Recursos Minerais, Água e Biodiversidade - QNEscqnesc.sbq.org.br/online/cadernos/08/08-CTN6.pdf ·...

of 7 /7
Recursos Minerais, Água e Biodiversidade 39 N° 8, p. 39-45, MAIO 2014 Cadernos Temáticos de Química Nova na Escola Virgínia S. T. Ciminelli, Francisco A. R. Barbosa, José G. Tundisi, Hélio A. Duarte O conceito de qualidade da água é apresentado de forma mais ampla, incluindo os aspectos físicos, quími- cos e biológicos. O sinergismo entre esses diferentes aspectos é salientada. A importância desse sinergismo é essencial para a compreensão dos ecossistemas aquáticos e como são afetados pelas atividades agrícolas, de mineração e pelas áreas urbanas. qualidade de água, biodiversidade, recursos minerais Recursos Minerais, Água e Biodiversidade Qualidade da água do ponto de vista químico e biológico A expressão qualidade da água é utilizada em diferentes situações ou contextos, fato que, às vezes, dificulta estabelecer o real sig- nificado do que seja qualidade da água. Para um biólogo especia- lizado em águas continentais, conhecido como limnólogo, a expressão a qualidade da água é uma expressão de qualidade do ambiente aquático, envolvendo aspectos físicos, químicos e bio- lógicos. Todo ambiente aquático tem uma matriz física e química (temperatura, quantidade dissol- vida de diferentes compostos e materiais em suspensão), que suporta ou permite a existência de tipos variados de organismos aquáticos, desde bactérias, leveduras, fungos e microcrustáceos, até organismos mais complexos como peixes e plantas aquáticas. Mais recentemente, esse conceito foi ampliado entre os ecólogos aquáticos para incluir também, no conceito de qualidade de água, a riqueza e a distribuição dos organismos aquáticos, bem como os processos ecológicos responsáveis pela sua manutenção. Esse conceito foi proposto em 1980 pelo ecólogo americano Thomas Lovejoy, como sendo a diversidade biológica (biodiversi- dade) de uma dada área ou região. Essa biodiversidade aquática tem fundamental importância para o funcionamento dos ecossistemas, além de suprir alimento para a espécie humana. Os organismos presentes na água regulam, até certo ponto, a composição química da água. A presença de bactérias afeta pro- cessos de decomposição, precipi- tação e produção de gases como metano e dióxido de nitrogênio. Além disso, todos os organismos consomem oxigênio e produzem dióxido de carbono pela respiração. Todo o conjunto de atividades dos organismos na água, portanto, altera, acelera ou retarda a composição química e a qualidade da água e do sedimento. A morte dos organismos resulta em uma per- manente precipitação de matéria orgânica em decomposição nos ambientes aquáticos e no sedimento. A presença de organismos em rios, lagos, represas, áreas alagadas, tem, portanto, um papel fundamental no funciona- mento dos ecossistemas e na sua autorregulação. Recebido em 13/03/2014, aceito em 24/04/2014 Em síntese, qualidade da água quer dizer, portanto, o resultado de variáveis físicas, químicas e biológicas. As variáveis físicas consistem na temperatura, luz, material em suspensão e do seu estado físico, enquanto as propriedades químicas estão relacionadas às concentrações de oxigênio dissolvido, nutrientes – como, por exemplo, fósforo e nitrogênio –, clorofila-a e pH. Os tipos de bactérias, cianobactérias, leveduras, fungos, microcrustáceos, moluscos, peixes, plantas aquáticas são as variáveis biológicas.

Embed Size (px)

Transcript of Recursos Minerais, Água e Biodiversidade - QNEscqnesc.sbq.org.br/online/cadernos/08/08-CTN6.pdf ·...

  • Recursos Minerais, gua e Biodiversidade

    39

    N 8, p. 39-45, MAIO 2014Cadernos Temticos de Qumica Nova na Escola

    Virgnia S. T. Ciminelli, Francisco A. R. Barbosa, Jos G. Tundisi, Hlio A. Duarte

    O conceito de qualidade da gua apresentado de forma mais ampla, incluindo os aspectos fsicos, qumi-cos e biolgicos. O sinergismo entre esses diferentes aspectos salientada. A importncia desse sinergismo essencial para a compreenso dos ecossistemas aquticos e como so afetados pelas atividades agrcolas, de minerao e pelas reas urbanas.

    qualidade de gua, biodiversidade, recursos minerais

    Recursos Minerais, gua e Biodiversidade

    Qualidade da gua do ponto de vista qumico e biolgico

    A expresso qualidade da gua utilizada em diferentes situaes ou contextos, fato que, s vezes, dificulta estabelecer o real sig-nificado do que seja qualidade da gua.

    Para um bilogo especia-lizado em guas continentais, conhecido como limnlogo, a expresso a qualidade da gua uma expresso de qualidade do ambiente aqutico, envolvendo aspectos fsicos, qumicos e bio-lgicos. Todo ambiente aqutico tem uma matriz fsica e qumica (temperatura, quantidade dissol-vida de diferentes compostos e materiais em suspenso), que suporta ou permite a existncia de tipos variados de organismos aquticos, desde bactrias, leveduras, fungos e microcrustceos, at organismos mais complexos como peixes e plantas aquticas.

    Mais recentemente, esse conceito foi ampliado entre os eclogos aquticos para incluir tambm, no conceito de qualidade de gua, a riqueza e a distribuio dos organismos aquticos, bem como os processos ecolgicos responsveis

    pela sua manuteno. Esse conceito foi proposto em 1980 pelo eclogo americano Thomas Lovejoy, como sendo a

    diversidade biolgica (biodiversi-dade) de uma dada rea ou regio. Essa biodiversidade aqutica tem fundamental importncia para o funcionamento dos ecossistemas, alm de suprir alimento para a espcie humana.

    Os organismos presentes na gua regulam, at certo ponto, a composio qumica da gua. A presena de bactrias afeta pro-cessos de decomposio, precipi-tao e produo de gases como metano e dixido de nitrognio. Alm disso, todos os organismos consomem oxignio e produzem

    dixido de carbono pela respirao. Todo o conjunto de atividades dos organismos na gua, portanto, altera, acelera ou retarda a composio qumica e a qualidade da gua e do sedimento. A morte dos organismos resulta em uma per-manente precipitao de matria orgnica em decomposio nos ambientes aquticos e no sedimento.

    A presena de organismos em rios, lagos, represas, reas alagadas, tem, portanto, um papel fundamental no funciona-mento dos ecossistemas e na sua autorregulao.

    Recebido em 13/03/2014, aceito em 24/04/2014

    Em sntese, qualidade da gua quer dizer, portanto, o resultado de variveis fsicas, qumicas e biolgicas. As variveis fsicas consistem na temperatura, luz, material em suspenso e do seu estado fsico, enquanto as propriedades qumicas

    esto relacionadas s concentraes de oxignio dissolvido, nutrientes como, por exemplo, fsforo e nitrognio , clorofila-a e pH. Os tipos de bactrias, cianobactrias,

    leveduras, fungos, microcrustceos, moluscos, peixes, plantas aquticas so as

    variveis biolgicas.

  • Recursos Minerais, gua e Biodiversidade

    40

    N 8, p. 39-45, MAIO 2014Cadernos Temticos de Qumica Nova na Escola

    Em sntese, qualidade da gua quer dizer, portanto, o resultado de variveis fsicas, qumicas e biolgicas. As variveis fsicas consistem na temperatura, luz, material em suspenso e do seu estado fsico, enquanto as propriedades qumicas esto relacionadas s concentraes de oxignio dissolvido, nutrientes como, por exemplo, fsforo e nitro-gnio , clorofila-a e pH. Os tipos de bactrias, cianobact-rias, leveduras, fungos, microcrustceos, moluscos, peixes, plantas aquticas so as variveis biolgicas. O resultado das interaes de todas as variveis fsicas, qumicas e biolgicas, em conjunto, responsvel pela manuteno da qualidade dos recursos hdricos bem como a flora e fauna dos ecossistemas aquticos.

    Essa viso ampla do conceito de qualidade de gua essencial para entendermos a estrutura e o funcionamento dos ecossistemas aquticos, sem o que a utilizao da gua e dos recursos hdricos, de forma susten-tvel, seria muito difcil ou mesmo impossvel. Com esse conceito amplo de qualidade de gua, po-demos entender tambm alguns processos nos ambientes aquti-cos, a comear, por exemplo, pela Demanda Biolgica de Oxignio (DBO), que indica o consumo de oxignio por bactrias, fungos e leveduras durante o processo de mineralizao do material orgni-co at a produtividade primria, ou seja, a fixao de carbono via fotossntese, que representa a formao de material orgnico novo nos sistemas aquticos.

    Todas as guas continentais esto sujeitas aos efeitos da drenagem do solo que contribui com elementos e substncias para a deteriorao da qualidade da gua de rios, represas e lagos. O processo mais comum o aumento de compostos contendo nitrognio e fsforo (como fosfatos e nitratos) na gua, resultante da drenagem de solos em reas de minera-o, solos agrcolas e de reas urbanas. Esgotos domsticos no tratados tambm causam esse processo. O crescimento excessivo de algas e plantas aquticas superiores (macrfitas aquticas) resulta em um aumento de biomassa, a qual, aps decomposio, consome oxignio, levando anxia. Essa eutrofizao um processo contnuo que progressivamente deteriora a qualidade da gua. Alm dessa deteriorao, h efeitos na sade humana. Eutrofizao resulta em crescimen-to excessivo de cianobactrias, algumas das quais produzem cianotoxinas que podem causar doenas no fgado (hepato-toxinas) e no sistema nervoso (neurotoxinas e saxitoxinas). O acmulo de matria orgnica nas guas interiores pode causar doenas graves como as enterites em pessoas que utilizem dessa gua para consumo.

    Particularmente no mbito industrial, a qualidade de gua do ponto de vista qumico assume aspectos especficos em funo do tipo de atividade industrial considerada. Assim, por exemplo, no mbito das atividades de minerao, h que

    se considerar que os processos envolvidos geram emisses aquosas, slidas e gasosas. guas que entraram em contato com os minrios durante a moagem ou nos reatores, onde ocorre a dissoluo do metal de interesse; rejeitos contendo minerais sem interesse econmico; gases como o dixido de carbono ou dixido de enxofre, que so produzidos na queima de carbonatos e sulfetos, so alguns exemplos das emisses geradas pela indstria mineral e que devem ser tratadas para minimizar os impactos ao meio ambiente (terrestre, aqutico e atmosfrico). A legislao ambiental estabelece critrios para o descarte das emisses de forma a minimizar o impacto ambiental. Esses critrios visam garantir que resduos gerados nos processos industriais ao serem depositados, geralmente em barragens de rejeitos, estejam em uma forma qumica e fisicamente estvel para

    no causar riscos graves sade humana e ao meio ambiente.

    Tomemos como exemplo uma chamin que emite quantidades apreciveis de dixido de enxofre para a atmosfera. Por meio de re-aes de oxidao e de hidratao, o dixido de enxofre pode formar cido sulfrico e assim gerar chu-va cida.

    Apesar de a chuva cida ter sido identificada ainda no s-culo XIX, somente em meados da dcada de 1960 passou a ser uma preocupao da cincia

    aps os estudos pioneiros de Harold Harvey, eclogo da Universidade de Toronto, Canad. Harvey publicou em 1972 um dos primeiros estudos sobre um lago morto resultado da precipitao cida, expresso utilizada para designar esse tipo particular de impacto causado pela formao de xidos de nitrognio e/ou enxofre.

    Na segunda metade do sculo XX, o grande pblico tomou conhecimento da chuva cida e seus impactos aps a publicao pelo New York Times dos estudos conduzidos na Estao Experimental Florestal de Hubbard Brook, Estados Unidos, demonstrando esses efeitos (Likens et al., 1972; 1974). A chuva cida est relacionada com queima de carvo mineral rico em enxofre, trfego de veculos e processos industriais que envolvem a queima de minerais ricos em enxofre. Atualmente, existem tecnologias para minimizar esses impactos e at utilizar o enxofre associado chuva cida para a produo de cido sulfrico para uso industrial.

    O dixido de enxofre um subproduto valioso da oxida-o de sulfetos minerais em um processo chamado ustula-o. A necessidade de adequar as emisses de enxofre aos limites estabelecidos pela legislao ambiental incentivou o seu aproveitamento na produo de cido sulfrico, que pode ser vendido para a indstria de fertilizantes grande consumidora para a produo de fertilizantes fosfatados ou pode ser utilizado no prprio processo industrial como, por exemplo, na etapa de lixiviao/dissoluo dos minrios.

    Apesar de a chuva cida ter sido identificada ainda no sculo XIX, somente em meados da dcada de 1960 passou a ser uma preocupao da cincia aps os estudos pioneiros de Harold Harvey, eclogo da Universidade de Toronto,

    Canad. Harvey publicou em 1972 um dos primeiros estudos sobre um lago morto

    resultado da precipitao cida, expresso utilizada para designar esse tipo particular

    de impacto causado pela formao de xidos de nitrognio e/ou enxofre.

  • Recursos Minerais, gua e Biodiversidade

    41

    N 8, p. 39-45, MAIO 2014Cadernos Temticos de Qumica Nova na Escola

    No caso dos particulados atmosfricos, a legislao bra-sileira estabelece a quantidade total mxima de partculas inalveis, dentre outros parmetros (Resoluo CONAMA n 3 de 1990). A tendncia observada em outros pases de se estabelecer tambm nveis mximos para elementos ou substncias qumicas presentes nessas emisses.

    Os processos industriais produzem emisses slidas com diferentes caractersticas qumicas. Rejeitos da concentrao de minrios de ferro so constitudos essencialmente por mi-nerais considerados inertes em condies ambientais como slica, xido de ferro, dentre outros. Portanto, a disposio dos rejeitos da minerao de ferro tem como principal preo-cupao a segurana fsica do barramento (conhecido como barragem de rejeitos). Por outro lado, o rejeito da produo da alumina no processo Bayer, chamada de lama vermelha, apresenta caractersticas de alcalinidade e eventualmente de presena de outros elementos qumicos que fazem com que a toxicidade seja tambm uma preocupao importante.

    A estabilidade qumica das emisses slidas avaliada em ensaios padronizados de disso-luo, que permitem determinar as concentraes dos elementos dissolvidos em gua ou em solu-es especficas aps um tempo de contato. Dependendo dos valores encontrados, o resduo classificado como perigoso, no perigoso ou inerte e essa classificao orienta a forma de disposio do rejeito.

    Processos naturais de remediao de guas

    Uma das consequncias ruins do lanamento de esgotos domsticos sem tratamento diretamente nos rios e nas re-presas a grande alterao da qualidade dessas guas que, como resultado direto da entrada de grandes quantidades de matria orgnica (esgoto), permitir o crescimento exagerado de microrganismos (bactrias, fungos, cianobactrias, algas) e outros (microcrustceos, moluscos, plantas aquticas).

    Numa fase inicial, esse crescimento exagerado gera mais degradao ambiental, j que consome o oxignio dissolvi-do existente e, assim, afeta os demais organismos como os peixes, por exemplo, que acabam sendo expulsos desses am-bientes para evitar a morte. No entanto, esse processo, com o tempo e dependendo do volume de esgoto aportado ao corpo dgua, acaba permitindo a mineralizao da matria org-nica do esgoto com liberao de elementos nutrientes como o nitrognio e o fsforo. Estes sero, por sua vez, utilizados para a formao de novos organismos produtores primrios (cianobactrias, algas e plantas aquticas), fechando o ciclo dos materiais, conhecido como ciclo biogeoqumico, desig-nao que demonstra que os diferentes elementos qumicos da natureza circulam entre os meios bitico (organismos) e abitico (elementos qumicos na natureza).

    Ao final desses processos, um dos resultados importantes para a manuteno dos organismos em condies de equilbrio com a natureza a melhoria das condies fsicas e qumicas das guas. Os elementos qumicos em excesso introduzidos com os esgotos so retirados do meio lquido e incorpora-dos, via fotossntese, aos novos organismos formados, o que permite, por sua vez, o surgimento de outros organismos (consumidores e decompositores) ao longo das redes trficas.

    Processos industriais em que o conhecimento biolgico/qumico utilizado para remediar e tratar os efluentes

    As atividades industriais, como praticamente todas as atividades associadas vida do ser humano, esto associadas a algum tipo de impacto ambiental, cuja magnitude cresce medida que a populao aumenta e concentra-se em algumas regies do planeta. A remoo e o beneficiamento de grandes volumes de minrios, estreis e rejeitos que caracterizam as

    atividades de minerao podem causar impactos na composio qumica e biodiversidade do solo e do ambiente aqutico. A lavra de minrios para futuro beneficiamen-to pode produzir impactos devido toxicidade de alguns elementos que so parte da composio dos minerais que constituem os min-rios e que so mobilizados pela atividade de minerao. Assim, ar-snio, cdmio, chumbo, mercrio, zinco podem ser eventualmente mobilizados e disponibilizados,

    contaminando guas superficiais e subterrneas e a biota aqutica. Por meio do processo de biodisponibilidade e bioa-cumulao, esses elementos distribuem-se na cadeia alimentar, podendo consequentemente afetar todos os organismos dessa cadeia e, potencialmente, a espcie humana. A correta gesto ambiental deve atuar para prevenir e minimizar esses impactos. Portanto, a preveno, a remediao e a correo dos efeitos da minerao passam pelos processos qumicos e biolgicos que so indissociveis e interdependentes. Um melhor uso dos processos biolgicos na minerao pode ser a aplicao da biodiversidade para remover metais e resduos txicos do ambiente (gua e solo), seja pela absoro direta e acumulao (em macrfitas aquticas, vegetao superior) ou pela inter-mediao de processos biogeoqumicos, os quais podem ser fundamentais na remoo de metais ou na sua transformao em espcies qumicas menos txicas (UNESCO; UNEP, 2008; Jorgensen et al., 2012).

    Invisveis, mas presentes em todo lugar

    Os microrganismos encontram-se amplamente distribu-dos em toda a natureza: na gua, nos solos, em depsitos minerais, nas plantas e no corpo humano. Nesses diversos compartimentos participam e interferem em diversas reaes

    Uma das consequncias ruins do lanamento de esgotos domsticos sem tratamento diretamente nos rios e nas

    represas a grande alterao da qualidade dessas guas que, como resultado direto da entrada de grandes quantidades de matria orgnica (esgoto), permitir o

    crescimento exagerado de microrganismos (bactrias, fungos, cianobactrias, algas) e outros (microcrustceos, moluscos, plantas

    aquticas).

  • Recursos Minerais, gua e Biodiversidade

    42

    N 8, p. 39-45, MAIO 2014Cadernos Temticos de Qumica Nova na Escola

    qumicas. Os microrganismos podem se adaptar s condies adversas: espcies podem ser encontradas, por exemplo, em um reator industrial de lixiviao de minrios de ouro ou seja, na presena de cianeto, uma substncia txica a diversos seres vivos. Devido sua dimenso, imperceptvel a olho nu, e ao fato de que as reaes das quais participam so muitas vezes mais lentas se comparadas s reaes de processos qumicos convencionais, a presena de microrganismos nem sempre percebida de forma imediata.

    No entanto, sob condies adequadas, as velocidades das reaes qumicas so aumentadas e se tornam de interesse industrial. Isso ocorre em diversas reas de aplicao como, por exemplo, na produo de cerveja e vacinas e tambm na rea mineral. Ou seja, existem processos industriais nos quais os microrganismos so utilizados com vistas a gerar produtos de valor econmico.

    A Figura 1 mostra o exemplo de dois microorganismos (mesfilos e termfilos) que so utilizados na extrao de ouro e cobre por meio de biolixiviao de sulfetos minerais.

    Transformando um problema ambiental em um processo industrial para a extrao de metais

    O papel dos microrganismos nas reaes de oxidao de sulfetos metlicos discutido no artigo Origem e Controle do Fenmeno Drenagem cida de Mina. Conforme expli-cado, trata-se geralmente de uma colnia de microrganismos autotrficos ou quimiolitotrficos (que so capazes de sin-tetizar material orgnico a partir do CO

    2 do ar e da energia

    das reaes de oxidao dos sulfetos minerais), acidoflicos (sobrevivem em condies de elevada acidez, e.g. pH 1-2) e aerbios (requerem a presena do ar). Dentre as espcies mais conhecidas, tem-se Acidithiobacillus ferroxidans, Acidithiobacillus thiooxidans e Leptospirilum ferrooxidans.

    A extrao de metais a partir de seus sulfetos envolve geralmente o aproveitamento de minrios de baixo conte-do metlico. Por exemplo, o teor do metal no minrio de cobre est na faixa de 1% em massa. Consequentemente, grandes quantidades de estril (material descartado na lavra) ou de rejeitos (material descartado nas operaes de tratamento de minrios como flotao ou, na extrao

    metalrgica, como lixiviao ver artigo Especiao Qumica e sua Importncia nos Processos de Extrao Mineral e de Remediao Ambiental) so gerados e devem ser dispostos adequadamente. Uma pilha de estril da mine-rao de minrios sulfetados de cobre pode conter pequenas quantidades de sulfetos como a pirita (FeS

    2), a calcocita

    (Cu2S), a covelita (CuS), dentre outros minerais. Como

    resultado do intemperismo qumico, a partir da exposio ao ar e gua de chuva, tem-se incio um processo qumico de oxidao da pirita, ilustrado pela reao:

    FeS2(s) + 7/2O2(g) + H2O(l) Fe

    2+(aq) + 2SO

    2-4(aq) + 2H

    +(aq) (1)

    A reao acima aumenta a acidez do meio que, combina-da a outros fatores fsico-qumicos como a temperatura, cria as condies ideais para a proliferao de microrganismos endgenos, ou seja, que j existiam associados rocha. Dentre estes, tem-se os microrganismos envolvidos nas reaes de oxidao dos sulfetos. Esse consrcio de micro-organismos, com destaque para a espcie Acidithiobacillus ferroxidans, acelera a oxidao dos sulfetos e a oxidao do Fe(II) a Fe(III).

    O cido sulfrico produzido na reao representada na Equao 1 e os ons Fe(III), reagentes cido e oxidante, respectivamente, quando combinados, formam uma soluo com elevado poder de lixiviao (dissoluo) de sulfetos. A reao de oxidao da pirita passa de um processo inicial predominantemente qumico (abitico) para um processo bitico sob a ao de microrganismos. Nessas condies, a velocidade da reao cresce exponencialmente fazendo com que a contribuio do processo qumico torne-se secundria.

    A produo continuada de cido e ons Fe(III) aumenta a taxa de oxidao dos sulfetos, o que consequentemente eleva a concentrao de cido e ons Fe(III). Esse o prin-cpio da gerao da drenagem cida de rocha (DAR ou, em ingls, ARD acid rock drainage) ou de mina (DAM ou, em ingls, AMD Acid Mine Drainage), discutida no arti-go Origem e Controle do Fenmeno Drenagem cida de Mina. O processo torna-se autossustentvel e pode perdurar enquanto os sulfetos existirem. Existem relatos de processos de drenagem cida originados h milhares de anos, como

    Figura 1: Microrganismos: a) mesfilos e b) termfilos. Figura reproduzida com permisso da editora Elsevier Referncia (Clark et al., 2006). Barra na figura indica a dimenso de 1 micrometro.

  • Recursos Minerais, gua e Biodiversidade

    43

    N 8, p. 39-45, MAIO 2014Cadernos Temticos de Qumica Nova na Escola

    o caso do Rio Tinto, na regio de Andaluzia, Espanha. A minerao de cobre e outros metais ao longo do Rio Tinto anterior poca crist e continuou no perodo do Imprio Romano at a Idade Mdia com a produo em grande escala ocorrendo a partir da retomada da lavra (minerao) no sculo XIX. O nome Rio Tinto vem da cor vermelho-cermica das suas guas, que caracterstica dos precipitados de Fe(III) na forma de xidos e hidrxidos (Figura 2a). A Figura 2b mostra a drenagem cida em uma regio com a presena de minerais sulfetos de cobre e ferro, conferindo uma ampla faixa de cores devido s diferentes fases em que se apresentam.

    Fe3+(aq) + 3H2O(l) Fe(OH)3(s) + 3H+(aq) (2)

    Observa-se que a reao de precipitao de espcies contendo Fe(III) eleva ainda mais a acidez do meio (ver equao 2). A DAM produz solues aquosas que contm, em geral, diversos metais dissolvidos. Alm da pirita, outros sulfetos e minerais contendo metais de toxicidade variada podem ser lixiviados e incorporados nas DAM, o que torna ainda mais severo o problema ambiental.

    O tratamento da DAM requer a precipitao dos ctions metlicos e a neutralizao da acidez. No entanto, dependen-do da concentrao dos ons metlicos, essa soluo pode seguir para etapas de tratamento do licor e de recuperao dos metais presentes na soluo da mesma forma como ocorre em um processo de lixiviao em tanques. Esse o princpio das tcnicas de Lixiviao em Pilhas de Estril e em Pilhas de Minrios.

    A Lixiviao em Pilhas de Estril (Dump Leaching-DL) permite recuperar o metal por exemplo, o cobre que lixiviado por meio de reaes que seguem os princpios do fenmeno natural de formao de DAM. Contudo, no processo industrial, as condies so controladas de forma

    a maximizar a extrao do metal. A tcnica utilizada para o tratamento direto de minrios de baixos teores (chamada

    Heap Leaching-HL). Nas lti-mas dcadas, cerca de 20% do cobre total produzido no mundo foi gerado por lixiviao em pi-lhas de estril. A engenharia de construo das pilhas de estril evoluiu ao longo dos anos. A preparao da base para receber o slido envolve o uso de mem-branas polimricas para reduzir os riscos de contaminao do solo e da gua subterrnea a partir da infiltrao da soluo, o que, por conseguinte, eleva a recuperao

    do metal. A distribuio da gua ou da soluo lixiviante foi aperfeioada, bem como a aerao da pilha de estril com microrganismos aerbios, que necessitam do oxignio do ar. A Figura 3 mostra exemplos de lixiviao em pilhas de minrios de ouro e urnio.

    A biolixiviao em pilhas pode ser utilizada para de-psitos de sulfetos polimetlicos e na extrao de urnio, situaes em que a formao de cido e ons Fe(III) favo-rece a lixiviao. No caso de minrios de cobre, o maior desafio a lixiviao do mineral calcopirita (CuFeS

    2), o

    mineral mais abundante de cobre. A calcopirita exige con-dies ainda mais drsticas do que aquelas da biolixiviao convencional, ou seja, temperaturas de 60 a 80 oC, tpicas dos microorganismos termfilos.

    Bioprocessos para tratamento de efluentes da minerao: a ao dos microrganismos reconstituindo os depsitos minerais

    As emisses (slidas, aquosas e gasosas) de uma unidade industrial requerem, geralmente, um tratamento prvio ao descarte ou disposio para evitar danos ao meio ambiente. A legislao ambiental estabelece padres mnimos em que os rejeitos devem se enquadrar para serem descartados ou dispostos.

    Figura 2: a) Foto do Rio Tinto, Espanha. Reproduzida com permisso Ref. (Davis et al., 2000). b) Drenagem cida de Mina em depsito de cobre (Foto: L. Bissacot).

    O tratamento da DAM requer a precipitao dos ctions metlicos e a neutralizao da acidez. No entanto,

    dependendo da concentrao dos ons metlicos, essa soluo pode seguir

    para etapas de tratamento do licor e de recuperao dos metais presentes na

    soluo da mesma forma como ocorre em um processo de lixiviao em tanques. Esse o princpio das tcnicas de Lixiviao em

    Pilhas de Estril e em Pilhas de Minrios.

  • Recursos Minerais, gua e Biodiversidade

    44

    N 8, p. 39-45, MAIO 2014Cadernos Temticos de Qumica Nova na Escola

    Figura 3: Exemplo de lixiviao em pilhas de minrio de ouro (MG) e de urnio (BA). (Figura 3a: Foto: Virginia Ciminelli. Figura 3b: Foto cedida pela Indstrias Nucleares do Brasil INB).

    Do ponto de vista de sua composio qumica, as emis-ses aquosas de uma indstria mineral so geralmente complexas, pois contm diversos nions (sulfatos, fosfatos, cianeto, arsenatos, entre outros) e metais que no podem ser diretamente dispostos no meio ambiente. Bioprocessos processos que utilizam microrganismos podem ser uti-lizados no apenas para a extrao de metais, mas tambm para o tratamento dos efluentes, mitigando, assim, o impacto ambiental do descarte e enquadrando-se s exigncias da legislao ambiental.

    O exemplo discutido a seguir envolve as chamadas bac-trias sulfato redutoras, como a Desulfovibrio spp, que redu-zem o on sulfato a sulfeto. Na Equao 3, CH

    2O representa

    material orgnico em geral presente no meio.

    2 CH2O+ SO42-(aq) H2S (aq) +2HCO3

    -(aq) (3)

    Os sulfetos metlicos, em geral, apresentam solubilida-de bastante baixa em meio aquoso e, portanto, precipitam segundo a reao:

    H2S (aq)+ Zn2+ (aq) ZnS (s) +2H+ (aq) (4)

    Condies redutoras favorveis proliferao das bac-trias sulfatorredutoras so encontradas no fundo de leitos de rios e nos alagados construdos (wetlands). Estes cons-tituem uma forma de minimizar o impacto ambiental.

    Outros processos industriais utilizam uma fonte de enxofre para a produo de derivados do H

    2S em biorreatores. O produto

    inserido em reatores onde ocorre a precipitao de sulfetos contendo os ctions metlicos. A reao possibilita a remoo do ction metlico presente na fase aquosa em uma forma em que o metal possa ser aproveitado. Trata-se, portanto, de um processo de recuperao do metal.

    A precipitao de um sulfeto metlico permite retornar o on metlico forma original encontrada no depsito mineral (ZnS tem a frmula qumica do mineral esfalerita).

    Dessa forma, o uso de sistemas passivos de tratamento de efluentes (como os alagados construdos) possibilita, de certa forma, a reconstituio do dep-sito mineral.

    Finalmente importante des-tacar que, a despeito das vrias possibilidades de tratamento de efluentes, uma tendncia irrever-svel de que todos os processos industriais sejam projetados

    cada vez mais com o propsito de minimizar as emisses e aproveitar ao mximo os recursos naturais, sejam eles no renovveis e finitos como os minerais, ou a energia a partir de combustveis fsseis e a gua. Ou seja, neces-srio conhecer em detalhes os aspectos fsicos, qumicos e biolgicos do efluente para projetar processos com maior

    Figura 4: Diferentes vistas de um sistema de tratamento passivo de efluentes industriais. O efluente flui pelas reas alagadas onde os processos descritos no texto ocorrem (Foto: cedida por Kinross Brasil Minerao).

    Condies redutoras favorveis proliferao das bactrias sulfatorredutoras so encontradas no fundo de leitos de rios

    e nos alagados construdos (wetlands). Estes constituem uma forma de minimizar o

    impacto ambiental.

  • Recursos Minerais, gua e Biodiversidade

    45

    N 8, p. 39-45, MAIO 2014Cadernos Temticos de Qumica Nova na Escola

    desempenho ambiental e garantir a qualidade da gua nos ambientes aquticos.

    A importncia da viso qumica e biolgica no desenvolvimento sustentvel das atividades minerais

    Uma das consequncias da ampliao do conhecimento cien-tfico a constatao de que h sinergismo entre os processos qumicos, fsicos e biolgicos, as substncias presentes no meio e a biodiversidade. A biodiversidade compreendida no apenas como as variedades de organismos presentes, mas tambm os processos bioqumicos envolvidos. Todas essas variveis influenciam e so influenciadas pelas outras em um equilbrio dinmico. A relao entre a biodiversidade e as propriedades qumicas e f-sicas constitui a essncia da cincia conhecida como Ecologia, palavra proposta em 1866 por Ernst Haeckel (Dajoz, 2005, p. 5) para designar a cincia global das relaes dos organismos com o mundo exterior que os envolve, no qual inclumos, em sentido amplo, todas as condies de existncia.

    A viso ecolgica que engloba aspectos qumicos e biolgicos essencial para entendermos o conceito de desenvolvimento sustentvel, expresso que aparece pela primeira vez em 1987 no Relatrio da Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, coordenada pela ento Primeira Ministra da Noruega Gro Harlem Brundtland, intitulado Nosso Futuro Comum e tambm conhecido como Relatrio Brundtland. O conceito de desenvolvimento sus-tentvel foi concebido como o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade

    Referncias

    CLARK, M.E.; BATTY, J.D.; VAN BUUREN, C.B.; DEW, D.W.; EAMON, M.A. Biotechnology in minerals processing: Technological breakthroughs creating value. Hydrometallurgy, 83, 3-9 (2006).

    DAJOS, R. Princpios de ecologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.

    DAVIS JR., R.A.; WELTY, A.T.; BORREGO, J.; MORALES, J.A.; PENDON, J.G.; RYAN, J.G. Rio Tinto estuary (Spain): 5000 years of pollution. Environmental Geology, 39(10): 1107-1116, 2000. doi:10.1007/s002549900096.

    FIGUEIRA, M.M.; CIMINELLI, V.S.T.; ANDRADE, M.C.; LINARDI, V.R. Cyanide degradation by an Escherichia coli strain. Can. J. Microbiology, 42, p. 519-523, 1996.

    JORGENSEN S.E.; TUNDISI J.G.; MATSUMURA-TUNDISI

    T. Handbook of environmental management of inland waters ecosystems. Florida: CRC Press, 2012. 431p.

    LIKENS, G. E.; BORMANN, F.H. 1974. Acidrain: a serious regional environmental problem. Science, 184(4142): 1176-1179, 1974. (apud Wikipedia. Acesso em 29 jan. 2013)

    LIKENS, G.E.; BORMANN, F. H.; JOHNSON, N.M. Acidrain. Environment, 14(2), p. 33-40, 1972. (apud Wikipedia. Acesso em 29 jan. 2013)

    SMITH, R.A. Air and rain. The beginnings of a chemical climatology. London: Longmans, Green, 1872.

    UNESCO; UNEP. Water quality for ecosystem and human health. IAP, ERCE, GEMS, water. 2008. 120 p.

    UNITED NATIONS. Report of the World Commission on Environment and Development, 1987. http://conspect.nl/pdf/Our_Common_Future-Brundtland_Report_1987.pdf; acessado em 05 de Maio de 2014.

    Abstract: Mineral Resources, Water and Biodiversity. The concept of water quality is presented in a broad manner including the physical, chemical and biologi-cal aspects. The synergism between these different aspects is highlighted. The importance of this synergism is essential for the understanding of the aquatic ecosystems and how they are affected by the mining and agricultural activities and by the urban areas. Keywords: Water quality, biodiversity, mineral resources.

    das geraes futuras de suprir suas prprias necessidades (United Nations, 1987, p. 34).

    Embora no exista, de fato, uma definio de sustenta-bilidade, o conceito claro ao explicitar que se trata do de-

    senvolvimento que no ameaa a manuteno dos recursos naturais, a qualidade de vida e a sobrevivn-cia das geraes futuras.

    importante ressaltar que o desenvolvimento sustentvel absolutamente oposto ao desen-volvimento que utiliza os recur-sos da natureza sem qualquer preocupao em garantir esses mesmos recursos para as geraes

    seguintes, sendo, portanto, fadado a se esgotar e deixar de existir com o tempo.

    A viso holstica do meio ambiente que nos cerca e uma anlise rigorosa dos vrios processos naturais e antropog-nicos e dos seus mecanismos fsicos, qumicos e biolgicos de suma importncia para garantirmos o desenvolvimento sustentvel e a prosperidade das geraes futuras.

    Helio Anderson Duarte ([email protected]), engenheiro qumico, mestre em Qumica Inorgnica e doutor em Qumica Terica, pesquisador 1B do CNPq e professor titular do Departamento de Qumica ICEx da UFMG. Belo Horizonte, MG BR. Francisco Antnio Rodrigues Barbosa ([email protected]), bilogo, mes-tre em Ecologia e Recursos Naturais-Limnologia e doutor em Cincias-Ecologia, professor titular do ICB/UFMG. Belo Horizonte, MG BR. Virgnia S. T. Ciminelli ([email protected]), engenheira qumica, mestre e doutora em Engenharia Metalrgica e de Minas, professora titular do Departamento de Engenharia Metalrgica e de Materiais da Escola de Engenharia/UFMG. Belo Horizonte, MG BR. Jos Galizia Tundisi ([email protected]), presidente da Associao Instituto Internacional de Ecologia e Gerenciamento Ambiental, professor honorrio do Instituto de Estudos Avanados da USP e professor/orientador do Programa de Ps-Graduao em Ecologia e Recursos Naturais da UFSCar. So Carlos, SP BR.

    importante ressaltar que o desenvolvimento sustentvel

    absolutamente oposto ao desenvolvimento que utiliza os recursos da natureza sem

    qualquer preocupao em garantir esses mesmos recursos para as geraes seguintes, sendo, portanto, fadado a se esgotar e deixar de existir com o tempo.