Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

download Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

of 210

Transcript of Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    1/210

    OS ENSINAMENTOS DE JESUS

    E A TRADIO ESOTRICA CRIST

    AS CHAVES QUE ABREM

    O REINO DOS CUS NA TERRA

    Raul Branco

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    2/210

    Este livro dedicado, com respeito e admirao,

    ao apstolo Paulo de Tarso, pedra fundamental daverdadeira Igreja de Cristo. Que o exemplo de sua

    vida dedicada ao servio da humanidade sirva de

    inspirao a todos que aspiram viver em Cristo.

    2

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    3/210

    NDICE

    PREFCIO 5

    I. INTRODUO 7 A postura necessria para o estudo dos ensinamentos esotricos 12

    II. O LADO INTERNO DE UMA TRADIO 171. EXISTE UM LADO INTERNO NA TRADIO CRIST? 182. AS FONTES PRIMRIAS DA TRADIO INTERNA 22

    - Os evangelhos cannicos 22- Os documentos apcrifos 29- A tradio oral 31- A vida dos msticos 32- Os grupos esotricos 35

    III. A META: O REINO DOS CUS 393. O SIGNIFICADO DO REINO PARA A ORTODOXIA 40

    - O Reino na tradio judaica 41- O Reino para a Igreja 42

    4. UMA VISO ESOTRICA DO REINO NOS

    ENSINAMENTOS DE JESUS 46

    IV. O PROCESSO DE RETORNO CASA DO PAI 565. A LEI DAS CORRESPONDNCIAS 576. ALEGORIAS, MITOS E SMBOLOS 607. A PARBOLA DO FILHO PRDIGO 638. A PEREGRINAO DA ALMA 68

    V. MTODO DE TRANSFORMAO 729. A PORTA ESTREITA E O CAMINHO APERTADO 73

    10. A TRANSFORMAO DA MENTE 77

    - O enfoque de Jesus 7811. OS PRIMEIROS PASSOS 81

    - O despertar 81- A busca da felicidade 82- A busca do caminho 90- Aspirao ardente 91

    12. AS REGRAS DO CAMINHO 93- A Unidade da vida 93- Natureza cclica da manifestao 97- O objetivo do processo da manifestao 99- O livre-arbtrio 102- A justia divina 103- Conhecimento de si mesmo 107

    3

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    4/210

    VI. AS CHAVES DO REINO DOS CUS 11613. O INSTRUMENTAL TRANSFORMADOR NA TRADIO CRIST 11714. A F 122

    15. AMOR A DEUS 12516. VONTADE 12917. PURIFICAO 13218. RENNCIA 13619. DISCERNIMENTO 14020. ESTUDO 14321. ORAO-MEDITAO 146

    - Contemplao 14922. LEMBRANA DE DEUS 15223. ATENO 15624. RITUAIS E SACRAMENTOS 158

    - Rituais internos e externos 158- Os rituais internos da tradio crist 158- Smbolos e teurgia 161

    25. PRTICA DAS VIRTUDES 164- Caridade 165- Humildade 166- Pacincia 169- Contentamento 170- Equilbrio e moderao 171

    VII. TRILHANDO O CAMINHO 17226. TRANSFORMAO, INTEGRAO E UNIO 173

    27. A VIDA DO CRISTO COMO O CAMINHO 180

    EPLOGO 188

    ANEXOSAnexo 1. Exerccios e prticas espirituais 191Anexo 2. O Hino da Prola 196Anexo 3. Pistis Sophia 201

    GLOSSRIO 203

    BIBLIOGRAFIA 206

    4

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    5/210

    PREFCIO

    Comecei a pesquisar os ensinamentos internos do cristianismo primitivo por estarconvencido de que Jesus no poderia ter omitido de suas instrues o instrumental para ocaminho espiritual, semelhana dos mtodos conhecidos nas principais tradies orientais.Essas tradies tm atrado milhares de cristos sinceros mas desiludidos com o receiturio docristianismo tradicional. A riqueza do material encontrado, geralmente pouco conhecido, foi tosurpreendente que resolvi sistematiz-lo e apresent-lo sob a forma de livro.

    Ao mergulhar no estudo das tradies orientais, principalmente do budismo, da ioga, davedanta e do substrato de todas essas tradies, a teosofia, descobri que o lado esotrico datradio crist tem todos os ingredientes das formas esotricas dessas outras e que a devoorealmente caminha de mos dadas com a razo. Em face dos inmeros ensinamentostransformadores que capacitam a unio do buscador com o Supremo Bem, poder-se-ia dizer queessa tradio seria a ioga crist, bem pouco conhecida dos cristos, porque derivada dos

    ensinamentos reservados de Jesus. Lembramos que ioga um termo snscrito que significaunio, mas que usado tambm, por extenso, para transmitir de forma sistemtica ametodologia que visa promover a unio da natureza exterior do homem com sua naturezainterior.

    Como o esoterismo cristo muito rico, e a literatura existente muito extensa, o focodeste trabalho foi direcionado para o ponto central dos ensinamentos esotricos de Jesus, ouseja, a busca do Reino de Deus. Procuraremos elucidar esse tema sobre o qual todo o ministriode Jesus foi baseado, explorando o caminho que leva ao Reino, bem como o mtodo e oinstrumental facilitador que capacitam a entrada pela porta estreita e o trilhar do caminhoapertado.

    O mais surpreendente, como ser visto a seguir, que a essncia dos ensinamentos mais

    profundos de Jesus sempre esteve expressa na Bblia e em outros documentos sem serdevidamente percebida. como se as jias mais preciosas da mensagem bblica estivessemescondidas debaixo de nossos olhos sob a aparncia de coisas sem maior importncia. Dentreessas preciosidades negligenciadas do esoterismo cristo poderamos mencionar: Eu e o Paisomos Um, Conhecereis a verdade e a verdade vos libertar, J no sou eu que vivo mas Cristo que vive em mim, Quem no nascer de novo no poder entrar no Reino dos Cus,Vinde a mim as criancinhas, Se o gro de trigo que cai na terra no morrer, permanecer s;mas se morrer produzir muito fruto.

    Esses exemplos e muitos outros evidenciam que os ensinamentos esotricos de Jesusforam preservados em dois segmentos: no primeiro, encontram-se as proposies, instrues eacontecimentos da vida do Salvador, que esto descritos na Bblia e em diversos documentosapcrifos; no outro, esto os detalhamentos dessas instrues, com as explicaes de suas razes

    e as tcnicas e os mtodos para o aprimoramento da vida espiritual. Essas instrues eexplanaes, que no se encontram na Bblia nem nos documentos apcrifos, foram passadas deboca a ouvido, naquilo que se chama de tradio oral ou mesmo por intermdio de outrosmtodos que sero abordados posteriormente. Este livro em grande parte um trabalho dereconstituio dos diferentes aspectos desses ensinamentos.

    Quando buscamos sintonia com o Mestre em nossas meditaes, depois de algum tempo,a confuso inicial cede lugar simplicidade essencial da mensagem divina, facilitando-nos atarefa de desenterrar a tradio interna que desconhecamos. Os objetivos da mensagemsalvfica de Jesus comeam a aclarar-se, seus mtodos de transmisso de instrues fazem-sepresentes, e seus ensinamentos surgem como jias preciosas escondidas sob o vu da alegoria.

    Vivemos na iluso da separatividade, alimentados pelo egosmo e pelo orgulho, pensando

    que criamos de forma separada e independente alguma coisa. A realidade, no entanto, quecada ser humano to somente uma clula no grande organismo da humanidade. Como tal, a

    5

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    6/210

    mente de cada um nada mais do que um aspecto da mente universal, tambm chamada deinconsciente coletivo ou mente divina. Dentro da mente divina, a verdade est eternamentepresente em sua forma essencial, embora seja apresentada de diferentes maneiras pelosinumerveis aspectos individuais desse grande Todo. Verifiquei que, quanto mais procuravaestudar e meditar sobre os ensinamentos de Jesus, mais livros e idias sobre o assunto iam

    aparecendo. Percebi que muitas outras almas j haviam decifrado e interpretado boa parte dosensinamentos do Salvador. Minha tarefa, portanto, foi grandemente facilitada, pois foi possvelcoligir a essncia do que j estava escrito e aproveitar parte do que ainda estava no mundomental a espera de ser expresso. Como natural, minhas deficincias literrias, intelectuais eespirituais explicam as falhas que sero encontradas ao longo do texto.

    Gostaria de expressar meu reconhecimento pelas muitas idias e inspiraes que recebi detantas pessoas. Vrios irmos altrustas, pacientes e eruditos leram parte ou todo o texto inicial econtriburam generosamente para melhor-lo. Dentre estes destaco Jos Trigueirinho, IsisResende, Gilda Maria Vasconcelos, Srgio Curi, Delzita Portela de Carvalho, Eliane Araque dosSantos, Ricardo Lindenman, Carlos Cardoso Aveline, Siegfried Elsner, Pe. Joo Incio Kolling,Pe. Manoel Iglesias SJ, Marco Aurlio Bilibio, Marly Ponce Branco e, em especial, meu bomamigo Edilson Almeida Pedrosa, que, como em minha obra anterior, Pistis Sophia, foi de

    inestimvel ajuda, revendo e criticando com pacincia, perspiccia e incansvel ateno, asvrias verses pelas quais o texto passou.

    O leitor ansioso em obter uma viso de conjunto do livro, antes de mergulhar nos detalhesexplicativos e operacionais do processo de transformao interior do homem velho no homemnovo, poder ler a Introduo, o Anexo 1, e os captulos 4, 8, 13, 26, e 27. Uma vez efetuadaessa leitura seletiva, esperamos que o verdadeiro buscador da tradio crist tenha a motivaonecessria para efetuar no mais uma leitura, mas um estudo atento do texto completo.

    6

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    7/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    8/210

    I. INTRODUO

    O cristo dedicado, sincero e que toma sua cruz, seguindo a orientao do Mestre, podese questionar como possvel que o entusiasmo da cristandade dos trs primeiros sculos, quemanteve o fervor apesar das perseguies implacveis, possa ter arrefecido e se transformado,para grande parte daqueles que se dizem cristos, numa mera afiliao religiosa pr-forma semo envolvimento de seu corao. As causas dessa mudana qualitativa da religiosidade do cristoso complexas, mas podem ser em boa parte imputadas ao fato de que a maioria das igrejasatuais distanciaram-se dos ideais originais, retornando ao comportamento de obedincia a rituaisexternos e a prticas religiosas mecnicas que Jesus havia to duramente criticado nos fariseus elevitas. So poucos os cristos no mundo de hoje que procuram realmente entender osensinamentos de Jesus e, um menor nmero ainda, seguir o Mestre.

    Com o passar dos sculos, a mensagem central de Jesus foi progressivamente desvirtuadae acabou sendo esquecida. Em vez de buscarmos o Reino dos Cus aqui e agora, colocamos anossa esperana num paraso distante, talvez no outro mundo. Porm, se meditarmos

    profundamente sobre a essncia dos ensinamentos de Jesus, deixando de lado nossas idiaspreconcebidas, chegaremos concluso de que somos o prprio filho prdigo e que algum diaretornaremos Casa do Pai, que o Reino dos Cus, voltando ao estgio de pureza prstinaoriginal de um Filho de Deus, tornando-nos, ento, um Cristo 1 e podendo dizer, por experinciaprpria, que Eu e o Pai somos um (Jo 10:30). Paulo demonstra estar em sintonia com essarealidade ao dizer: J no sou eu que vivo, mas Cristo que vive em mim (Gl 2:20). Esseentendimento do potencial ilimitado do homem e o conhecimento da herana divina podem serobtidos por meio do estudo e da vivncia do lado esotrico de nossa tradio, que permaneceuesquecido e negligenciado por tantos sculos.

    O primeiro passo para usufruirmos a herana divina a deciso de reivindic-la. Para issotemos que nos desvencilhar dos condicionamentos limitativos impostos por muitos sculos de

    apatia intelectual e de ausncia do exerccio da vontade. A verdade sempre esteve ao nossoalcance, mas, por vrias razes, deixamos escapar a oportunidade de perceb-la. Podemos, noentanto, reverter esta situao porque o momento atual extremamente propcio para odespertar espiritual. Felizmente, os ensinamentos esotricos da tradio crist no foramtotalmente perdidos. Eles podem ser recuperados, compreendidos e, se devidamentevivenciados, podem mudar nossas vidas, permitindo que alcancemos O estado de Homem

    Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo (Ef 4:13).O primeiro passo neste estudo dos ensinamentos de Jesus deixar claro que o

    cristianismo, em sua essncia ltima, no uma instituio, mas sim uma convico interior.Essa convico, a verdadeira f, deve guiar a conduta de seus seguidores rumo meta final, oReino, deixando um rastro de boas obras ao longo do caminho trilhado.

    Um aspecto pouco conhecido da natureza cclica da manifestao o de que, em cada

    final de sculo, a Providncia Divina aumenta o fluxo de energias espirituais para estimular oprogresso da humanidade. Ocorrem tambm ciclos maiores, como ciclos milenares e ciclosenvolvendo as grandes eras. A humanidade est vivendo agora um momento muito especial, aconfluncia de trs ciclos, o centenrio, o milenar e o de transio da era de Peixes para a era deAqurio. Isso pode ser notado pelas pessoas mais sensitivas. O resultado dessa ao energticainusitada se faz sentir no mundo das idias e do comportamento humano. Nesta virada doterceiro milnio, estamos vivendo um momento extremamente propcio para tornar conhecidasas coisas ocultas. Por isso esforamo-nos para fazer com que os ensinamentos de Jesus

    1 Peter Roche de Coppens, , sugere que: Tornar-se um verdadeiro cristo, para mim no mais do quese tornar um ser humano crstico, um ser humano que alcanou a verdadeira Iniciao espiritual. Um serhumano em quem o Senhor Rei e Governa; um ser humano em quem o Eu espiritual tornou-se o princpio

    unificador e integrador da psique e dos pensamentos, emoes, desejos, palavras e aes: um ser humano,ento, que se torna num outro Cristo vivo. Divine Light and Fire: Experiencing Esoteric Christianity(Rockport, Mass: Element, 1992), pg. 7.

    8

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    9/210

    entesourados em documentos raros, ao alcance apenas de um limitado crculo de estudiosos,sejam postos disposio dos cristos sinceros que ainda no conhecem a inteireza de suamensagem.

    Como no podia deixar de ser, essas energias afetaram de forma positiva a vida espiritualdo planeta. As estruturas religiosas foram induzidas a alargar seus horizontes para abranger

    outros grupos e outras etnias. Em virtude da invaso chinesa, que forou um xodo de grandespropores da comunidade monstica tibetana, o budismo tibetano passou a ser conhecido epraticado por centenas de milhares de pessoas em quase todo mundo ocidental, quebrando ummilnio de isolamento no Tibete. O sofrimento do povo tibetano foi transmutado em benefciodos buscadores da verdade em todo o mundo, com a traduo das obras dos mestres budistasdaquele pas e o estabelecimento de centros de ensino do Dharma em vrios pases do oriente edo ocidente.

    At a rgida e arcaica Igreja de Roma mostrou sinais de abertura. Atendendo aos clamoresdos fiis que h muito se sentiam alienados com os servios religiosos em latim, uma drsticareforma litrgica foi implementada, permitindo que a missa fosse conduzida na lngua de cadapovo e com maior participao dos fiis. O sacerdote, que anteriormente oficiava boa parte damissa de costas para o pblico, passa agora a voltar-se de frente para os fiis numa tentativa de

    quebrar barreiras e promover a comunicao.2Porm, a iniciativa conciliadora mais importante do Vaticano foi o movimento

    ecumnico. Depois de muitos sculos de disputas fratricidas a Igreja de Roma, numademonstrao saudvel de humildade, tomou a iniciativa de promover o contato com gruposdissidentes dentro da grande tradio crist, bem como com outras religies.3 A mudana deatitude foi, em grande parte, motivada pelo relativo esvaziamento das igrejas catlicas, face aorpido crescimento das seitas protestantes e de outros movimentos, como o espiritismo e asreligies ou filosofias orientais. Esse processo ecumnico, ainda que tmido e cauteloso, emvirtude dos nimos acirrados por sculos de disputas, muitas vezes sangrentas, promove pontosde unio e minimiza os de separao.

    Esse ecumenismo tem-se mostrado, no entanto, eminentemente externo. Mais importante

    ainda, com imensas perspectivas de vir a provocar mudanas radicais, inclusive ao nvel daespiritualidade das massas de fiis em todo o mundo, seria um ecumenismo interior, entendidocomo uma abertura que leve em considerao todos os aspectos da natureza humana. Os cultosde praticamente todas as igrejas crists tradicionais, antes e depois da Reforma, baseiam-se numacirramento do aspecto emocionaldo homem. As liturgias, cnticos, romarias e atos devocionaisbaseiam-se numa f emotiva e cega. A questo da verdadeira f de grande importncia e serexaminada posteriormente, pois ela um dos instrumentos fundamentais do processotransformador da ioga crist.

    Mas a emoo apenas um dos aspectos interiores do homem. O caminho que leva aoReino dos Cus requer a integrao de todos os aspectos do ser humano. Isso significa que aemotividade religiosa tem que abrir espao para a razo, a fim de que as duas, emoo e razo,possam ser integradas e transcendidas, no seu devido tempo, pela intuio. Isso s ocorre

    quando o Cristo interior tem condies de despertar no mago de nossos coraes e,progressivamente, assenhorar-se do comando de nossas vidas. Esse processo de integrao, ouecumenismo interior, a essncia dos ensinamentos internos de Jesus.

    Assim como o aumento da intensidade das energias espirituais neste sculo se fez sentirao nvel das idias, dos movimentos e das instituies existentes, com mais razo ainda se fezsentir na alma das pessoas. Milhes de indivduos em todo mundo passaram a sentir o chamadodo alto. Esse chamado, sempre sutil, procura por diversos meios fazer com que o homementenda que sua meta o Reino e que, para atingi-la, torna-se necessrio um progressivo

    2 Para uma interessante explicao do lado oculto dos rituais, vide: Geoffrey Hodson, O Lado Interno doCulto na Igreja (S.P.: Pensamento) e C.W. Leadbeater, O Lado Oculto das Coisas (SP: Pensamento)

    3 Esta abertura demandou grande coragem por parte do Vaticano, pois at meados deste sculo, aconvico de que fora da Igreja no h salvao, foi absolutamente dominante para a postura da IgrejaRomana em relao s outras igrejas e religies.

    9

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    10/210

    desapego do mundo material. A forma como os homens geralmente sentem esse chamado porintermdio da insatisfao com sua vida, mesmo quando esto aparentemente fazendo as coisascertas e vivendo uma vida tica. Essa divina insatisfao deslancha um processo de busca, que,inicialmente, confuso, pois o homem no consegue identificar exatamente o que estprocurando. Busca livros e outras formas de auto-ajuda, dentro e fora de sua tradio; procura

    ouvir todo tipo de palestra sobre temas espirituais. Procura, enfim, por todos os meios, saciarsua terrvel sede da verdade.Muitos dos que batem s portas das igrejas voltam desapontados com o receiturio

    prescrito pelos seus sacerdotes e pastores. Podemos identificar trs reas principais deinsatisfao com a ortodoxia: os dogmas, a conceituao do homem como pecador e de Deuscomo justiceiro e, finalmente, as prticas espirituais sugeridas.

    Os dogmas de f sempre constituram-se em obstculos para o crescente segmentopensante da cristandade. Enquanto o domnio da Igreja de Roma era total sobre seus fiis, omedo era geralmente suficiente para manter os fiis e at mesmo os intelectuais em linha.Porm, neste ltimo sculo, com os grandes avanos na educao das massas e a liberdade depensamento exercida sem as antigas inibies religiosas, o conflito entre dogma e razo vemlevando um nmero crescente de cristos a assumir uma posio de coerncia com seus

    sentimentos mais ntimos. Infelizmente, isto tem tambm levado muitos a rechaarem,juntamente com os dogmas, toda a doutrina crist e os ensinamentos corretos da Igreja.

    A segunda rea de conflito com a doutrina ortodoxa j era sentida de forma latente hmuitos sculos. Trata-se da repulsa instintiva ao conceito de Deus justiceiro apresentado peloAntigo Testamento, numa interpretao literal, que foi encampado pela ortodoxia crist.Conceber Deus como um Ser sujeito a ataques de fria que precisam ser aplacados por diversasformas de sacrifcios e holocaustos fere a conscincia daqueles que no se recusam a pensar econstitui-se uma verdadeira heresia. A mxima heresia nesse sentido a proposio de que oFilho de Deus foi oferecido em sacrifcio para propiciar o perdo de Deus pelos pecados doshomens, conhecida como doutrina da expiao vicria.

    Felizmente, em nosso sculo, com os avanos da psicologia moderna e o entendimento do

    lado sombra do ser humano, o cristo comeou a entender porque sempre se sentiu incomodadopor sua caracterizao como vil pecador. Jung mostrou que as negatividades inerentes aonosso processo de aprendizado terreno devem ser entendidas e superadas pela compreenso epelo amor e no pelo temor a um Deus implacvel que castiga nossas falhas e fraquezas com ostormentos do fogo eterno.4

    Muitos dos cristos que ainda se mantm fiis Igreja mostram finalmente seudescontentamento com as prticas espirituais tradicionais da ortodoxia e, em alguns casos, como significado deturpado dado a elas. A missa, o tero, as romarias e as outras prticasdisponveis aos leigos contrastam com as prticas de outras tradies que, aos poucos, setornaram conhecidas no Ocidente. Esse descontentamento no se restringe aos catlicos mas sentido tambm pelos fiis das seitas evanglicas e protestantes por causa de sua conhecidainflexibilidade em questes doutrinrias.

    Apesar de muita resistncia interna, a poderosa energia crstica atuando nesta poca detransio, parece ter rachado, em alguns lugares, a espessa muralha do conservadorismo. Assim,algumas aberturas, como o movimento carismtico e os movimentos de jovens e de casais daigreja catlica resultaram em entusistica resposta dos leigos e de parte do clero. Tambm adivulgao, por iniciativa de alguns padres e monges, de certas prticas meditativas econtemplativas, parcialmente inspiradas nos modelos orientais, tiveram excelente acolhida.Porm, para a grande massa dos buscadores, a Igreja permaneceu uma instituio rgida,distante, indiferente e at mesmo alienada das necessidades espirituais de seus fiis.

    O resultado tem sido um progressivo desapontamento dos fiis com a ortodoxia religiosacrist e conseqente xodo para outros movimentos e tradies no-cristos ou fora dos cnonesortodoxos. Isso explica porque o espiritismo, o budismo, o hindusmo, a ioga e outros

    movimentos religiosos e filosficos no Brasil tiveram to boa acolhida entre os cristos4 C.G. Jung,AION. Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo, (Petrpolis, R.J., Vozes, 1994), pg. 6-8.

    10

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    11/210

    insatisfeitos com a postura ortodoxa de sua tradio. Isso ocorre porque, nesses movimentos outradies, o buscador encontra prticas espirituais slidas e doutrinas que no agridem a razo.

    As tradies budista e da ioga tm exercido grande atrao sobre os buscadoresocidentais. Ambas podem ser mais acertadamente consideradas como tradies filosficas doque religiosas. Seus aspectos doutrinrios so extremamente atraentes, englobando conceitos

    filosficos e cosmolgicos de abrangncia e grandeza que fascinam os estudiosos livres depreconceitos. Porm, o ponto que exerce maior atrao parece ser a prtica espiritual dessastradies voltadas para a libertao do sofrimento. Dentre essas prticas destaca-se a meditao,com todas suas modalidades e etapas.

    At mesmo alguns padres e monges cristos, como Thomas Merton 5 e William Johnston,6

    depois de estudarem o budismo, procuraram introduzir suas prticas meditativas nos meioscristos. Johnston, preocupado com o desinteresse crescente dos fieis pelas prticas devocionaistradicionais (rosrio, via sacra e novenas), e verificando a firmeza milenar das prticas budistas,tal como observou no Japo, desabafa:

    A velha contemplao crist destinava-se a uma elite os franciscanos, os jesutas, osdominicanos e as pessoas de bem. Mas o pobre leigo, o cidado de segunda classe, ficavacom as contas de seu rosrio. De ora em diante, no preciso que seja assim. Assim como

    a liturgia ampliou-se para abranger a todos, tambm o mesmo pode dar-se com acontemplao. O muro infame que separava o cristianismo popular do cristianismomonstico pode ser derrubado de forma a que todos possamos ter as nossas vises,alcanar o nosso samadhi.7

    A diferena radical de enfoque para a vida espiritual entre a tradio budista e a cristpode ser aquilatada pela maneira como se denominam seus membros. Os budistas geralmente seautodenominam praticantes, no sentido de serem praticantes do dharma, do corpo deensinamentos do Senhor Buda. Os cristos, por sua vez, so normalmente caracterizados comofiis, refletindo o fato de serem supostamente fiis sua crena no corpo doutrinrio daIgreja. Enquanto uns praticam os ensinamentos de seu mestre, outros simplesmente crempassivamente nos dogmas de sua crena, desconhecendo, em geral, os ensinamentos de seu

    Salvador.Dentro desse contexto de crescente insatisfao com as prticas crists ortodoxas e aconstatao de que existem alternativas atraentes nas outras tradies, a apresentao dasdoutrinas e prticas espirituais do lado interno da tradio crist assume especial importncia.Felizmente, quando conseguimos desvelar os ensinamentos esotricos de Jesus, verificamos queas prticas do cristianismo primitivo nada deixam a desejar s outras tradies orientais to emvoga atualmente. Este livro vem juntar-se a uma crescente literatura sobre o cristianismoprimitivo e os aspectos esotricos da tradio crist, enfatizando os mtodos e prticasespirituais voltados para a transformao interior, to escondidos no passado.8

    Esses antigos ensinamentos abrangentes, profundos e eternamente atuais, levaramAgostinho, reputado como um dos baluartes da Igreja, a escrever h quinze sculos atrs:

    Esta que hoje chamamos de religio crist existiu entre os antigos e existia desde o

    comeo da raa humana at que o Cristo se fez carne, tempo a partir do qual a verdadeirareligio j existente comeou a ser denominada de cristianismo9

    5 Thomas Merton, Zen e as Aves de Rapina (S.P.: Cultrix, 1987) e Mystics and Zen Masters (N.Y.: TheNoonday Press, 1994).6 W. Johnston, Cristianismo Zen. Uma forma de meditao (S.P.: Cultrix, 1991)7Cristianismo Zen, op.cit., pg. 47.8 Ver, a propsito, Jacob Needleman, Cristianismo Perdido (S.P.: Pensamento); Robin Amis, A DifferentChristianity (Albany: State University of New York Press, 1995); Ted Andrews, O Cristo Oculto (S.P.:Pensamento, 1997); Boris Mouravieff, Gnosis, Study and Commentaries on the Esoteric Tradition ofEastern Orthodoxy (Newbury, MA: Praxis Institute Press, 1990), 3 vol, e The Philokalia, The complete

    text(Londres: faber and faber, 1979), 5 vol.9 St. Agostinho, Confisses, Livro I, cap. 13, vers. 3, citado por C.W. Leadbeater, A Gnose Crist(Braslia: Editora Teosfica, 1994), pg. 90.

    11

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    12/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    13/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    14/210

    dessa fase a constante preocupao com o crescimento espiritual. A pessoa dever efetuardiversas mudanas em sua atitude e no seu comportamento, para purificar-se e chegar cadavez mais perto da meta.

    8. Ao desenvolver um ego forte, lcido e crtico o homem maduro chegar um dia ao ltimoestgio do Caminho, a etapa mstica. Essa etapa tambm corresponde, de certa forma, ao

    caminho ocultista, que ser descrito mais adiante. O mstico o buscador espiritual que,tendo feito tudo o que podia para a sua autotransformao, reconhece que os esforos doego no so suficientes para alcanar a meta suprema, o que s pode ser feito com a ajudado Alto. A Graa Divina no pode ser forada, mas o terreno para que ela seja concedidapode e deve ser devidamente preparado por uma vida de purificao, meditao e servio. Omstico procura subordinar seu ego desenvolvido para fazer a vontade de Deus e no mais asua.

    9. No Caminho ocorre um drstico afunilamento de uma etapa para a outra, como havia sidoindicado por Jesus quando disse muitos so chamados, mas poucos escolhidos (Mt 22:14)e tambm que escolherei dentre vs, um entre mil e dois entre dez mil (Evangelho deTom, versculo 23).11 Portanto, no de se estranhar que as instrues esotricas de Jesusfossem dirigidas aos poucos, enquanto seu ministrio pblico era voltado para os

    muitos. Da mesma forma, entre os milhares de buscadores que se dedicam vidaespiritual, so poucos os que alcanam as realizaes msticas avanadas associadas aoReino dos Cus.

    10. O ministrio de Jesus cobriu as trs etapas do Caminho. O ensinamento aberto ao povo,mais tarde acrescido das doutrinas e dogmas estabelecidos pela Igreja, visava atender aprimeira etapa de desenvolvimento do homem. Seus ensinamentos esotricos, velados nasparbolas e ministrados diretamente a seus discpulos, tinham por objetivo guiar o homemao longo da segunda etapa de busca espiritual. Seu mtodo de ensino, incluindo a crtica sabedoria convencional, ou seja, religio ortodoxa dos judeus de sua poca (que serexaminado, em especial, nos captulos 4 e 10), visava estimular a razo, o discernimento e osenso de responsabilidade do homem em busca do Reino. Esses ensinamentos e,

    principalmente, os mistrios, ou sacramentos, que Jesus ministrava aos poucos que estavampreparados para eles, visavam levar o homem ltima etapa, vida unitiva do caminhomstico. Nessa etapa o homem aprende que deve morrer para o mundo para alcanar oReino, ou seja, entregar-se inteiramente a Deus para alcanar a Salvao.

    Observamos que o Caminho, como tudo na vida, apresenta uma peridica alternncia deciclos. Na primeira etapa a criana tem uma atitude passiva para com a vida, aceitando aorientao de seus superiores. O adulto, ao contrrio, para ser bem sucedido, deve assumir umaatitude ativa, buscando sua liberdade para decidir sobre o que julga ser melhor para seusinteresses. Na ltima etapa, o futuro sbio deve mais uma vez retornar passividade,aguardando com pacincia, humildade e perseverana a chegada da Graa, que trar ailuminao.

    A classificao das trs etapas do Caminho como religiosa, espiritual e mstica deve ser

    entendida como indicativa de caractersticas bsicas do comportamento e atitude dos indivduos.Para evitar controvrsias semnticas, deve ficar claro que um indivduo na etapa espiritual ouat mesmo na via mstica pode se considerar corretamente como sendo religioso, cristo oucatlico. A religio em seu sentido mais amplo deve acomodar almas em todos os estadosevolutivos, da mesma forma como o Reino do Pai, que tem muitas moradas.

    Esta obra foi dividida em sete partes. Na primeira, procuramos identificar o estado atualda vida espiritual do cristo comum, alheio aos ensinamentos internos de Jesus, e indicar porque o momento presente especialmente propcio para resgatar esses ensinamentos,confirmando as palavras do Mestre de que nada h de oculto que no venha a ser manifesto, enada em segredo que no venha luz do dia (Mc 4:22).

    11 Vide J. Robinson (ed.),Nag Hammadi Library (San Franciso: Harper), pg. 129.

    14

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    15/210

    A segunda parte estabelece a definio de tradio interna, determina as fontesprimrias e secundrias dessa tradio e as formas para termos acesso ao seu material. Aimportncia da interpretao do material bblico ressaltada.

    O significado da meta suprema apontada por Jesus, o Reino dos Cus, o objeto daterceira parte. Contrastando com o conceito de Reino na tradio judaica e como ele foi

    interpretado pelas igrejas ortodoxas, sugerido que o Reino dos Cus no um lugar no tempoe no espao, e no atingido somente aps a morte, mas um estado de esprito que pode edeve ser alcanado aqui e agora. Ao contrrio do que muitos crem, s aqueles que alcanam oReino enquanto encarnados podem gozar da bem-aventurana celestial aps a morte.

    A quarta parte a descrio do processo de retorno Casa do Pai, a nossa meta, sendo aParbola do Filho Prdigo um exemplo de como a interpretao de um mito ou alegoria podeproporcionar a chave para o entendimento dos ensinamentos ocultos de Jesus. Dois outros mitoscosmognicos ainda mais abrangentes e profundos do que aquela parbola, conhecidos como oHino da Prola e o mito de Pistis Sophia, so apresentados em anexo, oferecendo assim outrasfontes para o mesmo ensinamento. Como o objetivo do trabalho no meramente acadmico, asquestes prticas relacionadas com o mtodo e o instrumental transformador legado pela nossatradio so enfatizadas, ocupando a maior parte do livro.

    A quinta parte aborda o mtodo para alcanar o Reino dos Cus, que foi descrito porJesus como a porta estreita e o caminho apertado. Em sua essncia, o mtodo poderia serresumido no que a ortodoxia chamou de arrependimento, mas que no original grego erametanoia, que tinha um significado bem mais amplo, que era o de mudana dos estados mentaisque levam mudana de conscincia pela superao dos condicionamentos e da ignornciaanterior. Esse conceito basicamente psicolgico e oferece um paralelo com o enfoque datradio budista de transformao da mente. Ainda nesta parte so abordados os primeirospassos no caminho espiritual, incluindo o despertar para a realidade ltima da vida, a eternabusca da felicidade e o papel da aspirao ardente. Finalmente, so examinadas as regras docaminho espiritual, a fundao da verdadeira f. Dentre essas regras so discutidas a unidade detodas as coisas, a natureza cclica da manifestao, o objetivo do processo de manifestao, o

    papel do livre arbtrio e da lei de causa e efeito e a importncia do conhecimento de si mesmo.O instrumental transformador de nossa tradio to rico e efetivo como o das tradiesorientais. Esse instrumental, que constitui verdadeiramente as chaves do Reino dos Cus, examinado na sexta parte. Assim como a Bblia nos fala dos doze apstolos de Jesus, a tradiointerna legou-nos doze instrumentos transformadores. Os seis primeiros servem como fundaopara o processo transformador, promovendo o que os msticos chamam de via negativa oupurgativa e os cristos primitivos de kenosis, ou esvaziamento que prepara a alma para recebera Graa suprema do Esprito. Esses seis primeiros instrumentos fundamentais so a f, o amor aDeus, a vontade, a purificao, a renncia e o discernimento. Os outros seis instrumentos so denatureza mais operativa. So eles: estudo, orao e meditao, lembrana de Deus, ateno,rituais e sacramentos e, finalmente, a prtica das virtudes.

    Na stima e ltima parte destaca-se a integrao entre a natureza superior e a inferior do

    homem que, semelhantemente ao processo de individuao descrito por Jung, necessria paraque ocorra o verdadeiro crescimento espiritual. Verifica-se que o amor e a verdade so oselementos integradores mais importantes no processo. De interesse especial para o devoto soos indcios de que a transformao est ocorrendo e est levando-o progressivamente uniocom o Supremo Bem, a meta de todo esforo. Um fato de especial interesse para o devoto quea vida do Cristo, pode ser vista como uma alegoria do caminho acelerado, em que os marcos deseu nascimento, batismo, transfigurao, morte e ressurreio e, finalmente, a ascensorepresentam as cinco grandes iniciaes.

    Com o objetivo de tornar este livro o mais prtico possvel para o buscador determinado aentrar pelaPorta Estreita e trilhar o Caminho Apertado, reunimos no Anexo 1 algumas prticase exerccios espirituais, decorrncia natural dos instrumentos transformadores examinados ao

    longo do texto. Um glossrio tambm apresentado, numa tentativa de facilitar o entendimentoda terminologia crist e esotrica, bem como uma bibliografia.

    15

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    16/210

    16

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    17/210

    II

    O LADO INTERNO

    DE UMA TRADIO

    17

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    18/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    19/210

    Quando ficaram sozinhos, os que estavam junto dele com os Doze o interrogaram sobreas parbolas. Dizia-lhes: A vs foi dado o mistrio do Reino de Deus; aos de fora, porm,tudo acontece em parbolas (Mc 4:10-11).Se aceitamos o teor dessa passagem, que confirmado em outras partes dos evangelhos15e

    em documentos apcrifos,16 podemos assumir que a tradio crist, pelo menos em seus

    primrdios, teve um lado interno, estabelecido diretamente por Jesus. Paulo confirma esse fatoem suas epstolas quando fala de verdades veladas, reservadas aos perfeitos, 17 ou seja, aos quetinham sido iniciados nos mistrios de Jesus: Ensinamos a sabedoria de Deus, misteriosa eoculta, que Deus, antes dos sculos, de antemo destinou para a nossa glria (1 Co 2:7). E,referindo-se aos dons da graa de Deus, o apstolo diz: Desses dons no falamos segundo alinguagem ensinada pela sabedoria humana, mas segundo aquela que o Esprito ensina,exprimindo realidades espirituais em termos espirituais (1 Co 2:13). Na Epstola aos Hebreus mencionado que, mesmo com o passar do tempo, a maior parte dos membros das comunidadescrists primitivas ainda no estava apta a receber os ensinamentos internos:

    Muitas coisas teramos a dizer sobre isso, e a sua explicao difcil, porque vostornastes lentos compreenso. Pois, uma vez que com o tempo vs devereis ter-vostornado mestres, necessitais novamente que se vos ensinem os primeiros rudimentos dos

    orculos de Deus, e precisais de leite, e no de alimento slido. De fato, aquele que aindase amamenta no pode degustar a doutrina da justia, pois uma criancinha! Os adultos,porm, que pelo hbito possuem o senso moral exercitado para discernir o bem e o mal,recebem o alimento slido. (Hb 5:11-14)No evangelho de Joo existem vrias passagens de natureza profundamente esotrica

    apresentadas de forma velada. Existem, tambm, indicaes de que outros evangelhos denatureza esotrica foram escritos mas no foram conservados pela tradio ortodoxa, como oEvangelho de Matias, referido por Jernimo, o Evangelho secreto de Marcos,18 e os Evangelhosde Tom e de Felipe, encontrados na biblioteca de Nag Hamaddi. Clemente de Alexandria, umdos maiores patriarcas da Igreja, falando sobre o trabalho de Marcos e os ensinamentos secretosde Jesus, escreve: (Desta forma) ele (Marcos) organizou um evangelho mais espiritual para

    aqueles que estavam sendo purificados. No entanto, no divulgou as coisas que no deveriam serreveladas, nem escreveu os ensinamentos hierofnticos do Senhor... Incluiu certas explicaesque, ele sabia, conduziriam os ouvintes ao santurio mais interno daquela verdade oculta por

    sete (vus).19

    A prtica de diferenciar os nveis de ensinamento conforme a preparao dos ouvintes eracomum entre os judeus, tanto da tradio rabnica como dos essnios, que transmitiam doistipos de ensinamentos, um externo para o povo e os nefitos, e outro interno, para os estudantesavanados.20

    Os grandes seres que legaram ensinamentos humanidade, que mais tardetransformaram-se em religies, sempre levaram em considerao as necessidades especficasdas almas em diferentes estgios evolutivos. Para as massas eram ministradas instruessimples, voltadas para as necessidades prementes de orientao moral, de consolao e de

    esperana para os aflitos. Assim, as parbolas e outros ditados de Jesus contm, numa primeiraleitura, uma moral da estria, um ensinamento prtico, geralmente apresentado com imagensda vida diria de seus ouvintes. Porm, para as pessoas mais instrudas e j despertasespiritualmente, as mesmas parbolas, devidamente interpretadas, ofereciam outra camada de

    15 Mt 13:10-13; 13:17; Mc 4:34; Lc 8:9-15; Lc 24:27; Jo 20:30; Jo 21:25.16 Vide: J. Robinson, ed., The Nag Hammadi Library (San Francisco: Harper); W. Schneemelcher, ed.,New Testament Apocrypha (Louisville, USA: Westminster/John Knox Press, 1991); R. Branco, PistisSophia. Os Mistrios de Jesus (R.J.: Bertrand Brasil, 1997)17 I Co 2:6-9; I Co 4:1; Ef 3:9; Cl 1:26.18 Morton Smith, The Secret Gospel: The Discovery and Interpretation of the Secret Gospel According to

    Mark(Clearlake, Cal.: The Dawn Horse Press, 1982)19 Morton Smith, The Secret Gospel, op.cit., pg. 15.20The Secret Gospel, op.cit., pg. 81-84.

    19

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    20/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    21/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    22/210

    Captulo 2

    AS FONTES PRIMRIAS DA TRADIO INTERNA

    Se Jesus passou ensinamentos reservados, como poderemos, ento, ter acesso a elesdecorridos quase 2000 anos? Por estranho que parea, em certos casos, a passagem do tempotende a relaxar o sigilo sobre as coisas esotricas, em virtude do desenvolvimento consciencialda humanidade. Com isso, o esoterismo de uma era torna-se o exoterismo das eras seguintes.Essa tendncia parece comum a todas as tradies. Ao que tudo indica, Jesus tinha em mente ainevitabilidade dessa abertura gradual quando disse:

    Pois nada h de oculto que no venha a ser manifesto, e nada em segredo que no venha luz do dia (Mc 4:22).Como veremos a seguir, existem trs fontes bsicas originais e duas fontes secundrias

    dos ensinamentos e prticas ocultas de nossa tradio. As fontes primrias so as mais prximasda origem dos ensinamentos ocultos de Jesus. So a prpria Bblia, os documentos apcrifos e atradio oral. As fontes secundrias so, em primeiro lugar, os ensinamentos transmitidos pelosgrupos esotricos que surgiram ao longo do tempo dentro da tradio crist ou associados a ela,como os templrios, os albigenses, os rosa-cruzes, os alquimistas e, em segundo lugar, a vida eexperincia espiritual dos msticos. Essas fontes so referidas como secundrias, em termos dorelativo afastamento temporal da fonte original dos ensinamentos e no de sua importncia,pois, oferecem dados valiosos e de grande abrangncia, nem sempre explicitados nas fontesprimrias.

    Os evangelhos cannicos

    Pode parecer estranho, primeira vista, a referncia Bblia como uma fonte primria datradio esotrica, em vista da opinio corrente de que os ensinamentos do Mestre relatados nosevangelhos eram destinados ao grande pblico, aos muitos, e que os ensinamentos internosministrados aos discpulos no foram includos na Bblia, sendo transmitidos somente pelatradio oral. Esse um erro muito comum que precisa ser corrigido.

    A palavra bblia ( ) em grego significa livros. A Bblia, portanto, era aexpresso coloquial usada para referir-se aos livros que haviam sido escolhidos pela Igreja,dentre os muitos evangelhos e documentos existentes, para representar o Cnon,25 ou seja, aexpresso oficial da Boa Nova, como referendada pela Igreja. Se houve uma escolha entrediversos documentos, isso significa que alguns ou mesmo muitos documentos foram preteridospelas autoridades eclesisticas, apesar de muitos deles terem sido escritos ou compilados porautoridades to competentes quanto s dos evangelhos cannicos. Essa escolha, ou melhor

    dito, esse veto, deve-se ao fato desses documentos conterem informaes ou ensinamentos quedivergiam das doutrinas preconizadas pelos bispos mais influentes da poca.26

    25 A palavra cnon vem do grego , que significava originalmente junco ou bambu usado paramedir. Mais tarde, o sentido de medida assume uma conotao genrica de regra, preceito, praticamentede lei. Passou a ser usada pela Igreja com o significado de norma, regra de conduta, padro, sendo nessesentido que o termo evangelhos cannicos era usado. Esse cnon tornou-se particularmente importanteem vista da disputa entre a nascente hierarquia da Igreja e os grupos gnsticos, que, ao que tudo indica,estavam aliciando um nmero crescente de simpatizantes com suas doutrinas e seus evangelhos (Vide W.Schneemelcher, ed., New Testament Apocrypha (Louisville, USA: Westminster/John Knox Press, 1991),

    pg. 10-12.26 Uma das primeiras listas de documentos cannicos, algo parecido com o Novo Testamento atual, foi

    proposta pelo Bispo Irineu, de Lion, com o beneplcito de alguns colegas, por volta de 180 d.C. Doissculos mais tarde, o Bispo Athanasius preparou uma lista semelhante, ratificada pelos conclios de Hippoe de Cartago (M. Baigent, R. Leigh e H. Lincoln,Holy Blood, Holy GrailN.Y.: Dell, 1982), pg. 318. Uma

    22

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    23/210

    O leigo geralmente associa a palavra Bblia aos quatro evangelhos. Na verdade, a Bbliacontm o Antigo e o Novo Testamento, sendo esse ltimo o relato da Boa Nova de Jesus, o queem parte explica a idia popular sobre a Bblia como sinnimo de evangelho, pois esse termo,evangelho ( ), a palavra grega que expressa a idia de boa nova. 27 O NovoTestamento, no entanto, composto de vinte e sete documentos, dentre os quais os quatro

    evangelhos ocupam posio de destaque.Os trs primeiros evangelhos (Mateus, Marcos e Lucas) so referidos como sinticosporque narram a vida e ministrio de Jesus segundo uma tica semelhante, enquanto o quartoevangelho, atribudo a Joo, diferente, sendo considerado esotrico. Dentre os sinticos,apenas um tero do contedo comum aos trs. Cinqenta por cento do material contido emLucas exclusivo, trinta e quatro por cento em Mateus e dez por cento em Marcos. Da, admitir-se que a redao de Marcos precedeu a dos outros dois, que se apoiaram nele no que diz respeitoaos relatos sobre a vida de Jesus.

    A autoria dos evangelhos nem sempre bem explicada aos leigos. Cada evangelho no o produto monoltico de um nico autor. Na verdade, sabemos hoje em dia que eles so o frutoda contribuio de vrios autores, ao longo de muitos anos, tendo passado por diferentes versesat chegar ao formato atual. A autoria, no entanto, atribuda ao autor que, de acordo com a

    tradio, teria fornecido a primeira camada ou verso da parte principal da obra. Esses fatos soadmitidos at mesmo pelas autoridades eclesisticas.28

    A verso atual do Evangelho de So Joo tambm passou por um complexo processo deincorporao e editorao semelhante aos sinticos. Para muitos ele incorpora uma fonteanterior, um Evangelho de Sinais.29 Na Introduo da Bblia de Jerusalm ao Evangelho segundoSo Joo, somos informados que:

    A ordem na qual se apresenta o evangelho cria certo nmero de problemas. possvelque essas anomalias provenham do modo como o evangelho foi composto e editado: comefeito, ele seria o resultado de uma lenta elaborao, incluindo elementos de diferentespocas, bem como retoques, adies, diversas redaes de um mesmo ensinamento, tendo

    sido publicado tudo isso definitivamente, no pelo prprio Joo, mas, aps sua morte, por

    seus discpulos; dessa forma, estes teriam inserido no conjunto primitivo do evangelhofragmentos joaninos que no queriam que se perdessem, e cujo lugar no estavarigorosamente determinado.30

    Os estudiosos bblicos concordam que a redao dos evangelhos como os conhecemoshoje, pelo menos os de Mateus, Lucas e Joo, resultaram da estruturao dos ensinamentos deJesus na sua tradicional forma de logia e parbolas, dentro de um arcabouo do que seria ahistria da vida de Jesus. Foi essencialmente essa combinao que criou toda uma srie deproblemas de interpretao bblica, que perdura at hoje. Tanto as logia como os relatos dahistria do Cristo tinham uma grande importncia simblica e, certamente, foram escritosoriginalmente sob inspirao. Infelizmente, mesmo assim, as autoridades eclesisticas querem a

    abrangente histria do cnon da Igreja apresentada no livro New Testament Apocrypha (op.cit., pg. 34-

    42).27 O termo evangelho aparece muito pouco no Antigo Testamento e, mesmo assim, sem nenhumaconotao tcnica, sendo usado para vrios tipos de mensagens. Nas epstolas de Paulo, que so os

    primeiros documentos da tradio crist, tanto o substantivo como o verbo () adquirirama conotao tcnica referente mensagem crist e sua proclamao. No Evangelho e nas Epstolas deJoo, nem o substantivo nem o verbo so usados, o que para os estudiosos mais uma indicao de que acomunidade joanina estava fora da esfera de influncia da rea missionria de Paulo. Ainda que o termoseja usado nos sinticos, nem sempre parece expressar exatamente a mesma coisa (Vide H. Koester,Ancient Christian Gospels: their history and development(Philadelphia, Pa.: Trinity Press, 1990, pg. 1-48).28 Vide a introduo aos evangelhos sinticos na Bblia de Jerusalm, a verso mais atualizada da Bblia,

    preparada por uma grande equipe de telogos com o respaldo oficial e o imprimatur do Vaticano.29

    R. Funk e R. Hoover, The Five Gospels. The search for the authentic words of Jesus (N.Y.: Macmillan,1993), pg. 16.30 Bblia de Jerusalm (S.P.: Edies Paulinas, 1993), pg. 1981

    23

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    24/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    25/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    26/210

    A partir destes poucos (textos mal traduzidos, a Bblia), foi edificada uma estruturainsegura de uma doutrina desarrazoada que, examinada luz da razo, mostra-seimediatamente indefensvel. O verdadeiro e nobre ensinamento do Cristo est bem claronas prpria escrituras. Elas nos falam constantemente de uma doutrina oculta que no foirevelada ao pblico. H muito tem sido costume negar isso e ostentar que o cristianismo

    nada contm que esteja alm do alcance do intelecto mais mediano. seguramente umavergonha para o cristianismo dizer que no h nada nele para o homem que pensa.38

    O primeiro passo, portanto, para que se possa resgatar os ensinamentos esotricos deJesus que se encontram no Novo Testamento estabelecer firmemente a premissa de que tantoos relatos sobre a vida de Jesus como seus ensinamentos devem ser interpretados, e que aschaves para essa interpretao podem ser obtidas. Essa premissa no uma posio moderna. Jno segundo sculo de nossa era, Clemente de Alexandria, um dos mais respeitados e cultospadres da Igreja primitiva, ensinava que devemos procurar entender a mensagem essencial deJesus por trs dos relatos dos evangelhos e da tradio oral:

    Sabendo que o Salvador no ensina nada de uma maneira meramente humana, nodevemos ouvir seus pronunciamentos de forma carnal; mas com a devida investigao einteligncia, devemos buscar e aprender o significado oculto neles.39

    Em outra ocasio Clemente indicou que existe um significado secreto nos ensinamentosde Jesus e que os mistrios da f no devem ser divulgados a todos, portanto, como essatradio relatada exclusivamente quele que percebe o esplendor da palavra, necessrioocultar num Mistrio a sabedoria divulgada que o Filho de Deus ensinou. 40

    Nesse sculo, Geoffrey Hodson, outro grande erudito da Bblia, produziu um estudomonumental sobre o significado oculto das escrituras sagradas.41 Em suas palavras,

    Aqueles que consideram as escrituras e mitologias do mundo como uma combinao dehistria, alegoria e smbolo evidenciam que respostas plenas para essas e outras questesurgentes relativas vida humana, experincias e destino esto contidas debaixo da

    superfcie dos textos escriturais. Eles afirmam, ademais, que tais respostas so dadasplenamente ali com significados subjacentes, e que a impotncia relativa do cristianismo

    ortodoxo de hoje na presena dos males mundiais to evidentes devida insistnciaoficial na crena da Bblia como revelao divina, verbal, desde o Gnesis at o

    Apocalipse. Se a ortodoxia estivesse disposta a examinar as escrituras como parbolas,que revelam verdades e leis espirituais, ao invs de insistir em que o texto, em suainterpretao literal, expresso divina e, portanto, verdade absoluta, ela no estaria

    sujeita aos ataques que lhe so desferidos. Quando, alm disso, a crena implcita na letrada Bblia est estabelecida como essencial salvao da alma, intensificada uma naturalrepulso da aceitao de dogmas, alguns dos quais violam o fato e a possibilidade. 42

    Os maiores estudiosos da Bblia insistem que ela uma fonte de ensinamentos ocultos e,como todas as escrituras sagradas, deve ser interpretada de acordo com uma simbologia milenarconhecida dos grandes seres que foram inspirados a escrev-las.43 Essas verdades sempre foram

    38A Gnose Crist, op.cit., pg. 89.39 Clemente de Alexandria, On the Salvation of the Rich Man 5 , em A. Roberts and J. Donaldson, eds.,The Ante-Nicene Fathers: Translations of the Writings of the Fathers down to a.D. 325, Reprinted (GrandRapids: William B. Eerdmans, 1981), vol. II, pg. 592.40 Clemente de Alexandria, Stromata, vol. I, cap. xxi, pg. 388.41 Geoffrey Hodson, The Hidden Wisdom in the Holy Bible (Wheaton, Illinois: The TheosophicalPublishing House, 1963), quatro volumes.42The Hidden Wisdom in the Holy Bible, op.cit., vol. I, pg. 6.43 Peter Roche de Coppens, referindo-se linguagem da Bblia, escreve: Ela a linguagem simblica eanalgica dos Sbios, usada para descrever vises, intuies e xtases obtidos em estados alterados deconscincia, num estado de iluminao ou de conscincia espiritual; ela a lngua esquecida da Mente

    Profunda, a linguagem das imagens, arqutipos e mitos que tm tantos significados diferentes einterpretaes possveis como existem estados de conscincia, nveis de evoluo e biografias pessoais.Divine Light and Fire, op.cit., pg. 7.

    26

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    27/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    28/210

    incorporada em sua metodologia o estudo da simbologia milenar das escrituras sagradas eprocurar-se- encontrar a verdade sobre o ministrio de Jesus e no a mera subservincia sposies dogmticas da Igreja.

    Em seu estudo mpar sobre a interpretao da vida e dos ensinamentos de Jesus, GeoffreyHodson alerta que Jesus foi realmente um personagem histrico, e que a Bblia inclui alguns

    incidentes sobre sua vida na Palestina. Porm, esse autor insiste que o importante no o fatohistrico, mas sim seu significado mstico:Os evangelhos, particularmente os sinticos e S. Joo, so muito mais documentosmsticos do que histricos. Essa a idia que falta em todas as exposies da estriaevanglica. A nfase colocada erroneamente sobre o histrico, quando deveria ser posta

    sobre o Jesus mstico, o veculo escolhido, o maravilhoso jovem hebreu sobre cuja vida,imperfeitamente registrada, toda a estrutura do cristianismo est fundada. As muitas

    passagens lembrando os ensinamentos profundamente esotricos de Jesus, inclusive osermo da montanha, esto entre as jias preciosas da sabedoria que ele legou humanidade em geral e, especialmente, a todos os aspirantes, para os quais a histria de

    sua vida pretende descrever a plena experincia e realizao espiritual. Assimconsiderada, a historicidade, ainda que seja importante num sentido, cede lugar

    inteiramente ao reconhecimento da prola inestimvel de sabedoria que o relatoevanglico contm.49

    Tendo em vista essas consideraes, partimos da hiptese de que Jesus, seguindo atradio milenar dos grandes Mensageiros da Luz, incluiu em sua mensagem todos osensinamentos necessrios para despertar os que esto mortos para o Esprito e prepararprogressivamente os peregrinos para que possam encontrar e, finalmente, trilhar a Senda daPerfeio para, no seu devido tempo, ingressar no Reino dos Cus. Esse trabalho em dois nveis,o ministrio pblico e a instruo interna dos discpulos, exigiu, por parte de Jesus, um cuidadotodo especial para que os segredos do Reino no fossem divulgados abertamente aos muitos,pois esses no estavam preparados para receb-los. Isso explica porque Jesus pregava ao pblicopor meio de parbolas e metforas, que incluam verdades profundas para os que tm olhos para

    ver e ouvidos para ouvir.Porm, como efetuar essa interpretao? Algumas chaves para a interpretao dasescrituras alegricas so conhecidas:

    Todos os eventos registrados, supostamente histricos, tambm ocorrem interiormente.Cada evento descreve uma experincia subjetiva do homem.Cada pessoa que figura proeminentemente na histria representa uma condio daconscincia e uma qualidade de carter.Cada estria considerada como descrio da experincia da alma ao passar por certasfases da sua jornada evolutiva para a Terra Prometida. Quando os seres humanos so osheris, a vida do homem no seu estgio normal de desenvolvimento est sendo descrita.Quando o heri semidivino, a tnica colocada sobre o progresso do Ser divino nohomem depois dele ter comeado a assumir poder preponderante. Quando, entretanto, a

    figura central um Mensageiro Divino ou descendente de um aspecto da Deidade, suasexperincias narram aquelas do Eu Superior nas ltimas fases da evoluo do homemdivino em direo estatura do homem perfeito. Todos objetos e certas palavras tm significado simblico especial. A linguagemsagrada das Escolas de Mistrio formada de hierogramas e smbolos mais do que depalavras, sendo o seu significado constante no tempo e no espao.50

    Assim, cientes de que a Bblia esconde um tesouro de informaes que podem serdesveladas com base no estudo das alegorias e smbolos conhecidos, consideramos o NovoTestamento como uma das fontes do lado interno da tradio crist.

    Os documentos apcrifos

    49The Life of Crist from Nativity to Ascension, op.cit., pg. 31550Hidden Wisdom in the Holy Bible, op.cit., vol. I, pg 85-99.

    28

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    29/210

    A segunda grande fonte da tradio interna so os documentos chamados apcrifos pelaortodoxia, os escritos que no foram aceitos no cnon bblico, mas que tratavam dos mesmosassuntos do Antigo e do Novo Testamento. Existe uma grande variedade de documentosclassificados nessa categoria genrica. Alguns, como os relatos da infncia de Jesus, eram muitopopulares entre as classes mais humildes; outros apresentavam relatos ou doutrinas

    disparatadas; mas um grande nmero era de escritos oriundos dos grupos denominadosgnsticos, que desde o primeiro sculo representaram um espinho na carne das doutrinasortodoxas.

    O termo apcrifo em grego ( ) significava aquilo que estava escondido ouvelado. Portanto, o fato de um texto estar escrito em linguagem velada ou oculta era, naquelapoca, indicao de idoneidade e profundidade. Tais eram os escritos esotricos gnsticos que,com freqncia, usavam criptogramas e smbolos para velar suas doutrinas. No entanto, ospadres da Igreja, aps selecionar aqueles livros que fariam parte do cnon, com suas repetidasreferncias depreciativas aos documentos rejeitados, conseguiram mudar a conotao dessetermo, fazendo com que os documentos velados, ou apcrifos, fossem tidos como inidneos oude autenticidade no comprovada.51 Atualmente, os dicionrios informam que, entre catlicos eprotestantes, chamam-se apcrifos os escritos de assuntos sagrados no includos pela Igreja no

    cnon das escrituras autnticas e divinamente inspiradas. Esse estigma continua afetando atmesmo alguns eruditos modernos que ainda caracterizam os evangelhos apcrifos como

    secundrios, derivados, especulativos e meramente voltados para a edificao e entretenimentode seus leitores, enquanto os evangelhos cannicos so rotineiramente vistos como originais,histricos e repletos de percepes teolgicas.52

    Durante os sculos II e III de nossa era esses documentos eram simplesmente rejeitadospela Igreja como esprios e disseminadores de uma falsa f. Porm, a partir do sculo IV, com aaliana da Igreja com o Imperador Constantino, os bispos passaram a exercer poder temporalem assuntos religiosos e, com isso, procuraram abolir os documentos apcrifos, principalmenteaqueles de origem gnstica. Milhares de manuscritos preciosos foram queimados ouseqestrados. Em muitos casos, s temos conhecimento de alguns desses manuscritos devido a

    citaes em obras literrias de seus detratores, como Irineu e Tertuliano, por exemplo, queescreveram contra os hereges, como eram chamados os autores dos documentos apcrifos.A atitude intolerante da incipiente Igreja nos primeiros sculos de nossa era pode ser

    compreendida em face da deciso tomada de popularizar a vida de Jesus como narrada nosevangelhos, como sendo a verdadeira mensagem divina, a Boa Nova, estabelecendo uma sriede conceitos que resumiriam o que os fieis deveriam crer para alcanar o cu. Como osescritos e ensinamentos mais esotricos da corrente mais pura do cristianismo primitivo eramuma constante fonte de contradio com esse enfoque distorcido da verdade, a soluoencontrada foi anatemiz-los e destru-los, o que passou a ser feito com grande zelo pelo cleroda corrente dominante.

    O pomo de discrdia era o papel de Jesus e de seu ministrio. A ortodoxia apresentava,como apresenta hoje, Jesus como um dos aspectos da Divindade, a segunda pessoa da Trindade,

    o Verbo feito carne que habitou entre ns, tendo vindo Terra para expiar os pecados domundo. Esse dogma da expiao vicria, em evidente contradio com as palavras de Jesus,como registradas nos evangelhos cannicos, levou a Igreja, por absurdo que parea, a relegar osensinamentos de Jesus a um segundo plano. A mensagem de Jesus foi praticamente esquecida;para a Igreja o que importava era o mensageiro. Alguns telogos, at hoje, assumemabertamente esta posio:

    Para os cristos, a boa nova o prprio Jesus, e no qualquer coisa que ele tenha ditoou no. Num sentido mais restrito, o termo evangelho refere-se aos registros escritos da

    sua vida, obras e palavras. Para a Igreja crist, nada disso pode ser separado ou isolado,pois o primordial quem ele . O que fez foi uma conseqncia de quem ele , da mesma

    51New Testament Apocrypha, op.cit., pg. 14.52Ancient Christian Gospels, op.cit., pg. 44.

    29

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    30/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    31/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    32/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    33/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    34/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    35/210

    mito representado de forma dramtica, s palavras de passe da fraternidade e seu significado, sfrmulas de iluminao e sabe-se l que outros fatos de interesse oculto.73

    Os msticos, ao contrrio, sempre sentiram a obrigao de compartilhar suas experinciascom seus irmos buscadores, de forma a confirmar que possvel a unio com Deus paraaqueles que seguem o rduo, mas gratificante, caminho da entrega total ao Pai Supremo at

    alcanarem o merecimento de receber a graa da Luz Divina.Os membros dos grupos esotricos podem, num certo sentido, ser considerados comomsticos, porm, com uma caracterstica toda especial, eles tambm se valem de uma srie derituais e outros procedimentos para facilitar e acelerar o processo de transformao interior que,com o tempo, leva iluminao. Esses grupos, geralmente estabelecidos por iniciados comelevados dons espirituais, utilizam a teurgia, ou seja, a energia divina direcionada por aquelesdevidamente capacitados, para promover condies facilitadoras para as progressivas expansesde conscincia que caracterizam o caminho espiritual.

    Esses procedimentos no devem causar nenhuma surpresa ao estudioso, pois Jesusdemonstrou ser um grande teurgo, usando a energia divina tanto para curar o corpo como,principalmente, a alma. Jesus era familiarizado com os grupos ocultos de sua poca, poisacredita-se que ele era um essnio e recebeu instruo de seu tio o Rabbi Jehoshuah e, mais

    tarde, do Rabino Elhanan, renomado cabalista em sua poca, sobre os mistrios da Cabala. Osessnios eram grandes ocultistas e buscavam, principalmente em seu centro de treinamento emQumr, o ideal mstico de todos os sculos, a unio com Deus. O mesmo deve ser dito dosgrupos cabalistas, que mantiveram acesa a chama do conhecimento divino entre os judeus.

    No seria de estranhar, portanto, que Jesus ministrasse ensinamentos reservados a umgrupo de discpulos mais avanados, como mencionado na Bblia: Porque a vs foi dadoconhecer os mistrios do Reino dos Cus (Mt 13:11). Esse grupo de discpulos foi o ncleo doprimeiro grupo esotrico da tradio crist. Dele derivou-se, ao longo dos sculos, toda umasrie de outros grupos sempre com o objetivo de perseguir a gnosis divina que levava aoprometido Reino dos Cus.

    lgico supor-se que aps a morte de Jesus esse grupo interno continuou seus trabalhos e

    procurou manter, com todo o zelo caracterstico dos discpulos mais prximos do Mestre, atradio oculta que lhe havia sido transmitida. Assim, as instrues secretas, rituais,sacramentos e todo o instrumental transformador ensinado por Jesus foram mantidos por seusdiscpulos. Como si acontecer, na prtica de todos os grupos verdadeiramente esotricos, seusmembros comprometem-se solenemente a manter acesa a chama divina da gnosis74 para obenefcio de todos os verdadeiros buscadores que puderem ser admitidos ao dito sagrado.

    Seria lcito perguntar, portanto, por que a Igreja nunca reconheceu oficialmente aexistncia de grupos que seriam os mantenedores da tradio esotrica crist? A resposta bvia. O grupo que mais tarde tornou-se a Igreja Catlica, consolidada no sculo IV, sob a gidede Constantino, no era o ramo esotrico da tradio, mas sim aquele que manteve a tradioaberta, a tradio das parbolas de Jesus ministradas aos muitos (ao pblico). Entende-se,portanto, porque as autoridades eclesisticas sempre relutaram em reconhecer a existncia de

    73 Samuel Angus, The Mystery-Religions and Christianity (N.Y.: Citadel Press, 1966), pg. 78-79.74 O termo gnosis, que significa conhecimento, no original grego, no o conhecimento usual obtido

    pelas regras aceitas de raciocnio metdico, mas sim por revelao interior. Para os gnsticos, como paraos ocultistas, a gnosis era um conhecimento que oferecia a salvao, portanto, era basicamente denatureza interior. Na definio de Reitzenstein a gnosis era: Conhecimento imeditato dos Mistrios deDeus, recebido por meio de relacionamento direto com a Deidade ... Mistrios que devem permanecerocultos ao homem natural, um conhecimento que exercita, ao mesmo tempo, uma reao decidida em nossorelacionamento com Deus e tambm com nossa prpria natureza ou disposio. Citado por G.R.S. MeademA Gnosis Viva do Cristianismo Primitivo (Braslia: Ncleo Luz, 1995). Para outro autor, Aqueles quetinham a gnosis sabiam o caminho para Deus, de nosso mundo material visvel para o reino espiritual doser divino; sua meta final era conhecer ou ver a Deus que, s vezes, ia a ponto de tornar-se unido com

    Deus ou permanecer em Deus. Roelof van Den Broek, Gnosticism and Hermeticism in Antiquity, emGnosis and Hermeticism edit. por R.V.D. Broek e W.J. Hanegraaff (N.Y.: State University of New YorkPress, 1998), pg. 1.

    35

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    36/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    37/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    38/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    39/210

    III

    A META:

    O REINO DOS CUS

    39

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    40/210

    Captulo 3

    O SIGNIFICADO DO REINO PARA A ORTODOXIA

    Tanto os evangelhos cannicos como os gnsticos indicam claramente que o pontocentral do ensinamento de Jesus era a pregao do Reino. Nos evangelhos sinticos existemmais de cento e vinte referncias sobre o Reino de Deus e o Reino dos Cus. Em inmerasadmoestaes e parbolas o Mestre alerta que O Reino de Deus est prximo. Com seucorao compassivo, convidava a humanidade sofredora a buscar refrigrio e salvao no Reino.Nos apcrifos, alm das expresses Reino, Reino dos Cus, Reino de Deus, foram usadas outrasequivalentes: Mundo de Luz, Pleroma e Herana da Luz.

    Os evangelhos usam diferentes expresses para o Reino. Mateus geralmente prefere o

    termo, Reino dos Cus, Marcos e Lucas preferem Reino de Deus, enquanto Tom usaReino do Pai. Em Joo encontramos a expresso Vida Eterna num sentido semelhante aoReino dos sinticos. provvel que essas distines sejam meramente literrias e reflitam apreferncia dos compiladores e no de Jesus. Por isso, usaremos esses termos indistintamente,como sinnimos.

    Jesus, porm, no apenas pregava sobre o Reino, mas ensinava como nos prepararmospara nele entrar. Ele ainda nos convida a participar da glria do Reino, do qual somos herdeirosnaturais, sem distino de raa, classe social ou denominao religiosa. Para isso bastareivindicarmos nosso direito de nascena a essa herana. O chamado para nos acercarmos doPai misericordioso provocou uma revoluo espiritual no incio de nossa era. Seuscontemporneos na Palestina e muitos milhes de seres, desde ento, ficaram fascinados com apossibilidade de entrar no Reino de Deus. Infelizmente, relativamente poucos tiveram a

    coragem e a determinao para empreender a jornada rumo a essa meta.Todo ser humano, sendo em sua natureza ltima uma centelha ou expresso da prpria

    Divindade, tem dentro de si uma programao ou condicionamento original que o leva a buscarsuas origens para voltar ao estado de bem-aventurana e gozo de sua herana divina. Esse temada orientao interior da alma abordado com grande mestria no Hino da Prola, apresentadono Anexo 2. Portanto, ao pregar reiteradamente que o Reino de Deus estava prximo, Jesusatendia ao anseio mais profundo da alma de todos seus ouvintes.

    Entre os estudiosos da Bblia, incluindo os modernos buscadores do Jesus histrico, aquesto do Reino parece ser um dos principais pontos de concordncia. As palavras de NormanPerrin parecem resumir esse consenso: O aspeto central do ensinamento de Jesus foirelacionado ao Reino de Deus. No pode haver dvida sobre isso e hoje nenhum erudito, na

    verdade, duvida-o. Jesus apareceu como aquele que proclamou o Reino; tudo o mais em suamensagem e ministrio condiciona-se quela proclamao e dela deriva seu significado .83

    Logo no incio de seu ministrio na Galileia, aps seu batismo por Joo, Jesus disse:Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus est prximo (Mc 1:15). A indefinio sobre aproximidade do Reino, geralmente interpretada num sentido temporal e alimentada pelatradio apocalptica judaica, gerou a expectativa de um iminente fim dos tempos, com o totemido juzo final. Algumas passagens da Bblia so usadas para esse tipo de interpretao,como por exemplo:

    Enviando seus discpulos para pregar a Boa Nova, Jesus disse: Dirigi-vos, antes, sovelhas perdidas da casa de Israel. Dirigindo-vos a elas, proclamai que o Reino dos Cusest prximo (Mt 10:6-7).

    83Rediscovering the Teachings of Jesus, op.cit., pg. 54.

    40

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    41/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    42/210

    No perodo ps-exlio, a literatura judaica tende a enfatizar a exaltao a Deus edemonstrar a sua transcendncia. Essa tendncia pode ser vista nas prticas externas, tais comoevitar pronunciar o nome de Deus (Iahweh) e a conseqente substituio desse nome porpalavras tais como Senhor, o Nome, a Presena. Ao que tudo indica, essas prticas forammantidas pelos essnios.88

    Nos Targuns

    89

    palestinos sobre a Cano de Moiss (Ex 15:18), a durao do Reino deDeus indicada como sendo para todo o sempre e este referia-se tanto ao mundo celestialcomo ao terreno. No pensamento bblico, quando o estabelecimento do Reino de Deus necessitade uma intermediao, essa geralmente associada a um Messias, que se apresenta vitorioso embatalha sobre os inimigos.90

    A tradio messinica entre os essnios tambm era marcante. No Pergaminho da Guerra,a vitria final sobre as foras das trevas e o estabelecimento concomitante do Reino divino sodescritos como resultado da batalha escatolgica disputada pelos exrcitos aliados dos filhos daluz, humanos e anglicos, sob a liderana do Prncipe Miguel, contra a coalizo dos filhos dastrevas, humanos e demonacos (I QM 17:6 e seg.). Para os essnios, o Reino seria umaconquista rdua a ser obtida aps uma batalha sem trgua, que deveria ser preparada com grandeantecipao pelos filhos da luz. O Senhor triunfante assume a atitude tpica da tradio

    judaica, inspirando terror por sua ira contra seus inimigos (I QM 12:7-9).91Mas no s de forma aterrorizante manifesta-se o Senhor para a sua congregao. Sua

    glria terrestre, governando o destino dos homens, tambm anunciada para os sacerdotes deQumr, que viriam a ser os lderes do culto no Templo do Reino. Vemos, portanto, que osconceitos de Reino entre os judeus ortodoxos e os essnios, em sua interpretao literal, no nosajudam a entender a mensagem de Jesus sobre o Reino.

    O Reino para a IgrejaEm primeiro lugar, deve ficar claro que estamos usando o termo igreja com sua

    conotao hierrquica usual dentro de nossa tradio e no no seu sentido original. O termooriginal grego, tinha o significado de assemblia, da qual participavam igualmente

    todos os que estavam reunidos. Nos primrdios do cristianismo, significava a comunidadefraterna dos seguidores de Jesus, os praticantes de seus ensinamentos. A comunidade inteira,irmanada pelo ideal fraterno do amor, compartilhava das tarefas e do poder. Os diferentesministrios eram exercidos por todos, em consonncia com os dons carismticos de cada um.Com o passar do tempo, os lderes das comunidades crists comearam a utilizar o termo igrejapara retratar a hierarquia em comando. Foi instituda uma diviso clara entre a hierarquiaclerical, que detinha todo o poder, referida como igreja, e a comunidade dos fiis, que deviaobedecer s instrues do clero sob o comando de seu bispo. Dentro desse esquema, as grandesvirtudes do leigo passaram a ser apresentadas como a f na doutrina e a obedincia ao clero,ficando a prtica dos ensinamentos de Jesus em segundo plano. a essa igreja restrita,hierrquica e totalitria que nos referimos a seguir.

    A importncia do Reino na mensagem de Jesus no podia ser negada pela ortodoxia,

    mesmo no sendo realmente entendida. Passemos a palavra aos telogos para que expressemsua sincera perplexidade sobre o real significado do conceito que sabem ser central nosensinamentos do Salvador e que, ao longo dos quase vinte sculos da histria das igrejas crists,vem sendo interpretado de diferentes maneiras:

    No fcil definir com preciso o que significa realmente a expresso reino de Deus.Ao longo da histria da teologia, a interpretao desta expresso mudou muitas vezes, deacordo com a situao e o esprito da poca. A palavra reino expresso arcaica queno desperta nenhuma ressonncia em nossa atual experincia da realidade. A expresso

    precisa ser retraduzida para poder exprimir seu significado. Por isto, o problema que diz

    88 H. Ringgren, The Faith of Qumran, Theology of the Dead Sea Scrolls (N.Y.: Crossroad, 1995), pg. 4789

    Conjunto de tradues e comentrios de textos bblicos que datam do sculo VI a.C.90The Religion of Jesus the Jew, op.cit., pg. 131-32.91The Religion of Jesus the Jew, op.cit., pg. 127.

    42

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    43/210

    respeito mensagem de Jesus sobre o reino de como superar a distncia hermenutica 92

    entre o que o reino de Deus significava no ensinamento de Jesus e o que significa hojepara ns.Jesus nunca definiu o reino de Deus com uma linguagem discursiva. Apresentou suamensagem do reino em parbolas. As parbolas devem ser vistas como a escolha por parte

    de Jesus do mais adequado veculo para a compreenso do reino de Deus.

    93

    Os autores do texto acima no esclarecem o significado da expresso, porm, compensamsua perplexidade com o uso generoso do jargo teolgico. Mais adiante, esses autores sugeremuma interpretao sobre a natureza paradoxal do reino, que se lhes configura como algo que seinicia no presente, mas que ainda est por vir:

    Embora a presena histrica do reino, dentro e atravs do ministrio de Jesus, sejafortemente afirmada, deve ainda vir a consumao do que agora apenas experimentadode maneira antecipatria. Embora Jesus tenha ficado na tradio dos grandes profetas,

    sua mensagem profundamente influenciada pelas expectativas apocalpticas da poca.Apesar disto, no compartilhou do pessimismo dos escritores apocalpticos no tocante aeste mundo, mas descreveu de maneira realista o poder do mal. Sua mensagem do reino de

    Deus s pode ser entendida em seu contraste com o reino do mal, que est em ao neste

    mundo, permeando tudo. Jesus entendeu sua misso como a destruio e derrubada daspotncias do mal para trazer uma libertao que tende a acabar com todo o mal e transformao da criao inteira.94

    Esse tipo de considerao teolgica obscura no restrito aos autores desse texto. Idiassemelhantes permeiam os escritos da maioria dos telogos, fazendo com que, em alguns casos,suas tentativas de explicar a natureza do reino beirem a incoerncia:

    (Jesus) pregava algo novo: a chegada da plenitude dos tempos, do Reino que realizavade modo eminente as profecias da Salvao. O ensinamento de Jesus continha sem dvidamais que um anncio, mas estava centrado nessa mensagem, a da misericrdia divina, quetornava prxima dos homens a salvao escatolgica.95Na pregao sobre o mistrio do

    Reino de Deus (Mc 4:11), ou sobre o ingresso na vida, revela-se chegada a hora de os

    homens se defrontarem com a divina misericrdia. Sim, verdade que Deus reina desdesempre, sobre o cu e a terra, sobre Israel e sobre as naes pags, mas alm disto Eleprepara um Reino Escatolgico, todo feito de consolao exuberante e de experincia deSeu amor, e o que Jesus anuncia como aproximado enfim do homem.96

    Num esforo ingente para transmitir aos seus leitores um conceito que parece no terentendido, o autor dessa passagem balana entre o aqui e agora e o futuro escatolgico,tateando com o respaldo de citaes bblicas:

    Na mensagem de Jesus, o Reino de Deus, a salvao escatolgica, era algo que jchegara com sua pessoa e que, tendo embora uma futura manifestao gloriosa, noestava ligado apenas a essa condio epifnica97 e futura. A mensagem de Jesus fora

    preparada no Antigo Testamento quanto idia de um Reino de Deus iniciado dentro dahistria. Abrir-se-ia com o Messias, disseram os Profetas, a nova e eterna Aliana, em que

    Deus fixaria seu santurio em Israel, dali estabelecendo seu reinado sobre todos os povos,numa era de santidade e paz.

    92 Hermenutica quer dizer interpretao dos textos sagrados.93 R. Latouelle e R. Fisichella (ed.), Dicionrio de Teologia Fundamental(edio conjunta das editorasVozes e Santurio, 1994), pg. 738-3994Dicionrio de Teologia Fundamental, op.cit., pg. 740.95 Para os telogos, escatologia significa a doutrina sobre a consumao do tempo e da histria. O usodesse termo no muito feliz, tanto em sua etimologia como em sua conotao teolgica, pois, em grego,o significado primrio da palavra (escat + logia) tratado acerca dos excrementos, ou coprologia. Emseu sentido teolgico, o termo escatologia derivado da palavra grega eschaton, que significa final ou

    trmino, da a doutrina do final dos tempos.96 C.F. Gomes,Riquezas da Mensagem Crist (R.J.: Lumen Christi, 1981), pg. 347.97 No jargo teolgico significa apario ou manifestao divina.

    43

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    44/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    45/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    46/210

    Captulo 4

    UMA VISO ESOTRICA DO REINONOS ENSINAMENTOS DE JESUS

    Em linguagem corrente, a expresso Reino transmite a idia de uma rea de domniodentro da qual o reino delimitado e tambm da extenso de poder que seu governante, o Rei,exerce. Alguns autores103sugerem que o termo grego original, basileia, transmite mais o conceitode domnio. Assim, quando Jesus falava do Reino, estava se referindo s condies ousituaes em que o domnio de Deus imperava. Essa interpretao especialmente importantepara entendermos a mensagem de Jesus. Ainda que a expresso Domnio de Deus seja maisapropriada para transmitir o conceito original da expresso grega, decidimos manter a expresso

    Reino de Deus nesta obra em virtude de seu uso corrente em nossa tradio.Verificamos, portanto, que as conotaes do mundo terreno acabam colorindo as imagens

    que so apresentadas sobre o Reino dos Cus. A verdade que o mundo espiritual totalmentediferente do mundo terreno, no estando sujeito s nossas limitaes. O Reino de Deus no temfronteiras nem limites, pois inclui todo o universo com todos os seus planos de manifestao,alm do imanifesto que est totalmente alm da nossa compreenso.

    Se o Reino no pode ser limitado no espao, tambm no pode ser limitado no tempo. Asesperanas de um Reino futuro, na Terra, com o retorno do Cristo, ou no outro mundo, aps amorte, fizeram com que milhes de cristos ao longo dos sculos voltassem sua ateno para adireo errada. Quando Jesus anunciou que o Reino dos Cus est prximo (Mt 3:2), ele noestava se referindo necessariamente a uma proximidade temporal nem, tampouco, fazendo uma

    proclamao apocalptica. O entendimento errneo de suas palavras levou grande nmero dedevotos a esperar por um iminente retorno do Cristo, a vaticinada parousia, para estabelecer umreino de Deus na terra.104 Como, com o passar do tempo, esse retorno material de Jesus noocorria, os telogos passaram a interpretar as palavras bblicas como o anncio do fim dostempos, quando dever supostamente ocorrer o temido juzo final.

    A simples verdade que Jesus procurou nos alertar que o Reino estava, e ainda est,muito prximo de todos ns, pois pode ser encontrado em nossos coraes aqui e agora. Porisso disse que o Reino de Deus est no meio de vs (Lc 17:20-21) e o Reino do Pai estespalhado pela terra e os homens no o vem (To 113). No percebemos o Reino porqueprocuramos por ele fora de ns, enquanto ele s pode ser encontrado em nosso prprio corao.

    Como o homem pode perceber o Reino? O Salvador, seguindo seu mtodo de instruocaracterstico, d-nos os ingredientes para o entendimento e no o prato feito. Ao dizer que

    meu Reino no deste mundo (Jo 18:36), Jesus estava indicando que o Reino, sendo umconceito espiritual, s pode ser percebido num sentido espiritual. Para alcanar o Reino, ohomem no precisa morrer e tornar-se esprito, como muitos acreditam. O Reino pode e deveser alcanado aqui e agora, com a elevao da conscincia de nosso plano material para o planoespiritual. por isso que Paulo disse que o Reino de Deus no consiste em comida e bebida,mas justia, paz e alegria no Esprito Santo(Rm 14:17).

    103 Helmut Koester,History and Literature of Early Christianity (N.Y.: Walter de Gruyter, 1987), pg. 79.104 No foram somente os telogos que se deixaram envolver pela esperana de um retorno corpreo doCristo. Vrios sensitivos, ao longo dos tempos, interpretaram suas percepes interiores como indicativasde um retorno do Cristo ao nosso mundo terreno. Dentre esses destaca-se Alice A. Bailey, que permitiuque seu condicionamento religioso como pregadora anglicana durante a primeira parte de sua vida viesse

    a colorir seu trabalho posterior como sensitiva, a ponto de fazer com que a maior parte de seu trabalhoesotrico girasse em torno de um suposto retorno iminente do Cristo, vaticinado por ela desde o incio dadcada de 1920. Vide, por exemplo, The Reappearance of the Christ(N.Y.: Lucis Publishing Co., 1948).

    46

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    47/210

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    48/210

    Essa, no entanto, no a mais alta percepo do Reino. Uma experincia ainda maisprofunda pode ocorrer com o que chamaramos de sentido do paladar espiritual. Tendo recebidoa imensa graa de ser abraado por Deus, o prximo passo unir-se a Ele, fundindo-se noSupremo Bem. Essa experincia confere uma bem-aventurana inefvel, que os msticos detodos os tempos tentam descrever com pouco sucesso. Esse indescritvel sabor espiritual ocorre

    de duas formas, uma temporria e outra permanente. A primeira seria equivalente Eucaristia,em que o devoto absorve o corpo espiritual do Cristo e, com isso, sente-se unido Presenadivina por algum tempo. A segunda seria equivalente Cmara Nupcial mencionada noEvangelho de Felipe, em que ocorre o casamento indissolvel da alma com o Supremo Noivo, oCristo interior. A partir de ento, o mstico sentir constantemente a presena divina, quer estejaem meditao ou envolvido em assuntos do mundo terreno.

    Se o Reino s pode ser percebido com os sentidos espirituais, o objetivo prioritrio detodo devoto deveria ser o desenvolvimento desses sentidos. Felizmente a tradio esotricaacumulou considervel experincia sobre esse assunto, que procuramos apresentar de formasistemtica nas trs ltimas sees deste livro.

    Jesus provavelmente estava se referindo aos diferentes nveis de experincia do Reinoquando nos ensinou a sublime orao em que invocamos o Pai Nossopara que venha a ns

    o vosso Reino assim na terra como nos cus. O mstico geralmente vislumbra e penetra noReino quando no estado de conscincia alterado que poderamos chamar de cu.107 Esse oestado contemplativo que ser examinado mais adiante, em que o devoto, ao silenciarinteiramente a mente, consegue perceber as vibraes dos planos espirituais que se encontramacima da mente concreta.108Porm, s nos estgios mais avanados que o mstico consegueentrar no Reino estando na terra. Quando entra no derradeiro estgio mstico, referido como avia unitiva, em que percebe ser uno com Deus, cada momento de sua vida, no importa o queesteja fazendo, ser como viver sempre no cu. Esse estgio conhecido dos msticos como aprtica da presena de Deus.

    Deve ficar claro, porm, que o aspirante no precisa esperar pelo estgio final do caminhoespiritual, a via unitiva, para comear a ter alguma experincia de como possvel viver no cu

    aqui na terra. Assim como os vislumbres do Reino se desenvolvem lentamente com aexperincia contemplativa, da mesma forma, os efeitos do aprofundamento meditativo se farosentir gradativamente na vida cotidiana. Um crescente sentimento de paz e harmonia passar aenvolver o buscador. Um suave contentamento com a vida, mesmo em face de vicissitudes,demonstrar a profunda confiana que o devoto sente para com a justia e o amor divinos. Seuentendimento intuitivo do Plano de Deus109far com que o esprito de dever seja desenvolvidocada vez mais. Assim, passar a executar suas tarefas na vida familiar, social e profissional comamor e dedicao, procurando fazer tudo da melhor maneira possvel, pois sabe que todo ato seu uma pequenina contribuio para a economia do universo, para a expresso do bom, do belo edo justo na Terra.

    O principiante que busca orientao sobre o Reino na Bblia precisar de muita pacincia,estudo e meditao para alcanar o entendimento desejado, porque a linguagem usada por Jesus

    em suas instrues e referncias sobre o Reino pode ser frustrante, no s para os principiantes,mas tambm, para muitos telogos como vimos na seo anterior. A linguagem das parbolas,carregada de smbolos e imagens, tinha como objetivo, no s velar os ensinamentos internos,mas, ainda mais importante, preparar a humanidade para a nova etapa do processo evolutivo queestava se iniciando.

    107No misticismo, o cu experimentado como uma condio de unio com a natureza divina. umaatmosfera espiritual que pode ser conhecida pela alma que se dedica verdade. O mstico cristo torna-seconsciente do cu como um estado de perfeita f e paz internas, um bem estar infinito e segurana maisreal do que qualquer ambiente terreno.The Mystical Christ, op.cit., pg. 143.108 Aquele nvel da mente que se ocupa de pensamentos expressos por meio de palavras e conceitos denosso mundo material. Acima da mente concreta est a mente abstrata, tambm chamada de superior, que

    se ocupa de percepes abstratas como a matemtica e a filosofia.109 Maiores informaes sobre o Plano de Deus so apresentadas mais adiante na seo O objetivo doprocesso da manifestao no captulo 12: AS REGRAS DO CAMINHO.

    48

  • 7/31/2019 Raul Branco Os Ensinamentos de Jesus

    49/210

    Na era anterior, que estava terminando aproximadamente na poca em que Jesusministrava na Palestina, o grande objetivo para a humanidade rude e primitiva de ento era ocontrole das paixes e o aprendizado da vivncia harmnica em grupos heterogneos. Assim,foi necessria a instituio de regras de conduta e padres morais rgidos para uma populaoainda em sua infncia espiritual. Essas regras eram as leis mosaicas, cujos 613 preceitos regiam

    a conduta do homem em quase todas as situaes de sua vida. O objetivo da instruo religiosapoderia, ento, ser resumido como sendo obedincia lei.Com o advento do ministrio de Jesus, coincidente com o incio da Era de Peixes, uma

    nova meta parecia estar sendo indicada para o progresso da humanidade. No bastava mais serobediente lei, ser um homem justo, como se dizia na poca, para progredir espiritualmente. Agrande meta passou a ser, ento, o desenvolvimento da razo e do discernimento, com vistas aproduzir homens mais maduros. A humanidade devia aprender a pensar por sua prpria conta eusar seu livre arbtrio para escolher entre diferentes alternativas o que seria mais apropriadopara si. Isso no quer dizer que Jesus no pregasse o controle da natureza inferior. Muito pelocontrrio, o Mestre, por seu exemplo e seus ensinamentos, deixou claro que a disciplina umrequisito essencial para a vida espiritual. Porm, essa disciplina no devia mais ser imposta defora para dentro, por meio de um cdigo moral herdado do passado, devendo ser obedecido

    compulsoriamente. A disciplina devia refletir o entend