouvi dizer que você ama comer carne.

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– Não. Mas comer é comigo mesmo – respondeu, brincalhona.

– Ah sim – ele esboçou um sorriso. – Que tipo de carne você já provou?

– Eu já provei de cavalo, de cordeiro e a mais saborosa, que é a de veado. De coelho e de rã já comi também, mas não gostei muito.

Nyan discretamente sacou uma faca com uma das mãos no bolso. Acariciou Puck na cabeça com um sorriso, o chão chiava para sair dos braços dele, lambeu seu cotovelo. Sansa estava absorta àquilo, pensava em Aryn, até ouvir Nyan.

– Sim, compreendo... – iniciou Nyan, Sansa agora notou o sorriso quase doentio em sua cara. – Mas a de cachorro é a melhor de todas.

– Não! – Ela berrou desesperada, Puck ainda tentou escapulir. Mas num único golpe, Nyan cravou a faca no peito do cachorro do irmão.

Eles já tinham a carne do jantar.

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CAPÍTULO IX

RHAEL

As velas rústicas em luminárias do teto refletiam em toda a sala de jantar; como bom anfitrião, o rei tratou de ocupar a cabeceira da mesa onde estavam todos. Olhava para o irmão Adolph VI à sua esquerda na mesa. Ele tinha cabelo castanho-escuro arrepiado, olhos azuis e 10 anos a menos que o rei. Sansa, Clements, muitos nobres de famílias ricas e parentes de Rhael também ocupavam os lugares na mesa. Clements estava ao lado de Adolph aos risos em conversas baixas e humoradas, pareciam zombar de política e mulheres, como sempre.

À direita, logo ao lado de Rhael, sentava o futuro rei, do lado da noiva. Na última cadeira da direita, distante e isolado dos demais, assentava Aryn. Taciturno e afastado da família como, no fundo, sempre estivera. Seus cabelos estavam um tanto mais curtos, quase arrepiados. Havia cortado ainda aquela tarde. Ao longo do jantar a iguaria especial fora servida pelos servos. Ninguém tinha ideia da carne que estava no prato, Nyan saboreava com vontade, como se estivesse morrendo de fome. Rhael notara o nojo de Sansa enquanto olhava para a comida

Por alguma razão, Rhael intuía que ela queria gritar, berrar, contar-lhe algo. Mas não o fez. Enojada por dentro e por fora, engoliu a carne feita com os restos de Puck. Ela olhava muito discretamente para Aryn, que não sabia o que estava comendo. O clima de sorrisos e conversas não contagiava Rhael, que estava tenso com a noção de que algo de ruim pairava no ar. Era muito intuitivo.

– Lady Sansa, a carne não está de seu agrado? – questionou, incomodado.

– Não, não é isso – disse ela, esboçando um sorriso, constrangida. Ela

sempre sorria. – É que eu não tenho muita fome hoje – foi sucinta. Tratou de provar dos grãos em seguida, deixando de ser observada por Rhael que agora olhara Aryn.

Ele tinha essa mania de tentar socializar e integrar todos no ambiente, até porque ele amava ambos os filhos, embora as circunstâncias o forçassem a sempre privilegiar o primogênito. O silêncio se instaurou na mesa, como se a dispersão do anfitrião tivesse contagiado a todos. Nyan teve de quebra-lo, provocativo.

– Você cortou o cabelo enquanto estava de castigo, Aryn?

– Sim – respondeu pondo logo uma garfada da carne de Puck na boca.

– Hum. Ficou bonito, apreciei o novo corte.

– Obrigado, Nyan – Aryn realmente estava disposto a usar poucas palavras.

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Nyan não podia perder a chance de sacanear o irmão. E não perderia.

– Mas ainda sim formou um péssimo contraste com esse troço medonho que você chama de olhos – disse aos risos apontando para seus olhos bicoloridos.

Todos riram, gargalharam com o sadismo do príncipe. Exceto Rhael, Sansa e principalmente Aryn que não viram tanta graça enquanto Adolph VI e Clements

tinham crises de risos à mesa com os outros nobres. Nyan sempre o humilhava,

sempre, mas não havia nada que se pudesse fazer. Pensava o pai.

– Um brinde ao futuro rei piadista – se ergueu Adolph com uma taça de vinho em mãos, ainda aos risos. Todos se levantaram e brindaram também, Aryn foi forçado a brindar a própria humilhação, tentava não expressar seu desgosto.

Rhael até pensou em reprimir Nyan pelo que dissera, mas... Aryn ouviu esse

tipo de coisa de todos naquela corte os dez anos da vida dele, essa era só mais uma. Ele podia lidar bem com isso. Tentava conformar a si mesmo. Aquele dia, Nyan estava animado. Aquele era o jantar para celebrar a visita de Sansa e Clements à corte, atraiu muitos nobres e era a melhor oportunidade para Nyan exalar seu veneno.

– Agora vai tio, conta aquela lá que eu te ensinei – pediu entusiasmado. Todos prestaram bastante atenção, Aryn olhou atravessado já sabendo qual seria o assunto da piada: ele. Adolph se levantou, já ria da própria piada.

– Ah, essa é a melhor! – exclamou Adolph, batendo uma colher num copo de metal, fazendo com que todos se voltassem a ele, que iniciou.

– Um Davis e um Valouis terminaram de ler Heliseu. O Davis foi dormir normalmente enquanto o Valouis ainda urinava nas calças... – uma breve pausa para os risos contidos de todos e ele seguiu. – Mas adivinha quem sonhou com Aryn enquanto dormia? – A piada era óbvia, Aryn temia a resposta que veio por Nyan.

– O Valouis é claro! Porque sonhar com Aryn, para um Davis, só se for pesadelo – disse enquanto lançava olhares ao irmão. Todos riram mais do que da outra vez, Sansa que ainda lia a obra riu também, até Rhael achou essa engraçada, apesar de ser esperto o bastante para notar a ‘indireta’ que Nyan queria expressar.

O rei notou o filho mais novo cabisbaixo. Apenas ele viu naquela mesa, mas uma lágrima escorreu pelos olhos do filho, que enxugou antes que todos vissem. Naquele momento o rei queria berrar, queria puxar o filho mais velho pela gola da camisa, explodir com ele e tirar Aryn do show de horrores que estava sendo aquela

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reunião para o garoto. Mas ele não podia. Só que e se a situação fosse inversa, o que ele faria? Perguntava-se, mas a resposta era um tanto óbvia.

– Espero que não tenha se ofendido, irmão –Nyan iniciou num tom pacifista. Todos prestaram atenção. – Eu sei que por seu intelecto você ainda não sabe ler direito, mas sabe que é a outro Aryn que eu me referi, não é mesmo?

– Sim – a rispidez na resposta do irmão era tudo que o príncipe precisava.

– Me entenda, Aryn, não tenho culpa se nem para nome sua mãe serviu.

Ele havia passado de todos os limites! Aryn estava farto. Se ergueu na mesa, bateu forte contra ela atraindo a atenção de todos e berrou com o irmão.

– Não fala da minha mãe, Nyan! – gritou com lágrimas nos olhos. Ofegava, queria chorar, estava nítido como queria pegar aquele garfo dourado de duas pontas e enfiar na jugular do irmão. Mas jamais poderia.

– Você não deveria se importar tanto – iniciou calmo. – Você matou a sua mãe, Aryn! – se fez alto, para que todo o castelo ouvisse.

– Isso é mentira! – agora foi Rhael quem resolveu protestar.

– Ele matou a mãe dele sim! Como eu matei a minha. Nós somos assassinos, Aryn. Aceite isso. Mas a diferença entre você e eu, é que matar a própria mãe, tirar uma maldita Valouis do mundo, foi a única coisa boa que você fez na merda da sua vida! – berrava Nyan.

Até ele havia perdido o controle das próprias palavras. Rhael saiu de sua cadeira. Correu até o filho mais velho e o pegou pelo colarinho. Se aquele não fosse o futuro príncipe, Rhael teria o dado uma boa lição ali mesmo. Mas não. Ele respirou fundo, via Nyan encará-lo nos olhos, com extrema segurança.

– Você não vai fazer nada comigo aqui, papai – sussurrou diretamente, de modo que só o rei ouvisse. O cinismo era de enojar. O garoto nem se importava com o que a noiva acharia dele, suas intenções ali eram outras.

Rhael respirou fundo. Voltou a sentar-se à mesa e Nyan fez o mesmo.

– Perdão, senhores. Perdão pelo comportamento, Milady, é que família, não é mesmo? Desde o início dos tempos é algo complicado – explicou Nyan aos nobres convidados e a noiva com um semblante extremamente amigável.

– Nyan, peça perdão a seu irmão.

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Há horas para contestar e outras para recuar. Aquele exato momento definitivamente não era para se contestar.

– Perdão, irmão – pediu Nyan. Todos notaram Aryn de novo, ele ainda estava em pé, extático e com ódio no olhar. O punho sobre a mesa.

– Aryn, aceite as desculpas e sente-se – Aryn manteve-se na mesma, como se não tivesse ouvido, ou fingia não ter. Rhael insistiu, subindo o tom. – Aryn, aceite as desculpas e sente-se – Rhael suspirou, era uma das primeiras vezes que seu filho renegado o negava algo. – Aryn, aceite as desculpas e sente-se.

– Está perdoado – novamente foi silábico. Aryn sentou-se. Aquela carne cujo sabor o dava algo ruim no estomago já estava um tanto fria, ele estava indigesto. Mas Nyan não. Comia a carne da própria caça com extrema voracidade. Parecia deliciosa para ele. Sansa – a única que sabia da origem – passou a olhar o noivo com nojo. Mas não havia nada que ela ou ninguém pudesse fazer. Nyan começou a sorrir para os convidados, tomou uma dose de água.

– Mas que bom que tudo já está bem e as desculpas foram aceitas, não? Seria um desperdício se uma carne tão gostosa como essa saísse tão indigesta.

– De fato... – indagou Clements saboreando. – É feita do quê? Não se parece com nada que eu já comi.

– De cachorro.

Atraiu as atenções de Aryn. O garoto apenas soltou o talher sobre a mesa. A respiração do menino ficou rala, lembrou-se que desde que fora para o castigo e do castigo para o jantar não vira Puck. Ele olhou para o irmão com um desespero o tomando, Rhael percebeu que havia algo.

– Pitoresco, um tanto – considerou Clements, em sua clássica pose intelectual enquanto mastigava um pedaço de Puck. – De qual linhagem ele vinha?

– Pergunte ao Aryn. O cachorro era dele.

– Como é que é? – berrou o garoto totalmente histérico com um nó na garganta. – Essa piada não tem graça, Nyan! Cadê o Puck? Cadê meu cachorro?

– Você estava comendo ele agorinha, Aryn – riu em seguida. – Quer ver?

Ele faz gesto para uma serva que estava cabisbaixa na entrada do salão, ela foi até Nyan, nitidamente sem jeito e comovida.

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– Do que foi que eu pedi que preparassem a carne hoje?

– Foi... foi dos restos mortais do cão, Milorde.

– Seu monstro! – berrou Aryn vomitando restos da comida sobre a mesa. Sentia um imenso nojo de si mesmo, nojo do irmão, nojo de todos. – Seu monstro! Você é um monstro, Nyan! Você é um louco, um monstro! – berrava.

– Mas a cabeça não era aproveitável, então eu mandei que empalhassem no seu quarto. Você claramente se esqueceu de passar lá. Tenha bons sonhos, Aryn.

– Seu monstro! Eu vou matar você! Eu vou matar você! – todos o olharam incrédulo. Ele pegou num garfo e avançou com toda sua força para cima do irmão.

O pai saiu rapidamente da cadeira, mas não pôde evitar. Aryn derrubou Nyan no chão da cadeira e socou seu rosto apenas uma vez. Sangue escorreu dele.

– Eu vou matar você!!!

– Chega! Chega! Parem com isso os dois! – berrava Rhael.

– Eu odeio você! Eu te odeio seu monstro. Eu te odeio! – berrava e chorava, foi para socá-lo de novo, mas Rhael foi mais rápido e empurrou Aryn de cima do irmão. Fez o garoto parar longe, o rei sinalizou para que servos o pegassem.

– O Aryn foi longe demais, ele agrediu e ameaçou o próprio irmão! – Se ergueu Adolph em protesto. Clements se ergueu também. Rhael levantou Nyan.

– Nyan, vá ao meu escritório – Rhael em seguida olhou para os servos que seguravam Aryn. – Ponham ele em restrição até segunda ordem – foi firme.

Mas com ódio, Aryn escapuliu dos braços dos servos. Rhael e eles correram atrás do mesmo que subia as escadas, corria ágil e em desespero enquanto chorava pela escada. Rhael corria atrás do filho, tentou agarrá-lo, mas não pôde. Viu Aryn curvar num corredor mal iluminado. O acústico do corredor fez o choro do garoto ecoar por todo o cumprido e obscuro ambiente, Aryn se pôs na frente de uma porta e a abriu. Ele parou ali. Rhael o alcançou.

– Aaaaaahhhh! – Berrou Aryn caindo no chão.

Rhael olhou para o que havia no quarto, até ele ficou desolado com o que vira. Os lençóis brancos da cama estavam encharcados pelo sangue que já pingava

no chão, a cabeça do animal estava ali. Nyan não fez uma promessa vazia.

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CAPÍTULO X

ARYN

– Meu nome é Aryn... – indagou ofegoso. Olhou para todos os cantos na escuridão daquela noite de verão, roía as unhas e encarava a chama de uma vela; a única que havia ali. Desde criança, possuía certo encantamento pelo fogo. Estava ansioso e demasiado apreensivo. – Eu sou Aryn Davis Castillo Valouis, nascido na tempestade, o primeiro de meu nome. O príncipe do oeste das terras nortenhas. Meu nome é Aryn... – começava a repetir. Sua respiração ofegava.

Já fazia três semanas desde o jantar. Desde aquela noite ele foi posto em ‘restrição’ por ‘sugestão’ de Adolph VI e Clements pelo surto que deu com seu irmão durante a mórbida ocasião. Tinha um tratamento e um cotidiano melhor do que um de preso, mas no fundo, ele era um preso. Estava trancado naquele quarto sem qualquer contato humano além da serva, que três vezes ao dia o vinha alimentar e não trocava sequer uma palavra com o garoto. Mas não naquele dia.

Ela apenas limitou-se a dizer enquanto saia “Estará livre por esta noite”, e bateu a porta, o deixando contido em sua expectativa. Logo ele sentiu um rastro luminoso entrar, a luz quase cegou sua visão acostumada à escuridão do ambiente. Diversos servos adentraram acompanhando Rhael que se aproximou friamente do filho até abraça-lo, os olhos de Aryn se encheram de lágrimas. Estava livre.

– Acabou? Eu posso ir, pai? Eu posso sair daqui?

– Você sabe o que fez – disse, se afastando do filho o mostrando sua braveza. – Como ousou ameaçar seu irmão de morte daquela maneira, Aryn?

– Eu o amo! Ele é o meu irmão! – lágrimas escorriam do seu rosto enquanto dizia. – Eu jamais o mataria. Ele me odeia, ele faz de tudo para me destruir, mas eu amo. Eu o amo pai, eu jamais o machucaria. Ele é meu irmão – repetia na intenção de tentar, de algum modo, convencê-lo desesperadamente.

Mas era mentira. A inveja, que o menino sempre fora condicionado a nutrir

pelo irmão, virou ódio com as atitudes do primogênito. Ódio, ódio e ódio! É tudo

consigo sentir por aquele maldito.

– Eu só estou cansado, pai. Estou cansado de todos me olhando, olhando dentro de meus olhos como se eu fosse uma aberração, uma praga jogada pelos deuses. Todos me tratam mal, todos me detestam. Até os servos me espezinham por minha origem! Mas eu me orgulho. Eu me orgulho de ser um Valouis! Eu não consigo me envergonhar de uma escolha que eu nunca pude fazer!

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Rhael estava, de fato, comovido. E Aryn percebera isso, não tinha muitas palavras a dizer. Mas não iria amolecer, se manteve firme para sequer lacrimejar.

– Quando crescer, você irá entender as razões de seu irmão.

Não, eu jamais poderei entendê-lo. Interrompeu-o em seus pensamentos.

– E pelo seu bem, que as paredes não o ouçam dizer tais coisas, meu filho, ou coisas ruins hão de ocorrer – fez uma pausa e concluiu. – Está livre para ir. Seu irmão anda enfermo pelos últimos dias, dizem os físicos que uma infecção o pegou de jeito. Há manchas pela pele, mas não é nada contagioso.

Uma pena que não está morto.

– Vá até ele e o peça desculpas. Depois passe em minha sala, conversaremos melhor – pediu Rhael, saindo em seguida. Deixara a porta aberta e logo Aryn correu dali, ficou tanto tempo preso que teve uma leve dificuldade em se encontrar nos corredores. Fora isolado no corredor mais alto e ermo da fortaleza. Desceu escadarias, passou corredor por corredor sendo encarado de canto de olho pelos cortesãos. Até descer uma última escada e adentrar num corredor que já lhe era mais que conhecido. Abriu um leve sorriso.

Ficou animado com a notícia de que seu irmão estava acamado. E contrariando a boa índole que tinha, não conseguia sentir-se mal por isso. Caminhou olhando algumas portas até parar. Notou que imediatamente a frente da porta do quarto do irmão, a porta do outro quarto estava aberta. Era

simplesmente o maior quarto de hóspedes da Corte... Mas não havia nenhum grande

hóspede ali além de Sansa e Clments, não?

Desconfiado, olhou com discrição encostado à parede. Havia duas mulheres sentadas na cama. Christina, era a mais velha, loira, de olhos pretos e cabelos cacheados e Alison, morena de cabelos longos, pele levemente bronzeada e olhos castanhos. Elas eram servas que ganharam ‘fama’ na corte por dois motivos: “conceder suas virtudes” a nobres que as pagassem bem e por serem excelentes vigias e enfermeiras para adoentados, assegurando seu bem estar. Após nota-las, sem que ele fosse notado, Aryn entrou no quarto do irmão. Muitas velas o iluminavam, ele sentia dores, nitidamente, mas não o bastante para se levantar e o exibir seu ódio. Manchas roxas marcavam sua pele extremamente pálida. Isso não era de sua natureza, mas Aryn não conseguiu conter o sorriso.

– Você – indagou Nyan. – Você praguejou para que eu ficasse nesse estado.

– Você apenas colheu o que plantou.

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– Eu sei que você veio aqui porque o pai o forçou a pedir desculpas pelo soco naquele jantar, eu não pude revidar a altura, mas se foi isso que o trouxe aqui, pegue suas desculpas falsas e invejosas e as enfie no cu.

Nyan o olhou cruelmente. Não parecia doente perto dele, mas estava.

– Você nunca será como eu! – iniciou, fazendo logo uma breve pausa. – Assuma isso! Você nunca será um Davis de verdade, Aryn. Eu tenho nojo de você. Nojo – dizia com sangue nos olhos. Aryn se viu encarado de cima a baixo. – Você não é meu irmão! Você não nada nosso! – berrava.

Aryn digeriu em seco. Uma lágrima desceu por entre as maçãs do rosto.

Mesmo após tudo, Nyan jamais conseguia poupar-me de desdém e mesquinhez. Nyan estava com ódio por vê-lo livre, o olhava como se desejasse do fundo do coração que uma força surgisse das trevas para carregar Aryn de sua vista. O renegado tomou coragem de revidar.

– Eu sempre te amei, Nyan.

– Mas eu não. Eu nunca consegui. Eu nunca fui capaz nem de vê-lo como gente – cortou de forma abrupta. Tudo o que pudera dizer para ferir o irmão era pouco. Aryn estufou o peito, encarou o irmão firme e dentro dos olhos.

– Eu sempre tentei ser como você.

– Eu sei disso, Aryn. Todos querem ser como eu – indagou aos risos, tossiu.

– Não me interrompa! – exigiu, explodindo com o irmão. Estava cansado daquilo. – Eu sempre quis que você fosse meu irmão, Nyan – uma lágrima pareceu escorrer por entre seu rosto, mas ele a enxugou antes que o rival notasse. – E eu não julgava o mundo inteiro por me preterir a você. Mas eu cansei, Nyan. Eu só estou cansado, eu só queria subir no alto daquela fortaleza e ser forte o bastante para pular. Eu só queria te dar agora o que você sempre quis de mim!

– Você jamais me faria um favor desses porque você é fraco, Aryn. Você é fraco em todos os sentidos. Fraco para pular, para bater. No fundo, você é fraco só por existir – disse em desprezo, já voltando-se a cama. – A verdade é que você nem devia ter nascido. Devia ter morrido junto com a vadia Valouis que te pariu. Você é a maldição que caiu sobre essa casa, eu simplesmente tenho repulsa de você.

Aryn novamente engoliu em seco. Não tinha forças para reagir, para ir até o irmão e tentar agredi-lo novamente. Mas teve forças o bastante para não desabar em lágrimas em sua frente até o momento.

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– Quando eu reinar, Aryn... quando o papai se for e eu ocupar aquele trono, eu vou deixar toda a nação feliz. A primeira coisa que eu vou fazer é mandar me servirem sua cabeça numa estaca. Agora saia daqui, saia daqui ou eu juro que quando eu me erguer dessa cama de novo farei meus cães cuidarem de você!

Nyan esbravejou com todo ódio que pôde. Com o olhar marejado, o garoto simplesmente deixou o cômodo. Seguiu pelo corredor arrasado, andava sem rumo

pela fortaleza. Queria chorar, desabar em lágrimas por qualquer canto. Mas não

podia ser fraco! Lembrou-se, então, de passar no escritório do pai, como o havia sido pedido. Curvou um corredor e desceu sua escadaria chegando ao maior dos salões do castelo. Desceu e foi até uma sala, parou na porta entreaberta.

– Eu não tenho certeza se é o melhor a ser feito. – Ouviu Rhael indagar.

– Sim, é. Clements ficou claramente desapontado com o que houve no jantar. Se não fosse o carinho que nutre por Nyan, Rhael, perderíamos essa união. É o melhor a ser feito. Para essa família, essa casa, para o reino. Para todos nós – a voz era de Adolph. Aryn tratou de bater logo à porta, já apreensivo com o que ouviria.

– Pode entrar – comandou o rei com a voz embargada. Ele o fez, entrou e fechou a porta. Olhou-os como se não tivesse ouvido a conversa pela metade.

– Seja direto, pai. Sei que não deve ser algo agradável – olhava fixo ao tio.

– O vassalo da casa Strenghfield, no norte do território convidou-o a ficar por lá. Você irá para esse castelo, Aryn – informou num tom seco. Aryn olhou-o nos olhos. Rhael desviou o olhar, com o coração apertado – Eu te amo, filho – disse como se fossem palavras vazias saindo de sua boca. – Mas pelo bem do seu irmão e do reinado, já não há mais espaço para você nessa casa. Faça suas malas porque em dois dias, você já não viverá mais nessa corte.

• • •

Era uma das últimas vezes que estava em seu quarto. Certamente Nyan

demoliria cada canto e o transformaria num canil. Ocorreu, de forma relapsa, na mente

de Aryn. Mas isso não é importante. Não agora. Sentado na cama, com as velas iluminando todo o ambiente, fitou estonteado uma besta, seu dedo estava no

gatilho. Aquele foi um dos únicos presentes que meu pai me deu. Nyan tinha uma idêntica, mas diferente de Aryn, o futuro rei tinha muitos brinquedos, muitos passatempos e a besta – tão valorizada por Aryn –, era só mais um que ficava jogado em algum canto no fundo de seu armário.

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O garoto parou com os pensamentos aleatórios. as quatro flechas que

haviam ao redor dele postas na cama. Uma para Clements, uma para o titio e as outras

duas para Nyan. Mas não tinha coragem para isso. Aryn costumava apreciar a beleza da lua refletida no lago nas noites de verão. Não havia fortaleza nenhuma tão bela quanto aquela. Resolveu sair, mas não sem encaixar uma flecha no arco da besta e pegar as três outras em mãos. Saiu pelo corredor andando passo a passo. Os servos e habitantes da corte passavam por ele se arguindo o que ele faria com o objeto, mas ninguém teve coragem de questioná-lo. Saiu daquela corte sem empecilhos.

Andou pela mata por algum tempo. Estava escuro. Apenas as luzes vindas do palácio e o brilho da lua cheia o iluminavam. Olhou para o céu e seguiu o brilho da lua até parar diante da beira do lago e sentar-se ali. Respirou um ponto e

pôs a besta no chão, enxugou lágrimas que desciam de rosto. Tinha que ser forte!

– Eles foram longe demais. O que eu fiz para merecer tanto ódio? – questionava olhando para o céu. Enxugou mais uma lágrima. Deu uma última olhada a besta que estava ali, viu em seguida uma cicatriz que possuía no tornozelo, era grande, mas só incomodava quando ele olhava para ela. Ao encarar aquilo lá, sua feição se tornou em ódio novamente. E agora, as lembranças lhe foram claras.

• • •

Aryn tinha por volta de cinco anos naquela tarde. E agora corria num desespero

horripilante pelo imenso jardim da fortaleza enquanto quatro cães grandes e robustos

de caça latiam. Dois tinham pelagem extremamente branca e outros dois, marrom-

escuro. Eles rosnavam vorazmente, latiam e corriam atrás do indefeso. Os risos de

Nyan eram descontrolados e incontidos. Todos ali poderiam ouvir.

– Manda eles pararem! Manda eles pararem pelo amor de Deus! – berrava Aryn

aterrorizado para o irmão. Chorava, não conseguia correr tanto para fugir deles, até

que os quatro cães o rodearam. Estavam para ir para cima dele, quando Nyan interviu.

– Não ainda, ferinhas – comandou o primogênito fazendo os cães pararem e

fecharem um círculo em torno de Aryn. O garoto zonzo olhava para todos os cantos.

Buscava uma brecha para sair, até tropeçar em seus próprios pés. Nyan riu. – E então,

Aryn. Está com medinho?

Antes de responder, Aryn notou Adolph de braços cruzados, apenas assistindo a

tudo com indiferença, quase não continha os risos também. Não interviria por Aryn.

– Por favor, Nyan. Eu estou com medo! Por favor – implorava ajoelhado.

Um daqueles, o de pelagem mais escura rosnou para Aryn e posicionou-se para

frente, como se fosse atacá-lo. O menino berrou histérico, agora os quatro latiam e

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rosnavam a ele, esperavam apenas o comando de Nyan, que sarcasticamente se

aproximou.

– Você sabe que papai disse que era para eu alimentar os cães, não? Mas sabe

que eu venho me esquecendo nesses últimos dias – a ironia era um artificio do menino

desde que se conhecia por gente. O príncipe acariciou a cabeça de um cachorro. – Acho

que são dois dias que eles andam famintos.

– Por favor, Nyan – implorou de novo. Dessa vez com mais afinco. Nyan apenas

o ignorava dando de ombros.

– Ataquem.

Os cães foram para cima de Aryn que berrou tão alto que toda a corte pôde

ouvir. Mas quando estavam a um passo dele, Nyan interviu novamente.

– Parados! – e os animais obedeceram. Nyan notou como as calças de Aryn já

estavam encharcadas e riu apontando o dedo. – Quer voltar para as fraldas, bebê

chorão? Vai chamar o papai, bebê chorão.

Aryn olhou para o irmão em desespero, faria qualquer coisa para que Nyan

parasse com aquela tortura ou para que alguém parasse o sadismo dele. Ambos sabiam

que Rhael não estava na corte, portanto, ninguém parecia se importar com a criança o

bastante para intervir por aquele menino.

– Essa brincadeira está muito chata. Vou deixar meus cães comerem logo antes

que eles te comam sem que eu tenha dado a ordem.

– Não, não, não! Por favor! Por favor, Nyan.

– Por Deus, como você é burro Aryn! Você não percebeu ainda que eu não

importo com suas súplicas?

Os olhos de Aryn se encheram de lagrimas mais uma vez. Só que dessa, não

eram apenas lágrimas de medo daqueles cães, mas sim de tristeza pelo que estava

ouvindo.

– Eu vou contar ao papai, Nyan.

– Ele não é seu pai! – berrou. – Eu não sou seu irmão. Aquele ali – apontou para

Adolph VI, que esboçou um sorriso orgulhoso de Nyan. – Não é o seu tio. Ninguém

aqui é sua família! Você não é um Davis! Não é um de nós! Ninguém virá para te ajudar,

Aryn, se eu mandar, esses cães destroçam você em dez e só os coveiros vão se importar

em achar os seus restos. Perceba Aryn, seu lugar não é aqui. Seu lugar é no inferno.

Aryn engoliu em seco. Olhava para os quatro cães em desespero. O garoto

sequer percebeu, mas sua babá observava atônita a situação. Era a única de todos os

que viam a tortura que se compadecia pelo menino, mas não podia interferir. Nyan era

só uma criança, mas era seu futuro rei e não era conveniente que, de cara, ele a odiasse.

Esperaria ele sair ou se cansar da brincadeira para fazer alguma coisa.

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– Façam bom proveito – Nyan deu as costas indo até o tio, se retirando

friamente. O cão marrom que estava à frente de Aryn deu um último latido. Foi quando

o garoto se ergueu para tentar correr que os animais o atacaram. Ele berrava enquanto

mordiam suas vestes, pulavam em cima dele e arranhavam seu tórax.

Um dos cachorros brancos mordia seu tornozelo e arrancava pedaços de sua

pele sensível. Ele berrou como nunca, mas Nyan já nem estava lá para acudi-lo. A babá

surgiu saindo com um saco de carne nas mãos, em desespero. Ela berrava por ajuda.

Correu até onde o ataque ocorria, jogou os pedaços de carne para longe, afastando os

cães e tomou o menino em seu braço. Ele chorava como nunca antes.

Sangrava, estava muito ferido. Mais por dentro do que por fora.

• • •

Quando percebeu, ainda estava a encarar o lago com os olhos marejados. Lembrou-se de como aquelas mordidas o renderam uma semana na enfermaria, por um mês ficou sem andar direito pelas dores no calcanhar. E principalmente: lembrou-se de como Rhael reagiu ao voltar de viagem e descobrir o ocorrido. A versão de Nyan era plausível: os servos esqueceram as portas do canil e das divisórias abertas. Aryn passou pelo ambiente e provocou os cães que o perseguiram pelo campo e o atacaram. Não houve nada que Nyan pudesse fazer. E Rhael fingiu perfeitamente acreditar naquilo, sequer questionou, Aryn tentou o dar a real versão dos fatos, mas o rei nunca o deixou contar.

Estava decidido quanto a tudo o que havia fazer. Não havia sequer planejado, não estava nem de longe em seu estado perfeito de consciência, mas

deixou de encarar a beleza da lua refletida no lago e voltou-se à besta, fixamente. O

canil ainda está aberto, os servos devem estar limpando a essa hora. Pensou consigo mesmo. O príncipe apenas levantou-se dali se apossando da arma. Caminhou para o leste da lagoa, se embrenhando no meio da mata. Abriu espaço por entre as folhas e caminhou calmamente. Não tinha a menor pressa.

Saiu logo do meio da mata, estava no imenso jardim da fortaleza de novo. Deu alguns passos enquanto servos que lavavam roupas em bacias d’água e despelavam coelhos e veados para comer na manhã seguinte o observavam. Ele foi até a entrada do canil onde havia alguns servos. Antes de empurrar, viu a porta já entreaberta, ergueu a besta com uma mão e pressionou as flechas com a outra.

– Milorde, o que faz aqui? – perguntou afligida uma serva a frente da divisória, onde estava um dos cães. O ambiente estava claro pelas velas que o iluminavam, os quatro cachorros de Nyan, que viviam enjaulados ali, e vez ou

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outra eram soltos para caçar, latiam e rosnavam para Aryn, que agora já não os

temia. Eram eles que o deviam temer.

– Saia da frente e abra a divisória.

– Mas Milorde...

– Eu disse para sair da frente e abrir a divisória – Aryn a cortou, ríspido.

A serva fez que sim, previamente abalada. Ela era quem cuidava daqueles cachorros e se apegou a eles, nitidamente ela os adorava, apesar das feras que eles eram. Sua mão lentamente puxou a tranca da divisória. Olhou para Aryn na esperança que ele mudasse de ideia. Mas não. Ela puxou divisória. O olhar do menino marejou ao constatar que era o cão que fez a cicatriz em sua perna.

Puxou o gatilho da besta e cravou a flecha na cabeça do cão de caça. Apenas um choro contido do animal foi ouvido e ele tombou definhando no chão. O coração de Aryn pesou por aquilo, mas não fraquejou. Era hora de ele fazer o que achava que precisava ser feito. Com a flecha alojada na cabeça, o cão agonizaria lentamente até a morte, sofreria. Mas não era isso que Aryn desejava. Ele foi até o animal que esboçava um choro e puxou a flecha de sua cabeça, o matando.

Jogou, enojado, a flecha de ferro ensanguentada no chão, próxima do corpo. Os outros cães latiram e rosnaram para Aryn como nunca ao ver o cachorro ser morto, ele sinalizou para que ela abrisse a divisória à esquerda do primeiro cão morto. Ela abaixou a cabeça, estava muito sentida, mas jamais poderia contrariar uma ordem do príncipe. O aguardou por outra flecha na besta e gesticular para que ela abrisse a divisória. Ela o fez e Aryn e antes que o cachorro marrom rosnasse para Aryn, ele friamente atirou contra seu tórax o matando na hora.

– Próximo.

Ele virou para o outro lado do canil. Havia duas outras divisórias onde os cães choravam. Aryn pôs a flecha na arma e quando ela abriu a porta, ele atirou atravessando o corpo do cachorro que caiu morto. Quando ouviu o choro desse último ao morrer, uma lágrima desceu do rosto de Aryn. Não podia realmente acreditar no que estava fazendo. Tratou de enxugar a lágrima, se manteve extático

por algum tempo, sem querer encarar os corpos. Mas sustentou-se forte. Nyan

merecia essa punição!

– O próximo – disse tentando esconder sua voz embargada.

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Sem mais palavras, a serva foi até a divisória à direita e segurou o ferro. O cão chorava vendo os companheiros mortos como se pudesse sentir o próprio destino. Mas isso não impediu Aryn, ele a fez puxar o ferro abrindo a porta. Virou a cara para não ver a própria barbárie e atirou. Desviou o olhar choroso, nem vendo onde acertara a flecha, só ouviu o barulho do corpo caindo morto no chão. Deixou a besta cair e enxugou uma única lágrima que deixou cair dos olhos.

– Milorde... O que deseja que eu faça com eles? – questionou desolava.

– Enquanto houver carne desses cães para se fazer, o Nyan não será servido de outra coisa.

Aryn simplesmente deixou o ambiente. Bem distante, ele ouviu a serva que não conseguiu conter o choro após sua saída. Quis chorar também. Mas se manteve forte, caminhou pelo longo jardim até voltar ao castelo. Subiu mudo as escadarias com o olhar perdido ao longe, até entrar no corredor dos quartos. Certamente voltaria para seu quarto e dormiria pelo resto da noite. Mas não ainda. Discretamente, abriu a porta do quarto do pai e entrou sem ser visto, fechou a porta. Com destino já certo, aproximou-se da estante onde havia um espelho à frente e entre diversas caixinhas que havia ali, abriu uma de madeira com a gravura rústica escrita “Divine”, a primeira mulher de Rhael, mãe de Nyan.

Ele abriu aquela caixa. Deu com diversas pulseiras, brincos de ouro e anéis de rubis e diamantes que pertenciam a ela. Entre as peças havia um único colar grande prateado, com um “N” brilhoso, estilizado na ponta. Aryn o pegou. Divine mandara fazer aquele colar próximo ao parto de seu filho, queria que se fosse menino se chamasse Nyan – o nome do pai dela. Ela daria pessoalmente ao filho assim que ele completasse quinze anos, mas como falecera, Rhael guardava aquele colar para dar ao primogênito quando ele fizesse quinze; Nyan sabia do presente que ganharia e apenas aguardava. Mas a Aryn não convinha mais que ele esperasse.

Nyan ganharia o marcante presente ainda aquela noite. E mais uma vez, Aryn sabia perfeitamente o que fazer.

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CAPÍTULO XI

ARYN

Aquela madrugada estava fria até demais para uma noite de verão. As velas iluminavam o corredor totalmente deserto, escutavam-se os rangidos do piso conforme Aryn tomava o corredor crente de que todos dormiam. Em seu olhar se notava que já não era mais o mesmo, em suas mãos o colar de Divine pendulava de um lado a outro tintilando na escuridão. Ventos entravam, batiam as janelas, mas

aquilo era comum por ali. Não faria ninguém acordar. Pensou enquanto andava.

Agora estava parado a porta do quarto do irmão. Olhou para trás e certificou-se que a porta dos quartos das enfermeiras estava fechada, tirando uma chave do bolso trancou o quarto delas, lentamente abriu a porta do quarto do irmão. Entrou. Estava tudo às escuras ali. Quando uma vela foi acessa por Aryn notou-se sentado numa cadeira à frente do irmão que dormia, se levantou. Caminhou até o irmão e deixou a cera quente da vela pingar em seu rosto. Ele foi acordar já berrando de dor, mas Aryn tapou sua boca e com a outra mão pôs a vela sobre a estante. Forçou as duas mãos na boca dele.

– Agora somos só nós dois. Não berra porque estão todos dormindo e se alguém te ouvir, não chegará a tempo de encontrar vivo nesse quarto!

Nyan nunca temeu Aryn, mas o empurrou para longe. Estava realmente assustado.

– Meu rosto, seu doente... – passou a mão na ferida da cera. – Sai daqui, sai daqui agora ou eu juro que berro a todos aqui nessa corte, seu doente! Sai daqui!

Aryn deu um passo na direção do irmão. Nyan recuou. Aryn gostava tanto de vê-lo sentir medo, o mesmo medo que a vida toda ele sentira do irmão.

– Eu matei seus quatro cachorros e mandei servi-los no seu almoço de amanhã. Sabe por que eu fiz isso, Nyan?

Nyan deu um sorriso de deboche, dissipou-se ali todo o medo que a invasão sorrateira do irmão no meio da noite o causou. Deu uma tossida e voltou-se a ele.

– Porque você é limitado demais para me dar uma vingança a altura.

– Errado – indagou com um leve sorriso vitorioso. – Porque todos pensam que eu matei seus cachorros só para ver você sofrer. Mas se você aparecesse morto antes de saber do que eu fiz, qual o sentido de eu ter matado seus cães?

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Agora ele percebeu. Pena que já é tarde demais. Quando Nyan recuou para reagir, Aryn avançou sobre ele e com um soco o derrubou na cama. Nyan foi para berrar de novo, mas Aryn tirou o colar do bolso e colocou em seu pescoço, começando a estrangulá-lo. Nyan tossia, colocava a língua para fora.

– Você não podia nos fazer o favor de só deitar e morrer duma vez? – Repetiu entre os dentes. Lembrava bem de quando Nyan o disse aquela frase.

A face do estrangulado estava vermelha, já não poderia aguentar tanto tempo. Se debatia, tossia e tentava berrar em desespero. Aryn podia ouvir o coração do irmão batendo mais e mais fortes e os grunhidos que ele dava tentando respirar. Num golpe súbito, Nyan se soltou do irmão, o jogando com força contra uma parede, cambaleou para frente. Caiu logo no chão sem ar tentando respirar.

– Morre maldito! Morre! Morre de uma vez! – gritou Aryn. Não sabia se alguém ouviria, mas só queria concluir o mais rápido possível.

– Ah. Ah, socorro! Socorro! – Nyan tentava gritar, rouco, mas era em vão.

Nyan foi tentar berrar por socorro tossindo em desespero, foi tirar o colar que estava em sua garganta, mas Aryn se atracou com ele novamente o puxando pelo colar. Nyan tentou cambalear frágil, mas Aryn o puxava com força. Socou a cabeça do irmão duas vezes contra uma estante com força, da estante, socou sua cabeça contra uma parede e chutou sua coluna em seguida. Nyan tentava berrar, mas o colar de sua mãe o prendia. Aryn o espancava com força. Com ódio.

– Morre maldito, morre! – Chorava Aryn dizendo entre os dentes.

Ele empurrou o irmão com toda força contra uma estante, o fez bater a boca do estomago ali, Nyan caiu, estava totalmente sem ar. Ainda sim tentou levantar e pegou uma faca embaixo do colchão. Avançou com tudo para cima de Aryn. Mas cambaleante, errou o golpe. Agora Aryn o jogara no chão com toda sua força, e caiu por cima dele. Ambos no chão disputavam pela faca com ódio mútuo no olhar, com uma das mãos Aryn socava seu estômago com força garantindo que ele perdesse ainda mais o ar. Estava dando certo, Nyan tentou esfaqueá-lo, mas Aryn bateu em sua mão e jogou a faca longe. Um soco acertou Nyan na cara.

Novamente Aryn puxou o irmão pelo colar. Os olhos dele se arregalaram. Nyan sendo estrangulado tentou enfiar a mão tapando a cara de Aryn, mas não conseguia alcançar. Sadicamente Aryn começava a enfiar o dedo nos olhos dele como se fosse arrancá-los, Nyan se desesperou e foi tentar fôlego para um último berro, mas uma cotovelada de Aryn quebrou alguns de seus dentes do fundo.

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Aryn puxou o irmão com força pelo colar. Começou a apertar mais e mais; Nyan já não conseguia se mover. Debatia-se enquanto apanhava na cara e era esganado. Ele via o irmão perdendo a vida por suas mãos. A respiração dele ia ficando cada vez mais rala e dificultosa, soparava em seu ouvido. Com ódio Aryn o socava. Nyan tentou puxar o ar pela última vez com o colar cessando suas passagens de ar, encarou o irmão em desespero, mas foi um soco forte que acertou a boca de seu estômago a última coisa que Nyan sentiu. E então a dor cessou, e o ar já não mais lhe era preciso. O corpo estava imóvel. Com seus olhos azulados arregalados e hematomas por todo o corpo, Nyan estava morto.

Aryn suspirou. Retirou o colar do entorno do pescoço do falecido e guardou no bolso, se levantou ficando em pé diante do morto. Uma lágrima o escorreu, enquanto chutou com força a costela do cadáver. Escarrou em sua face.

– Que nem os demônios tenham pena de sua alma.

A frieza do garoto frente àquela situação era quase absurda. Deu as costas para o corpo por instantes e sentou-se na mesma cadeira. Estava apenas se encorajando para ajeitar a cena do crime. Aryn não ouviu e nem ouviu, mas detrás dele a porta fez um sonido abafado de se encostar novamente. E pelo corredor mal iluminado da corte, a sombra de Alison perambulava sem rumo. A perplexidade a tomava. Não podia acreditar. Mas acabara de assistir a um homicídio.

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CAPÍTULO XII

SANSA

Por algum razão não pôde dormir a noite inteira. Ficara naquela cama gélida e dura extática, imóvel no quarto. Os vitrais góticos da janela atrás de Sansa

iluminavam todo o ambiente com a luz do dia. Algo acontece, algo grave acontece. Antes mesmo que o dia nascesse entre nuvens, ela ouviu passos ágeis de um lado a outro do corredor, choros contidos e burburinhos em sussurros. Não podia entender o que estava acontecendo, mas sabia que algo ocorria.

Ao amanhecer, tentou pegar no sono que não veio a noite inteira. Mas então vieram os sinos. Do alto da Torre do Estandarte os sinos badalavam infernalmente, de um lado a outro, sem nenhuma interrupção. Era um barulho tão alto que da fortaleza um tanto distante onde Sansa morava se podia ouvir o eco. Cansou-se. Estava para levantar e sair pela porta a questionar o que estava havendo, mas quando ela saiu da cama, a porta foi levemente aberta.

– Ouve alguma coisa? – questionou Sansa.

Rhael, Clements e Aryn estavam à sua frente com caras entristecidas. Algo de

fato havia ocorrido. Sansa notou os homens do cômodo se entreolharem. Hesitavam em respondê-la, até que com expressando uma imensa tristeza Aryn deu um passo.

– Sansa – uma lágrima pareceu escorrer por seu olho verde. – O Nyan... Ai meu Deus, como que se diz isso? – Aryn voltou o olhar ao seu pai, estavam arrasados.

– Se diz o quê!? Mas o que é que está havendo afinal?

– O Nyan se foi, Sansa – noticiou de forma doce, mas abrupta. – A enfermidade dele se agravou abruptamente e... E ele faleceu durante a noite.

Sansa ficou simplesmente imóvel com as palavras. Não sabia como agir, o que falar, o que sentir. Parecia que não era real.

– Foi uma tragédia tão de repente... – ouviu seu tio pronunciar baixinho.

Sansa buscou o olhar de Aryn. Mas não o teve. O garoto não a olhava nos olhos, mas sim para baixo. A menina até tentou dar um passo, mas o abalo da notícia a entristeceu. Ela apoiou a mão sobre a cabeceira de uma estante e quando notaram seu estado, Rhael foi agilmente para segurá-la.

– Não... Não é possível. Ele está morto!? Morto?

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– Meu filho se foi, Sansa – o rei se continha para não se debulhar em lágrimas. – Ele já está sendo velado no salão do trono, ele será cremado nas próximas horas...

– Isso seria imprudente, Majestade – advertiu Clements. – O físico especialista ainda não veio da capital para analisar as reais causas da morte. Eu sei que ele até andava meio doente...

Aryn movia lentamente a cabeça, como se agora estivesse interessado na conversa. A menina notou. Por mais que ele tivesse enxugado uma lágrima ante ela, por mais que sua voz tivesse o mesmo embargue que a dos demais, a tristeza de

Aryn não a convencia. Era falsa. Era uma frieza, na verdade, e ela intuía bem isso.

– Meu filho está morto! Não preciso deixar seu corpo apodrecer naquele salão só no aguardo de um físico de merda que por mim e minha família nada pode fazer, somente para atestar o óbvio: que meu filho se foi – pausou Rhael lacrimejando, sequer olhava Clements. Sua voz tremia como nunca, seu olhar estava perdido lançado ao nada. – Ele está morto. Está morto e não há nada que possa ser feito. Eu sinto muito por sua perca, Lady Sansa. Se não lhe for doloroso demais a peço que compareça na cerimônia que está havendo no salão.

– Sim, ela irá, Majestade – Clements tratou de responder prontamente.

Rhael deixou o ambiente. Clements fora atrás do rei. Sansa ainda não podia acreditar na notícia, fitou o chão por instantes até erguer levemente a cabeça. Viu que Aryn permanecia ali. O atual futuro rei se fazia cabisbaixo. Agora ela começou a ouvir seu choro que se intensificou, se intensificou mais. Ele não falava, não olhava para ela ou algo fixo. Apenas chorava. E chorava mais.

Aryn estava extático. Não parava de chorar, soluçava compulsivamente

como nunca. Aquele não era apenas um choro de luto. Tudo o que Sansa fez foi dar um passo a frente e outro em seguida enquanto estendia os braços suavemente.

Nyan era um crápula. O pior que ela já conhecera em tão pouca idade, mas a dor que Aryn a passava através daquele choro a fez querer chorar junto. Então ela apenas o abraçou forte e o deixou chorar em seus braços.

Meia hora após e Sansa já vestia o negro do chapéu que tinha a cabeça à sapatilha que possuía em seus pés. Encarava-se ao espelho, sozinha no quarto e ouvia a garoa colidir contra o teto. Ela jamais esperaria que a enfermidade comum que Nyan teve fosse evoluir de tal maneira, ainda não tirara as reações de Aryn da cabeça. A porta bateu. Ela abriu para um lacaio.

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– Lady Sansa, está pronta? Já estão todos no salão.

Ela assentiu positivamente. Fechou os olhos e suspirou fundo.

– Estou.

Saiu do quarto e viu Aryn na frente dela, ao corredor. Ele usava uma luxuosa roupa preta que contrastava com seu olho azul e o outro verde. Estendeu-lhe a mão. Sansa pegou em sua mão e ambos seguiram através do corredor. A passagem era grande. Mas lhe parecia maior ainda conforme andava. Dali dava para ouvir o sermão do sacerdote vindo do salão. Estava prestes a descer a escada e ver o corpo de seu finado noivo. Segurou ainda mais firme a mão do menino.

– Em dias obscuros como hoje, que os deuses recobrem sobre o reino sua lástima e misericórdia. Nyan Davis Castillo, filho de Divine e do grande rei Rhael jaz agora sem vida sobre esse caixão. O menino que seria um brilhante governante, que tão cedo deixou-nos para as garras da morte, agora, descansa inerte. – Ouviam da sala.

Juntos, acabaram de chegar ao topo da grande escadaria. Ela o fez parar. Todos os olhares, do sacerdote, do rei, dos nobres e servos foram à Sansa e Aryn no topo da escada. No centro do salão, sobre uma estrutura elevada, estava o caixão aberto de Nyan morto, coberto do pescoço aos pés por pétalas de rosas pretas e brancas. Todos estavam sem reação. Sansa sentiu sua mão ser firmemente apertada. Sentiu-se segura como nunca estivera antes. E quando Aryn – antes extático – deu o primeiro passo para além dos degraus, absolutamente todos, exceto Rhael, se prostraram com o joelho no chão em referência a Aryn.

– Vida longa ao príncipe Davis! – Metade do salão ecoou, alto.

– Vida longa ao príncipe Davis! – A outra metade bradou em seguida.

Aryn não podia acreditar no que via. Seus olhos brilharam de modo que parecia que ele queria chorar ali mesmo, mas não pôde. Rhael olhou com orgulho para o filho mais novo, emitiu um pequeno sorriso para o filho, enquanto as lágrimas de dor pendiam em seu rosto. Sansa olhou-o concisa, assentiu-o com a cabeça e, degrau por degrau, desceram a escadaria do salão.

Todos abriram caminho. De mãos dadas, seguiram por todo o corredor até

parar na frente do caixão. Uma última lágrima – aquela devia ser de ira – desceu dos olhos de Aryn que largou a mão de Sansa e olhou para o rosto morto do irmão. No silêncio do luto do salão, Aryn clamava solene a encarar o corpo de Nyan.

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– Hoje, Zardan perde um garoto que seria um rei promissor e o mais honrado dos homens que pisou por essa terra. Um ótimo garoto, um jovem brilhante... o melhor irmão que eu poderia ter. Sentiremos todos muita falta de Nyan Davis Castillo. Descanse em paz, meu irmão, que seu deus protetor o acolha.

Aryn deu as costas para o caixão, afastou-se dele. Sansa encarava com pesar, sentida pela perda, mas não tinha coragem de se aproximar e encarar. Junto ao sacerdote, Rhael aproximou-se do filho com o olhar marejado e acariciou seu rosto uma última vez. Abaixou a cabeça por instantes e lançou um olhar aos servos. De imediato, os servos pegaram o caixão nas alças e o guiaram para o grande jardim da fortaleza. Rhael, Clements, Adolph VI, Sansa e Aryn foram de imediato a trás. Todos os cortesãos seguiram para o jardim, molhados pela garoa que caia.

No jardim havia diversas toras recobertas com resquícios de palha sobrepostas no formato do contorno do caixão de Nyan. Protegidos da garoa pelo alpendre, quatro figuras com máscaras de uma ave de rapina com bico preto e vestes vermelhas que iam do pescoço até os pés, seguravam tochas acessas enquanto os outros servos encaixaram o caixão sobre a armação de madeira. Os mascarados cursaram pelo jardim até se posicionarem com as tochas um na frente de Rhael, outro na de Sansa, o terceiro na frente de Aryn e o último diante Adolph. Os quatro tomaram as tochas.

Lentamente se aproximaram de cada canto da armação de madeira. Sansa sentia o ardor quente soprar em seu rosto molhado pela leve garoa que, agora, era quase uma neblina. Tremeu com a tocha quente em suas mãos e viu como era olhada por todos. Encarando a tocha e a armação de madeira, ouviu o barulho do fogo pegar nas toras, tratou incendiar a armação e dar um passo para trás. O fogaréu se iniciou. Ela largou a tocha com um mascarado e recuou.

Ao lado de Aryn, Rhael e Adolph frente a toda multidão de cortesãos assistiu o fogo aumentar e se abranger, cremando o corpo e o caixão. Algo a aterrorizava naquelas chamas que faziam Nyan reduzir-se a cinzas, mas não Aryn. Ela notou seu olhar brilhando a refletir as chamas. Aquela situação... Talvez fosse o fogo, talvez fosse o corpo de seu carrasco a queimar naquele fogo, ou talvez fosse ambos que exerciam um fascínio sobre o menino que assistia devotado. Todos assistiram o caixão, as toras e o corpo sumirem enquanto as cinzas caiam no chão e o vento forte, que antecedia às tempestades de verão, levava as cinzas para longe.

De uma vez por todas, Nyan e sua memória estão definitivamente mortos.

Sansa andou pelo castelo durante a tarde inteira, sozinha. Os cortesãos a olhavam com compaixão, falavam minimamente com ela. Aquela fortaleza tão

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grande parecia minúscula para ela que andava de um lado a outro, quase que em círculos, ainda atormentada com a perda brusca e tendo a mente vagueando

imaginando o que viria após isso. Talvez me noivem com o Aryn... Talvez eu volte ao

meu castelo. Por Deus, tudo me parece tão incerto e tão óbvio ao mesmo tempo.

Choveu o dia inteiro, o crepúsculo estava para vir no céu nublado de Zardan, mas ainda havia claridade pelos cantos do castelo. Pelo luto, as velas não seriam acesas pela noite no interior do castelo, haveria apenas vigílias do lado de fora a varar a madrugada. Era uma questão de tempo até seu luto pessoal e isolado ser novamente suprimido pela multidão de cortesãos lhe dando pêsames e lamentando-a pela perda de modo recursivo e sufocante.

Seu tio estava recluso no quarto desde o enterro, certamente estudando o que seria feito a seguir. Aryn e Rhael passaram a tarde mudos trancados dentro do quarto, não se ouvia um som do cômodo além de volta e meia um choro baixo e contido, que ela não identificava. Da parede que separava o corredor que ela estava de outro corredor, ela ouviu a voz de Adolph e uma porta batendo. Surpreendeu-se por ele não estar também recluso como todos os outros.

Ela olhou escondida pela parede. Estava quase escurecendo, mas dava para ver quase perfeitamente. Adolph estava descamisado à entrada do cômodo, beijando Christine – uma das cuidadoras de Nyan –, eles haviam acabado de sair do quarto do irmão do rei. Sansa realmente não queria ser vista. Ela não entendia direito porque Christine e Alison viviam saindo a todo instante do quarto de homens nobres e servos não enfermos, enquanto as mulheres ‘respeitáveis’ da fortaleza as olhavam enojadas e ninguém comentava sobre, como se fosse algo sujo, vexatório e embaraçoso. Logo Sansa sabia que não seria agradável ser vista ali.

– Você volta aqui amanhã, não é? Eu te pago o dobro se manter o desempenho. – Adolph sussurrou baixo mordiscando sensualmente a orelha de Christine que sorriu, o afastando.

– Adolph, Adolph, sério! – chamou a atenção. Apagou seu habitual sorriso, aproximando-se dele. – Assim que o sol nasceu pela manhã, a Alison fez as malas e partiu para um vilarejo. Ela estava totalmente atordoada como se tivesse visto assombração, sabe? Eu fui a última e a única pessoa que a vi sair.

Sansa notou Adolph mudar sua expressão. Semelhava estar intrigado.

– Estranho... muito estranho. Alison costuma ser paranoica mesmo, já estou acostumado. Mas será que isso tem a ver com a morte do Nyan? – a princesa

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notou que de súbito, Adolph lançou um olhar fundo para Christine. – Christine, Christine… teve algo noite passada que você ou vocês não estão me contando?

– Eu não sei! Eu fiz a guarda do Nyan de manhã e fui dormir essa noite, a Alison ficou responsável, mas acho que não! – hesitou em seguir conversando. – É, de fato há algo estranho. Porém mais estranho ainda foi o recado que ela mandou eu te dar. Ela disse para eu marcar um encontro entre você e ela amanhã aqui na corte pela tarde, quando ela já terá voltado do vilarejo. Mas te pediu para prometer que não dirá a ninguém sobre esse encontro ou sobre ela ter viajado.

Christine encarou o Davis por instantes. Ele estava mudo e bastante reflexivo. Mas, mesmo hesitante, assentiu positivamente balançando a cabeça.

– Tudo bem. A escreva que eu topo e para me encontrar na Torre do Estandarte de tarde. Tenho a leve sensação que coisas sérias precisam ser ditas.

Sansa atinou que algo nebuloso havia no ar. Christine deu um último beijo na bochecha do ‘cliente’ e saiu andando rápido pelo corredor, Sansa tratou de correr a passos curtos sem ser vista. A garota não era a única que intuía algo estranho andava ocorrendo.

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CAPÍTULO XIII

ARYN

Havia chovido durante a tarde e a noite inteira do dia anterior. Mas estranhamente o sol brilhava forte pelas janelas do escritório aquele dia. Aryn estava sozinho ali, tocava as mãos na vidraça transparente sentindo o calor do sol, distraia sua mente com a apreensão que sentia de ter se tornado um assassino.

Apesar de uma leve culpa, o alivio de não mais deixar a própria casa, de não crescer à sombra de um irmão e futuro rei tirano que certamente o mataria quando Rhael fechasse os olhos sobressaltava qualquer culpa ou luto que Aryn sentia. Seus devaneios aleatórios se perderam quando a porta foi aberta. De uma só vez entraram Adolph, Clements e Rhael. Aryn se portou formalmente, assumiu uma postura ereta e estendeu a mão a Clements.

– Prazer em recebê-lo, Sor Clements – cumprimentou amigavelmente.

– O prazer é todo meu – silabou com um sorriso amarelo.

A falsidade era exalada em sua voz. O rei puxou as cadeiras de uma mesa amadeirada para que ambos sentassem e assim o fizeram. Foi para o outro lado da mesa e sentou-se ao lado do filho.

– Então, Aryn... – começou Adolph puxando assunto, sarcástico. – Você não ia para a casa Strenghfield? Eles viriam para te buscar hoje, não?

Aryn preparou-se para responder, mas Rhael olhou firme ao príncipe.

– Os incidentes de duas noites atrás mudam tudo – respondeu sucinto. – Na verdade, Sor Clements, queremos assegurar que mesmo com o noivado rompido pela fatalidade com Nyan, o acordo do fornecimento de suprimentos e cereais com as terras da coroa permanece mantido. Podemos contar com isso?

Rhael questionou docemente, quase em tom pedante. Aryn sempre sentira um leve asco de Clements que girou a cabeça como se estivesse prestes a negar. Muito discretamente, o tio de Sansa lançou um olhar que percorreu o menino dos pés à cabeça e o exprimiu uma feição de nojo.

– Olhe, Majestade... – o tom de voz deixara explicito o rumo da conversa. – Infelizmente esse acordo está inviável, Vossa Graça, vez que sem o noivado, as terras e nossa família ficam muito fragilizadas para produzir e fornecer a mesma quantia de suprimentos com o mesmo investimento que é posto nelas.

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O rei já o interrompeu em protesto.

– Mas o dinheiro que investimos nas suas terras é muito razoável! Uma fortuna!

– Eu entendo, eu entendo bem, Majestade. Porém, reconheça que o Nyan foi uma grande perca para o nosso status e influência no reino. As terras além da região da fortaleza e da cidadela são bastante frágeis. Ocorrem muitas invasões de bárbaros, selvagens, forasteiros e estrangeiros... de todo o tipo de escória, da qual sem o investimento excedente não conseguimos nos proteger.

Como se os bárbaros fossem saber que a sobrinha dos donos era noiva do príncipe e escolher outras terras para invadir só por causa disso. Ironizava Aryn, mentalmente, contendo um leve riso de escárnio que o vinha do canto da boca.

– Olhem, eu tenho uma solução. – Anunciou Adolph.

Essa foi a primeira coisa útil que Adolph disse em décadas.

– Pois diga – pediu o rei.

– Eu sei que a perda do tratado foi um grande prejuízo a sua casa, meu caro Clements. E que em forma de ressarcimento o senhor argumenta do alto custo de manter vossas terras em segurança e requisita mais dinheiro, certo?

– É... – Clements estava hesitante em ser direto. – É relativamente isso.

– Pois bem. Nós não temos dinheiro ocioso no momento para investir a quantia que o senhor demandará. E não seria sábio entrar em débito com o Banco de Waslannorth por isso. Mas mão armada nós temos de sobra. – Adolph parou de olhar para Clements e voltou os olhos ao irmão. – Sugiro que o demos um sexto de nosso exército, Rhael, isso sanaria os problemas?

Antes que o rei pudesse responder, Clements foi ágil e sábio em se pronunciar.

– Sim. Nas atuais circunstâncias me parece bem razoável.

– Não – o rei discordou de forma curta, clara e grossa. – A regra é clara. Desde os tempos de Adolph IV e Francis I, as duas nações proíbem expressamente os vassalos de formar milícia ou exército superior a um quarto do exército real. Com essa soma de um sexto do nosso, além de nos desfalcarmos, você excederia e muito essa lei. Sinto muito, Clements, mas isso é totalmente inviável.

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Clements reagiu cabisbaixo à negativa. Ainda tentou algum argumento.

– Mas Majestade, isso poderia servir...

Mais uma vez, Rhael o interrompera abruptamente.

– Leis são leis, desde os tempos de Hamurabi, Clements. Na verdade, eu tenho outra proposta ao senhor.

Rhael voltou o olhar ao filho se aproximando do ouvido dele lentamente.

– Vá lá fora e veja se a serva está por perto, Aryn. Traga-a aqui.

Aryn apenas esboçou um leve sorriso concordante. Olhou para a cara de frustração de Clements, apenas ele e o pai sabiam bem o rumo para o qual a conversa se encaminhava. Aryn tratou de sair e abrir a porta e viu uma serva parada logo ao corredor com uma carta em mãos. Fez gesto para ela e entrou na sala, deixando a porta aberta. No que Aryn sentou novamente em sua cadeira, viu a serva adentrar com a carta e recostar a porta, ela aproximou-se do rei.

– É essa a carta em mãos?

– Sim, Majestade.

Rhael pegou a carta selada das mãos da serva e pôs sobre a mesa com o selo não posto à mostra. Os olhares intrigados de Clements e Adolph recaiam na carta.

– Como Vossa Graça ia dizendo, há outra proposta? – retomou o nobre.

– Ah, sim, claro. A proposta. Bem senhores, a partir de agora é normal que como futuro rei, o Aryn esteja em nossas reuniões, por dentro dos assuntos do reino, já que isso é um preparo para o momento em que ele ocupar o trono de fato. Mas não é apenas isso que o trás aqui agora.

– Não? – Clements de fato estava intrigado.

– Se o falecimento do noivo da Sansa foi o prejuízo a sua casa, é muito fácil de ressarcir isso com outro casamento real. Assim os tratos mantem-se os mesmos, todos continuam lucrando e tudo permanece em família. Que tal?

O choque de Clements e de Adolph foi impagável. Aryn sentiu o olhar do primeiro percorre-lo novamente da cabeça aos pés. Dessa vez com ira.

– Mas Majestade – já protestava Clements. – Não é prudente tornar o menino rei. Nós sabemos que ele é metade Valouis...

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– Ele é um Davis! Eu venci a justa com Sebastian, eu o trouxe para casa e ele tem sangue real nas veias. De acordo com as regras de sucessão, ele é um Davis, ele é meu legitimado e ele é o futuro rei de Zardan – bradou veementemente.

– Mas com Aryn sentado no trono, Winster ficará de olho nele. Não sei se seria do meu maior agrado ver minha sobrinha exposta junto dele.

O pai limitou-se a não responder. Tratou de pegar a carta sobre a mesa e vira-la do outro lado, atiçando os olhares de Adolph e Clements. O último se aturdiu ao reconhecer o selo que lacrava o envelope.

– Esse é o selo típico da minha irmã Mary, não?

– Sim. Um servo meu mandou um corvo a cidadela onde Mary anda afastada, pela manhã de ontem, a informando da morte de Nyan e já tratando de negócios.

A misericórdia de Aryn parecia inexistente com o semblante sarcástico – quase sádico – que expressava, típico dos Valouis. E agora, por mais que Clements não erguesse a voz, a vermelhidão em seu rosto já expressava sua fúria.

– Mas, Majestade, a procuração para negociar contratos entre as famílias e as terras está comigo! Mary vive praticamente exilada da política do reino!

– Mas ainda sim, ela é a parente viva mais próxima de Sansa – Rhael tratou de abrir a carta e lê-la por instantes fingindo não prever o que estava escrito. Ficou com um semblante extremamente falso de estar surpreso e olhou nos olhos de Clements, o estendendo a carta. – E olha... parece que ela consentiu a união após mandar os pêsames. Só falta marcarmos a cerimônia e Sansa e Aryn se casam.

O branco do olhar de Clements se avermelhou. Uma lágrima de ódio desceu de seu olho enquanto olhava Aryn com desprezo. Aryn estava sentado espreguiçado sobre a cadeira, apenas o olhando friamente. Agora, por alguma razão, o garoto tinha pena do tio de sua atual noiva. Havia ouvido alguns meses antes que Clements tinha uma razão mais especifica para odiar o ‘outro lado’ do sangue de Aryn. A única esposa que Clements teve e foi perdidamente apaixonado era, assim como o menino, metade winsterlens e metade zardan, mas ainda sim, e até aquele ponto, isso nunca os havia impedido de serem muito felizes juntos.

Até o momento em que ela se descobriu grávida. Enquanto Clements era cético e não tinha nenhuma razão para duvidar da paternidade da criança, o filho que sua esposa esperava era fruto de uma traição com um primo de segundo ou terceiro grau de algum príncipe Valouis, e Clements apenas descobriu a traição

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quando de um dia para o outro, sua esposa fugiu para Winster para viver com o pai do filho dela. Após meses, ele recebeu notícias de que o Valouis, amante de sua esposa, não queria que ela tivesse aquele filho. E a espancou até a morte para impedi-la de tê-lo.

– Espero que entenda minhas razões, Clements. Aryn fará Sansa tão feliz quanto Nyan faria – Rhael tentou confortá-lo amigavelmente, levantou-se da cadeira. Clements se ergueu hesitante e apertou a mão do rei.

– Confie em mim, Sor Clements. – Aryn foi amigável. Estava muito

disposto a esquecer todo o ódio que Clements sentia dele. Seria o melhor para todos.

– Está certo – pontuou Clements. – Mas assegure meu rei, eu farei essa união ser muito proveitosa – disse em quase tom de ameaça, abriu a porta e saiu em seguida com um sorriso do rosto. Aryn não chegou a ver, mas sabia a cara de ódio que Clements faria assim que o desse as costas.

Estavam pai, tio e o futuro rei ali, distraídos após a reunião acabar. Com a tensão da reunião já dissipada, Aryn notou o rosto do tio mudar. Adolph se apossou de uma intriga, uma inquietação repentina e apenas silabou baixinho.

– Alison! – Como se agora estivesse lembrando-se do encontro.

A pronúncia do nome da cuidadora do finado irmão deu calafrios em Aryn, fazendo um arrepio gelar toda sua espinha. E intempestivamente, o garoto viu o tio sair correndo do escritório. A reação foi instintiva. E Aryn saiu discretamente da sala para o corredor vendo Adolph correr por ali.

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CAPÍTULO XIV

ADOLPH

Os corredores iluminados daquela corte pareciam mais extensos e assombrosos do que realmente eram para Adolph. Ele corria por eles com um desespero como se temesse que aquela corrida nunca fosse acabar. Precisava chegar até Alison. Precisava esclarecer com ela seja lá o que for que ela tivesse a dizê-lo. Soava frio correndo por ali. O sol brilhava em seu rosto através das vidraças e parecia cegar ligeiramente sua visão. Quando abriu seus olhos novamente ouviu um passo atrás dele. Olhou para trás, quase tropeçou nos próprios pés enquanto viu uma sombra se esconder atrás duma pilastra.

Algum pirralho sem noção deve estar brincando comigo! Não tenho tempo para isso agora. Pensava sobre a sombra que se esgueirava atrás dele. Ele sabia a pauta da conversa com Alison: a morte de Nyan. E por isso manteve em absoluto sigilo tudo o que ouvira de Christine na tarde anterior. No fundo desconfiava da morte suspeita e repentina do garoto adoentado.

Talvez fosse obra de um vassalo com interesses escusos, insatisfeito com o reino. Talvez... Não. Isso seria imaginar demais, mas tem lógica! Talvez os Valouis tenham mandado matar o Nyan e querem usar o Aryn para tomar Zardan. Diversas teorias um tanto conspiratórias o atormentavam secretamente desde que fora acordado na manhã anterior com a notícia de que seu sobrinho havia falecido. O sumiço e convite repentino de Alison só atenuavam suas atiçadas suspeitas.

Agora ele descia as escadas. Grudava no corrimão e ouviu passos atrás dele. Seja lá quem for que o seguia já não temia tanto ser visto. Adolph olhou para trás e viu a sombra de um garoto baixo sumir novamente atrás de uma parede. Por um instante – já irritado –, pensou em dar as costas. Voltar ao ser que o seguia e prensá-lo. Ouviu o sapato do garoto escorregar no piso amadeirado liso e quando

deu por si, viu o garoto se escondendo de novo dele. Aryn! Pensou por instantes. Por algum motivo Aryn o estava seguindo. Mas não parou para questioná-lo o porquê, apenas seguiu atrás da meretriz. Saiu do castelo, andou por todo o jardim já sem a sensação de estar sendo seguido. Seguiu pela grama o perímetro da fortaleza, da metade da fachada, onde Adolph estava agora, tinha uma porta que levava direto a uma escadaria que dava na sacada da torre mais alta do castelo, de onde a bandeira de tons rubros e brancos de Zardan balançava com o vento.

Antes de entrar, certificou-se. Viu bem ao alto, na sacada da torre uma

silhueta alta e robusta feminina de costas para a sacada. Finalmente! Pensou. Sem mais hesitar entrou pela porta, começou a subir a escadaria estreita e sinuosa, que

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curvava a todo instante. Ouvia passos bem ao longe novamente, de certo o seguidor desocupado o estava alcançando de novo.

Se essa peste intrometida e desocupada for o filho de um servente, quando eu pegá-lo, vai tomar chibata num dia e ajoelhar no milho no outro! Ameaçava, ainda ouvindo ecoar resquícios dos passos do garoto. Subiu mais a escadaria. Estava próximo da sacada da torre, e agora, sentia sem qualquer explicação razoável, seu coração palpitar forte. Palpitava mais forte e era só isso que conseguia ouvir quando estava mais próximo da sacada. Sentia uma verdade nebulosa próxima de si como nunca estivera antes. E agora sua mão agarrou o cabo da porta amadeirada. A empurrou.

Um feixe de luz adentrou pela escadaria. Ouviu um choro feminino contido que aumentava cada vez mais conforme dava os passos. Agora já saíra da escadaria. No alto da sacada da torre, via uma mulher de costas para ele. Mas não era Alison. E sim Christine que ao ouvir a porta bater, se virou lentamente para o príncipe, desolada, em parantos com as mãos sujas de sangue.

– Cadê a Alison? O que houve com ela? – sua respiração ofegava. – Fale!

– Ela estava voltando do vilarejo e... – Christine não conseguiu completar sem soluçar pelo choro. Parecia não ter coragem. – E a estrada real estava toda acidentada... as chuvas de ontem fizeram enormes fendas na estrada e ela não sabia! Ela não sabia. Houve um acidente terrível, Adolph!

– Sem rodeios! – ordenou muito nervoso. – O que houve com a Christine?

– O cavalo tombou numa cratera. Ela quebrou o pescoço e morreu na hora.

O anuncio de Christine chocou Adolph a deixa-lo sem ação. Não podia se mover, estava pasmo com a fatalidade. Ele não deu por si, mas escondido atrás da porta da escadaria, uma criança de aproximados 10 anos, que não o era desconhecida suspirava de alivio por aquilo. Era Aryn, que saiu sem ser visto. Agora ambos – para o pesar de um e alívio de outro –; compartilhavam o mesmo

pensamento: Seja lá o que for que ela tinha a dizer, irá para a cova junto com ela.

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CAPÍTULO XV

RHAEL

ZARDAN — CORTE DAVIS

CINCO ANOS DEPOIS.

Parecia que a imensa fortaleza tinha virado um cortiço de vilarejo. Parecia que o mundo inteiro cabia dentro daquela corte. Havia gente por todos os cantos, vassalos, senhores nobres, aristocratas das cidadelas, representantes de muitas nações amigas, chegavam desde a última semana até horas antes da cerimônia especialmente para assistir a ocasião. Era tradição por aquelas terras que o regente filho do rei, que governaria o reino, teria, ao aniversário de quinze anos uma cerimônia de legitimação, na qual sua futura reivindicação ao trono ficasse registrada e juramentada. Por uma noite, os filhos sentavam no trono dos pais.

Sentiam o peso da coroa em suas cabeças e a aspereza do trono em que

sentavam. Estavam preparados para isso. Pensou consigo mesmo conforme seguiu no corredor, estavam na metade do verão e aquela era uma noite ligeiramente quente de um dia que sol demorou muito para se pôr. Por cada canto do corredor extremamente iluminado, com velas e grandes vitrais à parede que projetavam luzes de tochas por todo o ambiente, Rhael via gente. Era gente até demais para

que se lembrasse de cada um deles, sorria para todos os cortesãos. Deviam ser muitas

centenas. De certo até alguns milhares. Deviam ter naquela corte, naquele momento, sete vezes mais do que a população da fortaleza, todos ali para ver Aryn.

Logo Rhael viu Sansa – vestida de forma deslumbrante, com seu cabelo mais crescido e dona de uma beleza exuberante e corpo invejável –, correr até ele seguida de algumas aias franzinas. Parou na frente do rei.

– Majestade, é hora de ir ao salão – exclamou a jovem esbaforida. – O sacerdote e os cerimonialistas já estão prontos. O Aryn descerá em instantes.

Rhael e Sansa caminharam agilmente pelo corredor. Rhael sentia uma leve sensação de apreensão. Desceu uma curta escadaria que deu noutro corredor, até parar diante da escadaria principal que levaria ao salão. O rei e a nora pararam no alto da escadaria. Havia gente ali por todos os lados. Servos, visitantes e nobres que estavam logo à frente da escadaria para recebê-los. Entre esses nobres, havia dois que não conseguiam disfarçar o ódio em seu olhar entre seus sorrisos falsos e dissimulados: Adolph e Clements. Estavam lado a lado, encarando Sansa e o rei.

O salão fora um tanto ampliado nos últimos anos, mas estava lotado, havia gente por todo o canto, sobre cinco degraus elevando, destacava-se um trono de

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rubis que era rústico, grande e muito pomposo, com certos ares medonho e exagerado, que despertava fascínio em qualquer um que o visse e almejasse sentar-se nele. Diziam que levou dois séculos para que um grupo de artesãos extraísse, lapidasse e construísse uma obra como aquela. O trono controlava as terras do Oeste e do Leste, antes da separação Franchesco Valouis sentava-se nele. Mas em proposta de amizade, Francis cedeu o trono a Adolph IV e toda a dinastia Davis. Os Valouis depois de Francis, no fundo, jamais perdoaram sua memória por ceder-lhes o objeto de poder mais simbólico daquelas terras.

Daquela escadaria, Rhael lembrou a última vez que estivera no topo dela com toda uma multidão o encarando: quando Nyan morreu. E por mais que o clima fosse outro, ele notou como a face da multidão não era tão diferente. Tratou de descer logo a escadaria junto de Sansa. Cumprimentou aos risos o irmão e tio de sua nora. Andou junto da jovem, congratulando um a um que o fora abrindo espaço até estar de ante da escadaria vazia do trono. Subiu junto com ela degrau por degrau. O som dos sapatos batendo contra a escadaria cimentada ecoou pelo ambiente. Subiram, Rhael ficou à direita do trono, Sansa à esquerda. Três sacerdotes subiram os degraus do trono aproximando-se do rei.

– Majestade, faça as honras e badale o sino – pediu falando baixo.

– Cortesãos e cidadãos de Zardan... – iniciou solene. – Nesta noite, após a data da décima quinta primavera de Aryn, o nascido do deus da morte, o filho de Rhael, progênito de Diane, o futuro rei de Zardan pela casa Davis... – o olhar percorria a todos entre uma pausa e outra. A expressão de velório parecia estampada na cara deles, prosseguiu. – Eu, Rhael I, rei de direito das terras ocidentais, proclamo legitima e abençoo a reivindicação de meu filho, Aryn Davis Castillo Valouis ao trono vermelho de Zardan.

O último nome pronunciado por Rhael deu a todos ali uma feição de pesar ainda mais sobressaltada. Era como se todos ali fossem cordeiros aprisionados a espera do abate e Rhael fosse o homem que estava dando a adaga ao carniceiro. Logo em seguida, o rei lançou um olhar direto ao servo que estava na porta da sala. Ele saiu correndo dali e, instantes após, o sino começava a badalar mais alto e mais forte do que nunca. Quando pararam de badalar, um burburinho corria de boca em boca a multidão, os olhares de todos se voltaram fixos ao topo da escadaria. E Rhael viu um manto dourado de camurça arrastar-se pelo solo no piso superiouu. Sorriu com os olhos ao ver o filho.

Agora tinha uma postura robusta, um corpo mais definido, alto para sua idade, seus cabelos prateados estavam lisos batendo na altura dos ombros. E seus

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olhos, o azul e o verde, destacavam-se dando um tom de medonho, de contraste estridente ao seu semblante gentil. Rhael notava com Aryn olhava a multidão com amor, com gratidão por estarem ali. A multidão o encarava com certo temor, angustia que os traziam uma oculta repulsa. O príncipe desceu lentamente pela escadaria, observado por todos, enquanto o silêncio perdurava no ambiente. Um corredor estava aberto entre os nobres pelo qual ele caminhou firme, seguido por Clements e Adolph VI.

Aryn olhava a todos sorrindo, buscava o semblante orgulhoso de seu pai e o emotivo de sua noiva. Estava feliz e em paz como nunca fora visto antes. Percorreu pelo salão até parar ante a escadaria do trono, subiu os três primeiros degraus até parar. Rhael notou o olhar dócil do filho a noiva, enquanto ele se ajoelhava no degrau ante o trono, o rei, o sacerdote e Sansa. Ele segurava em sua mão. O sacerdote aproximou-se do mesmo, pondo a mão sobre a cabeça dele.

– Repita comigo, meu jovem... – requisitou o idoso. – Eu, Aryn Davis Castillo Valouis, o príncipe regente e de direito das terras ocidentais, futuro protetor do reino, juramentado unicamente a casa Davis...

Aryn repetiu cada palavra do juramento. O sacerdote continuou.

– Prometo diante dos olhos dos quatro deuses e da benção de meu pai, honrar e proteger os princípios e interesses de minha nação e de meu povo – foi repetido. – Assim como ser justo e soberano para com todos, os protegendo e os preservando dos males e desafios que recobrem nossa terra. – Aryn repetiu cabisbaixo, a voz muito ligeiramente embargada. Já havia decorado cada palavra do juramento antes mesmo do sacerdote proclamá-las. Fizeram uma pausa e concluíram o juramento. – Esta noite, eu Aryn, o nascido do deus da morte, o filho de Rhael e Diane, juro a meu povo, sobre as leis e olhares de deuses e homens, como zardan e como Davis, minha espada e meu coração em nome de minha nação. – Aryn repetiu alto, com uma passionalidade implícita na voz.

O regente estendeu uma mão ao pai em sinal de benção. Rhael beijou sua mão e o ergueu na escadaria. Aryn virou a todo o seu povo, lado a lado com Sansa, seu pai, encarando a todos os cortesãos agora.

– Sobre as vistas de todos aqui, proclamo Aryn Davis Castillo Valouis como legítimo à sucessão do trono de Zardan – anunciou alto o sacerdote, abaixando a voz para concluir. – Que os deuses reinem convosco.

– Que os deuses reinem convosco – ecoaram todos os cortesãos ali.

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O sacerdote estendeu ao futuro rei um rubi lapidado em forma de lamina. Ele pegou o rubi nas mãos e o apertou até sangrar, as gotas de sangue caíram sobre o trono vermelho. Aryn abriu a mão e deu o rubi manchado de sangue ao pai.

– Abençoo em seu clamor. Que os deuses reinem convosco – concedeu saindo da frente do trono e sinalizando para que o filho sentasse.

Aquele era o momento que Rhael sempre sonhou. Aryn olhou o pai fundo nos olhos por uma fração de segundos que pareceu uma eternidade. Rhael sentia que apesar do reinado, originalmente, pertencer a Nyan, Aryn era o rei que aquela

nação precisava. De um jeito ou de outro a vida agiu para que Aryn estivesse ali. Pensou.

Os passos de Aryn no alto da escadaria ecoaram. Ele sentou no trono vermelho, recostando os braços sobre o objeto, e do alto do trono viu a todos. Os olhos de Aryn não pareciam se corromper com o objeto, manteve o olhar dócil e complacente para todos. Geralmente quando um menino senta-se num trono é

como se seu sangue se tornasse azul e o poder o subisse a cabeça. Mas não com Aryn. Observou Rhael. Viu o filho estender o braço em benção para a multidão. E uma última vez a multidão entoou com a falsidade explicita nos olhares.

– Que os deuses reinem convosco.

O rei intuiuu que naquele exato momento, o que parecia importar a seu filho era Sansa. A mão cortada do jovem segurava a mão dela e ambos se entreolhavam apaixonados. Com a mesma paixão que Rhael sentiu por Diane. A diferença é que a paixão de seu filho era uma benção, e a dele por Diane, a maldição. Durante toda a noite em que os cerimonalistas começaram a tocar, atores apresentaram espetáculos e encenavam Heliseu nos salões da corte, Aryn andava por todo o canto sentindo-se como um rei, portando-se sorridente e amigável, atraindo o orgulho oculto de seu pai. Sabia que no dia seguinte a cerimônia voltaria a ser um mero príncipe até que de fato fosse se tornar rei.

Pela lógica, Rhael não viveria para ver o filho reinar, mas estava aliviado. Em sua postura de rei complacente, piedoso e amigável daquela noite, Rhael notou que Aryn não seria um rei. Algo o dizia que Aryn seria o rei.

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CAPÍTULO XVI

ARYN

ZARDAN — CORTE DAVIS

VINTE ANOS DEPOIS. Através de um embaçado e pequeno espelho de madeira, Aryn encarava

suas próprias feições enrijecidas pelo tempo. Seu rosto estava mais maduro, porém ainda jovial, como se ainda tivesse vinte e cinco e não mais de trinta anos, seus cabelos prateados, maiores, já passavam dos ombros, estava mais alto. Tentava se distrair enquanto encarava a si mesmo no objeto, mas não era possível. Largou a visão embaçada que o espelho produzia, ouvia a neve caindo do lado de fora da fortaleza na noite gélida e longa que se instaurava, essas nevascas eram atípicas para uma primavera. Mas por mais que Aryn não quisesse admitir, elas, que bloqueavam as estradas vieram bem a calhar dada a atual situação de Zardan.

– Já dormiram, meu amor? – perguntou uma voz suave, baixa e meio rouca.

Deu com Sansa a entrada ao aguardo de sua resposta. Ele caminhou até a cama de casal, notando que seus três filhos dormiam. Ao canto esquerdo da cama, tinha Myrcella, tinha 13 anos, a pele extremamente clara, longos cabelos pretos e olhos esverdeados; dormia abraçada ao casal de gêmeos bivitelinos de 5 anos. Tristan tinha olhos azuis e cabelos louros arrepiados, seria o futuro regente Davis; enquanto Laurel, que dormia no meio, era loira, de cabelos lisos e longos para sua idade, olhos tom de âmbar como os da mãe, era a que mais se revirava na cama.

– Sim, já – Aryn respondia meio alheio a tudo, pensativo. – Myrcella ainda anda muito abalada pela morte do Robb, quando esse prenúncio de crise passar...

Sansa o interrompeu somente com um olhar reprovador. Uma lágrima ensaiou cair do olhar dele que pressentia que um dos discursos realísticos e diretos da esposa viria, mas ela não o fez. Apenas se aproximou e segurou firme sua mão.

– Meu amor, nós sabemos que a situação não é tão simples assim. – Ela olhou para os lados como se temessem, passou a falar sussurrando como se as paredes fossem escutá-la. – Foi só a boataria de que seu pai está mo... – ela corrigiu as próprias palavras rapidamente, esforçava-se para ser suave, apesar de objetiva. – Está adoentado e de que a Myrcella estava grávida e mataram o noivo dela!

– Foi uma coincidência! – protestou, nitidamente desconversando, andou pelo quarto como quem tentava iludir a si mesmo. – Aquele bando de bárbaros rebeldes das Terras Estreitas mataram o garoto! Mas eu vou massacrá-los!

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– É mentira, Aryn! Pare de mentir para si mesmo – rebateu emotiva. – Ninguém a volta de pessoas como nós morre por coincidência. A questão que anda as voltas em minha cabeça é: quem realmente o matou?

Sansa calou-se por instantes. O príncipe dependurou-se na sacada, viu todo o jardim vazio, recoberto pela neve, enquanto um nevoeiro o impedia de ver mais que um palmo a frente do castelo. A futura rainha aproximou-se por trás.

– O momento do inevitável está chegando Aryn...

– Não! – ele cortou incisivo. Uma lágrima escorreu de seus olhos como se estivesse perdido, como se não soubesse o que fazer. – Meu pai não vai e não pode morrer. Eu não sei lidar com isso tudo sozinho, Sansa.

– Meu amor... – ela o consolou, o abraçou forte, olhou-o firme. – Você não está sozinho. Eu estou com você, nossos filhos estão com você. O Rhael está acamado há semanas, seja franco e assuma que praticamente é você comandando o reino – pausou – E se você fizesse um tratado... Um pacto... Ratificasse que não quer expandir Zardan... Porque essa recusa que têm de você deve-se ao fato que temem que você estenda o império.

Ela se referia ao grande arquipélago ao sudoeste de Zardan, que num passado que agora ficava distante, experimentavam uma forma ‘liberal’ de governo, que fazia todos os monarcas daquele canto do mundo temerem que os ideais

liberalistas desse país se expandissem para seus reinos. Eles precisavam de uma

monarquia. Pensava Aryn sobre eles, logo então, de algum modo, alguns anos antes do nascimento de Aryn, um homem havia surgido do nada e imposto o autoritarismo absolutista como regime. Seu governo durou vinte e um anos, até sua morte e antes que a anarquia se instaurasse naquele país, Zardan os invadiu e os possuiu. E dali, as expansões marítimas do país foram engatinhando aos poucos.

Todos sabiam que os ideais expansionistas de Zardan desabrocharam após Aryn ser proclamado regente. Ele convenceu o pai da importância de ter mais terras, fazendo o mínimo de inimigos possível. Os cidadãos comuns das Terras Estreitas, por exemplo, não se rebelaram contra os Davis. Mas um grupo de rebeldes extremistas de lá sim, assim como outro surgia noutra terra dominada por eles e assim por diante. Nada que os ameaçasse, até aquele momento. Aryn tinha um plano de expansão perfeito. Todos – até mesmo Sansa – perguntavam-se quando ele iria dar-se por satisfeito quando reinasse. E isso gerava um pouco de aflição em países próximos. Principalmente em Winster, que temia a morte de Rhael e consequente reinado de Aryn como bruxas temiam a fogueira.

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– Não tenho pretensões de expandir além do necessário – foi bem lacônico.

– Me promete uma coisa?

Ele assentiu positivamente.

– Nós sabemos que as horas do rei estão contadas. Quando ele se for e você sentar de fato naquele trono, negocie paz com os rebeldes e assine o Tratado das nações amigas de não expandir para território alheio.

Ele permaneceu esquivo. Seu comportamento não era frio e denso daquele

jeito, mas as circunstâncias que o tencionavam pediam isso. Precisava ser racional!

– Não preciso assinar paz com os rebeldes. Eles não representam ameaça.

– Exatamente, Aryn! Então como é que você os acusa de matarem o noivo

da Myrcella? Nós sabemos. Os reais inimigos do reino estão dentro desse território,

talvez dentro dessa Corte – fez questão de frisar os pronomes. – Ao contrário do

que diz meia dúzia de rei posto, negocie a paz externa e force a paz interna.

Antes que Aryn fosse se pronunciar, ela passou a mão por seus cabelos e inclinou o rosto dele até Myrcella e os outros filhos sobre a cama.

– Ou em breve nós estaremos chorando a morte dela, como ela chorou a do noivo. Nossos reais inimigos, sejam quem forem, estão nessa porção de terra.

Sansa não precisava explicitar. Aryn julgava compreender ao que ela se

referia: os Valouis! O detestavam e o temiam ainda mais do que os próprios Davis. Temiam – assim como todos, só que um tanto mais – que quando ele sentasse no trono, reivindicasse a coroa de Winster e tornasse real o pior pesadelo das terras nortenho-ocidentais: reunificar as duas coroas.

Talvez eles tivessem matado Robb quando souberam do meu pai só para fraquejar o reino. Se forem, eles estão comendo pelas beiradas... Primeiro eliminam o mais distante da linha de sucessão e vão se aproximando... E quando eu visse, eu estaria só, sendo morto diante do trono com minha esposa e meus três filhos já mortos e enterrados me esperando noutro plano. A teoria de Aryn fazia total sentido. Mas o angustiava aquela apreensão geral. Fora ao começo daquela noite, quando um médico o informou que Rhael já estava desenganado, que começou a aceitar esse fato que já sabia há

tempos. Alguma conspiração se forma. Está na cara! O problema é que você não pode

desmantelar o que não consegue ver.

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Conspirações se formavam quando alguém – que só poderia ser de dentro da Corte – antecipara os mexericos da doença do rei, ou até mesmo espalhava graves inverdades (como a gravidez inexistente de Myrcella); quando rebeldes dominados ameaçavam atacá-los e mendigavam apoio de nações amigas de Zardan; quando um futuro príncipe era morto com falsos indícios que guiavam a rebeldes anti-imperialistas, quando a lógica apontava aos Valouis. Conspirações se

formavam em todo canto. Mas... Quantas são? Quem conspira? O que querem todos de

mim, afinal? Abraçado com a esposa, com uma lágrima escorrendo do olhar, estava pronto para responder seus próprios devaneios quando de forma brusca a porta bateu. Quase acordou os filhos do príncipe que se virou assustado para a porta, Catherine correu até eles rapidamente e o abordou-os assustados.

– O rei pediu para vê-los urgentemente, Milorde – anunciou com a voz trêmula e olhos marejados. – Ele já não pode falar direito. Os físicos dizem que é uma questão de horas... talvez minutos, Vossa Graça.

Ela suplicou. O coração de Aryn disparava, sua respiração ficava rala e ofegante com o ar gelado sendo inspirado. Desde algumas semanas atrás, ser chamado às pressas no quarto para ver o pai adoentado lhe fora comum. Mas naquela vez, sentiu que algo era diferente. E Aryn não estava errado.

Quando abriu as portas do quarto do pai com velas em candelabros dando um tom melancólico e mortífero ao ambiente, Aryn deu com os servos e físicos encostados nas paredes, cabisbaixos, abrindo espaço para a cama do rei. Adolph estava à porta, sem olhar fixamente para o regente.

– Pai... – indagou com a voz embargada.

Rhael deitava a cama, definhando. O tempo havia o preservado bem apesar dos cabelos esbranquiçados mais curtos e da pele enrugada. Manchas roxas estavam em algumas articulações do corpo, inchadas.

– Venha Aryn... venha – as palavras lhe saiam com um esforço tremendo. Aryn olhou para todos na sala e moveu o queixo, os servos e doutores saíram, restando apenas um médico. Aryn agachou até o pai, acariciou seu rosto num gesto de carinho que nunca teve antes. Seus olhos se enxergam de lágrimas que começaram a escorrer sem parar.

– Não me deixa, pai! Não me deixa! Eu não posso sem o senhor. Não me deixa – implorou como se fosse uma criança. Segurava firme em sua mão.

Rhael olhava para algo além de Aryn, voltou o olhar ao filho.

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– Eu... eu te amo, meu filho. Eu te amo – desabafou dificultosamente.

Aryn notou que o olhar de seu pai parecia se voltar a Adolph. O rei apertou firme as mãos do filho, já não com o mesmo rigor de antes.

– Trair... trair quem você ama... trair quem você ama escurece sua alma.

Aryn encarou-o perplexo. Achava que havia entendido algo, Rhael assentiu-o negativamente, o olhando firme. O irmão do rei estava contendo a inquietude.

– Ele não está dizendo coisa com coisa mais, Milorde! – informou um físico. Aryn estava confuso, Rhael estava inquieto a balbuciar coisas inaudíveis. O som de sua voz simplesmente não saia. Ele apertava mais forte a mão do filho, o coração de Aryn batia forte. As lágrimas desciam dele compulsivamente.

– Me perdoa, pai... – Aryn começou a chorar.

– A eva, Aryn... eva... eva! – Como se tentasse informa-lo de algo. O olhar de Rhael se perdeu em algo que Aryn não notou o que era. – Lembra, a eva!

O rei tossia entre uma frase inacabada e outra. Segurou a mão do filho e olhou-o nos olhos enquanto uma lágrima o desceu.

– Eu... eu amo... eu o amo. – tomou folego para uma última sentença, mas só uma palavra saiu de sua boca. – Eva...

E o som de sua voz se perdeu em meio ao nada enquanto seus olhos ficaram arregalados a fitar o teto, o corpo estava imóvel e sem vida. A mão rígida do rei endureceu grudada na mão do filho, o apavoro percorreu a espinha de Aryn.

– Não! – tudo o que soltou foi um grito sofrido e choroso que ecoou por todo o castelo. E o som infernal dos sinos do alto da torre passou a ser ouvido.

– O rei está morto! – alguém berrou fora dali. – Vida longa ao novo rei!

– Que os deuses reinem convosco! Vida longa ao novo rei! – ouviu alguém.

Aryn estava estarrecido. Chorou sem consolo debruçado sobre o pai por toda a noite. O barulho de sinos se mesclava ao som de suas lágrimas pela corte; tentaram de todo o jeito o tirarem de perto do corpo, mas Aryn não queria. Não podia deixa-lo ir. Lamentou a perca por toda a noite agarrado ao corpo, apenas Sansa e Adolph VI foram autorizados a ficar a porta do quarto tentando convencê-lo de aceitar a perda do pai.

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Sansa chorou junto com ele. O deixou chorar sua perca, parecia estar sofrendo com o sofrimento do esposo, mas Adolph não. Estava nervoso. Aryn sequer teve olhos para nota-lo, mas Adolph não derramara uma única lágrima ou pronunciara um único lamento durante toda a noite que se seguiu. Ficou mudo e imóvel a porta como peça decorativa. Aryn chorou sobre o corpo do pai até que o dia nascesse, quando não teve forças para manter-se em pé e sua visão escureceu tendo a visão do corpo do rei morto junto ao dele. Mas antes de pegar no sono, ouviu de vozes distintas, que se embaralhavam em sua mente ao mesmo tempo em que se perdiam no espaço, a mesma e exaustiva prece uníssona.

– Vida longa ao rei! Que os deuses reinem convosco.

• • •

Já devia estar na metade do dia quando Aryn despertou do sono profundo. Estava em seu próprio quarto, rodeado por Sansa e seus três filhos com cara de choro. Foi despertando aos poucos, sentando na cama, abraçado por eles. Após um longo tempo de todos reclusos em silêncio, Sansa se pronunciou.

– O velório começa pela noite. Eu tive de acertar alguns assuntos, Aryn – ele fez que sim, contido. – Um sacerdote que esteve com seu pai pela tarde de ontem, quer insistentemente falar com você. Deseja recebe-lo?

– Sim. Peça-o para entrar, por favor.

Os filhos foram até ele e o abraçaram simultaneamente. Aryn manteve-se firme, Sansa foi após os filhos até ele, pegando em sua mão e beijando sua testa.

– Eu estou aqui para você, meu amor. Eu estou aqui.

A firmeza em suas palavras era a única certeza que Aryn tinha em tempos tão inconstantes. Agora, era aquilo que o dava forças para seguir em frente. Eles deixaram o quarto e, alguns instantes após, um sacerdote de meia idade, de feições harmônicas e calvas adentrou. Recostando a porta.

– Olá, Majestade – ele pareceu ensaiar uma pergunta do gênero ‘Como vai?’, mas preferiu não indagar devido à nitidez da resposta. – Meus pêsames por vossa perda. Eu desejava muito vê-lo.

O silêncio rendeu alguns instantes. O sacerdote ensaiou passos no solo ruidoso.

– Mas, por favor, vá ao assunto.

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– Eu estive com seu pai por metade da tarde de ontem. Peguei os últimos instantes de sanidade dele.

– Então, posso lhe confidenciar algo, sacerdote? Algo que apenas o físico titular, minha esposa e meu tio ouviram... – olhou-o firme. – E que jamais poderá sair daqui.

– Sim, sim, claro Majestade.

– Suas últimas palavras foram coisas do tipo “Trair quem você ama escurece sua alma” e “eva” – refletiu bem nas palavras que diria a seguir, e pronunciou logo. – Eu talvez seja capaz de compreender sua penúltima fala, mas e eva? O senhor sabe do que se trata ou pode se tratar?

O sacerdote refletiu por instantes. Voltou-se a seu rei em negativa.

– Realmente, sinto mesmo informa-lo, Majestade. Mas a partir do meio da tarde de ontem, todos concordam como seu pai já não respondia com sanidade às coisas que ele mesmo dizia.

Aryn ficou reflexivo por instantes. Lembrou-se de como o olhar de Rhael estava perdido, talvez de fato, não estava assimilando coisa com coisa.

– Tudo bem – suspirou com conformismo. – Mas o que trás aqui?

– Nos últimos momentos em que estava lúcido, ficamos eu e seu pai a sós no quarto. Ele aproveitou do momento para me dizer um recado que eu deveria dá-lo caso ele não conseguisse fazê-lo por si próprio.

– Que recado?

O sacerdote pareceu cogitar o que diria por alguns instantes sobre o que diria. Mas foi breve.

– Ele te perdoou. Ele queria que você soubesse que se ele morresse aquela noite, ele morreria te amando, te entendendo e perdoando seja lá o que foi que você fez. Apenas isso que ele me pediu para conta-lo, Majestade.

Os olhos do rei se encheram de lágrimas, sua voz embargou novamente. Aryn creia que, para o sacerdote, as palavras de Rhael não faziam o menor sentido, mas para Aryn faziam todo. Por volta de 5 anos antes, numa noite enquanto ambos visitavam uma fortaleza ao leste do reino, Rhael o questionara – já fazendo insinuações –, sobre a morte de Nyan. E Aryn o confirmou a verdade.

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Ambos tiveram uma acalorada discussão na qual Aryn argumentou que um irmão matar o outro era uma coisa inevitável, sendo que ele apenas fez com o irmão, antes que o irmão tivesse poder para fazer com ele. A discussão foi

encerrada com um odioso ‘Eu nunca vou te perdoar’ dito por Rhael. Lembrava-se Aryn, enquanto lágrimas escorriam de seu rosto. Ele nunca soube de onde ele tinha tirado essa suposição. Ao dia seguinte, Rhael o tratou como se absolutamente nada houvesse acontecido, como se não soubesse de nada. Tudo parecia normal entre ambos, que mesmo sozinhos ocasionalmente, nunca voltaram a tocar naquele assunto. Os olhos de Aryn brilharam. Com a voz embargada, limitou-se a questionar.

– Há mais alguma coisa que eu deveria saber?

O Sacerdote tossiu. Estava vacilante e ocultava o nervosismo em responder-lhe. O rei estava tão inebriado com o perdão que sequer percebeu a hesitação do mesmo. Mas o homem de meia-idade o olhou nos olhos enquanto mentia.

– Não, Majestade. Isso é tudo.

Aryn o agradeceu e cordialmente o viu se retirar. Entre as lágrimas e olhos bicoloridos que brilhavam, tracejou um leve sorriso de alívio. Para ele, era extremamente importante saber que seu pai se foi o perdoando. Mas uma

pergunta ainda pairava no ar. Se Rhael o havia perdoado, aquele ‘Trair quem você

ama escurece sua alma’ foi para quem? Nesse instante, essa frase dita por seu pai ecoava mais do que nunca em sua mente. Agora, como um enigma insolúvel.

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CAPÍTULO XVII

ARYN

Os ventos primaveris sopravam a arrepiar seus longos cabelos lisos enquanto o rei se dependurava na pequena e estreita sacada do alto da torre. Amava aquele lugar, principalmente porque todos sabiam que quando estava ali, claramente, não desejava ser incomodado. Naquela noite, fazia exato um mês da noite em que seu pai falecera e as circunstâncias ainda andavam as voltas em sua mente. Lentamente ouviu-se um rangido suave, sequer curvou para trás para ver quem adentrava, sabia que era Sansa que foi até o marido e pegou em sua mão.

– As crianças já foram dormir, continuam muito abaladas pela morte do avô. A situação do reino também não ajuda – puxou assunto, Aryn pareceu não se importar. – Aryn... podemos ter aquela nossa conversa agora?

Na missa de sétimo dia de Rhael, Sansa tentara o levar a um assunto que ele não compreendia direito, claramente relacionado à nova morte que abalara Zardan. Mas o novo rei fugia dessa conversa ao máximo que podia.

– Me perdoe, Sansa, mas hoje não estou disposto – sequer a encarou ao dizer. Ela bufou levemente e voltou-se a ele sendo direta.

– Aryn, eu suspeito que seu pai morreu envenenado.

Os olhos do rei buscaram a esposa com um ar imenso de incredulidade.

– Não, não é possível – disse abrindo um riso de nervoso na face, criara o hábito de mentir para si mesmo com frequência. – Envenenado por quem? Envenenado por quê? Todos o amavam, Sansa! Isso não tem lógica!

– Mas o filho dele não! Ele pode ter descoberto alguma conspiração contra o país, contra você... O reino não anda na mais estável das fases, Aryn!

Ele tentaria contestar sem lógica alguma de novo, mas ela o cortou suavemente.

– Não fizeram pelo seu pai, Aryn! Fizeram por você! – os olhos dela lacrimejaram nessa parte. Parecia duro para ela dizer a um filho que seu pai foi morto por culpa dele, mas ela parecia sentir que precisava fazê-lo antes que fosse tarde. – A questão aqui nunca foi o Rhael reinar, mas foi você reinar depois dele!

– Meus próprios conselheiros dizem que o povo me ama.

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– Os pobres te amam! Só os pobres, porque você é caridoso com eles. Porque apesar deles também terem um desprezo e um medo por você, você é o único que já se importou com eles. E eles só te amam enquanto outros nobres não os convencem de que você causará uma guerra que os levará a chacinas!

– Eles são meu povo, Sansa.

– Mas não são eles quem moverão uma palha quando quiserem pregar sua cabeça numa estaca! E se eu estiver certa e o Rhael morreu por sua causa... se prepare, meu amor, pois uma conspiração está sendo armada.

Seus lábios tremiam, ele estava nitidamente emotivo. Sansa via o sofrimento de Aryn, parecia querer chorar, querer abraça-lo também. Mas teve de ser firme para abrir os olhos dele. Aproximou-se e deu um beijo não correspondido em seus lábios, virou os olhos para o lado antes que chorasse com o marido.

– Com licença. Não queria te incomodar, me perdoe – foi retirando-se suavemente.

– Sansa, fique – ela obedeceu, virando-se a ele. – Por que me instiga tanto e sequer me diz duma vez de quem está desconfiada?

– Porque eu não tenho uma desconfiança especifica – indagou cabisbaixa.

Na visão de Aryn, ela estava mentindo.

– Você mente – contrapôs ríspido, também retraído. Deu um passo à direção da amada que a fez recuar.

– Eu só quero que você descubra a verdade, Aryn! – os olhos dela já marejavam.

– Você mente, Sansa. Você mente e você joga como bem a convém! – ele ergueu a cabeça. Uma lágrima lhe escorria. – Você vem me dizer que eu sou culpado da morte do meu pai, que eu estou em risco, mas se recusa a dizer tudo? Como assim? Você quer que eu investigue o que afinal? As paredes?

– Eu quero que você veja o que está debaixo do seu nariz e você não vê. – foi incisiva. – Eu sempre apostei minhas fichas em você. Ainda aposto. Mas será mesmo que você não vê o desprezo com o qual esse povo te olha? Que olha aos nossos filhos? Eles nem disfarçam mais, Aryn! – agora ela estava emotiva assim como ele, sua voz lhe pausava contra sua vontade. – Talvez, para não ver o medo, o ódio, o desprezo que as pessoas têm de você por você ser quem é, você se habituou

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a fingir que não vê, a mentir para si mesmo, mas isso tem que parar! Isso tem que parar ou vai custar a vida de todos que nós amamos!

Ela se engasgou nas próprias palavras. Ele não tinha o que dizer, mas tentou pronunciar algo. Sansa o fez gesto com as mãos para que não a interrompesse.

– Eu não consigo mais dormir com os dois olhos fechados. Porque eu temo que a qualquer momento alguém invada o nosso quarto e mate você e os nossos filhos enquanto dormem. Eu sei que é difícil para ambos de nós, mas com sua cegueira e boa fé, você não consegue perceber que nunca governará um reino ou um império de pessoas, mas sim um imenso covil de lobos.

Agora Sansa deixou a sacada da Torre do Estandarte, intempestiva, sem que Aryn se opusesse. Ele curvou à sacada da torre, apoiando as mãos no parapeito e vendo toda a corte agitada dali. Sentiu o vento percorrer seus cabelos mais uma

vez. A direção daqueles ventos era clara para Aryn: O verão está por vir. E com as estradas não mais bloqueadas por nevascas e pelo mau tempo, o caminho estaria livre para qualquer ataque inimigo. Pressentia que seria o fim daquela estação e o começo da outra que definiria drasticamente o futuro de sua família e seu reinado.

Saiu logo do alto da torre e percorreu os corredores sombrios do velho castelo, até adentrar em seu amplo escritório onde três homens de sua confiança o aguardavam com expressões carrancudas, Adolph os liderava nitidamente nervoso. Seguravam cartas, papeis enrolados, havia mapas diversos sobre a mesa e os olhos tristes voltados ao rei, como se algo sério estivesse havendo. Aryn abriu espaço, sentando-se à mesa, já preocupado.

– Que más notícias me trazem com essas feições? São os rebeldes das Terras Estreitas de novo?

– Não, Aryn – informou o tio, aproximando-se. – São questões internas dessa vez. Suponho que graves questões internas.

Aryn cordialmente acenou para que os homens falassem. Adolph sentou-se grosseiramente ao lado do sobrinho o apontando um território bastante estreito, de contornos sinuosos, ao extremo norte do mapa de Zardan.

– A casa Medici... se rebelou contra nós proclamando separatismo e está unindo exército ao de outras casas nortenhas para um motim contra o governo.

Outro homem da confiança do rei se aproximou. O olhar do líder estava perdido.

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– Já ordenei que as tropas ficassem atentas. Apenas aguardam sua ordem para marchar rumo ao Norte e suprimir os traidores, Majestade.

Ele tentou manter-se firme. Mas não conseguiu, estava perdido, sem saber o que fazer ao certo e aquela era a situação perfeita para qualquer oportunista.

– Eu... eu... eu tenho duvidas da prudência que seria atacá-los de imediato – disse em recuo. Qualquer outro rei em seu lugar sequer hesitaria em demandar uma chacina na fortaleza dos vassalos e pregar sua cabeça à muralha duma cidadela

para que servissem de exemplos. E estavam certos nisso. Ponderava. Mas não esse o

tipo de rei que eu sou. A maior questão que não queria admitir para si mesmo, era se o rei que ele era, era o rei que ele deveria ser.

– Estou aberto a aconselho – disse como quem se dera logo por vencido.

– As nevascas acabarão em breve até no Norte, Vossa Graça. O verão está vindo com demasiada rapidez, e quando se der conta, eles já terão atravessado as cadeias montanhosas. Já terão convencido outras muitas casas e a se voltar contra a coroa e certamente, antes que o verão chegue à metade, já estarão entrincheirados à entrada da fortaleza, pondo-nos num sítio.

Aryn pegou a pena encharcada de tinta preta para assinar um dos papeis em sua mesa. Não conseguia deixar de pensar nos inocentes que morreriam e seriam afetados por aquilo, mesmo com o fim do inverno, as plantações ainda não haviam se recuperado e a situação da fome no país andava bem crítica para se proclamar

guerras internas ou externas naquele momento. Mesmo assim é o que deve ser feito! Firmou para si mesmo. Para melhorar sua situação, Adolph logo ao lado do sobrinho, decidira se pronunciar.

– Não, Aryn! – o fez hesitar com a pena em mãos. – Não faça isso, não é o momento. Esta é só uma revolta de vassalos insignificantes. O exército deles é mau treinado e insuficiente.

A postura pacifista jamais condiria ao mínimo que fosse com Adolph VI. Aquela não era uma atitude que ele teria em sã consciência e Aryn sabia. Mas via alguma razão em suas palavras.

– Sente-se com eles, ofereça-os meia dúzia de privilégios e anistia e tudo se resolverá. Devemos ter preocupações maiores no momento, não?

Dados os argumentos, Aryn se portou firme em sua cadeira, os encarando.

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– Instrua as tropas para ficarem alertas a qualquer movimento brusco e, por precaução, peça a Strenghfield um reforço de metade de seus homens – voltou-se a outro homem. – Traga-nos emissários em nome dos Medici para a negociação e diga-os que queremos paz.

Os homens assentiram concordando. Adolph VI esboçou um sorriso singelo, que no fundo estava repleto de escárnio ao sobrinho e levantou-se.

– Bem, já que essa pauta está encerrada, dormirei agora. Até mais, Aryn.

– Até mais, tio. Boa noite – devolveu com um sorriso sincero no rosto, apertando firmemente as mãos dele, que saiu em seguida.

– Agora Majestade, ainda temos mais assuntos pendentes a tratar.

– Sim. Diga.

– Infelizmente, se o falecimento de seu pai já não foi visto com bons olhos em Zardan, aonde chegamos ao cúmulo de um dos vassalos se voltar contra a coroa, nossos corvos dão conta que em Winster a reação à morte do Rhael é ainda mais tenebrosa. Ressaltemos que eles têm um grande poderio militar, Vossa Graça... – receou em finalizar. – Talvez até maior e mais bem instruído do que o nosso.

Aryn pensou bem antes de responder. Tinha o olhar novamente perdido, mas não perdido ao léu dessa vez, mas sim reflexivo. Tinha algo em mente que parecia fazê-lo escolher bem as palavras que diria.

– O poderio militar deles não se erguerá contra mim. Eu sou Aryn Davis Castillo Valouis. Eu tenho o sangue deles, eles não se voltarão contra mim.

– Seus planos expansionistas... – Aryn tratou de cortá-lo antes de completar a sentença. Era raro agir com descortesia, mesmo com seus serventes.

– Meus planos expansionistas dizem respeito a mim, por hora. E se eu espalho que não tenho intenção de reivindicar a coroa de Winster, eu não a tenho – concluiu exprimindo incerteza. – Eu sei o inferno que seria reunificar as nações.

– Então podemos dar a reunião por encerrada, Vossa Graça. Nos permite? – questionou lançando um olhar a porta, os outros dois servos estavam mudos atrás do primeiro.

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– Sim. Obrigado pelos auxílios, mas já estão dispensados. Apreciem uma boa noite de sono – desejou aos homens que foram saindo, mas antes que o primeiro deles saísse também, o interrompeu. – Perdoe, mas você fica.

O mesmo obedeceu, fechando a porta.

– Sim, Vossa Graça.

– Fale-me mais sobre a coroa de Winster. Dizem que meu tio já está em idade avançada e sem herdeiros, não? Como os rumores procedem? – questionou olhando ao nada, num abrupto interesse no outro lado da família.

O servo deu um sorriso de canto de boca para o rei, como se o fosse íntimo. Seja lá o que for que signifique de fato, algo parecia pairar nebuloso no ar.

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CAPÍTULO XVIII

JULIET

O sol nasceu forte na fortaleza Valouis, adentrando pelas vidraças recém-abertas do escritório. Juliet sentia o sol batendo em seu rosto, refletindo seus longos cabelos castanho-escuros e olhos esverdeados. Havia um guarda másculo e jovem à porta, mantendo-se firme. Ela aproximou do homem de forma sensual, pondo a mão por debaixo do vestido. Riu para ele.

– O dia está tão quente hoje, não? Não só o tempo, fiquei tanto tempo aproveitando dos vassalos do norte que até havia esquecido como as pessoas daqui também são mais quentes – ela passou os lábios em seu pescoço, descendo a mão pelo escudo dele que permanecia imóvel. Tentando resistir à investida. – Amo homens que fingem ser frígidos – sussurrou sensualmente.

O soldado exprimiu um leve gemido de prazer enquanto o tocava debaixo pela armadura, entrecortado por uma batida forte e reconhecível à porta. Ele se recompôs no exato instante, ela deu um riso e se afastou da porta que foi aberta. Entrou seu primo Sebastian II, de cara amarrada, muito carrancuda e enrugada, o tempo fora muito severo com sua beleza escultural de quando era jovem. Segurava um envelope em mãos, foi até a mesa.

– Juliet, temos um assunto sério a tratar.

– Nós sempre temos – debochou ironicamente, jogando-se de qualquer jeito na cadeira a frente do rei de Winster, em claro desinteresse. – Mas fale, Majestade.

Ele poupou palavras, virou o envelope para cima a mostrando o selo preto com o borrado desenho de coroa sobre uma cruz atravessada por uma espada.

Davis! Pensou na hora alterando subitamente o semblante.

– Esse selo é de um Davis, mas de qual?

– Adolph VI... – concluiu o rei, já ávido para abrir o envelope. – Faz tempo que os Davis não mandam notícias... só temo que seja o que eu acho que é.

Os rumores que corriam por Winster davam conta da morte de Rhael. Mas boatos de mortes de nobres, reis e rainhas circulavam a toda hora por vilarejos,

cidadelas e pelos campos. Mas daquela vez, com Rhael, parecia ser diferente. E era. O Valouis abriu a carta. Seu rosto inexpressivo tomou um semblante de ódio, de raiva pura com o que lia. Sequer teve palavras para contar-lhe, amassou a carta com uma das mãos e a rasgou com ira em seguida.

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– Do que se trata, Sebastian?

– Rhael Davis está morto! Aryn está governando.

O choque de Juliet não fora maior do que a ira de Sebastian pelo fato.

– O Davis e o Valouis? Ele viveu para isso!? – Havia um espanto nítido em sua voz. Como toda Valouis nascida após Aryn, cresceu com o temor de que ele chegasse ao trono de Zardan e dali suas ambições não se contentassem. Mas ela jurava que os próprios Davis dariam conta de pará-lo antes que chegasse ao trono.

– O irmão morreu, ele seguiu vivo... O irmão morreu não! Eu aposto com você que aquele Davis legítimo, o tal de Nayan, Nyon, sei lá o quê, foi assassinado! E se duvidar pelo próprio Aryn! – bradou numa ira espantosa. – Mas o que se esperar de uma deformação como aquela não? – passou a circular pelo ambiente, desconcertado. – Ah se eu tivesse ganhado aquela justa... Eu teria matado aquela praga antes mesmo que saísse do ventre da minha irmã! Ele matou a minha irmã de qualquer jeito! Se ela morresse sem dar luz a aquilo seria melhor a todos nós!

O silêncio perpetuou alguns instantes. Juliet aproximou-se do primo por trás, apoiando a mão em seus ombros. Ambos fitavam a janela.

– Você sabe o que um rei metade Davis e metade Valouis no Oeste significa, não? Principalmente para um rei velho e sem herdeiros legítimos como você.

Sebastian fechou a cara, zonzeava o olhar pelo ambiente, a busca que uma resposta, que uma solução para um dilema invisível caísse do céu naquele instante. Mas não caiu. E Sebastian não responderia com ironias ou deboches, pois a idade sugara além de sua beleza, seu senso sádico de humor característico aos Valouis.

– Temo que saiba – silabou a claro contragosto. – Mas a carta é explicita. Todo grande burguês ou nobre de lá o detesta! O Oeste todo o detesta assim como nós o detestamos, pela mesma razão ainda por cima.

Está bem claro o que deve ser feito. Pensou consigo mesma. Antes que pronunciasse algo, gesticulou ao segurança-amante que saísse do escritório e ele o fez, fechando a porta. Ela andou pelo escritório alguns instantes até atrair a atenção dele.

– Quais as intenções do consorte de Zardan ao acrescentar detalhes extras nessa carta? – antes de dar a chance para o primo responder, o cortou. – Só não

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me diga que a idade também levou sua pouca inteligência porque aí fica difícil. Esse é o nítido convite para uma revolta, Sebastian.

Ele desvencilhou do assunto de forma hesitante e incerta.

– Não! Desde os tempos de Franchesco e Adolph IV, Zardan e Winster estão a quase duzentos em paz! Nós somos nações amigas, Juliet.

– Sim, mas até quando? Até Aryn visitar esse castelo, cortar sua cabeça e assentar naquele trono também? Ou você finge que não sabe dos ideais expansionistas dele desde que foi proclamado regente? Porque sim... poder para tirar um velhote, sem herdeiros, e principalmente: do mesmo sangue que ele...

Tentaria continuar, mas Sebastian a cortou ferozmente, irado de ódio.

– Nós não somos o mesmo sangue!

– São sim! Realismo é bom e eu gosto. Vocês são sim o mesmo sangue. Se ele não tivesse tanto seu sangue quanto o sangue desse Adolph VI aí, vocês não trocariam cartas nem se as nações estivessem ambas em chamas! – se exaltou, fazendo-se tão alta que toda a corte mal povoada poderia ouvir. Baixou o tom para concluir. – Meus corvos dão conta que os Medici se voltaram contra os Davis por Aryn... a essa altura, já devem ter conseguido apoio de alguns vassalos porque todos estão contra o rei. Se eles conseguirem impedir as outras casas de ajudar os Davis, nós temos homens o bastante para fazer um ataque. Será um único. Sem trincheiras, sem guerras que duram anos. Um único ataque e resolvemos esse problema.

Sua entonação argumentativa era ótima. Juliet costumava persuadir manipulando em prol de seus próprios interesses, exceto quando precisava fazer isso em prol de sua nação. Mais alguns instantes ficaram silentes. Sebastian deu uma ligeira afastada dela.

– Tudo bem. Conspiramos para uma guerra, matamos o Aryn e sua família, tiramos o misto do poder. E aí: quem sobe ao trono? Nós que já estamos muito fragilizados com nosso próprio país numa crise de alimentos e estrutura? Esse é o tipo de situação perfeita para casas oportunistas como as nossas – ironizou nessa parte aos risos. – ‘queridas’ Meryn, Hendrix e Dorian que se viraram contra Francis e Franchesco, por exemplo, se virarem contra os dois reinos. Você tem noção da guerra civil imensa na qual mergulharíamos? Aquelas guerras dinásticas dos tempos de nossos bisavôs seriam fichinha! Na mais certa das hipóteses, gerarmos uma guerra para derrubar o Aryn seria o fim das duas dinastias. E

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acabaria com um nobre sem nome e sem terra vasta no comando dos dois reinos. Seria o fim dos dias, só que numa versão dez vezes pior e mais brutal do que as que haviam há duzentos anos atrás!

Terminara de argumentar. Havia cansado Juliet que ironicamente, voltou a sentar na mesa com ar de deboche. Virou um jarro de água num copo de metal e se levantou, estendendo para o rei.

– Terminou? Deve estar com sede após gastar tanta saliva à toa. Eu ficaria –tomou a água ela mesma, suspirando em seguida. – Eu nunca disse que derrubando Aryn nós sentaríamos no trono. São seus ouvidos que já não são os mesmos de antes...

Deve ser a idade. Guardou para si mesma, aquela certamente não era a melhor ocasião para provoca-lo.

– Nós reviramos a nação vizinha do avesso e deixamos a anarquia tomar conta. Proposta genial, Juliet – zombou aos risos.

– Não. Nós o derrubamos e pomos um Davis legítimo no lugar – pegou na carta com dois dedos em semblante de irrelevância. – Ou você acha que esse tal de Adolph VI te informou toda situação de Zardan por ‘mera cortesia’?

Juliet foi para sair da sala. Estava exausta, mas parou segurando a maçaneta.

– Alias, Sebastian, já parou para pensar quão diplomático seria se o Aryn se dá conta ou descobre de uma vez que fomos nós que matamos seu genro?

– Você me prometeu que a culpa recairia nos bárbaros!

– E recaiu. Até porque nem chance, nem razão para se defender eles têm. Mas é uma questão de conveniência: se havia um pão e sumiu após meus dois maiores inimigos o verem, e eu só posso cortar a mão de um deles, eu vou cortar a de quem eu for menos com a cara ou do quem me for mais problemático. A fama

do roubo do pão ainda está com os bárbaros, mas se ou quando ao Aryn achar que bem o convém, ele vai encontrar os farelos que estão debaixo de nossa cama.

O branco dos olhos de Sebastian se avermelhou. Estava irado de raiva agora. Sua prima seguia parada à maçaneta, olhando-o firme.

– Já pode sair. Seus machos não têm o dia todo para ti, priminha.

– Sim, para uma dama como eu, eles têm – debochou entre risos. – Mas lembre-se... Nossa pose como nação amiga de Zardan e dos Davis continua intacta,

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mas até quando? Até ele se lembrar da real origem, se virar contra nós, derrubar nosso trono e massacrar nossa dinastia, meu primo. Use sua mente apocalíptica para ver a merda que daria ele reunificando as duas coroas. Com licença.

– O Aryn nunca pisará em Winster de novo – se expressou categoricamente.

– O bom filho... bem, você já conhece o ditado – e saiu batendo a porta.

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CAPÍTULO XIX

MYRCELLA

A jovem princesa sentia-se solitária. Sentava-se no banco de couro do salão imperial, ao lado do irmão Tristan. Do escritório, ouvia uma leve discussão ocorrendo há meia hora. Já haviam se passado alguns meses da morte de Rhael e que a rebelião dos vassalos nortenhos inha ocorrendo, mas o clima tortuoso de tensão em Zardan e na Corte, como um todo, dava a ela a estranha sensação de que o tempo não estava passando.

– Eu estou com medo, Myrcella – disse Tristan. Ela segurou-lhe a mão suavemente, abriu um sorriso entre a feição chorosa.

– Não há o que temer. Tudo ficará bem, viu? – o passava uma certeza inexistente.

– Eles vão tentar nos machucar novamente?

Ela fez que não. É mentira Myrcella, você pode até enganá-lo. Mas não pode

enganar a si mesma. Uma semana antes, um homem nunca visto antes no castelo, tentou esfaquear Aryn enquanto dormia, mas falhou e foi instantaneamente morto

pela guarda antes mesmo que alguém soubesse quem o havia mandado. Os bárbaros

não atacam dessa forma... A culpa caiu nos Medici.

Aquele ataque fracassado só não fora mais traumático que o trágico jantar de duas noites antes; a tensão que envolvia o reino fez Sansa convencer Aryn da utilidade de servos-provadores que tivessem acesso às refeições da família real antes deles por razões óbvias. Quando os pratos foram postos à mesa, os provadores das comidas dela, de Tristan e de seu pai caíram imediatamente mortos vomitando sangue sobre a mesa. Aquela ocasião determinou a decisão final de Aryn. Iria para o sul do reino, levando Tristan consigo, para ‘politicar’ junto com os vassalos e protetores do sul do reino.

– Você não virá conosco, mana?

– Não – o esboçou um sorriso, acalentando a bochecha da criança. – Eu, a Laurel e a mamãe ficaremos aqui. Manteremos sua cama quentinha para quando vocês voltarem. Aproveitem a viagem, os mares do sul são lindos.

Ele abriu um sorriso singelo, animado.

– Vou conhecer os mares do sul? Eu nunca vi o mar, Myrcella!

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– Exagerado – ela devolveu entre risos. – Há saída para o mar a um dia de cavalgada ao oeste daqui, mas você era muito pequeno quando foi.

Continuaria conversando com o irmão, até que de dentro do escritório ouviu uma voz masculina grave e baixa questionar o rei.

– A relação de Zardan e Winster segue inabalável, o senhor cogitou a ideia de pedi-los reforços para conter a crise, Majestade?

– Não. E nem cogito. – A voz abafada respondeu, baixando o tom.

– Senhor, como um de seus conselheiros, acho prudente questioná-lo o que muitos querem saber: há alguma intenção de sua parte para com Winster?

Myrcella estava atenta à conversa. Sinalizou para o irmão se calar, ele a obedeceu. Aryn começou a falar bem baixo, pronunciando coisas praticamente inaudíveis que nem ela, nem o irmão ouviam ao certo. Quando o dialogo entre o rei e o conselho voltou a tom audível, ela ouviu do conselheiro:

– A verdade é que o reino está em crise. Para os winsterlens, é claro que mais cedo ou mais tarde você irá atacá-los. E ouça o conselho dos sábios, meu rei, nada motiva mais a ação de um Valouis do que o medo de um Davis.

Tudo silenciou e logo Aryn saiu pela porta exibindo um sorriso forçado no rosto. Aproximou-se de Myrcella e beijou sua testa, pegou nas mãos de cada um deles com um olhar dócil e tom de voz calmo. Sua mãe entrara no cômodo de mãos dadas com Laurel.

– Sejam boas meninas – pediu às duas filhas. – Eu e o Tristan vamos ao sul do reino por algum tempo, mas vocês ficarão bem. O papai ama vocês.

Myrcella e Laurel abraçaram forte o pai, ela notou uma lágrima que queria escorrer do olhar de Sansa. Mas a matriarca se manteve firme, Myrcella a mão gelada de Tristan agarrar seu ombro. Virou-se a ele.

– Eu tenho medo, Myrcella – sua voz embargou-se. As lágrimas já o pesavam nas pálpebras.

– Não precisa ter. Tudo dará certo – o tranquilizou.

Pelo meio da tarde estava toda a Corte do lado externo do castelo vendo o rei e o príncipe os saudarem enquanto as carruagens surgiam à entrada. Adolph cochichava com Clements e dava tapas amigáveis nos ombros de Aryn, expondo um sorriso tão falso que beirava o cínico, Sansa estava próxima aos cavalos de

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mãos dadas com Laurel, ao lado de Myrcella, parecia olhar com medo ou coação para o tio que vez ou outra a encarava de relance.

Aryn era amigável cumprimentando a todos ao jardim, dos nobres a seus próprios servos, sempre sorrindo singelamente para eles e fazendo promessas de

tempos melhores que – para ele –, não pareciam ser meras promessas vazias. Mas

eram. Metade da tropa iria com o rei naquela viagem. Um escudeiro rumou até Aryn antes que ele entrasse na carruagem de mãos dadas com Tristan.

– Majestade... – cochichou de modo que Myrcella ouvisse bem baixo. – Um soldado indagou-me que talvez não seja seguro deixarmos o castelo essa tarde. Há relatos de tempestades e nevascas severas em alguns pontos...

– Mas fez sol aqui o dia todo! Só agora que o tempo fechou! – protestou, erguendo um braço para o céu que, de súbita, fora tomado por nuvens negras.

– Talvez não seja sábio deixarmos o castelo. O que pondera, Vossa Graça?

– Que você tem toda razão – deixou o lado racional falar por si em seguida. – Porém que não temos nenhuma escolha.

A viagem seria breve, e dada à urgência, não havia razão para hesitar. Os tratados seriam ágeis de ser fechados e não haviam empecilhos previstos. A previsão era de que, no máximo, em uma semana e meia teriam regressado.

– Abram os portões! – Bradou um servo de voz grossa. E os portões de ferro começaram a ser erguidos conforme giravam uma alavanca metálica que os içava.

E com um sorriso leniente, porém repleto de falsas certezas, Aryn deixou acenando dentro de sua pomposa carruagem que, estrategicamente, em nada diferia da dos homens que o acompanhavam. O coração de Myrcella disparou, apertou firme a mão da mãe. Após todo o comboio partir, o olhar de Laurel estava perdido. Extasiada, era muito apegada ao pai e ao irmão gêmeo, estava prestes a cair numa crise de choro pela aflição desconhecida que começara a sentir.

– Baixem os portões! – bradou a mesma voz.

E então, Laurel caiu num choro repentino e desconsolado. Com todas as atenções voltadas para a histeria da garotinha, a rainha manteve a pose, conforme Clements ia da sobrinha com extrema descrição. Myrcella não sabia se dava atenção à irmã em prantos ou ao tio próximo a mãe.

– Precisamos conversar.

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– Não há nada que precisemos conversar – retrucou a sobrinha ríspida, que, antes da resposta do tio, foi até as duas filhas e pegando na mão de ambas, olhou firme para Laurel pretendendo consolá-la.

– Não há o que temer, Laurel. O papai foi ali, mas logo ele voltará. Ficará tudo bem – fez uma pausa. Myrcella era detalhista ao ponto de perceber que os olhos tom de âmbar de sua mãe estavam muito ligeiramente voltados ao tio dela. – Principalmente, porque eu sou a rainha aqui.

Sua voz se fez alta e clara, explicitando um leve tom ameaçador. Com as palavras da mãe, Laurel conteve o choro, abraçada por ela. Mas não foi apenas a garotinha desolada a sentir-se agregada pelas palavras de Sansa.

• • •

Após a partida de Aryn, uma forte tempestade que já passara trouxe ventos gélidos e inquietação à fortaleza. O dia se pôs muito mais cedo do que o comum numa tarde no final da primavera e agora, Myrcella andava com uma vela acesa, na penumbra, entre as árvores e jardins dali. Gotas caiam das folhas e quase apagavam

sua vela. Ela olhava para trás a todo instante, como se temesse muito ser vista. Os

portões fecham em meia-hora, se eu estiver certa, essa pode ser nossa única chance. Pensou.

Andava como se suspeitasse de algo. Na verdade, ela seguia o rastro de um pequeno grupo de soldados bem mais a frente dela, que andavam no jardim entre restos de madeiras cortadas e de construções simplistas para servos que foram demolidas e substituídas há algum tempo. Myrcella estava proibida pela mãe de investigar algo ou ficar andando as espreitas – como ela estava agora –, mas era mais forte do que ela. Suspeitava que ‘alguém de dentro da Corte’ (não queria admitir nem para si mesma, mas no fundo, se referia a algum de seus tios) estivesse por trás de algo ardiloso que andava ocorrendo ali.

Enquanto a tempestade ocorria, ela abordou a mãe num dos quartos e a questionou se ela tinha suspeita sobre alguém de dentro. Ela negou categoricamente durante as várias investidas da filha, até que após dar um berro com a jovem e implorar para que ela se calasse, Myrcella manteve insistência e perguntou de novo. Ela então admitiu que suspeitava de alguém de dentro, mas que não podia provar ainda, e que enquanto ela fingisse não suspeitar de nada, Sansa e as três filhas estariam seguras em meio a corja que as cercava. Andava a passos largos, porém muito sorrateiros, enquanto arquitetava teorias conspiratórias mentalmente. Tinha uma teoria em mente para cada nobre da corte, tentava não pensar na hipótese mais obvia de ser algum de seus próprios tios, mas não

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conseguia. Quando deu por si, ouvia passos ao redor dela na mata. Como se agora ela estivesse sendo seguida.

– Oh meu Deus!

Girou ao redor de si mesma em desespero, via algo a rondando pela moita. Até que saiu por entre as moitas um cachorro do mato, que a atravessou correndo e seguiu pela mata. Ela até ensaiou um suspiro aliviado, quando se deu conta que após o susto do animal, já não ouvia passo algum. Nem dos homens que ela seguia. Tratou de acelerar rumo ao nada. A chama da vela estava mais fraca e isso a afligia, ficar perdida ali não seria nada bom para ela. Até que na saída da mata, vira após um trecho descampado, a entrada em formato de caverna de uma velha passagem secreta que estava embarreirada por uma tábua de madeira.

Aquelas passagens estavam ali por mera simbologia. Foram usadas pelos Davis como espécie de fuga durante as guerras dinásticas de mais de duzentos anos antes, quando os Valouis invadiam o castelo para massacrá-los. Pelo que se lembrava, Adolph III – o pai de Adolph IV –, fora o último a usar as passagens para escapar da ira do rei Franchesco. No entanto, atualmente, diziam que a construção andava instável, com rachaduras se tornando maiores, podendo desabar a qualquer instante. E assim, ninguém se atrevia a chegar perto.

Está errada, Myrcella! Ninguém está aqui, esse trecho está abandonado, seja lá porque razão você seguiu aquele soldado, nessa parte abandonada ele não está. Bufou nitidamente desapontada. Deu as costas para retornar ao castelo, mas ouviu o barulho de madeira caindo no chão. Quando virou novamente, viu um dos soldados que ela seguia saindo da passagem secreta. No instinto, tratou de se esconder melhor atrás de uma árvore e observar pela fresta. O homem parecia olhar a todos os cantos atentamente. Pegou a tábua, que derrubara saindo dali, e colocou-a exatamente no mesmo lugar. Deu uma nova confiscada para certificar-se que ninguém estava por perto e saiu ágil rumando a algum lugar..

Myrcella estava certa. Algo havia ali. De certo, os outros três soldados que estavam junto desse que ela seguia também haviam entrado naquela passagem para sabe-se lá o quê.

– Então eu estava certa – sussurrou baixo. Estava na dúvida cruel se cederia a sua curiosidade ou se voltaria ao castelo fingindo não ver a ocasião suspeita. – Anda Myrcella... anda! – batia o pé, nervosa. – Se minha mãe não notou que eu sumi ainda, daqui a pouco já vai ter posto a corte toda atrás de mim. Decide!

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Olhou para todos os lados. Ouviu corvos negros regorjearem no céu, olhou para seu tórax, vendo um colar prateado em forma de metade de um coração. Engoliu em seco a vontade de chorar que a bateu quando olhou para aquilo; seu noivo Robb a havia dado o adorno que se encaixava perfeitamente noutro colar que tinha guardado para si, formando um único coração, quando juntados. Infelizmente, a outra parte do colar, fora enterrada junto dele

Com o rosto angelical do falecido perturbando sua memória, escorreu uma lágrima. E de repente desatou a correr ágil pela grama descampada, guiando a vela com uma mão, puxou a tábua com outra e pôs no chão, entrou no ambiente que era inóspito e abstruso, o constante barulho de goteira caindo contra uma poça d’água era ouvido ao longe. A chama da vela fazia a sombra de Myrcella projetar nas paredes irregulares, recobertas de um musgo negro pegajoso.

Ouvia conversas e vozes bem abafadas ao longe. Os trechos sinuosos e irregulares do ‘quase labirinto’ impediam o eco das vozes. Quase escorregou nos cinco degraus também cobertos pelo musgo escorregadiço, seguiu por espaços estreitos, ainda mais escurecidos, agora algumas vozes lhe eram nítidas: de Adolph e Clements. Afligiu-se conforme andava. Aquele corredor fechava num trecho circular que dava a outro no qual ela entrou. Neste, que era estreito e bem mais cumprido que os demais, havia tochas em algumas paredes próximas a uma saleta aberta, no qual todos os corredores abocavam. Da parede dali, iluminada pelas tochas, viu as sombras de muitos homens reunidos próximos, conversando.

O nome de Aryn pareceu ser dito por um. A palavra ‘aberração’ foi esbravejada alto por outro homem, e o coração daquela menina começava a disparar. O recinto sinuoso e obscuro aumentava sua respiração, que ela tentava conter. Seguia a passos muito lentos. Ouvia o barulho de seu próprio coração mais do que as falas ainda distorcidas dos demais, aproximou-se até ficar escondida numa parede. Da saleta de terreno irregular, Clements e Adolph conversavam próximos a três ou quatro nobres e dez soldados que ficavam à espreita de infiltrados como Myrcella. Dali tudo a estava nítido.

– Dos soldados que já estão na corte, seis décimos já estão conosco – argumentou Clements com Adolph e o resto dos homens. – Nós temos que agir rápido! Eu receio que a Sansa já desconfie de mim, se nós agirmos agora, nós derrubamos o Aryn e toda a família dele em dois únicos golpes!

– Eu discordo. Acho que não é o momento oportuno, se nós esperarmos ele voltar do sul... – sugeriu um nobre, interrompido por outro.

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– Ele voltará do sul três vezes mais forte do que foi! A casa Versalle claramente é uma das únicas que o tem por rei predileto. Vocês sabem dos boatos... Não o negará um homem para a própria guarda se o Aryn assim requisitar. A hora é agora! Nós atacamos e derrubamos o Aryn dentro da própria fortaleza, de modo que ou nós o impedimos de voltar do sul, ou nós o impedimos de sentar no trono quando voltar a essa corte.

Myrcella estava boquiaberta. Nunca gostara tanto dos tios, especialmente de Adolph. Mas, além das suspeitas óbvias que tinha, jamais esperaria isso deles.

– Nós faremos o que com o Aryn? Exilamos para fora da Península? – claramente este era o mais pacifista dos conspiradores. Porém muito discrepante.

– São óbvias – Adolph respondeu. – Nós esmagamos ele e sua merda de família de olhos meio verdes. De forma mais clara possível, nós o mataremos.

O choque de Myrcella já estava completo. Sentiu algo a percorrer por todo o corpo e sua mente ficou zonza, com a visão embaçada. Por um instante, não conseguiu ouvir nada além de seu próprio coração latente. A mão que estava segurando a vela tremia, a outra apoiou com força no colar de meio coração para se equilibrar. Quando achou que seu choque estava completo, não estava.

– Nós o matamos, só que não do jeito que eu matei o Rhael – confessou em seguida. – É apenas uma mera questão de tempo até o Aryn se dar conta que o Rhael morreu com eu o envenenando. E se ele descobre isso antes de nós o atacarmos... Podemos perder tudo.

Antes que a frase fosse concluída, um barulho assustou a todos. Foi um som de metal contra o solo e os olhos de Myrcella se arregalaram, olhando para o chão, em suas mãos não estava mais o colar que Robb a dera, pois ele acabara de cair. E agora os olhares de todos se voltaram com ela no esconderijo.

– Não... não... – disse baixo, recuando. Seus olhos estavam chorosos.

– Myrcella... – Clements estava totalmente sem palavras.

– Peguem-na! – berrou o tio do rei para os soldados. – Agora!

Todos os homens correram atrás de Myrcella que jogou a vela no chão e desatou a correr o mais rápido que pôde. Ouvia passos no piso escorregadio, olhava para trás enquanto refazia todo o caminho.

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Assassinos! Assassinos! Eles mataram meu avô... Quase tropeçou nas próprias pernas, olhou para trás vendo um soldado correndo atrás dela, cortando a

escuridão com a chama de uma tocha. Eles querem matar meu pai! Eles não podem!

Olhou para trás uma última vez, escorou a mão numa parede e curvou para o corredor circundado. Em meio à escuridão, assustou-se ao ver a luz de uma tocha a sua frente. Os três soldados que haviam sumido de sua vista, estavam agora em seu caminho. Myrcella empurrou um deles, mas quando foi tentar atravessar o outro, algo abrupto a parou. Sentiu algo gélido e pontiagudo atravessar-lhe costela.

Uma lágrima escorreu por seu rosto; seu olhar pareceu embaçar e os sons a sua volta se tornaram zumbidos inaudíveis. Olhou para a lamina atravessada em seu tórax, e dali, para o soldado rindo com as mãos ensanguentadas. Por uma leve fração de segundos, a nitidez voltou a seus olhos, e a dor estridente a possuiu assim que o algoz puxou a adaga de seu corpo. Na escuridão do labirinto, o corpo tombou imóvel.

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CAPÍTULO XX

SANSA

– Myrcela!!! – berrava a rainha desesperada pelos salões. Erguia a calda do pomposo vestido conforme descia a escadaria agilmente. Já havia horas que a filha tinha

sumido sem ninguém dar notícias dela. – Com licença, você viu minha filha? Eu estou desesperada! Ela sumiu – implorou a um nobre aos prantos.

Ele negou com a cabeça. Questionou servos, soldados que perambulavam de um canto a outro com estranha inquietação. Correu para fora, pelo amplo jardim até o lago da fortaleza.

– Myrcela!!! – berrou com toda sua força, seus olhos já estavam vermelhos pelo choro. Não tinha ideia do que havia ocorrido com sua filha, mas algo de dentro a dizia que era algo sério. Correu dali para o campo, subiu na Torre do

Estandarte de onde via os soldados ao portão. Ela está nessa fortaleza! Não haveria

como sair ou ser retirada daqui... Raciocinou vendo soldados a postos na muralha. Por

Deus! Eu já revirei o castelo todo!

Refez todo o caminho pelo castelo até parar no corredor de Clements. Ouviu-o inferir o nome de Myrcella, antes que entrasse no quarto e o perguntasse se ele sabia de algo, foi um milésimo de segundo até este responder por si próprio.

– A Myrcella ainda está viva? Mas como assim? Eu vi ele esfaquear ela!

Ficou boquiaberta atrás da porta. Grudou a mão na maçaneta rústica de madeira, mas estava trêmula demais para apertá-la e entrar no quarto.

– Ela está no leito. Se a Sansa a encontrar antes de nós e enviar um corvo sequer para o sul, nós estamos perdidos! – ouviu a voz de Adolph lá dentro.

– Nós matamos a Myrcella antes dela contar alguma coisa. E adiamos o sequestro da fortaleza para amanhã, é o mais sensato! Dê a ordem, Adolph.

– Para agora.

A rainha saiu correndo sem rumo. Estava estarrecida, sem ter o que fazer. Entrou em seu quarto correndo até uma gaveta, de onde rapidamente tirou duas adagas e as escondeu debaixo do longo vestido. Saiu e desceu alguns degraus de uma escadaria, empurrando quem estivesse no caminho, até encontrar Laurel vagante num salão. Pegou a filha bruscamente, já a puxando pelo braço.

– Mamãe, mamãe, o que foi?

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– Mamãe não tem tempo para explicar. Vem comigo, Laurel, rápido!

Ambas andavam velozes pela corte. Sansa pegou numa tocha afixada num rústico candelabro de um corredor e correu, notou os passos de um soldado que começou a andar mais rápido atrás dela, como se a estivesse seguindo. Dali para a enfermaria parecia ser um trajeto interminável.

– Me escute bem, Laurel. Você não vai olhar para trás – cochichou entre os dentes.

– Mãe, eu estou assustada. O que está havendo? – a menina apavorou-se.

– Se a hora chegar, você vai apenas correr e se esconder de todos ao máximo que puder. Vai se esconder e na primeira brecha que ver, vai fugir dessa corte sem que ninguém que te veja – disse como quem pressentiria que fossem suas últimas instruções dadas à filha, entre os dentes e sem olhar para trás. Sabia que o soldado a seguia ágil com a mão na bainha de sua espada. – Você vai sair daqui e vai pedir ajuda a um amigo do papai lá fora. Você me entendeu, filhinha?

Ela olhou firme para a cara da mãe, com o pavor explícito. Sansa não pôde se dar ao luxo de fraquejar. Seguiu de cabeça erguida e firme, acelerando o passo conforme seu salto barulhava no corredor.

– Vamos brincar para ver se você entendeu as instruções da mamãe. Eu conto até três, você solta das mãos da mamãe, corre até os leitos e se tranca lá. Eu vou gritar para você parar e me obedecer, mas você não vai parar. Você precisa confiar em mim, Laurel, por favor – não olhara para trás, mas pela sombra da parede viu que outro soldado se juntou ao primeiro que a perseguia. – Um, dois, três... Corra.

Laurel puxou das mãos da mãe e desatou a correr pelo corredor. Sansa deu uma parada, começou a berrar pela filha.

– Laurel, Laurel! Para, Laurel! Não seja levada!

A garota fez exatamente como combinado e não parou. Correu até quase sumir no corredor, Sansa começou a correr atrás dela, aos berros. Os soldados pararam desentendidos. Ao longe, quase curvando o corredor que Laurel já tinha virado, ouviu que os perseguidores já haviam se dado conta de que era um truque e agora eles corriam atrás dela. A menina empurrou esforçadamente uma porta de madeira destrancada num corredor. Entrou, logo Sansa entrou também no quarto assombroso. Bateu a porta e viu Myrcella, com dificuldades, se erguendo da cama.

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– Filha, filha, você está bem! O que houve?

– Eles são bandidos! Eles tentaram me matar, mãe. Foi a Christine quem me trouxe para cá, ela me achou... e se não fosse ela, mãe... – Myrcella exprimia com dificuldade, gemendo de dor. Sansa a levantou.

– Você tem que sair daqui! Você tem que dar o recado a seu pai do que está havendo! Conte-o tudo, Myrcella.

Myrcella começou a chorar, abraçou forte a mãe.

– Eu não consigo! Eu não posso, mãe. Você tem que ir com ela.

– Não! Eu não posso deixar a corte, eu não posso deixar vocês.

– Eles vão matar você, mãe! Eles vão matar a Laurel! Eles não vão descansar enquanto não matarem a todos nós! – ela berrava histérica.

– Eles não podem me matar! Eu sou a única moeda de troca que vai impedir o Aryn de decapitar esses traidores quando vencer! Por favor, Myrcella, você é nossa última esperança. Pelo Robb, faça pelo Robb! Por mim. Vá, você precisa alcança-lo, você precisa conta-lo a verdade, ou todos nós vamos morrer.

A primogênita não parecia fraca, debilitada pelo corte, havia tirado forças de onde não poderia ter. Levantou-se sentindo uma forte pontada na área do ferimento. Pegou firme a irmã no colo e beijou sua testa.

– Você ficará bem, maninha. A mamãe cuidará de você.

– Eu não quero que você vá. Não vá, Myrcella – implorou chorosa.

Sansa pegou a filha menor no colo. Beijou a outra na bochecha.

– O plano é simples... os soldados estão corrompidos, não?

– 6 em cada 10 se bandearam secretamente para os traidores.

– Ótimo. Então qualquer um que se ponha em seu caminho, além de eu e sua irmã, esfaqueie para matar – comandou enquanto passava a primogênita uma adaga, discretamente pega por ela. A porta começou a bater incessantemente.

– Lady Sansa, está aí? Abra a porta! Um cortesão viu sua filha. Quer falar urgente com Vossa Graça – berrou um soldado do lado de fora, batendo na porta trancava como se quisesse estourá-la.

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– Começamos por ele – sussurrou para as filhas, sacando a outra adaga e apertando firme junto ao vestido. – Já vai! Um instante, acho que acabei de tropeçar e dar mau jeito no pé! – Gritou alto para o homem ouvir. Voltou ao plano. – Repassando brevemente: corremos ao máximo que der para fora. Os soldados ao portão devem ter ordens expressas para não nos deixar sair, os neutralizamos. Se conseguirmos um bom cavalo, você e a Laurel fogem juntas, se não, você vai sozinha.

– Milady, abra essa porta! – o soldado ordenava persistente.

– Já vai! Um instante, já vai. Está tudo escuro aqui!

– Um recado especifico para o papai? – questionou baixinho.

Pela primeira vez, Sansa tinha um misto de impotência e hesitação, não sabia ao certo o que dizer. E quando soube, sua voz embargou e de seus olhos escorreram algumas lágrimas.

– Diga... o diga o quanto eu o amo – limpou uma única lágrima.

Subitamente, se escutou o barulho da porta cair e o soldado invadiu portando uma espada. Sansa foi mais rápida, e já se virou a ele ficando a adaga em seu crânio. Puxou e saiu correndo dali com as filhas. Saiu do corredor sem ser vista, pegando um atalho por outro, até descer uma escadaria do salão. Um soldado se pôs na frente dela, puxando-a pelo braço. Ela o socou na cara, se desvencilhando e seguiu correndo.

– Sor Adolph, Sor Clements, elas estão fugindo!

Enquanto corriam pelo salão, Clements surgiu à escadaria, se pendendo sobre a madeira, com diversos soldados armados com lanças e espadas atrás.

– Peguem-nas! Elas não podem fugir daqui.

Sansa nem olhou para trás. Fugiu, saindo do interior do castelo e correndo pelo gramado. Seu coração parecia se apertar, o ambiente parecia ainda mais extenso. Outros homens foram de encontro a elas, um deles, de cara, tomou Laurel de seus braços, já pegando uma adaga para apunhala-la.

– Minha filha não!!!

Ao ouvir o berro da mãe, Myrcella, que estava mais a frente, virou de costas, e apunhalou o pescoço do conspirador que caiu morto com Laurel nos braços.

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Sansa se jogou, pegando a filha. A primogênita estava parada sem reação, vendo o sangue da faca pingar em seus pés. Agora mais e mais homens se aproximavam.

– Corra, Myrcella! Corra! Vai, vai agora! – berrou Sansa, implorando. – Vai!

Myrcella a deu as costas. Com o coração apertado, Sansa viu Myrcella correr para longe dali. Tentou reerguer-se do chão com a filha, jogando a faca no solo. Enquanto de um canto, os homens surgiam com os líderes da conspiração atrás deles, em outro, Myrcella corria sem rumo para fugir.

– Vai, Myrcella, vai! – falava para si mesma, chorando. Em instantes, os soldados agarraram mãe e filha, as separaram ao mesmo tempo em que outro grupo corria atrás de Myrcella. A rainha berrava estendendo o braço a mais nova que chorava.

– Minha filha não, não façam nada com ela! Não! – chorava.

Havia perdido e sabia disso, os soldados as separavam. As arrastavam dali, mas bem ao longe, Sansa escutou um grito masculino, desvencilhou um braço que o soldado agarrava e socou no nariz outro à frente que embarreirava sua visão.

Dali, vira os três soldados da guarida mortos. Enquanto Myrcella fugia para fora da fortaleza montada num grande cavalo branco.

– Sua vadia! – se reergueu o soldado, furioso com o nariz sangrando.

Ela esboçou um leve sorriso esperançoso, e antes que pudesse se dar conta, o soldado a acertara tão forte que ela perdeu todos os sentidos.

A conspiração havia, de fato, mostrado suas garras.

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CAPÍTULO XXI

ARYN

Os ventos frios da madrugada enregelada e o sacudir ininterrupto da carruagem impediram o rei e seu futuro regente de caírem em sono profundo. Mas os olhos de Aryn se abriram sobressaltados quando ouviu o relinche alto de um cavalo. A sacudida derradeira e a repentina parada o fizeram acordar assustado.

– Parem, parem todos! – ouviu uma voz masculina ao longe, que agora, fazia Tristan acordar aos poucos, sonolento.

– Pai, já estamos no sul? – o príncipe ainda se espreguiçava.

– Não, filho, chegaremos em horas. Você está bem?

– Sim. Só tive um pesadelo – iniciou cabisbaixo, mas buscou encarar o pai na escuridão da carruagem, sem dar importância ao que diria. – A Myrcella caia morta numa poça de sangue à entrada da fortaleza... e uma mulher morena, alta, de olhos verdes me dizia que um misto nato não queima no fogo.

Algo naquele sonho atormentara Aryn naqueles instantes que nada fez sobre a repentina parada da carruagem. A mulher dita por Tristan tinha a exata descrição que Rhael dava a Aryn quando este o questionava de sua mãe, que nem ele, e muito menos seu filho, jamais conheceram.

– Desviem da estrada real! – gritou uma voz masculina do lado de fora.

– Fique aí. Já volto.

Aryn saiu em seguida, viu do lado de fora todo o comboio parado. Pôs os pés para fora da carruagem na irregular e areenta estrada real, dando com cinco homens bem afeiçoados, vestidos como camponeses, que barravam o caminho portando tochas acessas assim como os escudeiros mais à frente do comboio.

– A tempestade desta tarde acidentou trechos da estrada, logo à frente. Um amigo nosso morreu, caindo no despenhadeiro aberto – gritou um dos homens na nítida intenção de que toda a horda de soldados o ouvisse.

Um dos cavaleiros saiu de seu cavalo, dando as rédeas a outro e foi entre os animais e carruagens até o rei, misturado aos homens.

– Majestade, temos problemas. Esses cavalheiros dizem que a estrada foi acidentada pela tempestade... – logo outro lacaio e seu conselheiro da carruagem detrás da de Aryn se aproximaram para palpitar. O servente o cortou.

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– Mas pelo que vi das nuvens, as chuvas não deveriam ter caído nessa parte mais ao sul – protestou, demonstrando seu vasto conhecimento na área.

– Nós temos algumas opções como seguirmos agora pela mata, conforme eles aconselharam; aguardarmos o nascer do sol para partirmos pela mata, ou seguirmos pelo caminho não recomendado, o que pode provocar uma tragédia.

A última decisão era totalmente incogitável e o rei sabia disso. Se possuísse menos boa fé, mandaria alguns poucos de seus homens verificar as condições da estrada antes de decidir seguir pelos sombrios caminhos da mata ou pela estrada. Mas não arriscaria a vida deles. O conselheiro, idoso, de barba loiro-esbranquiçada e voz rouca, ponderava coçando a barba.

– Creio que aguardar ao nascer do sol seria o mais prudente, Majestade. Porém, não sabemos se os vassalos traidores mandaram seus homens nos seguirem até o sul, já que os rumores da viagem se espalharam rapidamente pelo reino. Além de claramente atrasar os nossos planos.

Aryn dava ares nitidamente indecisos. Ponderou consulta-los, mas apenas o traria dor de cabeça.

– Majestade? – retomou o cavaleiro. – Alguma decisão?

– Questione aos homens se a mata é segura, por favor.

O cavaleiro assentiu, saindo. Àquela altura, um burburinho estava alto nas partes mais traseiras do comboio, onde os homens pouco sabiam das razões da parada. Foi abaixando aos poucos. O cortesão foi at[e os camponeses.

– O rei os inquere se os caminhos da mata são seguros.

Os camponeses se entreolham. Um deles deu um passo à frente.

– Sim. Se houvesse o que temer, não estaríamos aqui agora, ora essa. O vassalo das terras-centrais tem zelado muito bem por essa parte do território. – disse o ruivo com um sorriso de escárnio surgindo à ponta de seu lábio.

Ele falara alto demais para o que o rei pudesse ouvir, sendo que claramente os olhares dos camponeses estavam voltados à indecisão de Aryn. O cavaleiro se agachou o prestando reverência, em agradecimento, e voltou até o Davis.

– Eles parecem muito… instruídos, muito prolixos, para uns meros camponeses, não acha? – ouviu bem ao longe de algum dos nobres.

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– O que acha que fazemos? – consultou a opinião de todos. Um falatório confuso, entrecortado por todos, foi ouvido. Cada um tinha uma sugestão diferente, até o conselheiro interromper, falando por cima.

– Achamos melhor irmos pela mata mesmo. ‘A noite é escura e cheia de horrores’, como dizem em uns cantos além dessas terras, porém ainda vale esses terrores a sabe-se lá quais problemas teremos se ficarmos aqui, vulneráveis à espera do amanhecer, ou da quantia exorbitante de homens não ociosos que perderemos se arriscarmos a estrada acidentada.

Infelizmente aquele tipo de incidente era reincidente por ali, as áreas de florestas temperadas e campos eram bem íngremes. Os trechos desmatados para a construção de estradas de Zardan foram feitos a olho por algum rei Valouis ainda enquanto as duas nações ainda eram uma, tornando incidentes como fendas abertas em estradas, após tempestades, um perigo para homens, que eram simplesmente ‘devorados’ pela terra quando ela cedia literalmente aos seus pés.

– Então vamos pela mata – decidiu após ligeiros instantes de demora. Aquilo o remetia ao que houve com Alisson, que – por sorte dele – morreu num acidente nas mesmas circunstâncias que aquela, anos antes.

– Já podemos ir então, Vossa Graça? – o cavaleiro pareceu apreensivo.

– Sim.

A tensão estava explicita em sua cara, como se aquela fosse uma decisão de alto risco. Entrou na carruagem e notou que Tristan parecia dormir no banco de novo, ergueu a cabeça dele, pondo em seu colo e recostando-se no banco do móvel.

– Já vamos embora, papai? – interrogou meio sonolento.

– Sim. Foi só um contratempo, volte a dormir, filho.

O menino fez que sim, deitando em seu colo.

– Marchem pela mata! – berrou um soldado ao lado de fora.

Os cavaleiros atrás berravam e o grito ia passando da frente para trás pelos homens até que o comando ficasse claro até os cavaleiros mais ao fim da horda. Após ouvir o grito ao mais distante possível houve uma demora momentânea. E então sentiu uma arrancada forte e a carruagem começou a andar.

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Irrequieto, o rei bateu os pés no solo, como num tique nervoso, abriu a janela e viu dali uma névoa fria por entre os galhos grossos dos altíssimos pinhais pelos quais passavam. O brilho das tochas acessas já não o alcançava e o som de cigarras foi sobreposto pelo trote dos cavalos. Trotaram por muitos instantes mata adentro, pareciam entrar numa escuridão mais profunda a cada passo.

Até que feixes de luzes emergiram do nada, o canto das cigarras foi cessado de repente e a névoa densa da mata foi rapidamente dissipada. A apreensão pareceu descarrega-lo e ao longe, o som de um berro rouco em linguajar incompreensível ecoou seguido de batuques e gritos de guerra. Os cavalos relincharam e brecaram assustados, e agora, Aryn via que sua aflição intuitiva era fundamentada. Tristan despertou assustado, deu com o pai também assustado ali.

– O que está havendo, papai

– Nada. Fique aí e só saia se o papai chamar, tudo bem?

Aryn saiu logo em seguida da carruagem. Bateu a porta e correu até a escolta de soldados formada ao redor de um grande campestre desmatado no matagal. Um servo o deu uma espada.

– Mas que merda está havendo aqui?

– Certamente estamos cercados por bárbaros, Majestade. Foi uma emboscada!

– Dá para recuar?

– Não a essa altura.

Aryn tomou a frente erguendo aos soldados, erguendo a espada ao alto. Os passos estavam próximos, assim como o brilho emitido das tochas acessas.

– Homens, espadas em punho! – berrou. – Atacar!!!

Uma chuva de flechas com as pontas em chamas veio do alto em forma de arco. Atravessou o peito de alguns soldados que caíram imediatamente mortos. Os soldados tomaram a frente de Aryn, homens ruivos ou de cabelo louro/alaranjado, na maioria, surgiam de todos os cantos com lanças e machados lutando contra soldados.

– É uma armadilha! Rebeldes das Terras Estreitas! – berrou um general, alertando o grupo da ameaça que enfrentavam.

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Este morreu em seguida quando um ruivo forte e corpulento esmagou com força seu crânio ao soca-lo contra uma árvore. Aryn girava em torno de si mesmo, meio zonzo. Esquivou de algumas flechas em chamas que caiam próximos de si. Sem saída. Viu seus homens chacinarem aqueles que saiam dos esconderijos, enquanto morriam pelas flechas atiradas do nada. O som de batuques fortes tomava o local. Aryn tremulava no controle da espada.

Um homem surgiu do nada a sua frente. Tentou atravessar seu tórax com uma lança, ele esquivou e se atirou no chão. Sadicamente, o bárbaro cravou a lança em seu tornozelo enquanto falava coisas incompreensíveis num dialeto rústico. Estaria prestes a matar Aryn, mas um general o esfaqueou pelas costas e derrubou o corpo. Lutou contra os invasores que vinham de todos os lados e as

flechas em chamas foram aos poucos cessando. Vinham das árvores! Foi no instante que teve essa conclusão que diversos homens começaram a cair dos altos galhos como frutas podres com lanças e machados em mãos.

– Fiquem longe das árvores, homens! – berrou outro general. Aryn recuou com uma tropa de soldados que agora o rodeava. Estava apavorado.

Os corpos bárbaros e fortes caiam por cima de soldados, os esmagavam. Outros já caiam do alto os esfaqueando, um tinha a cara destroçada por um machado, outros lutavam com espadas, de modo que os corpos já estavam se acumulando.

– Você ficará bem, Majestade. O prometo isso – jurou um soldado com voz embargada, mas que era firme na posse da arma. Eles recuavam ligeiramente. Não deixavam o medo transparecer ao rei, embora o rei deixasse o seu.

Ouviu gritos e berros de homens. Os batuques da guerra já haviam cessado e seus inimigos das terras que ele dominara estavam aos poucos sendo dizimados, não sem levarem boa parte dos seus homens consigo. Aryn não via, mas estava completamente cercado. Inimigos o vinham, literalmente, de todo os lados.

– Pai! Papai!!! Pai! – ouviu Tristan berrar histérico. O instinto apossou Aryn, grudou firme na espada como nunca e saiu empurrando soldados da frente até que ele viu um moreno sair com Tristan pendurado pela gola. O moreno o deu a outro à entrada da carruagem que pôs uma faca em seu pescoço.

– Que morram as crias do rei podre. – balbuciou o ruivo sadicamente.

– Não! Meu filho não. Eu faço tudo o que você quiser.

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O ruivo olhou sorrindo para o rei que guiava firme sua espada. Pronunciou, sorrindo, coisas indeterminadas e começou a cortar Tristan no canto do pescoço. Sangue pingou do pescoço do menino.

– Não!!! – Tristan chorava de horror. O bárbaro afastou a faca ensanguentada do pescoço do garoto e lambeu o sangue na lamina, se lambuzando em seguida.

– O fruto do rei podre tem sangue doce.

Impetuosamente, avançou para cima deles, tentando acertar o ruivo entre as pernas, mas o moreno se pôs na frente agarrando sua espada na mão. Era forte demais para não vencer Aryn, o rei começou a se esforçar para girar a espada na mão do moreno. Sangue saia da mão dele, que ainda sim, não largava a espada.

– Assista-me matar sua cria e saboreá-la aos poucos. Por onde deseja que eu comece? – ele era certamente um dos poucos rebeldes que falava o idioma de Zardan, com um sotaque forçado e irritante de se ouvir. – Ah sim, pelos dedos.

Começou a cortar o dedo mindinho do garoto como se fosse arrancá-lo. Os olhos da criança se esbugalharam em horror. Aryn sequer olhou, estava concentrado no oponente. Num movimento brusco, puxou a espada da mão dele, e a cravou em sua cara, jogando-o morto no chão. Apontou ao ruivo agora. Deu uma ligeira olhada para trás, e viu que dos soldados que formava o círculo em torno deles, só restava um ainda vivo, que lutava com três bárbaros. Ele matou dois deles, antes de cair morto também. A tropa ao seu redor estava totalmente morta ou dispersa. O rei estava por si.

– Por favor, papai, não me deixa morrer – implorou chorando.

O ruivo deu um berro estridente em seu linguajar natal. Deu uma olhada para o lado e feixes de luzes surgiram, flechas eram atiradas em arcos de novo. Erravam, não atingiam Aryn, mas uma acertou a carroça que imediatamente ficou em chamas. O cavalo ficou inquieto, o selvagem deu uma recuada com Tristan, ainda próximo ao cavalo. Aryn também recuou, ficando ainda mais distante.

– Perceba, reizinho de sangue podre. Nós vamos matar você e suas proles. E

nós vamos dominar tu território, felizmente...

Enquanto ele falava, um soldado aproximava-se por trás do ruivo com um machado pigarreando sangue, sinalizando para que seu rei mantivesse o silêncio. Aryn deu uma olhada ao redor e percebeu que seus soldados ainda eram muitos, e de bárbaros, já não eram tantos.

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– Eu sei que tem um homem atrás de mim – disse o ruivo sorrindo, como se possuísse olhos na nuca. Prensou a faca no pescoço de Tristan. – E o próximo corte que eu fizer, vai pegar certo onde eu preciso pegar... – ironizou aos risos – Majestade.

Aryn deu mais um passo para trás com a espada. Apenas ele parecia notar a inquietude do cavalo sentindo a fumaça da carroça em chamas.

Num único golpe, o rei cravou a espada nas costas do animal. Ele deu um longo urro antes de cair e um coice para trás que jogou a carroça em chamas com tudo para o lado do ruivo. A carroça o derrubou no chão junto de Tristan, o príncipe saiu dos braços do rebelde, apavorado, correndo aos braços do pai. Aryn ouviu aliviado o choro do filho, fechou os olhos ao abraça-lo, e ouviu um barulho de espada talhando no ar. Quando abriu os olhos de novo, seu soldado erguia a cabeça decepada do rebelde. O sangue caia sobre o resto do corpo.

• • •

Ficaram até o amanhecer reorganizando as tropas e homens. Aproximadamente um em cada doze dos soldados de Aryn estavam mortos. Dos bárbaros, quase todos os que haviam sido visto também estavam, mas muitos – que estavam a atirar flechas de um local desconhecido – escaparam ilesos.

– Nós vamos ficar bem, papai? – perguntou abraçado ao pai em seu colo, enquanto ambos encaravam, da encosta de um barranco, o nascer do sol alaranjado no céu. Aryn hesitou em respondê-lo, brevemente.

– Nós sempre ficamos bem, meu filho.

Reorganizaram os homens que sobreviveram em algumas horas. O rei não podia deixar de lembrar que sua escolha levou boa parte deles à morte terrena. Eram jovens de dez a quinze anos mais velhos que seu filho, que poderiam ser seu filho, ele pensava. E estava de luto por aqueles homens que perdera. Instantes após, quando o sol já raiara completamente, um dos generais surgiu orgulhoso, sorrindo com um saco de pano manchado nas costas.

– Não houve incidente algum na estrada. Os Versalle mandaram reforços devido ao nosso atraso. E nós achamos os que nos jogaram em emboscada.

– Sim... e onde estão?

O general puxou o saco pela ponta e o virou no chão. As cabeças dos cinco pseudo camponeses rolaram pelo chão bem aos pés do rei.

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CAPÍTULO XXI

ARYN

ZARDAN – CORTE VERSALLE

Na ampla sacada da cobertura da torre sulista, a brisa noturna fresca esvoaçava os cabelos de Aryn. Gostava daquele isolamento; aquele lugar, com uma das vistas mais belas que já vira, o trazia uma calma imensurável. Era como se todos os problemas que ocorriam fossem demasiado sem importância. Ao fim do horizonte que havia à sua frente, podia ver a sombra de casas, de construções arcaicas, algumas rústicas e outras nem tanto, de uma cidadela litorânea. Aquela brisa que o acalmava vinha do mar cristalino do vilarejo, onde esteve pela manhã.

Ouviu um rangido forte quebrar sua calmaria. Olhou para trás e esboçou um sorriso, Lady Mary estava adentrando. Era uma esbelta mulher de pouco mais de vinte anos, de longos cabelos louros e sedosos e dona de inconfundíveis olhos verdes. A senhora da casa sulista fechou a porta, caminhando até seu rei.

– A visão dessa sacada é linda, não? – puxou assunto, passando também a ter a mesma visão que ele. – Pena que está nublado. Nas noites de céu límpido e lua cheia, dá até para ver o mar… e a visão da cidadela fica inconfundível.

– Sim. Em nome da coroa, a agradeço pela ótima estadia. Me acalenta ver que o sul está em ótimas mãos.

Diferente do que Aryn esperava, ela não respondeu. Ficou debruçada sobre o parapeito rochoso a ver os pássaros gorjearem e sumirem no horizonte.

– Há algo que queira me dizer? – Aryn perguntou.

– Ainda que a carne apodreça, nomes são imortais – disse, voltando-se a ele. – Um dos meus trechos favoritos de Heliseu. Eu sempre me questionei se para reis e rainhas, como Vossa Graça, isso diz alguma coisa.

– Que quando eu morrer serei lembrado. – Foi sucinto.

O silêncio se perpetuou por alguns instantes, a brisa foi o som mais alto a ser ouvido naquele local. Até que Aryn olhou para ela, quebrando o silêncio.

– As reações hostis à coroa são assim em todas as cidadelas, ou aqui no sul o povo é mais simpático? – Aryn inquiriu sobre um acontecimento embaraçoso pela manhã, com naturalidade. – Perdoe, é que fui coroado bem recentemente...

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– O senhor sabe que aqui ao sul nossa grande fragilidade são os bárbaros das Terras Estreitas. O povo ficou temeroso que, com sua chegada, fossemos ficar ainda mais fragilizados.

O olhar dele brilhou por alguns instantes pelos quais nada teve a dizer. Viu que aquela gente estaria disposta a matar e morrer por ele se assim necessário. Sentiu o medo dos populares de entregar suas vidas à mão de um rei desconhecido. E mais uma vez, por alguns instantes, se colocou totalmente no lugar do popular que, por aquela manhã, havia o atirado excrementos sobre uma chuva de palavrões enquanto o rei era recebido no sul na cidadela medieval.

– Seja sincera, Mary. O que me trás aqui fragiliza vossas terras, não é?

– Risco é algo que os Versalle não temem, Vossa Graça. Juramos nossa espada e nossa honra à vossa casa e apenas cumprimos o nosso dever.

– Sim, mas e os bárbaros? Eu sei que vocês são os que mais sofrem com os rebeldes dominados além da península.

– Pensemos um pouco, Majestade... O sul não é a parte mais próspera e amada do território. O senhor sabe qual rei antes do senhor veio nos visitar?

– O meu avô? – Aryn de fato não sabia responder.

– Adolph V, o seu bisavô, na verdade.

O rei ficou cabisbaixo, pareceu minimamente constrangido.

– E mesmo assim, mesmo sendo uma das partes mais negligenciadas do território, foram os primeiros... – Aryn tratou de se corrigir rapidamente. Não

havia por que ou para quem mentir. – Foram os únicos a declarar apoio à coroa. – Ele olhou firme nos olhos de Mary, até seguraria sua mão para passar-lhe toda sua certeza, mas não seria de bom tom. – Tenha certeza, senhora Versalle, que quando vencermos a guerra, a sua casa, as suas terras e o seu povo serão muito bem recompensados. Eu farei o nome de sua família tão imponente que todos os outros vassalos se curvarão primeiro à coroa, e depois à sua casa.

Mary riu, chamando a atenção de Aryn. Tratou de conter a risada logo.

– Ai, perdoe-me, mil perdões, Vossa Graça. Não tenho dúvidas disso. Estou aqui me lembrando de hoje de manhã. Então o homem atirou merda na sua cara, na frente de todo mundo e o senhor o respondeu o dando uma saca de batatas?

– Sim – riu-se também. – Ele era só um pobre coitado, com família faminta.

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– Não sei como é ao norte, mas pelo que eu conheço, quando um popular atira merda num bem nascido, geralmente, se demanda a cabeça dele em resposta.

– Ele tinha mais fome do que raiva – suspirou e perdeu seu olhar na imensidão que havia além do castelo. – Em tempos comuns, pobres idolatram seus reis e renegam seus vassalos; em tempos como este, vassalos manipulam os populares. E eles veem seus reis como seus inimigos – bufou novamente, fazendo uma pausa antes de concluir. – Não fui esse o tipo de rei que eu escolhi ser.

Mary o lançou um olhar, comovida. Tirou o sorriso levemente debochado da face e aproximou-se dele, pondo a mão em seu ombro, suavemente.

– Não foi esse o tipo de rei que eu escolhi apoiar.

Ele virou-se a vassala desentendido. Ele notou como ela encarava seu olho verde, com um fascínio com o qual ninguém havia olhado antes.

– Eu... eu... eu não sei se compreendo – disse desentendido.

– Não foi a sua casa que eu escolhi apoiar, Majestade. Foi a você.

– Eu ainda não compreendo Mary.

Ela estendeu o braço à silhueta dos casebres e construções aglomeradas no fim do horizonte. Se concentrada, podia ouvir as ondas do mar arrebentando com força na costa sulistas, Mary agora sequer olhava a Aryn.

– Olhe para aquela imensidão de casas, pense em quantos morriam de fome aos montes antes de alguém olhar para eles... Pense em quantos morrem e morrerão quando a guerra de fato estourar – pausou brevemente e voltou a encará-lo. – E ainda sim, pense em quantos matariam você por bem menos que uma saca de batatas... Mas é como diz um ditado – voltou o olhar ao horizonte e estendeu a mão a edificação mais alto que via, como se pudesse alcançar seu topo dali. – ‘Aos famintos que plantam em terras, o que provem delas é ouro. Aos nobres que possuem elas, a mão de obra com fome é ouro’.

Aquele ditado, o rei já ouvira falar antes. Era muito comum em Winster. Sem compreender, viu novamente um riso desabrochar do rosto de Mary. De repente, todas as voltas e frases sem nexo proferidas pela dama pareceram o fazer sentido. Ele fitou-a de um jeito incrédulo.

– Meu pai, volta e meia me disse, que os mistérios que os olhos verdes dos sulistas ocultam são o refúgio de seus semelhantes. E eu demorei trinta e cinco anos para entender essa frase.

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Aryn suspirou fundo, contendo uma leve emoção que aquele momento o causava. Debruçou-se no parapeito, ouvindo-a desconversar novamente.

– Eu posso sentir como se estivesse lá... os berros, o sangue manchando o salão, o cheiro da morte que esteve tão perto. E a dor... – uma lágrima pendia em sua pálpebra, ela enxugou rapidamente. – Ah... a dor! A dor das espadas, da lança atravessando seus corpos e o conseguinte silêncio de toda uma linhagem extinta.

– Quem é você de verdade, senhorita Versalle? – a voz de Aryn o falhava.

– Você nunca ouviu os rumores? Nós somos o que restou, Aryn. – Suspirou fundo durante os momentos de pausa. – Os Valouis mandaram dizimar os clãs Hendrix, Dorian e Meryn. Por mais que eles digam que exilaram para fora da península, é mentira! Chacinaram os próprios vassalos, mataram seus anciãos, os líderes da casa, até as crianças, Aryn! Francis mandou assassinar até as criancinhas. Meus ancestrais conspiraram contra os Valouis para derrubá-los e eles nos chacinaram. Mas a despeito daqueles malditos, alguns Hendrix sobreviveram, atravessaram as fronteiras com Zardan e com novo nome, com novos rostos, a casa Versalle surgiu do nada. Na verdade, Aryn, muitos poucos sabem disso, mas a casa Versalle surgiu de Winster.

A voz do rei tremulou. Demorou alguns segundos para assimilar tudo, diante da postura imponente de sua vassala. Estava plenamente desconcertado.

– Vocês são... vocês são... – Mary o cortou, o antevendo.

– Nossa linhagem é de sangue winsterlens. Versalle também são mistos.

O rei não conseguia conter a surpresa expressa em sua cara. Eles são como eu!

Agora tudo faz sentido... Agora Aryn parecia ter encontrado algo que simbolizava a outra parte de quem ele realmente era, o outro lado de seu ser que a vida inteira lhe foi suprimido de todos ao seu redor por sobrevivência.

– Não é a sua casa ou só a coroa que juramos lealdade, Majestade – pontuou a vassala, olhando-o firme. – É a você!

Antes que a voz embargada dele fosse retribuir, a porta foi aberta. Astor entrou intempestivo, ele era o principal homem de Mary. Guerreiro jovial, era másculo e corpulento, de olhos verdes, cabelos escuros e pele bronzeada.

– Majestade, minha senhora – reverenciou brevemente. – Mil perdões por interromper, mas é que trago notícias urgentes da cidadela. Envolve sua primogênita, Vossa Graça.