Realização da Publicação Projeto Gráfico

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2010

Realização da Publicação

UFRRJ

CEFET-Nova Friburgo

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Arthur Valle

Camila Dazzi

Projeto Gráfico

Camila Dazzi

dzaine.net

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DezenoveVinte

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A presente publicação reúne os textos de comunicações apresentadas de forma mais sucinta no II Colóquio Nacional

de Estudos sobre Arte Brasileira do Século XIX. Os textos aqui contidos não refletem necessariamente a opinião ou a

concordância dos organizadores, sendo o conteúdo e a veracidade dos mesmos de inteira e exclusiva responsabilidade

de seus autores, inclusive quanto aos direitos autorais de terceiros.

Oitocentos - Arte Brasileira do Império à República - Tomo 2. / Organização Arthur Valle, Camila Dazzi. -

Rio de Janeiro: EDUR-UFRRJ/DezenoveVinte, 2010.

1 v.

ISBN 978-85-85720-95-7

1. Artes Visuais no Brasil. 2. Século XIX. 3. História da Arte. I. Valle, Arthur. II. Dazzi, Camila. III.

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. IV. Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da

Fonseca. Unidade Descentralizada de Nova Friburgo. V. Colóquio Nacional de Estudos sobre Arte Brasileira do

Século XIX.

CDD 709

540

q

Emílio Rouède: tempo de Minas

Ricardo Giannetti

s

A Arte em Minas

Não há uma pedra posta pela mão do homem no centro de suas cidades, que não exprima uma

idéia, que não represente uma letra do alfabeto da civilização.

Manuel de Araújo Porto-Alegre1

o ano de 1893 o governo de Floriano Peixoto empreendeu severa perseguição aos

seus críticos e opositores. Considerado perigoso conspirador político, o pintor e

jornalista Emílio Rouède esteve bem próximo de ser preso, ou mesmo morto, em um cerco policial a

sua casa no Rodeio. Sem alternativas, terminou por se afastar definitivamente do Rio de Janeiro,

vindo refugiar-se no sossego das montanhas de Minas Gerais.

No correr de 1894, durante sua permanência na cidade de Ouro Preto, dentre tantas

atividades às quais se dedicava, Rouède manteve colaboração jornalística com o periódico Le Brésil

Républicain, para o qual redigiu artigos que se intitularam Correspondence de Ouro Preto e

Chronique de Minas2. Alguns desses artigos seriam traduzidos e publicados no ano seguinte, em

janeiro de 1895, na coluna ―Letras‖ do jornal Minas Gerais, sob o título geral de ―A Arte em

Minas‖, versão esta que utilizaremos no curso do presente trabalho3. O Le Brésil Républicain era

um órgão de interesse francês, impresso no Rio de Janeiro, com edições regulares às quartas-feiras e

aos sábados. Era seu correspondente e agente geral para o Estado de Minas Gerais o artista Paul de

Roquemaure, proprietário de uma vivenda conhecida como Pavillon Bellevue, à rua do Caminho

Novo n.º 4, em Ouro Preto, sendo ele a pessoa responsável pela recepção e encaminhamento de

anúncios e assinaturas da publicação.

1 Manoel de Araújo Porto-Alegre, apud BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Trad. de

David Jardim Júnior. Belo Horizonte/São Paulo: Livraria Itatiaia/Editora da USP, 1976, p. 121. 2 GRAVATÁ, Hélio. Émile Rouède, A Arte Mineira e a Velha Matriz do Curral del-Rei. Barroco. Belo Horizonte:

UFMG, n. 9, 1977, pp.123-126. Anexo constando versão fac-similar, págs. não numeradas: ROUÈDE, Émile.

Correspondance de Ouro Preto (23 Mai; 2 Juin; 9 Julin 1894) e Chronique de Minas (8 Août; 29 Août; 3 Octobre

1894). Le Brésil Republicain. 3 ROUÈDE, Emílio. A Arte em Minas. Minas Gerais. Ouro Preto, exemplares dias 10, 11, 12, 13 jan. 1895. Textos

aqui reproduzidos com grafia atualizada.

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Nas referidas crônicas, Emílio Rouède procurou informar aos seus leitores de língua francesa

o quanto se sentia estimulado em conhecer e estudar a arte colonial mineira, tida por ele, desde o

primeiro momento, como verdadeiro tesouro. Fundamentado nos acontecimentos históricos da

antiga Capitania, buscava estabelecer suas origens e influências. Com este pensamento, na seqüência

dos artigos publicados, dirigiu especial atenção à Capela de São João Batista, em Ouro Preto, e à

Igreja Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem do arraial de Belo Horizonte, que encerravam,

segundo suas impressões, testemunhos artísticos dos mais antigos e originais de Minas Gerais – bons

exemplos arquitetônicos do que interpretou como um ―gosto simples e severo‖, demonstrando, de

pronto, sua sincera admiração.

Não lhe ocorrendo dispor de tempo suficiente para a necessária pesquisa sobre todo o acervo

criativo, e, principalmente, sabedor que era de seu peculiaríssimo temperamento dispersivo, pouco

afeito às longas investigações em arquivos, Emílio deixou afinal uma sugestão endereçada à algum

historiador especializado, que, a partir dali, tomasse a iniciativa de escrever o trabalho para o qual

imaginou o título geral de Origine de l'art au pays de l'or. Contudo, para adiantar o expediente do

futuro estudioso, avançou um pouco nos assuntos sobre os quais se debruçava naqueles dias:

Aquele que, em melhores condições, quisesse dedicar seu tempo, sua atividade e sua inteligência a

uma obra tão útil quanto agradável, deveria vir a Minas instalar seu gabinete de estudo e seu

centro de informações no país dos tesouros.[...]

Importante serviço prestaria a este belo país quem realizasse tal trabalho. Ouso afirmar, – e me

perdoem a franqueza, – que é tempo já de se ocupar dessa obra, porque documentos de valor

desaparecem, monumentos históricos ameaçam ruína, perdem-se admiráveis esculturas, quadros de

mérito deterioram; e, ainda mais, a morte vai levando a velhos de idade secular, cujos avós,

chegados com as bandeiras paulistas, trabalharam na construção das primeiras igrejas e assistiram

assim ao advento da arte nestas montanhas.[...] Àquele que tal estudo empreenda dedico estas páginas;[...]

Se alguma de minhas observações facilitar-lhe a tarefa, [...] julgarei meu trabalho largamente

recompensado.4

Com antecipação de décadas, sugeriu algumas iniciativas fundamentais para que houvesse a

preservação de bens artísticos e de documentos históricos; providências estas que – excetuando a

criação do Arquivo Público Mineiro, em 1895, – apenas muito mais tarde, já em meados do século

XX, tiveram lugar, com os mais evidentes e lamentáveis prejuízos. Observou então, naquela época:

Se, para cúmulo da felicidade, eu obtivesse das autoridades locais um pouco de atenção para os

objetos de arte, um pouco de cuidado para os documentos sepultados nas secretarias, um pouco de

respeito para os monumentos que se esboroam e, finalmente, a criação de arquivos que

4 ROUÈDE, op. cit., 10 jan. 1895, p. 2-3.

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conservassem as páginas preciosas dos séculos passados, a fundação de um museu para reunir

móveis, armas, trajes, tapeçarias, jóias, bordados, quadros e estátuas que se perdem ou vão

enriquecer coleções do Rio de Janeiro, eu me consideraria o mais feliz dos mortais.5

Isto posto, Emílio Rouède buscou resumir, a título de introdução, um roteiro das aventuras

dos paulistas, descobridores do ouro. Reconheceu que da inicial ocupação do território das Minas

tinham restado significativas marcas. Principalmente no que diz respeito à dedicação do homem

bandeirante à religião e aos seus valores.

Esses homens valentes e fortes, de costumes e origens diversas, eram unidos, entretanto, por um

laço poderoso: a crença em Deus.

A religião era o seu código; e compreender-se-á facilmente que, sem uma lei sobrenatural e sem o

temor de um castigo eterno, teria sido impossível evitar as lutas terríveis, provocadas pela avidez

que o ouro devia forçosamente gerar. Antes de aformosear suas casas, os bandeirantes rendiam

graças ao criador que lhes prodigalizava imensas riquezas.

Construíram templos no tope das mesmas montanhas, donde tiravam o ouro às mãos cheias.

Essas igrejas, que muito logicamente seriam desprovidas de todo o sentimento artístico, pela

condição humilde de seus construtores, tinham todavia o cunho acentuado do gosto europeu

daquela época; e, o que é digno de nota e merece ser seriamente estudado, é que elas apresentavam

um aspecto de severa simplicidade, difícil de combinar com o gosto galante da arquitetura desse

século.[...]

A influência climatérica, o meio, a aliança com o elemento indígena produziam um novo tipo de

caráter nacional, sério, sóbrio, valente, trabalhador, religioso.

Este caráter não mudou e constitui ainda hoje a base do caráter mineiro.

Os bandeirantes sentiam-se à vontade, em sua casa, no território que haviam descoberto. Por S.

Paulo faziam-se as raras comunicações, que tinham com a metrópole.6

Note-se a oportuna menção à um tema de interesse – o caráter mineiro, a mineiridade –,

lastro para a compreensão do inteiro valor de obras de arte surgidas de modo tão singular.

A partir do imenso episódio da Guerra dos Emboabas, houve, de forma progressiva, maior

controle português nas terras das Minas, segundo suas conclusões. Estes, os reinóis, tendo em vista

a necessidade de domínio geral, estenderam sobre o território, de maneira cada vez mais abrangente,

sua cultura; introduziram seus costumes e usos, difundiram suas crenças, suas tradições, e, a partir

daí, determinaram então ―novas ordens de cousas. Apesar da viva oposição de S. Paulo,

estabeleceram novas vias de comunicação mais diretas com a capital e criaram a capitania das Minas,

independente das do Rio e São Paulo. A primeira fase artística deste Estado termina nessa época,

fase que denomino dos bandeirantes para distingui-la da segunda, que chamarei o período

português‖.7

5 Idem, ibidem. 6 Idem, ibidem. 7 Idem, ibidem.

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Com o decorrer do tempo, na oportunidade de vagar pelos arrabaldes da antiga Vila Rica,

Emílio conheceu a Capela de São João, lá no alto do morro do Ouro Fino, primitivo arraial do Ouro

Podre. Segundo a tradição, mantida pelo historiador Diogo de Vasconcellos, seria o mais antigo

templo erigido pelos bandeirantes naqueles lugares, nos derradeiros dias do século XVII. Muito

recentemente, em 1891, a capela passara por obras de pintura geral, reforma no altar-mor e

edificação do coro musical, melhorias promovidas por mãos devotas. Rouède logo percebeu que a

pequena casa, bem simples e acanhada, encerrava algo de valioso para a história que almejava

desvelar.

No alto da montanha em que se encontram as minas de ouro, hoje abandonadas, do Padre Faria, os

bandeirantes construíram a igreja de S. João.

É a mais antiga das doze ou quinze que, com suas construções bizarras, dão a Ouro Preto o aspecto

artístico que o cristianismo imprimiu em todos os tempos às localidades em que adquiriu profundas

raízes no povo.

Essa igreja, pequenina, muito simples, muito pobre mesmo, encerra todavia verdadeiras riquezas,

sob o ponto de vista da arte e da história.

As suas bem estabelecidas proporções, o gosto que revelam esses modestos ornamentos, tão em

harmonia com o estilo geral, os encaixes do retábulo a que se encosta o altar-mor, um crucifixo de

marfim, de grande mérito, e a combinação do conjunto demonstram a evidência que aquele ou

aqueles, que presidiram a ereção desse santuário, tinham perfeitos conhecimentos arquitetônicos e

possuíam um gosto artístico notável.8

Em artigo publicado em 1956, ―Cronologia das igrejas mineiras‖, o arquiteto e historiador

Sylvio de Vasconcellos esclarece sobre incorretas datações com as quais conviveram muitos

historiadores no século XX. No trabalho acham-se fixadas as datas primeiras e aquelas das

subseqüentes modificações de alguns templos de Minas. Observa-se que ao longo dos anos muitas

igrejas foram sendo completadas, reformadas, ampliadas, alteradas. Sobre a Capela de São João,

especificamente, comenta:

Outro engano que tem sido muito repetido por vários historiadores refere-se à data da construção

da capela de São João do Ouro Podre de Ouro Preto. Diogo de Vasconcellos aponta-a como a

primeira do lugar. Procura-se então encontrar na sua configuração atual muitas das explicações

relativas à arquitetura religiosa local que, naturalmente, seria posterior àquela capela. Todavia,

em documentação recentemente encontrada, verifica-se que a capela, como hoje se encontra, data

de 1749, não sendo nem a primeira construção religiosa ainda existente na cidade, nem servindo,

portanto, como ponto de referência ao que, na primeira metade do século, se fez em Ouro Preto.9

8 Idem, ibidem. 9 VASCONCELLOS, Sylvio de. Cronologia das igrejas mineiras. LEMOS, Celina Borges (Org.). Arquitetura, Arte e

Cidade: textos reunidos. Belo Horizonte: BDMG Cultural, 2006, pp. 62-64.

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As historiadoras Cristina Ávila e Josanne Guerra Simões estabelecem a data da construção da

Capela de São João em época anterior à 17 de julho de 1743, e indicam o ano de 1761 para a

ocasião em que o templo teve reedificadas as paredes da sacristia10

. Emílio Rouède, evidentemente,

não detinha um bom número de informações, baseadas em fontes documentais somente em nossos

dias divulgadas. Ao sentir falta de melhores comprovações, manifestou, declaradamente, o improviso

interpretativo que então experimentava:

Onde os documentos históricos escasseiam (e em Minas são difíceis de encontrar), nos monumentos

é que se devem ler os mistérios do passado.

Observando-os com atenção é que se pode reconstruir a história, porque eles revelam o gosto e o

progresso da época, porque sempre conservam estampado o caráter daquela que os construiu.[...]

Eis porque, estudando os monumentos artísticos que abundam em Minas Gerais, eu vou tentar

senão elucidar e resolver, ao menos estabelecer francamente certas questões, cuja elucidação se

torna muito difícil sem o subsídio de documentos, que faltam ou estão amontoados nos arquivos das

repartições do Estado ou nas sacristias das suas velhas igrejas.11

Nesse tipo de capela, de um modo geral, a fachada é simples, desprovida de elementos, tendo

a planta o formato de retângulo. Ao discorrer sobre as transformações sofridas pelas igrejas de

Minas, Sylvio de Vasconcellos, em certo momento, dedica sua atenção à Capela de São João, onde

percebe elementos merecedores de serem assinalados. Assim como se pode notar comumente em

outras capelas do arrabalde, São João prefere a sacristia ladeando a capela-mor, o que torna a planta

assimétrica. Em sua nave vêem-se marcantes ―as curvas que concordam suas ilhargas com o arco

cruzeiro‖, no parecer de historiador12

. Nesse mesmo estudo, que se intitula ―Notas sobre a

arquitetura religiosa mineira‖, publicado em 1951, ao comentar sobre a singularidade do curvamento

dessas paredes, acrescenta:

Esta rigidez proporcionada pela conformação retangular das plantas com o tempo amaciar-se-ia

pela supressão dos seus vértices, chanfrados ou curvados (Santa Efigênia) e pela multiplicação de

lados em polígonos (nave interna do Pilar) que terminaria por se transformar em curvas (Rosário).

Esta tendência começa pela colocação de altares normais à bissetriz dos vértices da nave, junto ao

arco cruzeiro a que corresponde à convexidade do coro. Na capela de São João, excepcionalmente,

a supressão dos vértices citados interessou à própria parede da nave que se encurva quando da

reconstrução do edifício em 1749. Parece ser esta a primeira tentativa de construção curvilínea que

se tentou em Ouro Preto. É claro que este encurvamento só se tornou possível com a construção de

alvenaria porquanto as anteriores, dependentes da madeira, seja na taipa de pilão ou no pau-a-

pique, não facilitariam formas ou vigamentos que não fossem retos.13

10 ÁVILA, Affonso, ÁVILA, Cristina, SIMÕES, Josanne Guerra. Imagens de Minas. Cidades Históricas – Ouro

Preto. Belo Horizonte: Neoplan, 2008, p. 91. 11 ROUÈDE, op. cit., 10 jan. 1895, p. 2-3. 12 VASCONCELLOS, Sylvio de. Notas sobre a arquitetura religiosa mineira, op. cit., p. 50. 13 Idem, Ibidem.

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Em resumo, pode-se assim descrever a capela setecentista da região das Minas: planta

composta da nave, capela-mor e sacristia; fachada limpa, dispondo de um bem proporcionado portal;

duas janelas do coro abertas acima, em correto equilíbrio; frontão triangular onde se abre o óculo –

que algumas vezes aparece rebaixado, entre as janelas, como em São João. Quando ausentes as

torres laterais, ou mesmo inexistindo a única central, a sineira fica então estabelecida fora do corpo

principal. Segundo a historiadora Suzy de Mello, concordam Paulo F. Santos e Sylvio de

Vasconcellos na existência de um ―'parentesco' dessas fachadas com as capelas e ermidas de gosto

romântico, na Extremadura, na Beira-Alta e em regiões do norte de Portugal‖14

. E, sobre a

ocorrência desses templos em Minas, Suzy de Mello comenta:―Essas capelas desprovidas de torres

corresponderam aos povoamentos iniciais que se tornaram estáveis pela fartura do ouro,

distribuindo-se em todas as áreas inicialmente desbravadas e que, primeiramente erguidas com

materiais ainda precários foram, em inúmeros casos, posteriormente reconstruídas com técnicas de

maior solidez, mantendo, porém, suas características básicas de planta e fachada [...]‖15

.

A construção notadamente modesta e verdadeira de São João preencheu a imaginação de

Emílio Rouède, que a ela prosseguiu dedicando outras investigações, em nova visita. Ocorre que,

abrigado no interior da capela, viu-se diante de uma nova questão. Em nada lhe agradavam as

pinturas representando os doze apóstolos, estabelecidas em quadrinhos de madeira na base do

retábulo, tão defeituosamente realizadas. Todavia, bem examinando, intuiu que umas camadas

grosseiras de tinta haviam se sobreposto ao trabalho original, encobrindo-o e deturpando-o

sobremaneira. Os quadros haviam sofrido, segundo suas apreciações, ―a borradura‖ de um

―curioso‖. Resolveu então prontamente dedicar-se à tarefa seguinte: restaurar a pintura do Santo

André, que a ele se apresentava. Minucioso, conseguiu retirar a tenebrosa falsificação e refazer a

inicial face do seu eleito santo apóstolo. Como resultado do procedimento, descobriu a obra de arte

da lavra de um artista antigo. Bem ao seu estilo, Emílio descreveu o acontecimento:

A crueza e a vivacidade do colorido indicavam-me que essas pinturas haviam sido restauradas

(risum teneatis). A justeza das proporções e a correção do desenho me mostravam que, sob aquelas

extravagantes figuras, devia haver cabeças pintadas com arte.

Não me enganava: uma pequena quantidade de essência, que havia em minha caixa de tintas, me

fez descobrir, depois de alguns momentos de fricção, o olhar agradecido e meigo de um Santo

André, que parecia implorar-me o mesmo serviço para seus companheiros de mascarada,

mostrando-se grato a mim que o tinha libertado daquele fardo, muito adequado à face de um pai

nobre de comédia, mas visivelmente deslocado na figura austera de um apóstolo venerável.

14 MELLO, Suzy de. Barroco Mineiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 134. 15 Idem, ibidem.

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O pouco que descobri revela que esses quadros são de um pintor de talento. O desenho é correto, o

colorido muito vigoroso.16

Experiência única, certamente. Contudo, buscou obter algum dado biográfico do pintor dos

doze apóstolos. Permanecendo incógnito seu nome, imaginou sanar as dúvidas, introduzindo, ao

término do relato que acabamos de ler, as questões seguintes:

Terminando, tomarei a liberdade de propor alguns quesitos aos leitores que residem em Minas ou,

mais ou menos, lhe conheçam a história, preferindo ocupar-se com a solução de um problema

histórico e útil a decifrar os logogrifos, as charadas e os enigmas da terceira página dos jornais:

1.º Qual o nome do construtor da igreja de S. João ?

2.º Qual o pintor dos quadros que representam os doze apóstolos ?

3.º Qual o do escultor do Cristo de marfim ?

4.º As obras de arte, que possui essa igreja, foram executadas aqui ou na Europa?

5.º Qual a nacionalidade desses artistas e a época de seus trabalhos ?

Pede-se aos que se interessarem por esse gênero de investigação que dirijam o resultado de seus

estudos a E. R., rua do Caminho Novo n. 3, Ouro Preto, para onde deverá ser enviado também o

endereço do remetente, a fim de que se torne possível dar-lhe agradecimentos e pedir-lhe, quando

necessárias, informações mais amplas e desenvolvidas.17

Com relação à pintura dos santos, na base do retábulo da Capela de São João, Diogo de

Vasconcellos, em ―As obras de arte‖, capítulo da Memória Histórica, de 1911, reconheceu sua

semelhança com quadros do forro de caixotões da Capela de Santo Antônio do Pompéu, em Sabará,

nos quais acham-se representadas dez passagens da vida do padroeiro. Alude a possibilidade de se

tratar do mesmo artista. E, ainda referente à pintura dos doze apóstolos, decorridos dezessete anos,

da mesma forma que Emílio, também lamentou o péssimo serviço do tal ―restauro‖18

.

Refletindo sempre à respeito da divisão dos modos ―bandeirante‖ e ―português‖, Rouède teve

oportunidade de estar na cidade de Sabará, de passagem, e, finalmente, em Belo Horizonte, arraial

onde conheceu a antiga Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem. Contemplando Vila Real, traçou

sucintamente aquilo que observou com relação aos projetos arquitetônicos: ―o bandeirante –, severo,

simples, em que dominam a linha reta, o ornato grego e a pirâmide; outro – o português –,

arredondado, barroco, pretensioso, composto especialmente de medalhões, folhagens e florões

profusamente prodigalizados. À Igreja Matriz de Belo Horizonte, consagrou o capítulo seguinte da

coluna Chronique de Minas. Lembre-se que também à Matriz, Rouède dedicou, na mesma

oportunidade, um dos três quadros à óleo que pintou por especial encomenda da Comissão

16 ROUÈDE, op. cit., 11 jan. 1895, p. 3. 17 Idem, ibidem, p. 3-4. 18 VASCONCELLOS, Diogo de. As obras de arte. In: Bi-centenário de Ouro Preto 1711-1911: Memória Histórica.

Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, [1911], pp.133-184.

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Construtora da Nova Capital, tendo como destaque, exatamente, uma vista abrangendo todo o seu

largo, tomada desde além da ponte do córrego do Acaba-Mundo. Assim avaliou a construção

setecentista:

O santuário da futura Capital de Minas Gerais apresenta, exteriormente, todos os traços

característicos dos edifícios construídos antes da elevação do território das Minas à categoria de

capitania geral.

Sólida muralha quadrada, encimada por um florão coroado de uma cruz de fino gosto; de cada

lado uma torre terminando em pirâmide; grande portal bem proporcionado, acima do qual se

abrem duas janelas: eis o conjunto da fachada.

É difícil encontrar-se cousa mais simples e mais modesta; entretanto, e talvez por isso mesmo, esta

modéstia e esta simplicidade inspiram real sentimento de respeitosa devoção e, involuntariamente,

idéias melancólicas invadem a imaginação e o espírito do observador.

Desejar-se-ia que os bandeirantes tivessem podido continuar o desenvolvimento de seu gosto

artístico cheio de original simplicidade.19

Estas foram as palavras de Emílio diante da principal casa religiosa de um pequeno arraial,

que, em sua formação e desenvolvimento, ao largo do século XVIII, não conheceu a riqueza

promovida pelo brilho do metal, nem as asperezas patrocinadas pela aglomeração brusca da intensa

mineração. Curral d'El Rei, sem qualquer aventura mencionável, foi sempre o local dos antigos

fazendeiros de Minas, das tradições e das famílias permanentes, das cousas duradouras. A Igreja

Matriz – sua mais importante construção – interessou-se em se manter modesta. Erguida a partir de

meados do setecentos, registra-se em sua história primitiva o fato de haverem seus construtores, o

Provedor e Irmãos do Santíssimo Sacramento, desrespeitado a ―Real Ordem‖ de Sua Majestade –

que em rigor determinava, a partir de Portugal, sobre os projetos de igrejas matrizes –, concluindo

por erigi-la ―à sua fantasia‖20

. Naquele ano de 1894, permanecia com essa feição: frontispício

tradicional composto pelo prático frontão triangular; óculo elevado, aqui bem desenhado; cimalhas e

cunhais. Duas pesadonas janelas do coro encimam e quase chegam a tocar, com algum desajeito, o

robusto portal. Em ambas notam-se guarda-corpos de balaústres de madeira. ? esse rosto de capela,

de preliminar beleza, acrescentam-se as duas torres sineiras laterais, que elevam-se eficientes,

construídas com estrutura de madeira, conferindo vantajoso volume à Matriz. Essas torres

terminam―em pirâmide‖, como menciona Emílio. Repetindo um gosto discreto, bem comum pelo

arraial afora, as quinas dos telhados mostram-se com suas pontas levantadas, à chinesa. Nas laterais,

os puxados de meia-água disfarçam seu corpo, nem tão grande assim.

19 ROUÈDE, op. cit., 12 jan. 1895, p. 3. 20 MENEZES, Ivo Porto de. Os frontispícios na arquitetura religiosa em Minas Gerais. Cadernos de Arquitetura e

Urbanismo. Belo Horizonte, v. 4, n. 15, dez. 2007, p. 178. Disponível em:

http://periodicos.pucminas.br/index.php/Arquiteturaeurbanismo/article/view/816/791 Acesso em: 01/02/2010.

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O contraponto dar-se-á na seqüência, na interpretação do cronista, ao transpor o exíguo

cemitério fronteiro e adentrar o templo, para certificar:

O interior da igreja de Belo Horizonte não me impressionou agradavelmente.

Acreditando que iria encontrar ali o mesmo gosto simples e severo que havia observado no exterior,

tendo o espírito ainda dominado pelo aspecto do pequeno cemitério e a imaginação cheia de

lembranças dos antigos tempos, senti um mal estar moral em presença do contraste que se

apresentou a meus olhos.[...]

Não me quedarei na descrição minuciosa do interior desta igreja, em que exclusivamente domina

um estilo Luiz XV de mau gosto, como dá-se na mor parte dos monumentos construídos em Minas

pelos portugueses do século passado.[...]

É inegável que tenha havido uma interrupção na construção deste templo. O evidente contraste

entre o interior e sua parte externa faz-me crer que foi começado pelos bandeirantes e terminado

por artistas portugueses, vindos com os primeiros capitães generais que governaram as Minas do

Brasil.

As pinturas do teto arqueado foram restauradas por um curioso e lá estão completamente

estragadas; algumas cabeças, entretanto, que foram menos trabalhadas pelo restaurador

demonstram que aquelas pinturas não eram destituídas de real merecimento.21

Recorre-se aos comentários sobre o interior da Matriz da Boa Viagem feitos por Alfredo

Camarate, em artigos publicados naquele mesmo ano de 1894, para constatar que divergem

profundamente as opiniões dos dois cronistas: Camarate considera notáveis as obras de talha,

principalmente em relação às duas primeiras capelas laterais, onde evidencia o ―estilo‖, a ―grande

nitidez e originalidade da ornamentação, e uma certa liberdade no agrupamento das linhas‖22

.

Todavia, definitivamente não significavam para Emílio Rouède as exuberantes composições do novo

estilo, que se somaram a cada momento nos interiores das igrejas:

É bem possível que eu esteja em desacordo com eminentes apreciadores, nestes assuntos de arte;

mas, no meu ponto de vista, para que uma obra d'arte seja completa, cumpre que desperte no

observador o sentimento que animava o artista criador.[...]

É devido a esta maneira de considerar as obras de arte que eu acho o exterior simples da igreja de

Belo Horizonte mais sincero, mais cristão, ainda que mais modesto, do que o interior desse

santuário, que está mais de acordo com os conhecimentos do europeu no século findo.23

Mais do que apoiar-se na linguagem erudita das matrizes de Ouro Preto e de Antônio Dias,

ou na profusão decorativa primorosa das igrejas dos terceiros de Nossa Senhora do Carmo e de São

Francisco de Assis, Emílio buscou na simplicidade da Capela de São João sua peça de contemplação

21 ROUÈDE, op. cit., 13 jan. 1895, p. 5. 22 CAMARATE, Alfredo. Por montes e vales. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, ano XXXVI,

1985, p. 37. 23 Idem, ibidem.

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estética e paz de espírito. Da Boa Viagem guardaria sua imagem elevada, dominando com calma o

largo do velho arraial.

Conclusão

Ouro Preto, amantelada nas suas montanhas verdes, é como o reduto último da nossa

nacionalidade. Nas suas casas velhas, que cambaleiam colinas abaixo, apoiando-se umas às outras

em prodígios de equilíbrio; nas suas velhas igrejas, em cujas esculturas vive perpétuo o gênio do

Aleijadinho, e cuja ornamentação relembra o fausto religioso da opulenta Vila Rica; e, mais do que

tudo, nas ruínas venerandas, alicerces colossais de pedra benta, pilastras quebradas que as heras

mordem, pórticos esboroados, cujos destroços se aconchegam de líquens, – perdura religiosamente

conservada a tradição dos primeiros brasileiros.

Olavo Bilac, 3 nov. 189324

Ao registrar em crônicas seu interesse pela arte religiosa da região das Minas, Rouède

terminou por adotar a Capela de São João e a Matriz da Boa Viagem como exemplos arquitetônicos

originais, resultados primeiros da invenção e da firmeza dos artistas que construíram aquele pedaço

da Colônia. Dentro desta concepção, com boa parcela de intuição, pôs corretamente em evidência

aqueles que foram os ―dois partidos fundamentais – o das capelas e o das matrizes –‖, que

permaneceram básicos em Minas, e definiram ―as duas etapas iniciais das construções religiosas‖,

conforme Susy de Mello25

. Nesta série de artigos não foram contempladas as produções artísticas da

terceira fase, compreendida em grande parte na segunda metade do século XVIII e início do XIX,

quando foram fabricadas as evoluídas igrejas das ordens terceiras e das irmandades. É bem verdade

que durante o breve espaço de tempo em que esteve em Ouro Preto não houve como aprofundar

pesquisas que pudessem elucidar algumas questões. Não dispunha do material documental

necessário. E, vale ressaltar, Correspondence de Ouro Preto e Chronique de Minas são textos

jornalísticos que, por sua natureza, requerem certa concisão.

Emílio Rouède abordou ainda alguns outros assuntos concernentes ao acervo colonial,

deixando bons conselhos na terra. Bem oportunamente evidenciou problemas fundamentais no que

diz respeito à conservação e guarda do patrimônio artístico e cultural. Condenou intervenções

indevidas de pretensos restauradores nas igrejas. Propôs mais aprofundada investigação histórica.

Temeroso de não se conseguir transmitir às futuras gerações todos aqueles valores, estimulou o

imediato registro de memórias ainda correntes e de fontes primárias. E, por fim, tomou a iniciativa

24 BILAC, Olavo. Crônica Livre. Gazeta de Notícias, 07 nov. 1893. DIMAS, Antônio (Org.). Bilac, o Jornalista:

Crônicas, vol. I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Editora da USP/Editora da Unicamp, 2006, p.

48. 25 MELLO, op. cit., p. 141.

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de fazer um discreto alerta para o problema do roubo das obras de arte, a desembarcarem com

tranqüilidade nas coleções do Rio de Janeiro.

Durante os primeiros anos da República, algumas outras matérias de cunho jornalístico,

sempre muito breves, versando sobre a história de Minas e sobre sua arte religiosa, foram escritas,

entre 1893 e 1894, por visitantes como Coelho Netto, Alfredo Camarate, Francisco Aurélio de

Figueiredo, Carlos de Laet, Olavo Bilac. Cerca de quatro anos mais tarde, em 1898, o pintor

Henrique Bernardelli, por ocasião de sua estada em Ouro Preto, viria manifestar profundo interesse

pela obra do escultor Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho26

.

26 GIANNETTI, Ricardo. Henrique Bernardelli em Ouro Preto: Contribuição ao trabalho de Celita Vaccani. 19&20.

Rio de Janeiro, v. IV, n. 4, out. 2009. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/artistas/hb_ouropreto.htm Acesso

em: 20/10/2009.

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Figura 1 - Capela de São João Batista, Ouro Preto, Minas Gerais

Foto: Ricardo Giannetti, 2010.

Figura 2 - EMÍLIO ROUÈDE: Vista do largo da Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem de Belo Horizonte, 1894.

Óleo sobre tela. 80 x 110 cm.

Acervo do Museu Histórico Abílio Barreto.

Fonte: MHAB.