REALE. Para uma nova interpretação de Platão

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LETRAS CLÁSSICAS, n. 2, p. 387-401, 1998. REALE, Giovanni. Para uma nova in- terpretação de Platão. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 1997. 640 p. Giovanni Reale, professor da Universidade Católica de Milão, discu- te, em seu livro, as chamadas “doutri- nas não-escritas” de Platão, ou seja, os ensinos orais que o filósofo ministrou na Academia e que foram registrados pelos discípulos mais diretos. Trata-se de estudo profundo e detalhado das te- ses da Escola de Tübingen, com refe- rências aos pesquisadores alemães que, a partir da década de 50, alertaram para a importância das “doutrinas não-escri- tas”; tais são Hans-Joachim Krämer, o fundador da Escola, K. Gaiser e T. A. Szlezák. Além disso, é um estudo opor- tuno, já que pouco abordado pela mai- oria dos estudiosos de Platão. Nos próprios Diálogos há refe- rência a tais doutrinas; pois, no Fedro e na Carta VII, Platão destaca a supe- rioridade do discurso oral sobre o es- crito, fazendo referência a “coisas mais elevadas” que só devem ser transmiti- das oralmente. Além dessas referênci- as, há o testemunho dos discípulos de Platão, tais como Aristóteles, Espeusi- po e Xenócrates, que reproduzem en- sinos do mestre ausentes nos Diálogos. No Fedro, Sócrates faz uma contrastante comparação entre o dis- curso oral e o escrito. Diz ele: “Acredi- tas que [os escritos] falam e pensam eles mesmos alguma coisa, mas se, compre- endendo bem, lhes perguntas alguma coisa do que disseram, continuam a repetir uma única e mesma coisa”. Já na Carta VII, é o próprio Platão quem diz explicitamente: “Todos os que afir- mam saber as coisas sobre as quais me- dito, seja por tê-las ouvido de mim, seja por tê-las ouvido de outros, seja por tê-las descoberto sozinhos, não é pos- sível, segundo meu parecer, que te- nham entendido algo desse objeto. Sobre essas coisas não existe um texto escrito meu nem existirá jamais”. Assim, o fundador da Academia teria omitido dos escritos o fundamen- to de sua filosofia, sem o qual não se pode explicar a totalidade desta. Porém, mesmo não tendo sido escritos por Platão, os ensinos orais do filósofo podem ser resgatados através dos textos dos discípulos. Por exemplo, no livro I da Metafísica, Aristóteles ofe- rece valiosas informações sobre os en- sinos orais platônicos, ao criticar a hie- rarquia das realidades supra-sensíveis proposta por Platão. Nos livros XIII e XIV, comenta e refuta reflexões de Platão relativas à matemática, as quais, contudo, não se encontram nos Diálo- gos. Além dos discípulos, há as fontes indiretas, entre as quais Aristóxeno, Diógenes Laércio, Simplício e Sexto Empírico. Segundo Reale, as “doutrinas não-escritas” completariam o pensa- mento metafísico platônico. Por exem- plo, assim como os grandes filósofos que o precederam, Platão se preocupou

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LETRAS CLÁSSICAS, n. 2, p. 387-401, 1998.

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REALE, Giovanni. Para uma nova in-terpretação de Platão. Tradução deMarcelo Perine. São Paulo: EdiçõesLoyola, 1997. 640 p.

Giovanni Reale, professor daUniversidade Católica de Milão, discu-te, em seu livro, as chamadas “doutri-nas não-escritas” de Platão, ou seja, osensinos orais que o filósofo ministrouna Academia e que foram registradospelos discípulos mais diretos. Trata-sede estudo profundo e detalhado das te-ses da Escola de Tübingen, com refe-rências aos pesquisadores alemães que,a partir da década de 50, alertaram paraa importância das “doutrinas não-escri-tas”; tais são Hans-Joachim Krämer, ofundador da Escola, K. Gaiser e T. A.Szlezák. Além disso, é um estudo opor-tuno, já que pouco abordado pela mai-oria dos estudiosos de Platão.

Nos próprios Diálogos há refe-rência a tais doutrinas; pois, no Fedroe na Carta VII, Platão destaca a supe-rioridade do discurso oral sobre o es-crito, fazendo referência a “coisas maiselevadas” que só devem ser transmiti-das oralmente. Além dessas referênci-as, há o testemunho dos discípulos dePlatão, tais como Aristóteles, Espeusi-po e Xenócrates, que reproduzem en-sinos do mestre ausentes nos Diálogos.

No Fedro, Sócrates faz umacontrastante comparação entre o dis-curso oral e o escrito. Diz ele: “Acredi-tas que [os escritos] falam e pensam eles

mesmos alguma coisa, mas se, compre-endendo bem, lhes perguntas algumacoisa do que disseram, continuam arepetir uma única e mesma coisa”. Jána Carta VII, é o próprio Platão quemdiz explicitamente: “Todos os que afir-mam saber as coisas sobre as quais me-dito, seja por tê-las ouvido de mim, sejapor tê-las ouvido de outros, seja portê-las descoberto sozinhos, não é pos-sível, segundo meu parecer, que te-nham entendido algo desse objeto.Sobre essas coisas não existe um textoescrito meu nem existirá jamais”.

Assim, o fundador da Academiateria omitido dos escritos o fundamen-to de sua filosofia, sem o qual não sepode explicar a totalidade desta.

Porém, mesmo não tendo sidoescritos por Platão, os ensinos orais dofilósofo podem ser resgatados atravésdos textos dos discípulos. Por exemplo,no livro I da Metafísica, Aristóteles ofe-rece valiosas informações sobre os en-sinos orais platônicos, ao criticar a hie-rarquia das realidades supra-sensíveisproposta por Platão. Nos livros XIII eXIV, comenta e refuta reflexões dePlatão relativas à matemática, as quais,contudo, não se encontram nos Diálo-gos. Além dos discípulos, há as fontesindiretas, entre as quais Aristóxeno,Diógenes Laércio, Simplício e SextoEmpírico.

Segundo Reale, as “doutrinasnão-escritas” completariam o pensa-mento metafísico platônico. Por exem-plo, assim como os grandes filósofosque o precederam, Platão se preocupou

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Resenhas.

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em explicar o mundo através de umou mais princípios. Assim o fizera So-crátes, que equiparara a moral e a polí-tica ao conhecimento verdadeiro; as-sim o fizeram os filósofos eleatas, quebuscaram na unidade a explicação paraa multiplicidade verificada na phýsis.Foi justamente da preocupação em re-duzir o múltiplo à unidade que surgiua teoria das Idéias de Platão. Com esta,o filósofo mostra que a pluralidade dascoisas sensíveis se reduz à unidade daidéia, assim como os vários homensparticipam da Idéia de homem. Porém,se há a idéia de homem, há a de cava-lo, a de cão e outras, de modo que tam-bém o mundo das idéias seria um mun-do múltiplo que precisaria ser reduzi-do à unidade.

O problema, como o expõeReale, só pode ser resolvido se se levarem conta a teoria dos Princípios, comosão também chamadas a “doutrinasnão-escritas” de Platão. Segundo Reale,“essa doutrina contém a fundação últi-ma, porque explica quais são os Princí-pios dos quais brotam as Idéias (que

por sua vez explicam as coisas) e, por-tanto, fornece a explicação da totali-dade das coisas existentes”.

Enfim, Platão teria reservadotais ensinamentos à oralidade não por-que fossem em si inexprimíveis, comouma mensagem ascética impossível deser fixada por escrito. O filósofo tinharazões didáticas para proceder assim,pois, como explica na Carta VII, escre-ver tais doutrinas seria útil somente apoucos homens, capazes de com poucaajuda chegar às verdades supremas, enocivo para a maioria. Então, incapa-zes de compreender os Princípios, oshomens desprezariam os ensinos ou seencheriam de vanglória e soberba, pen-sando conhecer coisas que na verdadeignoram. Para Platão, tal perigo deixade existir quando a mensagem é trans-mitida oralmente, pois, então, conduz-se a discussão pela única via que podelevar à verdade: a dialética.

ROBERTO C. G. CASTRO*

* Graduado em Filosofia pela FFLCH-USP.