Rede 1 Janeiro 2005 Carlos Ayres Britto

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Número 1 – janeiro/fevereiro/março de 2005 – Salvador – Bahia – Brasil A CONSTITUIÇÃO E O MONITORAMENTO DE SUAS EMENDAS Prof. Carlos Ayres Britto Ministro do Supremo Tribunal Federal. Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP. Professor de Direito Constitucional da UFSE. SUMÁRIO: 1. O elogio da Constituição de 1988. A contextualidade histórica da Carta de Outubro. 3. O generalizado reconhecimento dos avanços da nova Lei Fundamental. 4. A hiper-dificultosa produção das emendas como estratégia de preservação dos avanços constitucionais. 5. A Constituição enquanto paciente e o Poder Reformador enquanto cirurgião. 6. Os princípios estruturantes e sua função ambivalente de estabilizar e atualizar a Constituição. 7. O caráter processual- endógeno da Constituição. 8. A Democracia como a quintessência ou o ser da Constituição. 9. A permanente exposição da Constituição a rupturas. 10. A necessária interpretação restritiva das normas constitucionais ensejadoras de emenda. 1. O elogio da Constituição de 1988 1.1. Quanto mais o tempo dobra as esquinas da vida, mais nos convencemos dos méritos da Constituição brasileira de 1988, tal como originariamente escrita. Méritos - façamo-nos entender -, no plano dos valores centrais por ela positivados e da maioria dos instrumentos postos a serviço de tais valores. 1.2. Com efeito, ao menos no seu atacado normativo, a “Constituição- cidadã” faz justiça à metáfora que lhe aplicou ULYSSES GUIMARÃES. Com que liberdade falamos, hoje, dos temas nela enfeixados! Como se trata de uma Constituição inovadora, em sede de direitos subjetivos fundamentais e instrumentos de contenção do poder governamental! Como a Federação brasileira se aproximou do paradigma norte-americano de autonomia dos Estados-membros (a partir do que mais conta, que é a autonomia tributário-financeira) e foi além:

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  • Nmero 1 janeiro/fevereiro/maro de 2005 Salvador Bahia Brasil

    A CONSTITUIO E O MONITORAMENTO DE SUAS EMENDAS

    Prof. Carlos Ayres Britto Ministro do Supremo Tribunal Federal. Doutor em Direito

    Constitucional pela PUC/SP. Professor de Direito Constitucional da UFSE.

    SUMRIO: 1. O elogio da Constituio de 1988. A contextualidade histrica da Carta de Outubro. 3. O generalizado reconhecimento dos avanos da nova Lei Fundamental. 4. A hiper-dificultosa produo das emendas como estratgia de preservao dos avanos constitucionais. 5. A Constituio enquanto paciente e o Poder Reformador enquanto cirurgio. 6. Os princpios estruturantes e sua funo ambivalente de estabilizar e atualizar a Constituio. 7. O carter processual-endgeno da Constituio. 8. A Democracia como a quintessncia ou o ser da Constituio. 9. A permanente exposio da Constituio a rupturas. 10. A necessria interpretao restritiva das normas constitucionais ensejadoras de emenda.

    1. O elogio da Constituio de 1988

    1.1. Quanto mais o tempo dobra as esquinas da vida, mais nos convencemos dos mritos da Constituio brasileira de 1988, tal como originariamente escrita. Mritos - faamo-nos entender -, no plano dos valores centrais por ela positivados e da maioria dos instrumentos postos a servio de tais valores.

    1.2. Com efeito, ao menos no seu atacado normativo, a Constituio-cidad faz justia metfora que lhe aplicou ULYSSES GUIMARES. Com que liberdade falamos, hoje, dos temas nela enfeixados! Como se trata de uma Constituio inovadora, em sede de direitos subjetivos fundamentais e instrumentos de conteno do poder governamental! Como a Federao brasileira se aproximou do paradigma norte-americano de autonomia dos Estados-membros (a partir do que mais conta, que a autonomia tributrio-financeira) e foi alm:

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    contemplou o Distrito Federal e os Municpios! Como a Administrao Pblica foi normada sob princpios consagradores da idia-primaz de que administrar no atividade daquele que se pe como senhor de coisa prpria, mas gestor de coisa alheia (RUI CIRNE LIMA)! Como os Tribunais de Contas e o Ministrio Pblico e o Poder Judicirio foram aparelhados para bem cumprir o seu mister de evitar o desgoverno! Como os temas recorrentes do meio ambiente e do nacionalismo foram zelosamente versados! Enfim, como a Democracia foi prestigiada pelo nosso Magno Texto, a ponto de resplender como o valor dos valores ou o cntico dos cnticos de toda a axiologia ali consagrada! Assim a Democracia formal como a substancial, de modo a compor a unidade possvel entre o Estado Democrtico de Direito (art. 1, caput) e o Estado de Direito Democrtico (art. 3).

    1.3. Sem exagero, o que transluz da redao inicial da nossa Lex Legum o decidido empenho de, nas suas linhas gerais:

    I - tornar o Direito maior do que a lei, e por isso que ela deixa claro ser a legalidade um ponto de partida para a Administrao Pblica, mas no um ponto de chegada (cabea do art. 37). como dizer: a Constituio exige que o administrador pblico retire da lei a sua regra de competncia, mas no fica nisso: preciso ainda que, na aplicao da lei, o administrador observe os princpios da moralidade, impessoalidade, publicidade e eficincia, entre outros, de maneira que a lei seja apenas um dos muitos elos de toda a corrente da juridicidade. No toda a juridicidade. Com o que se tem a positivao dos meios para o alcance da melhor Administrao possvel;

    II - celebrar o casamento por amor entre o Estado Democrtico de Direito (art. 1, caput) e o Estado de Direito Democrtico (art. 3), de sorte a favorecer a prtica do melhor governo possvel. que o modo democrtico pelo qual o Direito produzido (Democracia Formal ou Estado Democrtico de Direito), associado ao compromisso do Direito com a proteo do indivduo e a promoo das massas, a partir da valorizao do trabalho humano (Democracia material ou Estado de Direito Democrtico), adquire a suprema virtude de legitimar o poder poltico.

    1.4. Ora, celebrar esse tipo axiolgico de casamento j alcanar o justo por si mesmo. O justo acima de qualquer suspeita ou discusso, a carrear para a Lei Maior de 1988 um fundado sentimento de empatia e gratido.

    1.5. fato que o legislador constituinte de 1987/1988 ficou devendo em tema de reforma agrria. Como terminou por se embaraar num cipoal de planos nacionais e regionais, na seo normativa que trata Dos Oramentos (LUIS ROBERTO BARROSO assim o diz, com propriedade). Mas so defeitos localizados, passveis de atenuao por efeito de interpretao sistemtica e sem a fora de desqualificar a Carta de Outubro como um documento que d ao povo brasileiro o elevado status de pas juridicamente civilizado. Pas avanado, at, no confronto com a mdia das Constituies em vigor nos quatro cantos do mundo.

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    2. A contextualidade histrica da Carta de Outubro

    2.1. Situaes histricas do mundo ocidental e do Brasil em particular ajudam a compreender as principais conquistas da Lei Maior de 1988. na considerao dessa contextualidade que emerge, sobretudo, o porqu da ereo da Democracia como valor-teto ou valor-sntese das idias centrais de Direito que inspiraram a nossa ltima Assemblia Nacional Constituinte; sabido que a Democracia o nico regime poltico a atuar ambivalentemente nas bases da sociedade, para lhes conferir garantidos direitos, e nas cpulas do poder governamental, para a elas impor eficazes limites1.

    2.2. Tais situaes do orbe ocidental e desta nossa Terra de Santa Cruz so bastante conhecidas, porm no tm sido doutrinariamente associadas s timas vertentes e aos bons instrumentos de trabalho da Carta de Outubro. Falemos sobre elas, rapidamente, no propsito de grafar o seu nexo de causalidade com o que o nosso Cdigo Poltico tem de melhor. Ei-las:

    I - primeiramente, a 5 de outubro de 1988 vigorava a dicotomia ideolgica do capitalismo e do socialismo. Nessa poca, as Constituies ocidentais civilizadas se marcavam por instituir um regime poltico democrtico e uma ordem econmico-social nos moldes do Estado Social de Direito. Um regime poltico democrtico, enquanto reao ao modelo autoritrio do nipo-nazi-fascismo que prevaleceu nos anos da Segunda Grande Guerra. E uma ordem econmico-social nos moldes do Wellfare State ou Estado-providncia, enquanto alternativa aos experimentos socialistas do Leste Europeu. Logo, se no contraponto aos paradigmas do nipo-nazi-fascismo o que se tinha era um Estado de Direito, no contraponto ao modelo sovitico de organizao econmico-social o que se tinha era um Estado de direitos; ou seja, um Estado provedor das principais necessidades materiais coletivas e promotor - ou pelo menos indutor - da expanso produtiva. Tudo na perspectiva da Social Democracia ou do Estado Social Democrata, paradigma de organizao social global que se dispunha a concretizar o ideal da conciliao possvel entre a liberdade e a igualdade;

    II - no mbito interno, a Constituio de 1988 era o coroamento jurdico-formal da superao do movimento armado de 1964, de inspirao norte-americana, carter ideolgico de centrado elitismo social e instrumentao por via das Foras Armadas, que perdurou por vinte anos. Logo, o desafio do Texto Magno era a implantao de um Estado que fosse a anttese da ditadura

    1 No plano dos direitos fundamentais, por exemplo, nenhuma Constituio contempornea

    se aproximou tanto da Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, como a nossa Lei Republicana e a constituio portuguesa de 1976. E no plano da conteno do Poder, tambm no conhecemos nenhuma Carta que prestigiasse tanto os mecanismo de montagem e atuao do Poder Judicirio, do Ministrio Pblico e dos Tribunais de Contas, como a brasileira de 1988 (ressalva feita ao modo ainda imperial de nomeao dos agentes de cpula de tais instituies, mormente os dos tribunais judicirios superiores) .

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    empresarial-militar e esse Estado foi o Democrtico de Direito e o de Direito Democrtico, assim geminadamente.

    2.3. Fruto, portanto, dessa boa conjugao de fatores externos com fatores internos, a nossa Lei Suprema deu providencial seqncia prpria linha evolutiva do Direito como experincia histrica ou produto cultural. E ningum vai desdizer que o Direito se marca mesmo por essa caminhada de progressiva abertura de espaos afirmao tetradimensional dos direitos subjetivos (direitos de 1a., 2a., 3a. e 4a. dimenses) e concomitante desconfianas quanto s boas intenes dos governantes. Com o que a nossa Lei Maior se tornou uma Constituio rigorosamente primeiro-mundista. Uma Constituio assumidamente comprometida com o justo por si mesmo (tornamos a dizer), com o quanto de objetivamente justo se pode alcanar em termos normativos, residente na dplice e convergente limitao do poder poltico e do poder econmico; pois fato que a opresso poltica e a espoliao econmica sempre se colocaram enquanto os piores entraves sadia convivncia humana em forma de Estado. Os mais temveis algozes daquele estrato social que GILBERTO FREYRE chamava de massa annima, no monumental ensaio de Sociologia gentica e de Histria social que o livro CASA GRANDE & SENZALA.

    3. O generalizado reconhecimento dos avanos da nova Lei Fundamental

    3.1. Havia, destarte, nos segmentos mais organizados da sociedade braslica e nos prprios meios jurdicos a convico de se tratar de uma Constituio avanada ou progressista. Uma Lei Fundamental que se impusera ao grupo mais conservador e at reacionrio da Assemblia Nacional Constituinte - chamado de CENTRO - e que no tinha outra opo instrumental-normativa seno a de perseverar nas conquistas ento obtidas. E isto que explica muitos aspectos estruturantes e tambm metodolgicos da Carta de 1988, como, verbi gratia: a) a sua densa principiologia, evidenciadora de propsitos entranhadamente poltico-filosficos de insero do Brasil no seio dos pases de democracia consolidada e economia desenvolvida; b) o seu maior apetite normativo, na desconfiana de que deixar certas matrias aos cuidados do legislador ordinrio correr um duplo risco: o legislador ordinrio historicamente muito mais conservador do que as instncias constituintes e o Poder Executivo Federal tem o vezo de usurpar competncias legislativas sem que o titular dessas competncias (no caso, o Congresso Nacional) saia em defesa do que lhe pertence; c) o modo particularmente dificultoso com que habilita o Poder Legislativo a se investir na funo reformadora dela prpria, Constituio.

    3.2. Tudo autoevidente! Fora de uma Constituio que merea o qualificativo de cidad (ULYSSES GUIMARES), o que sobra? A Constituio autoritria dos militares ou, quando muito, a Constituio liberal clssica. E isto j significa um retorno quele tipo de Ordem Jurdica propiciadora da desvalorizao do trabalho humano e da extrema concentrao da riqueza socialmente produzida. Com o conseqente fechamento de espaos educao formal e participao poltica de amplos setores sociais. Que se persevere, ento, nas conquistas obtidas e para isso preciso impedir que as emendas Constituio

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    venham a significar um contradiscurso constitucional, um retrocesso a frmulas de organizao poltico-social que no passam da reprise de um filme cujo trgico fim de iniqidades sociais e apatia cvica j se conhece.

    3.3. O quadro psicossocial era esse mesmo: a Constituio de 1988 tinha sobradas razes para gostar muito mais de si prpria do que das suas emendas. Havia um estado de euforia nacional quanto aos merecimentos filosficos da nova ordem constitucional e um generalizado receio de que tais merecimentos viessem a sofrer conspurcao por efeito da mutao formal em que as reformas consistem. E se a Constituio no podia deixar de normar sobre as suas prprias emendas, que tais emendas se submetessem a um regime normativo de sobredificuldades gestacionais!

    4. A hiper-dificultosa produo das emendas como estratgia de preservao dos avanos da Constituio

    4.1. Pronto! Chegamos aonde queramos chegar e esse ponto de chegada o exame do regime das emendas Constituio. Um regime normativo que j antecipamos como particularmente dificultoso, no sentido de que a Lei Maior tudo faz para conter a proliferao do seu uso (delas, emendas) e limitar ao mnimo possvel o poder de conformao normativa do legislador de reforma. At parece que os constituintes de 1987/1988 tinham em mente a advertncia de KARL LOEWENSTEIN quanto relao direta entre a edio das emendas (mesmo as de ordem puramente tcnica) e a depreciao do sentimento constitucional do povo. Como tudo leva a crer que estivessem conscientes de que um dos motivos da estabilidade de certas Constituies (a dos Pases Baixos e a dos Estados Unidos frente) reside na escassez das respectivas emendas.

    4.2. Cuidemos, ento, de comentar o regime jurdico das emendas Constituio de 1988, debaixo desse entendimento, que temos, de que a nossa Carta Magna tratou foi de investir na sua prpria estabilidade. Foi de expressar por si mesma um apreo incomum, um forte e justificado sentimento de autoestima, convencida de que todos os seus atos de reforma somente seriam vlidos na medida em que se dispusessem a adensar: a) os preciosos fundamentos que ela criara como pressupostos de organizao da nossa Repblica Federativa, e que so, nos termos dos incisos de I a V do seu art. 1, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e, por fim, o pluralismo poltico; b) os objetivos fundamentais da mesma Repblica Federativa, esculpidos no seu art. 3, a saber: construir uma sociedade livre, justa e solidria, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao2.

    4.3. Cuidemos de comentar o regime das emendas, dizamos, porm nos permitindo lembrar que estvamos saindo da Faculdade de Direito de Sergipe, no

    2 Praticamente o iderio todo do chamado Direito Alternativo, assim magnificamente

    residente na casa maior do Direito Positivo, que a Constituio.

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    ano de 1966, e, quela poca, lamos com freqncia MIGUEL REALE. Lamos, sobretudo, a parte jusfilosfica das investigaes do erudito professor da Universidade de So Paulo (USP). Numa dessas oportunidades, encontramos uma frase que nos marcou definitivamente. Tratava-se de uma frase muito simples (e ns sabemos que as coisas mais importantes e marcantes so exatamente as mais simples), que dizia que toda palavra encerra o segredo do seu prprio significado. As palavras existem para isolar seres ou objetos, identificando-os. Logo, permitem-nos conhecer o sentido ntimo daquilo a que se referem. E nos fixamos nessa boa lio porque as coisas mais importantes so as mais simples e tudo que mais simples est bem prximo de ns. Afinal, partindo do conhecido que podemos chegar ao desconhecido. comeando do concreto que podemos chegar ao abstrato. da superfcie dos oceanos que descemos s profundidades das suas guas. Por isso que, ao falar de reforma constitucional, no do nosso feitio complicar as coisas. Vamos diretamente ao dicionrio e l confirmamos que reforma significa dar melhor forma; ou seja, reformar conferir melhor forma s coisas. Reformar to-somente retocar, rever, repassar. Mas, com que finalidade? Visando sempre a melhorar, a atualizar, a aperfeioar aquilo que se pe como o prprio objeto do ato de reforma. Lgico! Ns procuramos um mdico ou um cirurgio, digamos, para que? Para que ele nos reforme o corpo enfermio em algum aspecto. O papel de quem reforma no destroar o sujeito ou todo o organismo que se ponha como alvo da prpria reforma. S se procura um mdico, enquanto paciente, para se obter uma certa melhora de sade e o papel do mdico no , jamais, o de apressar o bito do paciente. De revs, o papel do profissional da medicina melhorar o estado de sade de quem o procura como cliente.

    5. A Constituio enquanto paciente e o Poder Reformador enquanto cirurgio

    5.1. A obrigao de manter o paciente vivo

    5.1.1. Ora, reforma constitucional tambm assim. O dicionrio jurdico-positivo no desconfirma o coloquial, no particular. como se a Constituio fosse um paciente e o legislador reformista, um mdico. Alis, vale mencionar que tal legislador de reforma inapropriadamente chamado de Poder Constituinte de segundo grau ou derivado, pois, conforme ensina JORGE MIRANDA, se o poder do tipo derivado porque no constituinte: constitudo. 0 verdadeiro Poder Constituinte aquele que tem a fora de elaborar a nova Constituio, por inteiro e em uma s oportunidade (acrescentamos). Assim como aquele que tem a fora de revogar a velha Constituio, tambm por inteiro e numa nica oportunidade, pois o Poder Constituinte simultaneamente um Poder Desconstituinte. Noutros termos, o verdadeiro, o autntico Poder Constituinte no apenas o que elabora normas constitucionais, pois o Congresso Nacional tambm detm o poder de elaborar tais normas. No apenas o que revoga normas constitucionais, pois o Congresso Nacional tambm o faz. O que no faz o Congresso Nacional, mesmo no exerccio de sua funo reformadora, partir de um marco jurdico zero para elaborar inteiramente a nova Carta, de um s jato, decretando no mesmo instante a sentena de morte de toda a antiga Lei Fundamental do Pas. Donde o decisivo corolrio: se toda Constituio um repositrio de normas constitucionais, nem todo repositrio de normas

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    constitucionais uma Constituio. Chamar, ento, o Poder Reformador de Poder Constituinte uma demasia. E chamar o Poder Constituinte de Poder Constituinte originrio uma redundncia3.

    5.1.2. Apor o mesmo nome s duas instncias decisrias colocar em penumbra o campo divisional das respectivas produes normativas. esmaecer as fronteiras ou as linhas divisrias de um e de outro Poder, facilitando, no caso, as fraturas da Constituio pelo Poder de hierarquia menor, que o Poder Reformador. E reforando, por conseqncia, o indesejvel sentimento popular de desestima constitucional.

    5.1.3. Como h pouco teorizamos, Poder Constituinte mais que o poder de produzir normas constitucionais. aptido para produzir toda a Constituio, de uma vez s, e ab-rogar todas as normas da velha Carta Magna, tambm num nico momento (se assim preferir). o mesmo que dizer: numa das mos, o Poder Constituinte usa do giz para criar a nova Constituio. Na outra mo, usa do apagador para descriar a Constituio antiga. Seu verdadeiro alvo no so determinadas normas constitucionais a derruir, a erigir, ou a modificar. Seu verdadeiro alvo so as duas Constituies por completo: a velha e a nova. Quem trabalha ao nvel das normas constitucionais, e no ao nvel da Constituio por completo (nem da antiga nem da nova), o Poder Reformador.

    5.1.4. Sendo assim, o Poder Reformador, que no Constituinte coisa nenhuma, trabalha certas normas da nova Constituio para melhor servir Constituio mesma. Para que os princpios estruturantes da Constituio tenham ao seu dispor todos os meios de concreo que a passagem do tempo exigir como os mais indicados. Ou a passagem do tempo, tout court, ou a configurao de determinadas circunstncias, ou ainda por impasses advindos da aplicao da prpria normatividade constitucional. Seja como for, o objetivo da reforma no ser jamais o de fraudar aqueles princpios axiais da Constituio, dado que por tais princpios que se fixa a identidade do Magno Texto (a Constituio tem a cara dos seus princpios). E j deixamos suficiente claro que a obra constitucional como um todo, no que ela tem de verdadeiramente central ou caracterstico, h de sobreviver faina reformista.

    5.1.5. Este o primeiro sentido tcnico de reforma constitucional, na Magna Carta brasileira de 1988. Se o legislador usual atualiza o Direito Infraconstitucional, o legislador de reforma atualiza a prpria Constituio. Mas sempre ocupando posio intermediria como editor normativo, na medida em que pode ir alm do legislador ordinrio, certo, mas permanecendo aqum do legislador constituinte4.

    3 No se nega ao Poder Constituinte a fora de elaborar a Constituio a prestaes,

    passando ela a existir, ento, numa pluralidade de documentos jurdico-positivos que se vo acrescentando uns aos outros, ao longo do tempo. O que se est a encarecer a potencialidade que tem o Poder Constituinte para fazer o que tem feito a partir do segundo aps-guerra: produzir a Constituio Positiva em um nico texto ou diploma normativo e de uma s vez. No a conta-gotas.

    4 Como insuperavelmente argumenta GEORGES BURDEAU, o Poder de Reviso criatura da Constituio e, por isto, se vier a ab-rog-la estar destruindo o prprio

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    5.2. A atuao necessariamente pontual do legislador de reforma.

    5.2.1. 0 segundo sentido tcnico pode ser explicado ainda por comparao. Quando procuramos um mdico para uma cirurgia, exempli gratia, esse mdico dever agir de modo tpico ou pontual. Isolando aquelas partes do nosso corpo que estejam a carecer do bisturi. Tudo feito no pressuposto da existncia de um mal localizado. Ora a remoo de clculos vesiculares, ora a recomposio de estruturas sseas ou de simples ligamentos, ora a feitura de uma ponte de safena e assim avante. O mdico s pode mesmo laborar por partes. No se concebe uma cirurgia em todos os segmentos do corpo humano, simplesmente porque o paciente no agentaria o tranco... 0 doente quer ser tratado parte por parte, membro por membro, rgo por rgo, exatamente como deve suceder com a reforma constitucional brasileira.

    5.2.2. Convm insistir no juzo. Entre ns, toda reforma deve ser tpica, pontual, isolando pequenos aspectos da Constituio para receber esse retoque a que corresponde a funo reformadora. prprio da reforma constitucional o mximo de concentrao material, a significar no-dispersividade temtica por parte dos elaboradores dos atos de emenda. A possibilidade de melhor servir Constituio, preservando-lhe o esprito, tanto maior quanto mais localizado o aspecto material a refundir.

    5.3. A probio de uma cirurgia atrs da outra

    5.3.1. Por um terceiro aspecto, o mdico no faz uma cirurgia atrs da outra - uma cirurgia e mais uma segunda, uma terceira e uma quarta cirurgia no paciente que o procura, voluntaria e conscientemente, porque o doutor h de respeitar o estado de convalescena do seu paciente a cada cirurgia. preciso que o paciente se avalie, experimente-se aps a interveno a que se submeteu. Somente assim que recobra as energias fsicas e at o clima psicolgico para voltar mesa de operao. o que se d com a reforma constitucional de que trata o art. 60 da nossa Carta de Outubro. Uma reforma no deve se seguir imediatamente outra; preciso um certo interstcio, um certo lapso temporal para que a sociedade avalie a Magna Carta ps-interveno emendacional. E avalie o prprio cirurgio, isto , o comportamento do legislador constitudo no uso dos seus especialssimos poderes de reforma.

    5.3.2. Esse novo cuidado operacional, em tema de reforma, tambm homenageia o prefalado sentimento ou estima social pela Constituio. Impede que o povo se perturbe com a idia de que sua Lei Maior to padecente de males jurdicos de nascena que no pode dispensar um constante acompanhamento mdico-legislativo... Afinal, ter uma Constituio (tener una Constitucin, falaria PABLO LUCAS VERD) aspirao de todo povo livre e ela prpria intenta se autogarantir o bastante para no incidir em desapreo coletivo. Donde a ponderao do mesmo VERD, citado por RAUL MACHADO HORTA s fls. 109 da obra citada em nota de rodap:

    fundamento de sua competncia (apud RAUL MACHADO HORTA, em ESTUDOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL, Editora DEL REY, 1995, p. 116).

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    El concepto de Constitucin es completo cuando a inteleccin teortica se une su compreensin emocional mediante el sentimiento que se adhiere al concepto. La ensenanza de Derecho Constitucional no se agota en la explicacin de sus evidentes y necesarias conexiones lgicas y tcnicas, requiere, adems, que se insista en la necesidad de que la sociedad se adhiera a aqulla, sintiendola como cosa propria.

    5.3.3. Se a Constituio, ora hiper-dificulta, ora probe mesmo a produo das suas emendas, porque est a pugnar pela sua prpria estabilidade. Est a se auto-rotular como o mais estvel, o mais firme, o mais hirto dos documentos jurdico-positivos e justamente isso que contra-indica a proliferao das suas emendas. Mais ainda, pugnar pela sua prpria estabilidade meio de a Constituio defender sua unidade formal e material, sua necessria coerncia interna, qualidade que no se coaduna com o visual de colcha de retalho que lhe impe uma febricitante poltica legislativa de emendabilidade.

    5.3.4. Trivializar a gestao das emendas pode at no ofender a letra da Constituio. Mas o esprito, o esprito da Lei Maior perde muito em luminosidade, pois a constncia do exerccio do Poder Reformador o vexatrio atestado de que a Magna Carta no cessa de coxear atrs dos fatos. E como lembrava So Paulo, em uma das suas cartas aos corntios, a letra mata; o esprito que vivifica.

    5.4. A interdio do axiologicamente central

    5.4.1. Uma quarta observao como que um desdobramento da primeira e consiste no seguinte: a reforma constitucional no pode ter a dimenso de uma lobotomia ou de um transplante de fgado, cujos resultados e seqelas so, mais que tudo, imprevisves. necessrio que seja algo menos grave. Algo apenas situado ao nvel dos preceitos ou simples regras constitucionais. Quando muito, algo principiologicamente perifrico, e no principiologicamente central, porque se um ato de reforma for principiologicamente central ele vai desfigurar o que a Lei Maior tem de axial e substitu-la por outra. Ele, ato de reforma, se a tanto chegar provocar desidentificao constitucional, e no correo de rumos ou interveno evolutiva. A pretexto de atualizar a Lei Suprema, vai consubstanciar um deliberado ato de ruptura, que forma radical de vicissitude constitucional, para tomarmos de emprstimo uma locuo do retrocitado constitucionalista portugus JORGE MIRANDA.

    5.4.2. De fato, o mestre lusitano fala de vicissitudes constitucionais como quaisquer eventos que se projectem sobre a subsistncia da Constituio ou de algumas das suas normas (em MANUAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, tomo II, 2a. edio, p. 109, COIMBRA EDITORA, LIMITADA). Logo, vicissitudes constitucionais so revezes ou azares ou percalos ou mesmo contingncias a que se expem as Constituies no sentido de sua mudana, por efeito de uma natural tenso entre o seu dever-ser e o ser da vida social. Incessante oposio dialtica, ento, entre o dentico jurdico - mesmo o de timbre constitucinal - e o ntico factual. Oposio ou contradio que FERDINAND LASSALLE exagerou, a ponto de falar que diante dos fatores reais do poder a Constituio no passa

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    de uma folha de papel. Esquecido de que o Direito e os fatos interagem dialeticamente e que o Poder Constituinte no tem outra oportunidade para induzir ou influenciar condutas sociais desejveis seno no ato de criao da Carta Magna. Forcejando por obter, naturalmente, uma nova cultura jurdica.

    5.4.3. Acontece que a ruptura por via de emenda implica um tipo de estelionato constitucional, por operar, no do lado de fora da Constituio, mas do lado de dentro. Implica uma traio ao Magno Texto, coisa que no ocorre no mbito da manifestao propriamente constituinte. que o Poder Constituinte sempre in natura e por isso que pode impor a toda Constituio uma quebra ou soluo de continuidade (este o sentido prprio da ruptura constitucional), a qualquer momento e sem incorrer jamais em quebra de fidelidade. O que no o caso do Poder Reformador, por ser um Poder pasteurizado, no sentido de somente poder normar nos termos em que j foi normado. Com o dever da irrestrita fidelidade ao molde constitucional originrio sob que foi recortado, portanto.

    5.4.4. Retomando o fio da meada, a prpria Constituio de 1988 que prev sua reforma - no se nega -, porm ao nvel dos retoques. Ela no pode ser modificada naquilo que tem de verdadeiramente fundamental, estruturante, ptreo; ou seja, a menina dos olhos ou a quintessncia da Constituio tem que permanecer a mesma. O nervo da constituio, a sua alma, suas impresses digitais, enfim, tudo que axiologicamente a personaliza face das demais Constituies (seja materialmente, seja do ponto de vista formal ou processual) tem que permanecer a salvo de dessubstancializao.

    5.4.5. Perguntamos: por que a Constituio de 88 diferente de todas as outras Constituies brasileiras e de todas as demais Constituies do mundo? Porque ela tem uma identidade, presente nos seus princpios estruturantes ou clusulas ptreas formais e materiais, explcitas e implcitas, lgicas e tcitas, cuja funo justamente a de impor intransponveis limites aos atos oficiais de reforma constitucional5.

    5.5. A no-submisso das emendas a regime de Tratamento Intensivo

    5.5.1. Importa vocalizar uma quinta observao, ainda recorrendo a figuraes de ordem mdico-cirrgica. a seguinte: a Lex Legum de 1988 no pode parar numa UTI (unidade de tratamento intensivo, no jargo da Medicina). Jamais a nossa Lei Suprema ir se internar numa unidade de tratamento intensivo, pois a Constituio-cidad infensa, arredia a tratamento de choque ou de emergncia. Nada traumtico ou emergencial, em termos de sua reforma, pois exatamente para acudir a tais situaes de maior instabilidade poltico-social foi que a nossa Lei Maior criou os mecanismos da Interveno Federal (art. 34), do Estado de Defesa (art. 136) e do Estado de Stio (arts. 137 a 139). Proibindo, justamente, que em tais circunstncias incidisse o instituto das emendas a si

    5 Quando falamos de atos oficiais de reforma constitucional, j no falamos seno das emendas Constituio. Isto, pelo fato de que a reviso prevista no art. 3 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias (ADCT) no passa de uma norma de eficcia totalmente esvada. Nasceu como norma de eficcia diferida, porm, com o tempo, exauriu por completo os efeitos que tinha em mira produzir.

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    prpria ( 1 do art. 60). 5.5.2. Em s realidade, luz de todo o art. 60, combinadamente com os

    incisos de I a V do seu art. 1, a Constituio Brasileira de 88 um primor de solenizao do seu processo reformista. No existe na histria do Brasil uma Constituio que prime tanto por dificultar a produo de suas prprias emendas e at por interditar as respectivas apresentao e deliberao (esta ltima hiptese a pressupor emenda tendente a abolir qualquer das clusulas ptreas materiais expressas). E a nossa Carta Republicana fez muito bem, no particular, insista-se, at porque uma Constituio eminentemente principiolgica; recamada, repleta de princpios, como os da Repblica e da Federao (com os respectivos fundamentos), e mais a Separao dos Poderes, o Estado Democrtico de Direito, o Estado de Direito Democrtico, os direitos e garantias fundamentais, a legalidade, a moralidade, a publicidade, a eficincia, a impessoalidade, etc. Ela principiolgica mais que todas e qual a conseqncia dessa principiologia essencial?

    6. Os princpios estruturantes e sua funo ambivalente de estabilizar e atualizar a Constituio

    6.1. Bem, que certos princpios (dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, moralidade, eficincia...) tm uma certa fluidez de contedo que se traduz numa materialidade que em parte atual e em parte futurista ou prospectiva. A parte atual de pronto compreendida com os elementos conceitos que afloram da tecnicalidade constitucional, sem necessidade de o intrprete recorrer a elementos de compreenso que se situam no plano do sistema social genrico (sistema poltico, econmico, militar, moral, religioso, familiar, etc.). A parte futura aquela que vai buscar o seu conceito no modo como o povo passa a sentir e praticar o discurso normativo-constitucional, ao longo do tempo. Logo, uma parte vocacionada para a mutabilidade, enquanto a outra, para a imutabilidade.

    6.2. O que estamos a enfatizar que determinados princpios so como que janelas abertas para o porvir, dotando a Constituio de plasticidade ou jogo de cintura para se adaptar evoluo do modo social de conceber e experimentar a vida. Eles fazem da Constituio um documento processual por excelncia e que o processo? Um seguir adiante, um caminhar para frente, como da natureza da vida mesma.

    6.4. Com efeito, os princpios de que falamos ostentam um ncleo e uma periferia em sua prpria circunferncia dentica. Naquele ncleo, a imutabilidade. Na periferia, a possibilidade de mudana. Desde que tal mudana tenha o significado de aumentar a perspectiva de funcionalidade do ncleo mesmo. Com o que os princpios axiais da Constituio operam, ambivalentemente, como fator de estabilidade e de atualizao constitucional.

    6.5. H como que uma dialeticidade no prprio interior de cartos princpios, no mbito de sua prpria circunferncia semntica, fazendo com que a Lei das Leis ganhe essa possibilidade de se ajustar mais facilmente irrupo de fatos novos ou a novas valoraes de fatos velhos. A tenso entre permanecer

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    inclume e experimentar alteraes ocorre no imo, no recndito de cada princpio mesmo e o atrito se resolve por uma soluo endgena de compromisso que leva a Constituio a mudar para permanecer idntica a si mesma (na medida em que a mutabilidade na periferia do princpio se faz para robustecer, ou assegurar, a operatividade da parte nuclear desse princpio mesmo).

    6.6. Por que no repetir? Todo o nosso empenho comunicativo para evidenciar que a Lex Legum ps-regime autoritrio de 1964/1984 se deseja fluir muito mais por conta prpria do que por interveno dos seus atos de reforma. Ela se prefere dinamizada pela processualidade dos seus princpios estruturantes e isto que rebate ou compensa a rigidez formal a que se imps. E assim que percebemos que tudo muda no Direito brasileiro, s que em diferentes ritmos. Como exigir que o Direito axiolgico por definio, que a Constituio, tenha a agilidade do Direito factual por excelncia, que o Direito Infraconstitucional?

    6.7. Por este modo de ver o fenmeno da principiologia constitucional, inclumos at mesmo a Democracia como possuidora do referido ncleo que impermevel a mudanas e de uma periferia permevel. O ncleo impermevel aquele que situa a Democracia no rigor lgico da famosa definio lincolniana, segundo a qual Democracia o governo do povo, pelo povo e para o povo (e que foi consagrada pela Carta de Outubro, a teor do pargrafo nico do art. 1, combinadamente com todo o artigo 3). Democracia, portanto, como deslocamento espacial ou topogrfico do povo, que sai da platia e passa a ocupar o palco de todas as decises governamentais que lhe digam respeito. J a periferia do conceito, essa passa a legitimar todo tipo de alterao constitucional formal que venha a se traduzir em desconcentrao da autoridade poltica e ampliao dos espaos de participao popular na escolha dos governantes e no exerccio, controle e fiscalizao do Governo. Diga-se o mesmo da Democracia material ou de substncia, a assimilar toda mudana que signifique proliferao dos ncleos sociais de participao na riqueza nacional e no saber que se produz nas escolas oficiais, aqui inseridas as universidades.

    7. O carter processual-endgeno da Constituio

    7.1. Se corretamente interpretada, ento, a Magna Carta por si mesma se atualiza, se adapta e torna dispensvel boa parte dos atos de sua prpria reforma. quando o trabalho de interpretao chega a um ponto de no mais salvar a Constituio para a atualidade da vida que se pode falar em reforma. Porque a Constituio, primando por um carter principiolgico, passa a se revestir daquela processualidade ou daquela historicidade que lhe permite andar com as prprias pernas, voar com as prprias asas para novos horizontes poltico-filosficos e factuais. Ela mais processual por si mesma do que o Ordenamento Infraconstitucional, e por esse modo peculiar de ser no precisa tanto de atos de reforma quanto o Ordenamento Infraconstitucional precisa.

    7.2. Graas extensa rede dos seus princpios axiais, quase todos, ao nosso ver, operando enquanto manifestaes pontuais da Democracia, a Lei Fundamental de 1988 entrelaa tais princpios e assim que se faz inexcedvel modelo de pr-interpretao ou pr-compreenso de si mesma; ou seja, o objeto cognoscvel a prescrever como se quer visualizado pelo sujeito cognoscente, pois

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    no entrechoque emprico dos princpios h de prevalecer aquele: a) que menos sacrifique os demais; b) que chegue mais prximo do ncleo dentico da Democracia, sntese e ponto de arremate de todos os outros6.

    7.3. Ainda uma vez, sentamos praa da nossa convico de no incorrer em exageros. A Democracia o valor dos valores de toda a constelao axiolgica da Constituio de 1988, pela clara razo de que ela o princpio que mais repassa a sua materialidade para os outros. Ela a que mais se faz presente em cada um dos fundamentos da Repblica e em cada uma das clusulas expressas materiais do 4 do art. 60 e por tal razo que no houve necessidade de clausul-la como norma ptrea. Ela o mais ptreo dos valores ptreos, porque todos os outros somente valem porque ela vale. Ela a razo de ser dos demais, e, assim, o princpio que mais norteia a interpretao dos outros e o que dota a Constituio do mencionado carter de processualidade endgena.

    8. A Democracia como a quintessncia ou o ser da Constituio

    8.1. Toda esta fundamentao nos autoriza a ajuizar que a Democracia a quintessncia ou o prprio ser da Constituio, em derradeiro exame. Ela a chave de abbada do sistema constitucional brasileiro, cumprindo o papel instrumental de impedir que o auto-impulso axiolgico da Magna Lei (de um patamar inferior para outro superior) venha a se perder no infindvel. Esse movimento ascensional-interno (de preceito para princpio e de princpio menor para princpio maior) tem um compromisso racional com um dado ponto de chegada, que o valor para alm do qual no pode haver outro seno j totalmente situado no mundo das coisas metajurdicas. E esse valor-teto, que dentro da Constituio no conhece outro que se lhe iguale em importncia funcional-sistmica, precisamente aquele cuja existncia a principal justificativa lgica de quase a totalidade da axiologia constitucional. O valor-continente por excelncia ou o gene do qual decorrem os mais vivos traos fisionmicos da principiologia que embalou os sonhos do Constituinte de 1987/1988.

    8.2. Por ser o valor constitucional primrio (gene), esse princpio dos princpios mantm com a Constituio, mais que uma relao de pertinncia, uma relao de inerncia: ele ela mesma, ela mesma ele. O que j significa dizer: caso extirpado da Constituio de 1988, seja por revogao pura e simples, seja por derrogao conteudstica, ele, valor-sntese, detonaria sobre a quase totalidade dos demais valores ua mudana qualitativa de tal ordem (desordem, melhor seria dizer) que chegaria s raias de um mortal efeito domin.

    6 J deixamos escrito, em outra passagem da nossa produo intelectual, que os

    princpios encarnam valores em estado de frico latente ou potencial, como, exempli gratia, o princpio da propriedade privada e o da funo social da propriedade bem-de-produo; o princpio do pluralismo poltico e o da fidelidade partidria; o princpio da valorizao do trabalho e o da livre iniciativa; o da independncia dos Poderes e o da supremacia da lei; o da imunidade parlamentar e o da responsabilidade pessoal dos governantes (to caracterstico da Repblica); o da integrao do Pas aos mercados externos comuns e o da soberania nacional. A postular, assim, um manejo bem mais cuidadoso dos mtodos de interpretao jurdica no que tange seleo daquele princpio que, numa concreta situao de antagonismo, deva preponderar.

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    8.3. Realmente, caso extirpado do Magno Texto o valor que a prpria sntese da avassaladora maioria dos demais, praticamente nada mais restaria, em essncia, desse mesmo Texto. Da mesma Constituio j no se cuidaria, em rigor, pois, sendo o princpio dos princpios o prprio ser da Constituio, a sua extirpao (ostensiva, ou disfarada) implicaria o absurdo de apartar a Constituio de si mesma. como dizer: faltando Constituio o seu prprio ser, tudo o mais vai lhe faltar, pois a Constituio deixa de fazer parte das coisas presentes. Incorpora-se ao passado, que o mundo das evanescentes lembranas do que j existiu, do que j se despediu da vida.

    9. A permanente exposio da Constituio a rupturas.

    9.1. Atente-se bem. No se est falando assim pelo gosto do elogio gratuito, ou por compromisso ideolgico. No! que a nossa Lex Legum realmente prenhe dos mais civilizados princpios jurdicos e eficazes mecanismos de concreo de todos eles. uma Constituio que trouxe para o processo administrativo, por exemplo, as tradicionais garantias do processo judicial, do devido processo legal, do contraditrio, da ampla defesa, da publicidade e da motivao. Uma Lei Maior que se previne contra os riscos da globalizao econmica e chega a prescrever que O mercado interno integra o patrimnio nacional e ser incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e scio-econmico, o bem-estar da populao e a autonomia tecnolgica do Pas, nos termos de lei federal (art. 219). Demais disso, para inibir, justamente, a produo de emendas, foi que aportou consigo remdios especficos para fatos do maior potencial de instabilidade social, como efetivamente so os fatos ensejadores de interveno federal, interveno estadual, medidas provisrias, estado de stio e estado de defesa. dizer: a Constituio teve o cuidado de aviar por conta prpria um longo receiturio de combate aos mais srios fatores de perturbao da vida coletiva, seja no plano territorial-interno, seja no internacional, para que o recurso s suas emendas se fizesse com invulgar parcimnia.

    9.2. O que mais nos esforamos por transmitir o juzo de que a Constituio de 1988 gosta mais de si mesma do que das suas emendas. Admite-as, verdade, por saber impossvel manter-se formalmente intocada. E porque pode receber das suas emendas, aqui e ali, um real aperfeioamento. Um tnico necessrio sua permanncia como fonte, m e bssola de todo o Ordenamento brasileiro. Mas se pudesse falar em linguagem curta e grossa, a nossa Lei Maior diria que as emendas constitucionais so suportveis, apenas. No propriamente desejveis.

    9.3. A exposio a ruptura sempre ronda as portas da Constituio a cada emenda em tramitao, pela considerao evidente de que emenda existe para a criao, modificao ou supresso de normas constitucionais. E sempre que ua emenda inflige Constituio um corte ou uma soluo de continuidade, ela pratica a mais torpe das traies. que o Poder Constituinte no deve nenhuma fidelidade Constituio. Ele rasga a Constituio quando bem entender, sem que isso venha a significar fraude ou preterio de constitucionalidade. Mas o Poder Reformador, no. Ele s pode normar nos termos em que j foi normado pela Constituio e fugir desse molde ocupar um campo de normatividade que

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    s ao Poder Constituinte dado preencher. Com a circunstncia agravante de no se assumir como tal, preferindo disfarar-se com o suntuoso capote da legalidade institucional.

    9.4. Todo o cuidado com as suas emendas ainda pouco, fala a Constituio de si para si, dado que os atos de reforma constitucional so uma reprimenda material ao legislador constituinte. Se a produo das leis significa um olhar para traz e dar-se por satisfeito com a Constituio (que permanece intacta), o mesmo no sucede com a prolao das emendas. Elas somente existem para manifestar uma discordncia quanto omisso do Constituinte frente a determinado tema, ou quanto ao modo pelo qual certa matria recebeu conformao normativa pelo mesmo Poder Constituinte.

    9.5. Uma ltima comparao prosaica parece-nos vir a calhar. Pensemos em nossas peridicas visitas ao dentista, desde a infncia, e com facilidade notaremos que as emendas seguem a lgica da extrao, da prtese e da obturao dentrias, conforme sejam emendas supressivas, emendas aditivas e emendas modificativas, respectivamente. Todas elas a traduzir um corretivo, uma reprimenda na forma pela qual a Constituio cuidou dos prprios dentes. Mais tecnicamente falando, seja qual for a modalidade de emenda, tudo se exprime numa reconsiderao de rumos da Magna Carta, seja porque ela pecou por excesso de normatividade, seja porque incidiu em carncia reguladora, seja, enfim, porque trabalhou com inadequao dentica. E o fato que nenhum ser humano vai ao dentista por prazer, mas por avaliar que seu quadro clnico j no pode prosseguir sob cuidados prprios. Ainda assim, quem no se questiona sobre o risco ou o perigo de estar a mexer naquilo que, em verdade, j estava bem cuidado? A dispensar, portanto, a sempre temida interveno odontolgica?

    10. A necessria interpretao restritiva das normas constitucionais ensejadoras de emenda

    10.1. Se alguma serventia tm estes escritos, que seja a de por em realce que a Teoria da Constituio, enlaadamente Teoria do Poder Constituinte, serve para demarcar um campo de atuao que fica interditado ao passo regulador do Poder de Reforma. O que somente cabe ao Poder Constituinte como est na msica de IVAN LINS e ELLIS REGINA: Madalena, o que meu no se divide... E se atentarmos bem para o modo como a Lex Maxima disps sobre a produo de suas emendas, chegaremos ao pacfico entendimento de que elas so uma exceo ao princpio inexpresso da estabilidade da Constituio mesma.

    10.2. claro que no vai deixar de aparecer algum para contrabater, como fez, alis, o excelente publicista PAULO MODESTO: mas, e as clusulas ptreas? No so elas que se constituem em exceo ao exerccio do Poder Reformador? Respondemos que no!. As clusulas ptreas so aquela parte da Constituio que no admite sequer a exceo das emendas. Por conseguinte, as normas constitucionais autorizativas da produo das emendas que devem ser interpretadas restritivamente, porque emenda sempre exceo ao princpio lgico ou tcito da estabilidade da Constituio. As clusulas ptreas, ao contrrio, caracterizando-se como afirmadoras daquele princpio de

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    estabilidade nsito a cada Estatuto Supremo, elas que devem ser interpretadas extensivamente. Generosamente ou mais solta.

    10.3. Quando assim nos pronunciamos, numa conferncia proferida em Recife, um ilustre debatedor nos contradisse: "mas assim o senhor est banalizando as clusulas ptreas; tudo clusula ptrea". Respondemos: olhe, h certas coisas na vida que so exigentes de interpretao radical. Certas coisas que no podem ser toleradas, porque se ns banalizarmos a produo das emendas - veja bem qual a conseqncia - banalizaremos a prpria Constituio. Trivializaremos a Lei das Leis. prefervel, portanto, dificultar a produo das emendas, porque somente assim manteremos a Constituio como aquele documento paradigmtico de estabilidade de toda a Ordem Jurdica. Banalizar as clusulas ptreas risco de menor potencial ofensivo. O que no se pode banalizar a Constituio; esquartejar ou estilhaar a Carta Magna a golpes de reformas que tm sido prolatadas com a fecundidade dos coelhos... Jorrando por terra aquele sentimento de Constituio que a reconfortante certeza de que valeu a pena a herica resistncia do povo ditadura empresarial militar que por 20 anos colocou uma p-de-cal nos democrticos ideais da epopia constitucional de 1945/1946.

    10.4. Se a hora de fazer novo destino (pensamos que ainda no), que se promova a ruptura da Constituio de modo assumido, luz do dia, mediante a convocao de uma outra Assemblia Nacional Constituinte. Se ainda no tempo para a epopia do comear tudo de novo, ento que as emendas se coloquem no seu devido lugar de ato normativo to normante quanto normado. Po, po; queijo, queijo, porque esta a lgica elementar das coisas do Direito Constitucional. E se no seguirmos essa ordem natural das coisas, rolaremos de absurdo em absurdo, como acertadamente advertia o abade francs EMMANUEL JOSEPH DE SIEYS; por sinal, o mais lcido e o mais original dos tericos desse nico Poder que tudo pode, que o Poder Constituinte. (Aracaju, 06 de maio de 2001)

    Referncia Bibliogrfica deste Trabalho (ABNT: NBR-6023/2000): BRITTO, Carlos Ayres. A Constituio e o Monitoramento de suas Emendas. Revista Eletrnica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Pblico da Bahia, n. 1, janeiro, 2004. Disponvel na Internet: . Acesso em: xx de xxxxxxxx de xxxx Obs. Substituir x por dados da data de acesso ao site direitodoestado.com.br

    Publicao Impressa: Texto publicado na coletnea Direito do Estado: novos rumos, Volume 1, So Paulo, Ed. Max Limonad, 2001, pp. 45-67. ISBN: 85-86300-93-4