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Cursos de Especialização para o quadro do Magistério da SEESP Ensino Fundamental II e Ensino Médio Rede São Paulo de POÉTICA, LINGUAGENS E MÍDIAS d08

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Cursos de Especializao para o quadro do Magistrio da SEESPEnsino Fundamental II e Ensino Mdio

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BLOCO 1

Sumrio

1. Construindo a realidade ............................................................9

2. Comunicao e arte ................................................................15

2.1 Comunicao e linguagem ........................................................... 16

2.2 Arte e linguagem potica .............................................................20

3. O corpo como arte ...................................................................31

3.1 O corpo e a Arte .......................................................................... 32

3.2 O corpo Arte ............................................................................ 36

4. Arte e tecnologia ......................................................................45

4.1 Modalidades em Arte-Tecnologia ................................................ 45

4.2 Interatividade ............................................................................... 51

5. Convergncias e dilogos ........................................................63

5.1 Convergncia das mdias ..............................................................64

5.2 Arte e Interdisciplinaridade .......................................................... 72

Bibliografia ................................................................................ 77

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BLOCO 2

Autores

Milton Sogabe

Rosangella Leote

Potica, linguagens e mdias.

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Sobre os autores

Milton Sogabe. Graduao em Licenciatura Plena em Educao Artstica - Artes Plsticas pela Fundao Armando lvares Penteado. Mestre e doutor em Comunicao e Semitica pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista UNESP desde 1995.

Nos anos 70 trabalha com desenho, gravura e ministra disciplinas de desenho em cursinho preparatrio para o vestibular de 1976 a 1983 e na FAAP de 1982 a 1994. Inicia a ps-graduao em 1982, pesquisando arte e novas mdias. Nos anos 80 participa de vrios eventos nacionais e internacionais de arte e telecomunicao via fax, televiso de varredura lenta, videotexto etc. Na dcada de 90 inicia o trabalho com instalaes interativas e a partir de 1996, com a Equipe Interdisciplinar SCIArts, que produz obras na relao arte/cincia/tecnologia. Coordenador adjunto da rea de Artes na CAPES (2011 a 2013), Parecerista da FAPESP, CAPES e CNPq. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Rosangella Leote artista pesquisadora multimdia. Doutora em Cincias da Comunicao pela USP, Mestre em Artes pela UNICAMP e Bacharel em Artes pela UFRGS. Atua em performances individuais e coletivas desde 1986. Realiza vdeos desde 1991 (Melhor Vdeo expe-rimental no 2 FESTLATINOBA, Festival de Cyne e y Vdeo Latino-americano, Argentina 2004). Vem trabalhando com Instalaes Multimdias Interativas em conjunto com o grupo SCIArts-Equipe Interdisciplinar (Prmio Sergio Motta 2000 e 2005) do qual integrante desde a sua origem. Foi Coordenadora do Curso de Comunicao em Multimeios (PUCSP) at agosto de 2007. Ministrou disciplinas para a Ps Graduao Strictu Senso (Tecnologias da Inteligncia e Design Digital) e Graduao (Multimeios). docente do Instituto de Artes da UNESP (SP) atuando na Graduao e Ps graduao (Mestrado e Doutorado) em Artes Visuais. professora do curso de ps graduao Lato Senso da PUCSP: Estticas Tecnolgicas. Predominam nas disciplinas que ministra os contedos referentes linguagem do vdeo digital, animao, videoclipe e arte-tecnologia. lder do GIIP - Grupo Internacional e Interinstitu-cional de Pesquisa em Convergncias Arte, Cincia e Tecnologia inscrito no CNPq e certifi-cado pela UNESP. membro do grupo de pesquisa BR::AC (Barcelona Investigacin: Arte y Creacin - UB), do grupo de pesquisa Realidades (ECA-USP), do grupo de pesquisa em Arte e Tecnologia (UFSM-RS); membro do Comit Cientfico do ARTECH - Internatio-

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nal Conference on Digital Arts (Portugal), do Comit editorial das revistas CITAR Journal of Science and Technology of the arts (PT), Revista del BR::AC (Barcelona Investigacin: Arte y Creacin); Revista Galxia (SP), Revista Tecnologia e Sociedade (PR) e Valise (RS); representante do Comit de Poticas Visuais da ANPAP e parecerista Ad Hoc da Capes e FAPESP. Foi bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq de 2007 a 2011.

ResumoOs seres humanos desenvolvem um corpo que biolgico e cultural adaptando-se continua-

mente s suas necessidades. Cada indivduo pode perceber o mundo de uma maneira subjetiva e se comunicar com outros atravs de linguagens, materializando suas percepes e seus pen-samentos atravs das mdias, colaborando assim para a construo coletiva da realidade. A arte tem papel importante nesse contexto e como em qualquer rea do conhecimento, opera com suas especificidades que so de natureza potica. A potica pessoal o resultado da maneira individual como algum percebe a realidade, afetada pela sua experincia de vida que constri uma viso de mundo, e compartilhada com a sociedade atravs de obras que passam a ser bens culturais. Esses bens, entretanto, refletem implcita relao com a sociedade, por isso, ao abarcar o processo criativo como um resultado do modo do artista estar no mundo, necessrio tambm conhecer os modos pelos quais a obra chega at o pblico, que, enfim, corrobora o valor de arte prospectado pelo artista ao fazer sua produo.

Os artistas desenvolvem sua potica criando obras que exploram desde o corpo ao at o universo, do micro ao macro, lanam-se pela superfcie do planeta, pelo espao e submergem na gua, utilizam os recursos existentes sejam tericos ou tecnolgicos, para perceber e mate-rializar experincias com novas realidades.

Assim, nesta disciplina, elaboramos uma proposta que inicia discutindo os aspectos da realidade que so responsveis pela concepo de mundo que o artista vivencia. Na segunda semana, examinaremos quais desses aspectos aparecem no contexto da arte e da comunica-o visando reconhecer as possveis linguagens da arte. Dentre essas linguagens, veremos na terceira semana, como o papel do corpo foi aproveitado ou compreendido tanto do ponto de vista do artista, quanto do envolvimento do fruidor com a obra. Na quarta semana, trataremos especialmente das interconexes com a cincia e tecnologia de vrias pocas e finalizaremos, na ltima semana, com a demonstrao de que a natureza interdisciplinar e convergente enfim, um procedimento comum para a arte.

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Potica, linguagense mdias.

Tema 1Construindo a realidade

Tema 2 Comunicao e arte

2.1 - Comunicao e linguagem

2.2 - Arte e linguagem potica

Tema 3 O corpo como arte

3.1 - O corpo e a Arte

3.2 - O corpo Arte

Tema 4 Arte e tecnologia

4.1 - Modalidades em Arte-Tecnologia

4.2 - Interatividade

Tema 5Convergncias e dilogos

5.1 - Convergncia das mdias

5.2 - Arte e Interdisciplinaridade

Palavras-Chave

Comunicao, convergncia de mdias, corpo, interatividade, linguagem potica, percepo, processo criativo.

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TEMA 1

Construindo a Realidade

Com este tema vamos dar uma base para situar a ao da arte e do artista dentro de um contexto maior, onde a arte se apresenta como uma das reas de conhecimento, que atra-vs de suas especificidades contribui para a percepo e construo da nossa realidade. O ser humano uma construo biolgica e cultural que est em constante adaptao s neces-sidades de sobrevivncia nos ambientes onde vive, como acontece com todas as espcies, mas o ser humano vai alm, produzindo, acumulando e compartilhando conhecimento atravs da tecnologia e da linguagem. Nesse processo, cada instrumento que usamos para modificar o ambiente, tambm modela nossos msculos, nossa estrutura e cada hbito alimentar que adquiri-

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mos, influencia todo o nosso organismo e nosso crebro. Todas as atividades que desenvolvemos afetam conjuntamente nosso corpo, nossa percepo, nosso modo de pensar, sentir, agir e viver. Somos produtor e produto simultaneamente, modificamos o ambiente e somos modificados ao mesmo tempo. Podemos conhecer um pouco mais sobre esse pensamento no texto de Friedrich Engels Sobre o papel do trabalho na transformao do macaco em homem (ENGELS, 1966)

Paolo Rossi (1989) em Os filsofos e as mquinas tambm nos aponta para a influncia que os aparatos tcnicos exercem sobre o nosso pensamento. Uma imagem paradigmtica Galileu com sua luneta, que em 1609 utilizando esse novo aparato na poca, consegue ver a superfcie lunar, os satlites de Jpiter e mudar o pensamento de que a Terra era o centro do universo. Mais recentemente Pierre Levy (1993) em seu livro Tecnologias da inteligncia reflete sobre os novos modos de aquisio e produo de conhecimentos atravs das novas tecnologias, e como elas afetam nosso modo de pensar. Mas devemos ter o cuidado de no conceber as tec-nologias como vindas de fora, como se no fossem resultado de uma interao dos seres com o seu ambiente. Elas so, de fato, parte de nosso ambiente e parte da nosso conhecimento fora do crebro, fora do corpo. Somos to responsveis pelo que a tecnologia hoje quanto pelo que ela ser amanh, assim como ela s nos influenciar na medida da nossa necessidade de uso das mesmas.

No mbito dessas transformaes que so contnuas temos as vrias cincias, a tecnologia e a arte, que apresentam sempre novos conhecimentos provocando novas transformaes, que acontecem numa velocidade cada vez maior, modificando o pensamento e consequentemente o meio ambiente e o nosso corpo.

Nesse sentido a forma como percebemos o mundo e agimos est, tambm, em constante transformao. Cada espcie interage com o ambiente externo atravs de um sistema perceptivo especfico. O ser humano possui um dos sistemas perceptivos mais complexos, com receptores visuais, auditivos, olfativos, tteis e gustativos, envolvendo todo o sistema nervoso e capacitando--o a receber estmulos do ambiente externo, alm de sentir o interior do seu prprio corpo.

Esse sistema perceptivo, que uma construo biolgico/cultural, constitui-se como que uma bolha que envolve o ser humano e define a forma de percepo do ambiente onde vive. O bilogo Jacob Von Uexkull (2004) denominou essa bolha de Umwelt. O indivduo envolto nessa bolha que constituda pelo seu sistema perceptivo e sua cultura est em constante trans-

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formao, atravs das mudanas culturais e tecnolgicas que possibilitam outras percepes do ambiente, ampliando a capacidade perceptiva dessa bolha1. A arte como rea da criatividade, do ver e pensar a realidade de forma diferente do usual afeta intensamente essa bolha.

Sabemos que nosso sistema visual se desenvolveu de modo a perceber apenas uma faixa do espectro eletromagntico, denominada de luz visvel e que cada espcie possui um sistema visual adaptado s suas necessidades ambientais, assim como todos os outros sentidos humanos. Atravs das tecnologias o ser humano ampliou a sua percepo visual, ampliando a percepo do espectro eletromagntico atravs de seus aparatos tcnicos visuais, como por exemplo a fotografia infravermelha e os raios X. Passamos a aceitar como realidade imagens que so muitas vezes mera representao de dados computacionais como as imagens de galxias distantes. Elas so, na maioria das vezes, criaes do computador baseadas em referncias extradas dos sistemas de medidas e sondagem feitas no espao. Grande parte delas com ondas invisveis como as de radiofrequncia.

A percepo acontece atravs de um sistema perceptivo e no apenas por um rgo, por mais importante que ele seja nesse sistema. Percebemos em conjunto com nossa memria e certos aspectos do ambiente chamam mais a ateno de uma espcie do que de outra e enquanto algo pode ser vital para uma, para a outra pode passar eternamente despercebido. No caso do ser humano, cada indivduo tambm possui histrias e memrias diferentes, o que torna a per-cepo diferenciada para cada um, criando a ateno mais para um fato do que para outros. Quando olhamos para uma imagem, alguns detalhes sero mais percebidos por um do que por outro indivduo, e as interpretaes sero sempre diversificadas, de acordo com as vivncias e memrias existentes na mente de cada um. Se num grupo de pessoas solicitarmos que cada um registre por palavras o que percebeu da imagem, encontraremos declaraes bens diferenciadas. Podemos perceber este fato no desenho de observao, quando notamos a dificuldade em dese-nhar o que vemos. Olhando para uma mesa, sabemos que ela retangular, mas no vemos um retngulo e sim um quadriltero irregular, que se altera ao mudarmos de ponto de vista, mas a tendncia desenhar mais o retngulo do que o quadriltero exato que vemos. A dificuldade de desenhar eliminando o que sabemos do objeto observado (memria) a principal barreira no desenho de observao. como se um cientista se esforasse para ver o objeto, indepen-

1 Palestra de Jorge de Albuquerque Vieira no Projeto Desaba

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dente do seu Umwelt, com um olhar inocente, registrando apenas o que sua percepo visual biolgica captaria.

(Figura 1 - Albrecht Drer, detalhe Mquina de desenhar 1525)

http://www.semeiosis.com.br/imagens-camera/

A perspectiva renascentista busca essa representao mais cientfica, atravs de dispositivos para desenhar, onde o ponto de observao fixo, para que o observador no fique se mexendo e alterando seu campo visual, como podemos verificar no detalhe de um desenho de Albrecht Drer. A fotografia incorpora esse sistema na sua memria, atravs da organizao da sua estrutura, com visor monocular fixo, o que representa apenas mais um modo de ver e registrar o mundo visual. A histria da arte pode ser vista tambm como uma histria dos modos de ver, e atravs dos diversos movimentos artsticos, cada qual da sua maneira, materializam essas novas realidades.

Mesmo as nossas memrias esto em constante transformao, no se configurando em momento algum como fotografias congeladas ou documentos imutveis. A cada nova vivncia todas as informaes na memria se reconfiguram, produzindo novas relaes e significados que possibilitam interpretar o ambiente de uma nova maneira, fazendo com que algo que parecia familiar, repentinamente pode ser percebido de outro ponto de vista inusitado. Em nossas vidas este fato acontece continuamente, mas quase no per-

http://www.semeiosis.com.br/imagens-camera/

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cebemos, pois no temos registros para comparar nossas diferentes percepes sobre um mesmo fato, apensas sabemos que nossos pensamentos mudam sobre um mesmo fato. Essa subjetividade faz com que cada indivduo perceba a realidade de uma maneira prpria (SALLES, 2006). O que podemos chamar de real, nunca alcanado, pois percebemos apenas aspectos dele, por mais que avancemos sobre ele. A realidade sempre uma interpretao do ser humano sobre o meio onde vive, e nesse sentido uma construo coletiva (DUARTE, 2000). Essa construo da realidade acontece tanto atravs do compartilhamento de conhecimentos tcitos, adquiridos subjetivamente no cotidiano, como do conhecimento cientfico, buscado com a maior objetividade possvel.

Embora tenhamos particularidades nesse processo de percepo da realidade, tambm temos universalidades. Os conhecimentos e fatos de uma poca possibilitam as condies para que uma determinada percepo, de um novo aspecto da realidade, surja na mente de diversos indivduos simultaneamente. Quando acontece um insight, temos a sensao de que ele nico, que s ns o vivenciamos, com uma sensao de iluminao. Mas por outro lado, conhecemos vrios fatos na histria, onde pessoas em locais diferentes no mundo, e sem contato entre si, tm o mesmo insight. Atualmente com a Internet fica mais fcil descobrir como outras pessoas podem ter insights muito similares aos que temos. A inveno da fotografia um exemplo disso. Vrias pessoas tiveram a mesma ideia de fixar uma imagem numa superfcie e cada uma buscando um processo, na mesma poca. Estamos conectados a um mesmo sistema e as condies que nos fazem perceber determinado aspecto, tambm possibilitam que outras pessoas o percebam. O coletivo e o individual operam conjuntamente, pois todos esto sujeitos a um mesmo contexto.

H uma histria fictcia conhecida como a do centsimo macaco (ARANTES, 1999), que conta que numa ilha, num grupo de macacos, de repente um deles comeou a criar o hbito de lavar as batatas antes de com-las, e quando o centsimo macaco o fez, outro grupo de macacos em outra ilha sem comunicao entre eles, tambm iniciou o mesmo hbito. Embora parea algo transcendental, encontramos vrias teorias cientficas que se identificam com essa histria. Uma dessas teorias a da ressonncia mrfica do bilogo Rupert Sheldrake (1996), que men-ciona a existncia de um campo organizacional invisvel que repercute a repetio de hbitos, influenciando toda a espcie..)

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Mostrando mais um fato dessa percepo coletiva, quando relacionamos arte e cincia, verificamos que numa mesma poca, as descobertas de um campo encontram similaridades no outro campo. A Teoria da Relatividade e o Cubismo parecem contraditrios, e o prprio Einstein tambm repudiou essa comparao (SCHAPIRO, 2002), declarando que ao passo que a Teoria da Relatividade acentua um nico observador para entender um fenmeno, o Cubismo fixa vrios pontos simultneos de observao de um mesmo observador, provocando vrias leituras do mesmo fato observado, o que seria contraditrio para Einstein. Para a cincia essa subjetividade no serve, uma vez que a verdade deve ser nica. Mas o que vemos acontecer o surgimento de uma nova percepo de espao/tempo numa mesma poca, porm cada rea materializando essa percepo a sua maneira e mudando a nossa viso sobre o observador nas duas reas.

Se dez artistas interpretarem um fato da mesma maneira algo estranho, e se dez cien-tistas interpretarem um mesmo fato diferentemente tambm um fato estranho, mas o inverso dessas duas possibilidades no, pois como estas duas reas exploram a realidade. Cada profissional constri no seu percurso um arquivo de memrias e experincias voltado para as suas necessidades, que direcionam suas percepes para determinados interesses e no outros. O artista um indivduo, que possui no seu histrico, objetivos e interesses especficos do campo da arte, que influenciam suas percepes, atravs de aspectos estti-cos do mundo onde vive e a cada nova percepo, nova situao, a realidade se reconfigura. , portanto, dentro dessa realidade especfica, construda para si com seu Umwelt, que o artista encontra as razes da sua potica, tanto quanto, com a sua potica, reconstri, continuamente, essa realidade.

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TEMA 2

Comunicao e Arte

Nesta semana trataremos da Comunicao e sua relao com a Arte tendo como nfase a diferenciao do uso da linguagem. Na Comunicao o signo tende a um nico significado para que o entendimento entre duas pessoas possa acontecer de forma mais controlada, objetivada, enquanto que na Arte essa funo do signo subvertida, produzindo outros significados atravs da forma e das qualidades matricas. A licena potica permite que o artista subverta as regras da linguagem para ir alm dos limites padronizados desta. Para esclarecer esse contexto, divi-dimos o tema em dois tpicos: no primeiro tpico, Comunicao e linguagem tratamos da importncia do surgimento das formas de comunicao, seja verbal ou no verbal e do desen-volvimento da linguagem; no segundo tpico, Arte e Linguagem Potica discutimos sobre

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como a Arte subverte o signo e a linguagem de suas funes regradas para produzir a potica. A potica (poiesis) como forma do fazer artstico inclui-se nesse contexto.

2.1 Comunicao e linguagem

A Comunicao um dos mais vastos campos dos saberes, podendo ser subdividida em especificidades de reas ou assuntos, conforme a linha terica seguida. Tratamos aqui da comu-nicao feita por humanos como forma de relao e troca de informaes apoiadas em sistemas de signos de diversas naturezas.

A necessidade da comunicao para a sobrevivncia nos fez desenvolver vrios tipos de representaes utilizando-se de elementos visuais, sonoros e corporais. Esses elementos foram se desenvolvendo e criando uma complexidade que gerou vrias linguagens especficas, para que uma complexidade maior do pensamento tambm pudesse ser materializada e vice-versa.

Durante a histria da humanidade desenvolvemos basicamente trs linguagens at o momento: a visual, a sonora e a verbal. Com certeza nos comunicamos atravs do tato, do olfato e do paladar, mas de fato os sentidos, por si s, no se constituem como linguagem. A linguagem requer elementos bsicos e uma sintaxe, como temos na linguagem verbal. Mesmo a lingua-gem verbal, que possui a palavra como referncia, apresenta duas modalidades que, apesar da mesma referncia, se configuram quase como duas linguagens diferentes: a fala e a escrita. A linguagem oral uma linguagem hbrida, pois geralmente acompanhada da linguagem corporal. Mesmo durante a utilizao do telefone falamos gesticulando e fazendo expresses faciais. Nesse caso, o interlocutor s impedido de ler a mensagem do corpo devido ao tipo de dispositivo de comunicao. A outra modalidade que a escrita, precisa de detalhamento de elementos do oral, pois algumas palavras ditas no contexto presencial so acompanhadas de gestos e expresses faciais, como numa montagem, criando outro significado, que deve ser traduzido para o contexto apenas escrito.

Os cdigos sempre foram materializados para que acontecesse a comunicao com outro semelhante, e assim se desenvolveram as diversas linguagens, seja a verbal, a sonora e a visual. A histria da escrita est diretamente ligada histria dos suportes da escrita (ROTH, 1983), que facilitaram o seu ensinamento e disseminao de pensamentos. Da pr-histria, passando

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pela imprensa e chegando ao digital, as diversas materialidades definiram diferentes caracte-rsticas de comunicao e, consequentemente, novas linguagens.

Desenvolvemos vrios aparatos para a escrita, para a imagem e para o som, mas no conhe-cemos nenhum tipo de notao ou de suporte para o olfato, o paladar ou o tato, como temos no caso visual, sonoro e verbal. Embora possuam uma materialidade no conseguimos descobrir seus elementos bsicos para construir uma linguagem propriamente dita, para gerar, arma-zenar e distribuir esse tipo de informao. Entretanto, a msica, por exemplo, no pode ser executada sem a presena do tato, o que, em escala mnima, j hibridiza a linguagem sonora. Tanto quanto uma pea de argila tem, na sua modelagem, a expresso do tato como elemento da linguagem da cermica.

O conceito de linguagem aqui desenvolvido apoiado em aspectos da semitica, que con-ferem linguagem a capacidade de assimilao e transformao atravs de signos (SANTA-ELLA, 2001)1. Uma linguagem s pode ser considerada como existente quando sua gramtica reconhecida e operada por mais de uma pessoa. Esta gramtica se formata atravs de cdigos, os quais devem ser reconhecidos, interpretados e utilizados pelas pessoas que operam com a linguagem. Ns nos comunicamos por cdigos o tempo todo. Porm, para que esses cdigos possam ser reutilizados e transformados importante que o repertrio das pessoas que nos acercam seja minimamente compatvel com os nossos repertrios.

Isso quer dizer que as linguagens se constroem em estreita relao com o que se visa atingir no processo de informar o outro, atravs dos cdigos que produzimos, assim como de obter, desse outro, respostas que confirmam ou transformam aspectos da linguagem que estamos operando.

Alguns cdigos so mais popularizados, isto , mas reconhecidos como cdigos do que outros. Um exemplo claro a prpria escrita. Embora cada cultura tenha resolvido, lentamente, em seu processo de formao, qual seria o cdigo para o seu sistema de escrita, Ao olharmos hoje, qualquer cultura letrada, tendemos a entender a sua escrita como um cdigo dado. Como se na conformao atual de tal cdigo no estivesse implcita uma longa srie de ambiguidades at

1 EstudandoLuciaSantaella,observa-sequeosignobastantecomplexoparasedefiniremumafrase,mas

podemos dizer, resumidamente, que ele representa algo para algum. Assim, ao olhar para qualquer objeto de nosso

cotidiano, uma geladeira, por exemplo, teremos uma relao estabelecida. a natureza dessa relao que vai dizer para

anossamenteoqueestageladeirarepresentaNESSEMOMENTOdecontato.Seestivermoscomfome,elapoderser

signodefome.

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que ele se estabelecesse como cdigo. Ou seja, at que le se tornasse cdigo, reconhecido por uma cultura, uma assimilao geral do mesmo foi passada de gerao para gerao at a auto-matizao de seu uso como lngua. Ou seja, para que um cdigo seja perfeitamente assimilado necessrio que ele seja automatizado. Por exemplo, pouco provvel que consigamos fazer uma obra literria antes de aprendermos a escrever automaticamente. Portanto, existe automa-tizao do cdigo. Ou seja, para poder criar dentro de uma linguagem necessrio conhecer, e de preferncia, obter-se a capacidade de automatizar um cdigo.

Sem conhecer o cdigo podemos desenvolver proposies ingnuas o contrrio da desau-tomatizao. Em outras palavras, para se criar com segurana, deve existir, por parte de quem opera a transformao, o domnio dos signos que compem uma linguagem. Esse domnio tambm deve ser ao menos parcial de parte de quem recebe a informao transformada. Do contrrio o receptor, o pblico, nada entenderia.

Isto , mesmo que no se conhea uma linguagem, ela deve fazer sentido em algum nvel para quem a recebe. Por exemplo, ao vermos a grafia de palavras chinesas podemos saber que se trata de uma lngua. Podemos saber que chins embora no se entenda o que ali est escrito.

Isto significa que conhecemos parte do cdigo desta lngua.

O processo completo de comunicao s se estabelece quando h proximidades culturais, mas ateno: comunicao no se confunde com cdigo. O cdigo um elemento dentro de um processo de comunicao e esse processo s se estabelece quando h repertrios similares.

H diversos cdigos que no conversam entre si, assim como h infinitas possibilidades de se comunicar.

O cdigo, porm, no existe desassociado da cultura. Isto , so os membros de uma cultura que do o valor de cdigo para um determinado conjunto de informaes. A reside a comuni-cao. Todavia, para que este conjunto se converta em linguagem necessrio que o mesmo seja passvel de ser convertido em gramtica, ou seja, em uma lista de regras pelas quais tais cdigos so associados. A linguagem no-verbal2 sofre desse tipo de problema. O que gramtica em um contexto, pode no ser em outro. Por exemplo, o movimento das mos na dana indiana

2 Para saber mais sobre linguagem no-verbal, leia DAVIS (1979).

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feito segundo uma lista de regras associadas a significados, os quais so reconhecidos pelo pblico. Os mesmo movimentos, para os ocidentais, denotam contedos associados forma, ao senso esttico e a tcnica, menos que ao significado pr-estabelecido de cada movimento. Ou seja, sabemos que ali h uma linguagem, embora no tenhamos o domnio para decifr-la.

Na comunicao, no sistema de produo de obras comunicacionais, necessrio que se tenha o domnio dos cdigos e o conhecimento da parcela de pblico que se quer atingir, incluindo uma prospeco de nmeros de receptores, ou seja, audincia. importante que se saiba qual o repertrio deste pblico para que se fale o mais proximamente ao que ele capaz de compreender, portanto, o mais prximo possvel do repertrio deste pblico. A transforma-o buscada em escalas mais gradativas para manter-se a conexo evitando o estranhamento do pblico com relao ao que ele j conhecia da fonte emissora. Portanto, a ambiguidade e a impreciso na linguagem, tornam-se fatores de risco para a capacidade de atingir o objetivo.

O objetivo da comunicao, por mais criativa que seja, a utilizao da linguagem dentro das suas normas, pois o que estabelece o produto, idia ou servio veiculado como principal informao da pea, ou evento, publicitrio, mesmo quando se utiliza de elementos do campo da arte, que no novo contexto ganha outras caractersticas.

A maioria das reas de conhecimento se aproveita principalmente da linguagem verbal para a produo e divulgao de seus conhecimentos, e podemos dizer que falar e escrever uma arte, no sentido do fazer bem, e que necessita ser desenvolvida desde a infncia.

O mesmo pode ser dito da comunicao efetuada a partir de obras poticas, realizadas em qualquer linguagem3. importante que o artista tenha domnio sobre os processos e o sobre o contexto de arte em que se situa. Quanto mais cedo o contato com esse contexto se der, melho-res sero as condies que ele ter para conseguir compartilhar com o outro a sua potica. Isto tambm comunicao. O curioso que, mesmo o artista no se preocupando ou desejando

3 O uso do termo linguagem neste texto, no se restringe sua concepo dentro da lingustica. Concebe-se

quequalquersistemadesignosestaptoaproduzirlinguagens,portanto,aArte,emqualquerdassuasespecificidades,

capaz de produzir linguagens. O que vale dizer que podemos localizar a linguagem da escultura, da pintura, do vdeo,

pormaformainternadeorganizaodessaslinguagens,quepodesertraduzidaporgramtica,nodeordemgeral.

Ou seja, nem todas as esculturas se resolvem segundo uma mesma linguagem, embora pertenam um mesmo sistema

de signos.

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comunicar, toda vez que algum v uma obra sua esta comunica, em algum nvel, algo para esta pessoa. Mesmo que esse algo esteja completamente fora das intenes do artista.

A arte se transforma em seus propsitos tanto quanto na gama de linguagens que produz e opera. Em qualquer das linguagens da arte graus de comunicao se estabeleceram, ou seja, arte comunica. Mas como se vale de ambiguidades, tambm a clareza do que comunica se resolve em escala potica. Em outras palavras, do pblico de uma obra de arte exigido capacidade de reconhecimento da linguagem em que ela se constri. Isso no pode ser feito sem repertrio esttico. Este repertrio confere relao potica entre pblico e obra no momento da fruio, que, afinal, processo de comunicao.

2.2 Arte e Linguagem Potica

A arte um campo de liberdade. O artista tem como referncia a histria da arte e a tica para atuar no universo da arte. Ele ganhou um papel dentro da sociedade, que lhe permite ter atitudes estranhas, pois o novo sempre contm o estranhamento. Assim tem posse da licena potica que lhe permite subverter as regras da linguagem, para que possa ir alm dos limites desta.

Quando tratamos de linguagem potica sob o enfoque da lingustica, vemos que, ao escre-ver, o autor agrega elementos de graus de abertura interpretaes diversas daquela esperada pela regra comum da organizao das letras e das palavras escritas. Essas ambiguaes geram interpretaes, procuradas pelo autor, ou ocasionais em funo do repertrio do leitor, que so conhecidas como linguagem potica. Portanto, no se trata apenas de poesia, mas a poesia tambm carrega linguagem potica, como uma escultura ou pintura por exemplo. Os signos verbais utilizados por esse autor so signos de natureza esttica. Isto , no a palavra, mas o modo como ela apresentada que lhe confere este valor. O escritor opera com as palavras numa liberdade que consegue ultrapassar seus significados, e na poesia a palavra ganha significados mltiplos, muito alm daqueles prospectados pelo poeta.

Arte forma que trabalha as propriedades das materialidades nas quais opera. Quando o poeta visual trabalha com a forma da palavra, e a materialidade do meio no qual produz, cons-tri significados diversos atravs desses elementos, alterando ou acrescentando outros aspectos

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ao significado convencionado. As palavras PEQUENO e GRANDE podem ganhar vrios significados atravs da sua forma:

Estas so as caractersticas do signo esttico4, referentes mais as suas qualidades materiais. A linguagem potica toda formada por signos estticos.

Mas a aplicao do termo Potica deve ser ampla, saindo do contexto da palavra. Potica o que confere a uma obra realizada dentro de qualquer contexto, o valor de arte. Assim, a potica um dos elementos de composio da linguagem em questo.

a potica a principal responsvel pela mudana dos padres estticos aplicados a cada poca. Esses padres vo se alterando tanto quanto as teorias estticas foradas pela arte de cada tempo e a razo simples: o desenvolvimento de uma linguagem gera, inevitavelmente, a sua transformao. Os operadores dessa linguagem so os principais responsveis por esse processo. Tanto quanto uma lngua viva e se transforma adicionando procedimentos da cul-tura onde est estabelecida, a arte viva e efetua o mesmo processo. A diferena est no fato de que a lngua mantm uma relao mais zelosa com a sua gramtica, visando preservao da mesma, enquanto a arte s zela a razo de continuar existindo, aceitando mais facilmente as deturpaes da prpria estrutura, sendo que isso mesmo j parte da sua gramtica.

Os operadores dessas transformaes so os artistas. pelo processo individual de trabalho de cada artista, mesmo que agregados a coletivos, que a potica se constri. Potica, ento, como

4 Paraentenderointerpretantenecessrionoconfundi-locomaquelequeinterpreta.OInterpretanteoefeito

do signo neste que o interpreta.

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coloca Pareyson (2001) est ligada ao fazer artstico. Pode-se dizer que so os procedimentos que o artista se impe, ou utiliza e que, aos poucos, lhe definem como tal, atestam a existncia de uma linha de ao ou estilo e que, conforme o impacto, ou a infiltrao, que essas propostas obtenham designaro caminhos para modificao do senso esttico de uma poca.

Isso significa dizer que esttica e poticas, embora sendo coisas diferentes, esto intrinseca-mente ligadas de tal modo que uma no se modifica sem a outra. Afinal, todo artista compe sua potica a partir de um repertrio baseado no senso esttico da poca em que vive.

Por isso mesmo, seus processos de criao tambm sero afetados por esse senso esttico. Alm disso, no existe potica sem processo criativo.

No meio da arte, o valor que se da criao um valor diferente do que se d em outras reas porque esta faz parte da matria com a qual o artista lida, mas o processo de criao igual ao das outras reas de conhecimento e da vida em si.

claro que os resultados so diferentes tanto quanto tem finalidades diferentes, mas as etapas do processo criativo so idnticas.

Quando se desenvolve uma obra ela conjuga vrias camadas de solues de problemas, portanto, h vrios processos criativos intrincados que resultam na materializao da obra. O nmero de processos depende da complexidade da obra em questo.

Um exemplo claro o desenvolvimento de uma instalao artstica, pois ela requer solues de problemas de espao, de materiais diversos, muitas vezes de equipamentos e softwares, da circulao das pessoas, e que todos esses elementos combinados definem a potica da obra. So problemas diferentes entre si e, portanto, momentos diferentes do processo de desenvolvimento da obra que, de fato, se constri com vrios processos criativos adequados a cada um desses problemas do corpus da obra. Mas importante dizer que nem s de soluo de problemas vive a atividade criativa.

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Howard Gardner (1996) considera que existem cinco espcies bem definidas de atividades criativas5 sendo elas associadas ao resultado que o processo criativo encaminha. So elas:

1 - Soluo de um problema;

2- Concepo de uma teoria abrangente;

3- A criao de uma obra congelada;

4- A execuo de um trabalho ritualizado;

5- Uma execuo de alto risco.

Podemos entender o processo associado soluo para um problema como sendo o prin-cipal motor da transformao das tecnologias, bem como da vida cotidiana. Toda e qualquer melhoria para o nosso bem estar, sem exclusividade, acontece por este tipo de processo.

Para entender o conceito de criao associado concepo de uma teoria, basta lembrar de Einstein e a Teoria da Relatividade. De fato a sua teoria partiu de um insight ligado intuio (abduo). Na poca ele s podia contar com isso porque no havia instrumentos que dessem conta da comprovao da idia nesse caso a materializao do insight a prpria teoria, mate-rializada em texto e frmulas. preciso observar que no se pode confundir teoria com idia. Ele angariou uma srie de hipteses que poderia ou no ser corroborada pelo meio cientfico. Uma grande parte delas talvez nunca seja. A arte conceitual pode se encaixar no conceito de teoria abrangente, e preciso considerar o campo de idias e aplicao deste campo no fazer do artista que a concebe, tanto quanto sua influncia em seu meio.

Sobre o tipo obra congelada no tempo, podemos dizer que a maioria das obras de artes plsticas entraria neste seu conceito. A escultura ficar parada pronta - no tempo. Isso no deve ser visto como o estancamento da sua evoluo como obra em termos de semiose. A semiose a ao do signo, o que quer dizer que sempre que algum olhar para essa obra construir um significado. Esses significados criados na mente de quem v a obra semitico. Portanto, infinito. Obviamente, se fala de forma obtida para atender noes de durabilidade.

5 Gardner, 1999: 156-157, in Boden, 1999.

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Para a execuo de um trabalho ritualizado pode-se exemplificar desde a forma de desen-volver um rito religioso at atividades de Body Art.

Como criao de alto risco considere-se desde um ato terrorista at performances como as da Fura Dels Baus6, o trabalho tem a possibilidade de no dar certo e pode comprometer a vida daquele que cria ou que se envolve na atividade.

Observe-se que Gardner no est falando de arte, mas de criao. Por essa tipificao se pode ver que a atividade de criao no se restringe ao campo da arte, mas ao pensamento.

Estes tipos de criao, porm, acontecem em etapas similares entre si. o que se pode ver conforme o trabalho realizado por Paulo Laurentiz (1991)7, onde demonstra apoiado em Peirce, que o processo de criao se d em trs etapas, relacionadas aos trs nveis lgicos do pensamento: abduo, induo e deduo.

Para Laurentiz, o processo criativo se d nesta seqncia:

1 Insight

2 Operacionalizao

3 Avaliao

Estas etapas envolveriam a sequncia do momento em que a idia surge insight , passando pelo modo como ela se concretiza em obra operacionalizao e pelo modo como ela chega at algum que lhe exerce julgamento avaliao , podendo este ser o prprio artista.

Depois disso, o processo recomea para o desenvolvimento de novas obras.

Tambm avaliando as etapas do processo criativo, trabalharam em equipe, Julio Plaza e Monica Tavares, demonstrando, a partir da combinao dos modelos de Wallas, Kneller e Moles, que o processo criativo tem, na verdade seis etapas, sendo elas:

6 A tnica desta companhia de teatro experimental o escndalo e a agressividade. Acesse o site: http://www.

lafura.com/web/index.html.

7 OtrabalhodePauloLaurentizcentradoemumavisoholrquica,quenodeveserconfundidacomumaviso

holsticasobriscodecair-seemconsideraesdesvinculadasdocientificismonecessrioparacorroborarasuatese.

http://www.lafura.com/web/index.htmlhttp://www.lafura.com/web/index.html

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1 Apreenso

2 Preparao

3 Incubao

4 Iluminao ( insight)

5 Verificao

6 Comunicao

O momento da iluminao visto aqui como insight, est no meio do processo criativo, sem levar em conta esta medida em temporalidade. Este um momento fugaz, de amostragem conscincia, de uma percepo, que pode ser a soluo para um problema, a concatenao de possibilidades desta soluo, ou uma das possibilidades para determinado problema.

Nem sempre o insight pode ser materializado como obra, por isso ele, por si s no pode ser considerado obra, e sim, etapa do processo criativo.

Para que v alm de uma idia, o insight deve ser coerente com a possibilidade de materia-lizao da obra. Aps esse momento fugaz necessrio um exame sobre as reais condies de realizao da obra. Esta etapa a verificao, sendo a da comunicao equiparvel a da ava-liao para Laurentiz.

A grande profundeza a ser explorada fica na fase anterior ao insight, afinal, que acontece antes dele?

Tal como todos os seres humanos, o artista processa sua criao completamente imbricado com o mundo no qual vive e ao qual fornece elementos de construo contnua8.

Quando criamos o fazemos baseados em um repertrio que j est montado de acordo com as predisposies no seu conjunto e no apenas nosso conhecimento tcnico, terico ou potico. Criamos com o nosso eu, e ele est em contnua transformao. Isto se d a partir das relaes que criamos com o mundo, sendo elas tcnicas, tericas, sociais etc. No s a nossa cultura,

8 Nesse aspecto recomendada a leitura de Maturana e Varella (2003).

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o nosso conhecimento que muda, mas toda a nossa percepo sobre o mundo. Assim tambm mudamos esse mundo.

Assim, toda vez que temos um momento abdutivo, o fazemos porque, no manancial de informaes que agrupamos e processamos internamente, de forma forada ou espontnea, se depositou um grande acmulo de elementos capazes de gerar o tal insight. neste processo, envolvendo uma larga escala de elementos dos quais no temos conscincia absoluta, que se encontram as trs fases anteriores ao insight, segundo Plaza e Tavares, a apreenso, a prepa-rao e a incubao.

As agncias de publicidade costumam adotar tcnicas de brainstorming (incubao), para atender uma demanda urgente (briefing) e para isso aplicam etapas de pesquisa (preparao) associada demanda, a fim de facilitar o surgimento da idia que far resultar na campanha. Esta uma forma de compreender facilmente o que acontece no processo anterior ao insight, mas temos que aplicar as etapas ao nosso cotidiano para localiz-las no nosso fazer artstico.

Vemos que nunca faramos em outra poca uma obra tal qual a fizemos hoje. Quando olhamos para traz, olhamos com esse repertrio atualizado e, portanto, nosso juzo, at sobre o prprio fazer, muda. Imagine isso com relao histria da arte!

Pensar sobre o processo criativo nos faz ver que o nosso olhar, atualizado pelo mundo em que vivemos, no eficiente para captar todas as qualidades de uma obra executada em outra poca, e sobre-maneira, por outra pessoa.

funo e obrigao do artista reconhecer o prprio comprometimento com o seu fazer, o quanto seu meio ambiente influencia neste fazer. Tornar consciente aquilo que possvel conscientizar. Essas relaes aparecem naturalmente, mas evidente que ser sempre uma rede parcial porque impossvel para a pessoa ter conscincia do todo vivido por ela.

Ter a noo de que no h dualidade, de que o artista no se impe ao mundo tanto quanto o mundo no se impe a ele umas das mais eficientes formas de ver o processo criativo.

Isso pode ser compreendido tambm atravs de Paulo Laurentiz. Quando ele explica a filo-sofia cartesiana ele est apontando um pensamento que til para determinadas situaes, mas menos til para a interpretao do pensamento criativo, embora tenha sido Ren Descartes

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(1983) o primeiro a tentar estudar a criatividade em seu O Discurso do Mtodo. Laurentiz mostra que ainda reside um forte cartesianismo em nossa cultura, mas que o artista vem perce-bendo que est trafegando nos meandros de interconexo com o mundo de uma forma integral, o que ele qualifica como pertencente uma holarquia9.

Um caminho bastante fundamentado para abordar esse modo de produo do artista desenvolvido por Ceclia Salles em dois trabalhos de suma importncia: O Gesto Inacabado (1998) e Redes de Criao (2006). Nesses estudos, vemos como possvel localizar as inter-conexes da produo com a vida do artista. Em O Gesto Inacabado ela fala, principalmente, do conceito de acabamento e inacabamento da obra, enquanto em Redes de Criao o enfoque o processo e o conceito de rede que ele envolve.

Sabemos que o prprio artista julga a prpria obra. Toda vez que ele toma uma deciso sobre cada um de seus atos em favor de fazer a obra, h um juzo envolvido.

Mas no podemos dizer que ele tem o controle total da situao j que todo ato criativo sempre um recorte da relao do executor com um sistema. Para analisar um fato necessrio sair do sistema em questo. Mas a se encontra um paradoxo: se um observador s pode olhar para o evento estando fora dele o ato analtico sobre o fazer em sua totalidade demandaria um olhar de fora, o que impossvel para quem o executa. Afinal, o artista no pode estar simul-taneamente nesses dois momentos, mas ele os alterna assessorado pelo juzo, a fim de elaborar as etapas de execuo da obra.

Ou seja, ele processa um transformar a partir de um repertrio existente formado por suas memrias. Em outras palavras nossa criao esta profundamente ligada com a memria, uma espcie de banco de cdigos para conexes possveis. No h gavetas, h cdigos para formas de organizar as sinapses que vo gerar os insights10.

9 Para compreender melhor a questo vale pena a visita ao seu texto, A Holarquia do Pensamento Artstico,

especialmente no captulo trs, onde se encontra a tese da cooperao branda. Ali ele mostra que, nos processos

criativosenvolvendotecnologias,hdiversasformasdecooperaoqueenvolvemdesdeoequipamentoattodasas

pessoasereceptoresenvolvidos,dealgummodo,comestefazer.

10 Sobreamemriaencontra-seabordagensemtodaaobradeAntnioDamsio,masmaisespecificamenteem

O Mistrio da Conscincia (2000).

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Obviamente, a memria est ligada ao aprendizado. preciso primeiro conhecer para depois criar. Da a importncia em que o artista conhea as atividades que se desenvolvem na sua poca, tanto quanto as que se desenvolveram antes, aproximadas da sua potica e mesmo as mais distantes. Alm de gerar incubao para o insight ele estar evitando trafegar por terrenos ocupados.

Para apoiar essa viso, nos cercamos da fala de Ceclia Salles que diz que o crescimento e as transformaes que vo dando materialidade ao artefato, que passa a existir, no ocorrem em segundos mgicos, mas ao longo de um percurso de maturao. O tempo do trabalho o grande sintetizador do processo criador (SALLES, 2000, p. 32).

Quando o artista finaliza uma pintura, por exemplo, a partir da que a obra estar no mundo. Ela ir construir uma rede de significados num processo infinito, mesmo que haja a destruio desta obra em sua fisicalidade.

Temos a duas situaes:

Primeiro: houve um processo criativo que gerou a obra que foi levada pblico.

Segundo: houve um processo semitico que aconteceu aps a finalizao do processo criativo. Este processo tambm criador. Mas este, no pode ser considerado um processo criativo no sentido da faco da obra, no sentido de construo da fisicalidade da qual ela formada. Ou seja, aqui se fala da rede de significados que essa obra suscita.

At aqui trabalhamos com conceitos que envolvem etapas de realizao e que, em algum momento se define como obra. Se d a mesma por acabada. Tomando-se qualquer obra pere-nizada, no tempo ou na cultura, veremos que tudo que vem depois do momento de finalizao, signo.

Apesar de ser fato que o processo semitico sobre a obra que lhe atribui graus de valorizao como arte, ou como objeto de valor cultural, trata-se mesmo de semiose, onde a transformao no modifica a natureza fsica da obra.

Criao envolve semiose e pode envolver transformao, representao, mas h momentos desse processo que se cristalizam no tempo e ali param, ou lentificam, e h processos que envol-vem o conceito, da interpretao que se faz sobre a obra. Nesses casos em geral, a natureza da

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obra processual, portanto, a noo de acabamento torna-se crtica. O que define o acabamento ou inacabamento de uma obra est ligado potica que o artista escolhe por desenvolver.

A ideia de inacabamento pode estar presente no insight embora o converter a ideia em matria nunca ter a exatido imaginada na forma acabada da obra pois h sempre uma diferena entre o que se concretiza e o projeto do artista (SALLES, 1998, p. 32).

H obras as quais se resolvem como forma pela ao do tempo, das pessoas que interagem com elas, por equipamentos que as atualizam ou simplesmente pela durao. Tais obras, de natureza processual, tm seu processo criativo confundido com a etapa de verificao da obra. Isto uma caracterstica que deve ser avaliada com cuidado ao tentar localizar-se o processo criativo que essa obra apresentou.

O inacabamento est tambm associado potica do artista, quilo que o seu transcurso de vida em favor do prprio fazer. No tem um tempo para ser finalizado, e se altera ao sabor das suas pesquisas e interesses alm de ser alavancado pelas obras que vai realizando, por assim dizer, dadas por acabadas.

Mas, em qualquer caso, se lidando com obras cujo acabamento visado ou lidando com obras processuais, o artista opera ligado a uma rede. Isto bastante esmiuado no trabalho de Ceclia Salles (2006), mas tambm pode ser compreendido pelas teorias dos sistemas aplicados biologia (MATURANA; VARELA, 2003).

O artista, tanto quanto qualquer pessoa que esteja produzindo em qualquer rea, natural-mente cria em rede. A dificuldade est em perceber qual essa rede de relaes que ele vivencia.

mais fcil construir a rede aps determinada fase da vida, quando sua viso sobre o que produziu e vivenciou se tornam mais palpveis. Isto tem relao com o amadurecimento em funo de seus objetivos com sua potica. Dessa forma, seria possvel, uma vez que ele tenha tornado consciente a rede de relaes que geram sua criao, torn-la graficamente visvel, a partir de um exerccio bsico de representao dessa rede, levando em conta um determinado momento, que pode ser um auge num processo criativo especfico, enfocando uma obra, ou numa fase de vida do artista.

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O auge de um processo criativo s pode ser feito em comparao com momentos anteriores. Ento o auge aparece com esse valor por algum tempo, e em conformidade com o olhar que depositamos sobre esse ponto no momento especifico desse olhar. Portanto, essa rede estar sempre imprecisa e em modificao.

Alm disso, mesmo depois do perodo de vida do artista, ela pode ser modificada.

Um exemplo interessante o Cdigo Atlntico de Leonardo da Vinci (2006). Este livro resultado de um recorte na vida de da Vinci. Ali se pode ter referncias sobre como, em seus escritos, as anotaes compiladas tm potencial de rede, embora, a unio das partes que temos acesso hoje em dia seja dada por um filtro criado pelo seu compilador e depois pelo editor da verso impressa. Aps sua morte, o escultor Pompeu Leoni, fez um recorte literal, segundo critrios prprios, nas anotaes de Leonardo da Vinci, montando dois lbuns separados por temtica, sendo um deles o Cdigo Atlntico e o outro a Coleo Windsor. visvel o descarte de pginas, bem como de partes das pginas utilizadas consideradas pelo compilador como irrelevantes. Ao ler-se o livro criado com o resgate do lbum do Cdigo Atlntico, tem-se acesso uma materializao de uma parte da rede, que no tinha sido criada pelo artista, mas que tem uma parcela de representao da rede de criao operada por da Vinci em vida. As observaes trazidas pela editora auxiliam nisso, e embora fiquemos ressentidos pelo que se perdeu, temos que agradecer pelo que se resgatou. Todavia, nunca saberemos de fato a imensido da rede que vivenciou da Vinci, embora saibamos que fazemos parte da rede que o proclamou como um dos maiores artistas que a humanidade conheceu.

Para saber mais

Sugerimos buscar informaes sobre a srie de Fibonacci para compreender aspectos da esttica associada ao belo e a proporo urea. Um exemplo pode ser visto no vdeo: The Fibonacci Sequence.

Para compreender a teoria Semitica recomendado o estudo da bibliografia de Char-les Sanders Peirce, de Lucia Santaella e de Joo Queiroz, existente em abundncia nas livrarias e na internet. A Semitica especialmente interessante para anlises de obras de natureza dinmica por no ser centrada na forma.

http://www.youtube.com/watch?v=P0tLbl5LrJ8http://www.youtube.com/watch?v=P0tLbl5LrJ8

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http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/46935/4/02_redefor_d08_arte_tema_03.flv

TEMA 3

O Corpo Como Arte

O tema enfocado nesta semana o CORPO. No de qualquer corpo que se fala, mas do corpo que, de alguma forma, participa da natureza da obra de arte. O corpo um dos ele-mentos mais importantes no campo da Arte. Independente do tipo de arte atravs da relao com um corpo que ela se concretiza e se justifica. Assim, para abordar os aspectos principais desta relao, no primeiro tpico, O corpo e a Arte, veremos como a arte enfocou, usou ou se conscientizou do papel do corpo com o passar dos tempos. No segundo tpico, O corpo a Arte, abrangeremos aspectos da produo artstica onde o corpo, em sua materialidade orgnica, passar a ser a obra, ou parte integrante da mesma.

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3.1 O Corpo e a Arte

Neste momento da disciplina interessa-nos refletir sobre o modo pelo qual o artista foi tomando o corpo como enfoque na sua potica. No nos ateremos, entretanto, a uma linha cronolgica, mas sim, enfocaremos proximidade de leituras que se possa fazer com as lingua-gens das obras.

Antes de iniciar, devemos lembrar que em nosso conceito, corpo no se separa da mente ou do crebro. O dilogo do artista com a obra aconteceu, historicamente, num processo de apro-ximao do seu corpo com o corpo da obra. Isso pode ser considerado examinando os assuntos utilizados pelos artistas em toda a histria da arte. Podemos escolher a pintura como exemplo. Falarmos do corpo na histria da pintura praticamente falar de toda a histria da pintura, com o corpo humano representado em todos os seus aspectos, do auto-retrato ao corpo dissecado. Mas aqui vamos nos orientar pela relao do corpo fsico do artista com obra.

Primeiramente podemos tomar como referncia o gesto na pintura, que ficou oculto por muito tempo, principalmente com o surgimento da tinta leo, onde at a materialidade da tinta era tratada como um vidro atravs do qual vamos a realidade e a marca da pincelada era praticamente inexistente. Com as mudanas estticas, aos poucos percebemos a materialidade da tinta e as marcas dos pincis emergindo na tela. O Impressionismo assumiu a materialidade da tinta como matria da pintura deixando os rastros do gesto do artista atravs das marcas do pincel.

O trabalho neo-impressionista de Vincent van Gogh (1853-1890) ressalta a marca do seu gestual como uma caracterstica principal da sua obra. No expressionismo abstrato, temos Jackson Pollock (1912-1956) com a tcnica do dripping (gotejamento) movimentando todo o seu corpo dentro da tela estendida no cho e deixando os rastros de seu movimento.

Yves Klein (1928-1962), com suas Antropometrias usava corpos de modelos como pincis vivos. Todos esses exemplos nos fazem ver que a marca do gesto do artista foi, aos poucos, ganhando nfase e valor como elemento formante da obra.

Em segundo lugar, podemos tomar como referncia a presena do corpo do artista na pin-tura atravs de seu ponto de observao, da localizao de onde estaria observando a cena, seja fictcia ou real.

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Na antiguidade j tnhamos um indcio da perspectiva atravs do escoro, que a representao de uma forma por um ponto de vista que altera suas propores. A obra de Andrea Mantegna (1431-1506), Lamentao do Cristo morto representa o corpo de Cristo em escoro. O olhar em perspectiva, observando o corpo de frente e quase na altura dos ps, proporciona a viso das partes sobrepostas, onde pernas, abdmen e cabea possuem quase as mesmas medidas.

Fig. 1 Lamentao do Cristo morto Andrea Mantegna (1475-1478).

Mas com a perspectiva que o observador encontra sua presena dentro da imagem, res-saltando uma maior importncia para o observador. Somente a partir da perspectiva central possvel localizar o observador na imagem, onde as linhas da profundidade se dirigem a um ponto que representa a localizao do olho do observador monocular. Se traarmos as linhas da profundidade numa fotografia, descobrimos o ponto de fuga onde a cmera estava localizada.

No Cubismo encontramos outra relao com a presena do observador, em vrios pontos de observao simultaneamente. A noo de espao-tempo aqui representada pela combinao de diferentes pontos de vista na mesma imagem, como podemos visualizar nas obras de Pablo Picasso (1881-1973), ou de Georges Braque (1882-1963). Picasso quem utiliza a figura-humana como referente, menos no sentido da observao, mas enfatizando a criao de uma possibili-dade pictrica baseada na caracterstica do trao e da forma, e no na sua capacidade de criar relaes literais com o mundo vivido1. J Braque, se apropria das imagens colhidas ao acaso, de

1 Um bom exemplo a obra Menina com Bandolin - 1910 - (100.3 x 73.6 cm.) de Pablo Picasso. Ela pode ser

vista na internet no site do Museu de Arte Moderna de Nova York..

http://www.moma.org/collection/browse_results.php?object_id=80430

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objetos ou paisagens que reconta ao expectador, considerando mltiplos pontos de vista. Esses dois artistas desenvolvem o que passou a ser chamado Cubismo. O que no teria acontecido sem a amizade que gerou as fortes discusses convertidas em obras que influenciaram toda a histria da arte desenhada a partir de ento.

A aproximao e a presena do corpo do artista no corpo da obra acontece numa progres-so, at que o prprio corpo do artista confunde-se com o corpo da obra. Na dcada de 1960, poca da Arte Conceitual, a Body Art, tanto quanto o happening e a performance art2, surgem utilizando o corpo como meio de expresso ou como suporte da obra de arte.

Fig. 2 - Esquema indicando relao artista / obra.

2 Asdiferenasentreessasformasdearteseroapresentadasnoprximotpico.

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No esquema acima podemos notar como o corpo do artista est representado na obra. No caso das pinturas os ndices de sua observao esto presentes na forma de organizao dos seus elementos. A forma como o artista observa a realidade est presente na obra.

O corpo do artista apresenta um aumento de sua presena na obra at que seu prprio corpo torna-se obra.

Podemos verificar outra relao do corpo do pblico com a obra atravs da prpria postura fsica - e comportamental - frente aos diferentes tipos de obras de arte, que demonstra essa mudana de conceito do que seja uma obra de arte. Na obra mimtica, a postura contemplativa, esttica do nosso corpo predominante. Na obra aberta, a postura reflexiva, os gestos um pouco irrequietos e certa movimentao do corpo para as interpretaes se fazem visveis. Na obra participativa o pblico est presente como integrante, experimentador da obra e a obra perde seu carter de algo intocvel.

O dilogo corporal do pblico com a obra se faz visvel atravs da movimentao das pes-soas frente obra. A obra solicita atravs de sua estrutura uma movimentao do pblico para a sua leitura. Uma relao mais intimista com o pblico, geralmente acontece com o pequeno formato, chamando as pessoas para perto, numa relao individual, contrrio a outras situa-es quando a obra dialoga com muitas pessoas ao mesmo tempo, e solicita certo afastamento fsico, como acontece com os murais. Na pintura Impressionista ou na Hiperrealista (Chuck Close), um movimento na aproximao e afastamento solicitado. Isso nos permite a percepo de aspectos diferentes da pintura. Em obras cinticas com movimentos virtuais, solicitado do pblico a movimentao ao longo ou em torno da obra para que o efeito visual acontea. Isso pode ser observado em grande parte da produo em Optical Art, na Arte Cintica e na Lumino-cintica.3

Essa relao corporal do pblico com a obra transforma-se com as mudanas estticas e, na arte interativa mediada por tecnologia digital, o corpo solicitado de uma nova maneira, que discutiremos no Tpico da Interatividade no Tema Arte e Tecnologia.

3 Artistasqueexemplificamessetipoderelao:VictorVasarely(1908-1997-Hungria)eJlioLeParc(1928-

Argentina).SobreLeParchmuitasinformaesnoseusite.UmbomexemploaobraMurodeLminasReflejantes,1966

(224 x 260 x 80 cm) de Julio Le Parc, cuja imagem encontrada no mesmo local.

http://www.chuckclose.coe.uh.edu/life/gallery.htmlhttp://www.chuckclose.coe.uh.edu/life/gallery.htmlhttp://www.julioleparc.org/en/index.php

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Assim, hoje convivemos com variadas formas de relacionamento entre corpo e obra. O aparecimento das diversas formas de relao com as obras no excluem os modos anteriores. Tanto quanto uma tecnologia de realizar arte no exclui as anteriores. sempre um processo de agregao de conhecimentos adquiridos.

3.2 O Corpo a Arte

Com a modificao do valor do corpo para o artista no contexto da arte, as obras passaram a conter ou a se converter no corpo do artista. Momentos significativos deram origem Body art, mas tambm ao contexto onde o corpo do participante elemento de formao da obra. A partir daqui enfocamos essas especificidades, conhecidas como performticas.

Muitas atividades foram feitas na arte envolvendo o corpo, seja do artista, seja das pessoas que so recebidas para o encontro com a obra. a qualidade desse encontro que nos permite avaliar e classificar, segundo as linguagens artsticas conhecidas, em qual tipo de categoria se enquadra determinada obra.

Aes onde o corpo est presente, havendo algum tipo de atuao relacionada formao da obra, tm sido mais frequentemente chamadas de Performance. Porm, no pela existncia de um corpo em ao que podemos qualificar uma obra como pertencente Performance Art, e sim pelas caractersticas que essa ao carrega.

A Performance Art, Arte da Performance ou simplesmente performance4, como tratado no Brasil, tem como principal caracterstica a capacidade de ser reconduzida, a partir de um mesmo fio condutor para o artista, ou seja, um roteiro, mais qualificado como regras para o aconte-cimento. Para compreender melhor isso vamos explicar com a obra de Marina Abramovic5.

4 ConformedissemosmaisdetalhadoemoutraparteOPotencialperformticoumelementoestticorelacionado

performancecomolinguagemepodeserencontradoemoutraslinguagens,quenoaperformtica.Eledeveaparecer

commaisfacilidadenasobrasrealizadasutilizando-seinterfacescomocorpo,aliacopladas,ouapartirdeledesenvolvidas,

demaneiraexperimental(LEOTE,1999).Nestetrabalhofoidesenvolvidaatesedequehaveriaumpotencialperformtico

capazdeapareceremtrabalhosquenofossemdeperformance.Alitalpotencialconceituadoeaplicadoemanlisesde

casos.Ajustificativaparaaexistnciadessepotencialestarianaformacomoalinguagemdaperformancefoiestabelecida

aceitandoas influnciassociaisnessecontexto.Apesquisadodoutoradoseguiua intenodecorroborarumadas

conclusesfinaisaquesechegounadissertaodeMestradoDaperformanceaovdeorealizadanaUNICAMP.

5 UmdosnomesmaisrepresentativosdaPerformanceArt,nasceunaIoguslviaem1946.

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Em uma retrospectiva sua, efetuada no MOMA (Museum of Modern Art) de Nova York, ela props que os visitantes se tornassem parte da obra O/A artista est presente (2010). Durante todo o perodo da exposio que durou dois meses e meio, os visitantes eram convidados a sentar-se diante da artista por um perodo por eles determinado. Isto variava de 3 a 12 minutos. Somados os dias de atuao, foi a mais longa performace de Abramovic . Observando-se a linha de conduo se tem a regra: - A artista estar sentada em uma rea cercada por um cordo de isolamento. Durante todo o dia, enquanto o Museu estiver aberto pessoas diferentes entraro e sentaro em uma nica cadeira em frente artista, por um tempo que elas determinam. As pessoas agendam previamente sua participao. As redes de relacionamento da internet e uma webcam atualizam detalhes sobre o evento. A artista se mantm sem expresso por todo o tempo, imvel. Ao assistir-se as imagens do evento6 nota-se uma variedade significativa de modelos de atuao por parte dos participantes. Pessoas choram, outras riem, uma teria provocado o prprio vmito, enquanto outra teria se despido diante da artista, que se manteve neutra.

Levando-se em conta a regra, nota-se que ela permaneceu inalterada apesar da apresentao ter, a cada dia, transcorrido de modo totalmente nico, portanto, irrepetvel. Como qualquer situao da nossa vida. O repetir-se uma proposio no o mesmo que repetir-se o aconteci-mento. At por que, a cada recolocao da mesma proposta, alguma memria sobre o aconte-cido se agrega ao novo momento de fazer, qualificando-o com dados de memria que alteram a percepo, tanto do propositor quanto das pessoas envolvidas no evento.

O aprendizado, que afinal constri a memria, se d pela percepo, tanto quanto ela depende do aprendizado. So camadas de reconhecimento que se desenvolvem umas sobre as outras, atreladas as nossas oportunidades de relacionamentos e participao em eventos significantes para a nossa conscincia. Aqui cabe um parntesis sobre aspectos da conscincia, sem a qual impossvel perceber-se qualquer evento.

O corpo aprende, memoriza informaes sobre as quais a pessoa que participa da situao pode no ter ateno focada no momento da percepo. Mas seu corpo estar consciente do evento.

Esse enfoque permitido pela condio fsico-qumica de quem percebe no momento da percepo, isso determinar diferenas de enfoque da ateno e, portanto, de graus de conscincia

6 OtrabalhoestregistradonositedoMOMA.

http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2010/marinaabramovic/

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diferenciados sobre eventos similares. Consequentemente, de modos diferentes de atuao (ou reao) em cada reaparecimento da proposio.

Por isso, a mesma obra pode ser recebida de modos diferentes pelo mesmo leitor em momen-tos diferentes do seu dia ou da sua vida. Da mesma forma, o artista ao produzir est sujeito a esse contexto. Por isso, cada apresentao de performance ou de qualquer atividade que envolva atuao do corpo, ter diferenas, por menores que sejam.

Todas as situaes que convergiram para o quadro biofsico apresentado pelo propositor7, ou pelo observador de uma obra conduzem o conjunto de atributos que o sistema perceptivo vai oferecer para o momento da percepo em questo. Isso resume porque performance no repetvel, mas sim, reconduzvel. Assim que o brasileiro Renato Cohen (1956-2003) rea-presentou a performance KA- Potica (1997), em diversos espaos, cada vez com incluses de elementos diferentes.

A performance diferente da Body art, onde a participao do pblico minimizada em favor da importncia do papel do corpo do artista. Em outras palavras, o corpo do artista tratado em si mesmo como obra de arte. a condio proposta para o uso do corpo que lhe agrega essa outra natureza. No h representao, mas apresentao. O corpo, modificado, transgredido ou enfeitado, a obra. Nesse caso, a relao com o pblico pode nem acontecer alm da mera espectao. Ou seja, sua ao - ou passividade - em pouco interfere na obra, isto , na forma que o artista escolheu para formatar seu corpo-obra. As obras realizadas com essas caractersticas, nos anos 1960 e 1970, tiveram uma predominncia do uso de aes agressivas sobre o corpo do artista incluindo mutilaes ou simulaes de mutilao. Muitas aes eram registradas em fotos ou vdeos, sendo, muitas vezes, somente atravs da fotografia ou vdeo o contato feito pelo pblico com a obra. Nesses casos, muito confundidos com Body Art, tratavam-se, na verdade, de propostas de fotografias ou de vdeo em contextos que apresentavam potencial performtico, no havendo o pblico testemunha do evento, a ao no poderia ser qualificada como sendo

7 Desde os anos 1960 o conceito de propositor tem sido utilizado para substituir o termo artista. Em geral esse

termoutilizadoquandosetratadeobrascujafinalizaooudesenvolvimentodependedaaodopblico,este

tambm chamado de interator.

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Body art stricto sensu. O exemplo mais conhecido o caso do artista Rudolf Schwarzkogler8. Ele desenvolveu uma srie de fotografias onde aparecia em situaes que fazia o corte do pr-prio pnis, entre outras envolvendo animais mortos. O fotografado era, de fato, um amigo que simulava a ao. Rudolf Schwarzkogler morreu muito cedo, provavelmente tendo se suicidado. Nunca ficou claro se ele caiu ou pulou da janela do seu quarto. Mas, boa parte da divulgao sobre sua morte, aborda como causa uma hemorragia em virtude do sangramento ao cortar o pnis em uma atitude de Body art. Esses mitos so difceis de desfazer quando o nico acesso que se tem obra uma fotografia, que o mesmo caso de Salto no vazio de Yves Klein. A foto em verdade uma montagem refotografada, foi feita por Harry Shunk e Jean Kender9, mas os fotgrafos raramente so associados autoria. Muitas fontes indicam a atitude como ndice de Body Art. A foto, tem muita importncia pelo aspecto icnico, associado ao incio das exploraes espaciais da NASA, mas no foi uma obra de Body art, como em geral catalogada.

Nesta linha de atividades, tambm importante mencionar Vito Acconci.10 Este artista ame-ricano, nascido em 1940, que nos anos 70 produziu vrias obras em vdeo, utilizando seu prprio corpo como assunto11, teve vrias realizaes em performance. A provocao e a tentativa de desestabilizar os sentimentos do espectador era sua marca neste perodo. Um exemplo desse aspecto a obra Seedbed12. A ao consistia na masturbao que o artista fazia escondido em baixo de uma rampa existente na galeria. Sua voz, que traduzia fantasias sobre as pessoas que visitavam o espao, era projetada em auto falantes.

8 JuntamentecomRudolfSchwarzkogler,participavamdeaesdenaturezamutiladoraeescatolgica,outros

artistas conhecidos pelo nome de Ativismo vienense ou Acionismo Vienense (Viennese Actionism), sendo eles Gnter

Brus,OttoMhl,eHermannNitsch.Maisinformaespodemserobtidasemhttp://www.observacionesfilosoficas.net/

ocorpocomoarte.html.

9 OsnegativoseimpressesoriginaisdeHarrySchunk(19242006),apssuamorte,foramadquiridospela

FundaoRoyLichtenstein(http://www.lichtensteinfoundation.org/shunk01.htm).Elefotografouamaioriadostrabalhosde

artesperformticasdaEuropaeEstadosUnidos.UmapartedelasemparceriacomJeanKender(19371983-tambm

conhecidocomoJnosKender),qualcreditadaaimagem(http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1992.5112).

ParavisualizarSaltonovazio,1960(25.9x20cm),fotodeSchunk-Kender,enfocandoYvesKlein,visiteositedaWikipdia,

pois os direitos autorais no permitem publicao sem aquisio. (http://en.wikipedia.org/wiki/File:Le_Saut_Dans_le_Vide.

jpg)

10 Site do Artista http://www.acconci.com/. Uma entrevista com Acconci, onde descreve seu pensamento relacionadoperformacepodeserencontradonositeConceptualParadisenolink:http://weblab.uni-lueneburg.de/socialsoftware/paradise/index.php/Print_version_interview_Vito_AcconciPodeser usado como exemplo a obraOpenBookde1974,disponvelnoYoutube:http://www.youtube.com/watch?v=HYQAcHsgIwY11 maisumexemplodeobrascomPotencialPerformticoconformetesedeLeote(1999).12 RealizadaemJaneirode1971,naSonnabendGallery,emNovaYork.

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De natureza escatolgica tambm a obra de Pierro Manzoni (1933-1963)13, artista italiano, que problematizou o objeto-obra de arte, apresentando a obra Merda de Artista (1961), como produto do corpo do artista numa edio de 90 latinhas que foram vendidas, como uma crtica ao mercado de arte. As latinhas continham realmente fezes do artista.

Mas o exemplo mais forte que podemos apresentar de Body art a proposta de transformao do corpo trazida por Orlan14. Esta artista francesa, nascida em 1947, atuante desde os anos 60, mais conhecida pela srie Reencarnao de Santa Orlan (1990) onde passou a utilizar a cirurgia plstica para se transformar em famosas mulheres representadas na histria da arte. Todavia, recentemente ela desenvolveu o conceito de Carnal Art, segundo ela, a arte da carne lida com a dor de modo diferente da Body art. Na sua viso, a arte da carne entende o evento da cirurgia como um espetculo em si mesmo, abordando como matria de discurso o processo da modificao do corpo, e no o resultado plstico. Mas a idia de transformar a sua imagem copiando ou misturando de outras personas tem aparecido no trabalho da artista tanto em fotografias, quanto em imagens manipuladas por computador, alm de ter incurses poticas na biotecnologia onde vem cultivando suas clulas tronco com propsitos artsticos. Cada vez mais sua vida sua arte. Isso abre o ponto para discutir-se um outro tema: Live Art.

A expresso Live art, com frequencia, utilizada como sinnimo de Performance art. segundo RoseLee Golberg15, tanto Live Art, quanto Body art so espcies de performances. Mas no Reino Unido, local onde o termo Live Art ganhou aplicao e fora, se estabelece uma diferena que a mxima aproximao da vida com o estado de arte. Atuando na Ingla-terra, os mais conhecidos neste modo de desenvolver a sua obra so Gilbert & George16. Eles consideram seus corpos como esculturas vivas e trabalham sempre juntos. Suas atuaes envolvem simulaes do corpo em forma de esttuas, bem como fotografias baseadas nas suas personas. Isto , h em Live Art mais proximidade com o conceito de atitude e interveno do que apresentao. Parte do trabalho do brasileiro Flvio de Carvalho (1899 - 1973) poderia ser

13 Siteoficialhttp://www.pieromanzoni.org/EN/index_en.htm.14 Sitedaartista:http://www.orlan.net/.Noyoutubehumvdeocomumaentrevistarecentequeesclareceopontodevistadaartista:http://www.youtube.com/watch?v=IQ1Ph-Pprj4.Seunomeverdadeiro Mireille Suzanne Francette Porte.

15 GOLDBERG,RoseLee.PerformanceArt-FromFuturismtothePresent.London,SrieWorldofArt,Thames & Hudson, 1988.16 Gilbert Proesch (1943) italiano e George Passmore (1942) ingls, mas trabalham juntos desde a poca em que eram estudantes nos anos 70.

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facilmente enquadrada nesta categoria, tanto quanto as atitudes envolvendo os Parangols de Helio Oiticica (1937-1980) . Prximo isso tambm a atitude de Marcel Duchamp com a inveno de seu ego feminino, o heternimo Rrose Slavy. O nome ROSE Slavy, com um erre, apareceu primeiro como assinatura na obra Fresh Window (1920). Mais tarde, Man Ray fotografou Duchamp travestido em mulher, a pedido deste, para que sua imagem fizesse parte de um rtulo alterado de perfume, na obra Belle Haleine eau de Voilette (1921). Assim nasce a imagem conhecida de Rrose Slavy, com dois erres. Mas a ao no passou de fotografia.

Outra forma de usar o corpo em cena a realizao de Happenigs. A obra 18 happenings in 6 parts, proposto por Allan Kaprow17 em 1956, deu origem ao nome Happening por ter carac-tersticas mesmo de acontecimento, que a traduo da palavra inglesa happening. Para Kaprow, o acontecimento era parte da vida, como toda a arte deveria ser. O conceito de Happening envolve um estado de vivncia da obra. Corpo, espao e mentes agindo a fim de realizar uma propo-sio. A obra o resultado das interaes entre as pessoas que do Happening participam, no tendo forma de ser repetido, pois que, qualquer outra recolocao, da mesma proposio, geraria resultados completamente diversos. Porm o Happening pode envolver atividades rituais, que por si s, prevem situaes pr-colocadas. Ao lidar com o ritual, uma parte de previsibilidade esperada, que a condio mesma de se apresentar o ritual. Entretanto, o encaminhamento deste depender das formas pelas quais os envolvidos se entregam ao, que em grande parte das vezes renovada por condies psquicas que se atualizam a cada experincia. Ou seja, o ritual est ligado aos fluxos de vida que os participantes ali colocam. Uma especificidade muito importante a de que no h, num Happening, uma linha divisria entre o papel de artista, mas acertadamente chamado de propositor, e a platia, melhor tomada como interatores. Atitudes coletivas, como Flash Mobs18, apesar da discordncia de seus realizadores, repetem as qualidades dos Happenigs dos anos 1960, utilizando, porm, tecnologias disponveis nesta poca.

17 AllanKaprow(1927-2006)-NovaJersey(EUA).OutrosartistasquerealizaramouparticiparamdeHappenings,semexclusividade,foramJosephBeyus,ClaesOldemburg,RobertRauschemberg,WolfVostell,NamJunePaik,AlisonKnowles,DickHiggins,KenFriedman,GeorgesMaciunas,JacksonMacLow,JohnCage, Yoko Ono e George Brecht entre outros.18 Um Flash Mob uma ao coletiva obtida pelo acionamento instantneo de um grupo de pessoas, atravs deredessociaistecnologizadas,comocelulareseinternet,comfinalidadesdiversas,desdeposicionamentospolticos e sociais at atitudes nonsense, como tirar o sapato e bat-lo no cho da Avenida Paulista como executado em 13 de agosto de 2003 em So Paulo por cerca de 100 pessoas na altura do Conjunto Nacional. Alm disso, os Flash Mobs tm sido usados como estratgia de marketing de muitas marcas. Isso, vai contra o propsito da linguagem do Happening, tanto quanto dos Flash Mobs.

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Nota-se que os artistas, em qualquer modalidade de arte, sempre esto prontos para operar com os materiais e tecnologias com as quais convivem. Por isso os artistas jovens nos anos 1960 usaram tanto vdeo, os de 1990 o computador, e atualmente as mdias em convergncia. Esta pode ser a razo de cada vez menos se conseguir encontrar uma definio clara para as aes propostas pelos artistas que esto operando na nossa atualidade.

Um rpido percurso por este contexto pode ser visto nos seguintes apontamentos:

Stelarc um artista performtico australiano que trabalha com o conceito de que o corpo humano obsoleto e precisa de um novo design. Suas obras envolvem desde exoesque-letos robticos at o implante de uma orelha no seu brao esquerdo no projeto que ele chamou The Third Ear.19

Natasha Vita More outra artista que com o projeto Primo Posthuman explora todas as possibilidades envolvendo biotecnologia, robtica, nanotecnologia, cincia cognitiva, neurocincia e tecnologia de informao para desenhar o homem do futuro.20

Raymond Kurzweil21, autor de A era das Mquinas Espirituais22, um famoso inventor e futurista que influencia com seus pensamentos muitas reas e aponta para as modificaes que teremos num futuro prximo, chegando vida eterna.23 Muitas de suas antevises deixaram desejar, mas algumas de fato aconteceram e talvez uma srie delas aconteam com um pouco de atraso. claro que ele as fez baseado em pesquisas que j estavam em andamento ao escrever seu livro, ainda polmico.

Eduardo Kac24 atravs de sua obra Histria natural do enigma criou uma flor utili-zando o seu sangue e a engenharia gentica para produzir uma flor que denominou de Ednia25, um hbrido de uma Petnia e Eduardo Kac.

19 http://stelarc.org/?catID=20247

20 http://www.natasha.cc/

21 http://www.kurzweilai.net/

22 KURZWEIL,Raymond.Aeradasmquinasespirituais.Ed.Aleph,2009.

23 http://www.ted.com/talks/lang/por_br/ray_kurzweil_on_how_technology_will_transform_us.html

24 http://www.cibercultura.org.br/tikiwiki/tiki-index.php?page=Eduardo+Kac

25 http://www.ekac.org/nat.hist.enig.port.html

http://stelarc.org/?catID=20247http://www.natasha.cc/http://www.kurzweilai.net/http://www.ted.com/talks/lang/por_br/ray_kurzweil_on_how_technology_will_transform_us.htmlhttp://www.cibercultura.org.br/tikiwiki/tiki-index.php?page=Eduardo+Kachttp://www.ekac.org/nat.hist.enig.port.html

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Observa-se que a distino precisa entre uma modalidade e outra das artes performticas encontra tnues limites. provvel que a demarcao desses territrios seja desnecessria para compreender-se a importncia das mesmas para as Artes Visuais. A dificuldade reside no fato que origina tanto quanto, paradoxalmente legitima a ao: a fuga da convencionalidade das formas estticas e a busca de uma potica polisensorial so compartilhadas. Quando tecnologias cibernticas entram em cena, expresses como trans-humano, ps-humano, arte transgnica, biociberntica e outras tantas povoam os escritos e posicionamentos poticos dos artistas. Nesse territrio, as fronteiras so, obrigatoriamente, borradas.

Para saber mais

Nesse sentido, so importantes as obras Sugerimos examinar os estudos sobre Live Art no Reino Unido na Live Art Development Agency. Trata de formao nesta especificidade e tem vrios links para estudos na rea.

No Brasil h muitos artistas e grupos de pesquisa que estudam o tema da performance sob diversos enfoques tericos. H grupos de trabalhos tericos e coletivos de ao per-formtica inclusive nas Universidades como o caso da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUCSP), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), da Universidade Federal de Brasilia (UNB) e da Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Para encontrar artistas brasileiros que esto trabalhando com artes performticas o melhor caminho a internet, pois h poucas publicaes que consigam agrupar a variedade de propostas poticas nesse campo. Nomes representativos, em diferentes contextos de atuao, so Otvio Donasci, Bia Medeiros e Corpos Informticos, Guto Lacaz, Edgar Franco e o Post Human Tantra, Rosangella Leote, Marcia X, Naira Ciotti, Wellington Jr e Priscilla Davanzo, sem esgotamento desta lista.

H muitos eventos sobre performance acontecendo em todo o Brasil. Exemplos: BODE-ARTE no Rio Grande do Norte (http://circuitobodearte.blogspot.com.br/); Transper-formance no Rio de Janeiro; VERBO em So Paulo na Galeria Vermelho (http://www.galeriavermelho.com.br/). Bem como eventos e associaes ao redor do mundo estudando o assunto como a associao FADO, no Canad (http://www.performanceart.ca); e os

http://www.thisisliveart.co.uk/http://circuitobodearte.blogspot.com.br/http://www.performanceart.ca/

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eventos PALs (http://www.palsfestival.se/), STOFF (http://www.stockholmfringe.com/) e LIVE ACTION (http://www.liveaction.se/) na Sucia.

Ainda sobre o corpo na Arte se pode consultar o catlogo da exposio O corpo na arte contempornea brasileira, realizada no Ita Cultural em So Paulo, em 2005 http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2452.

Sugerimos examinar trabalhos que envolvem interfaces performticas com a Dana, a Msica e o teatro, em vrias conotaes e diferentes usos de tecnologias e corpo. Sobre como os artistas experimentam e vivenciam o corpo e suas relaes com os novos espaos/tempos trazidos pelos novos meios tecnolgicos. Nos anos 70 so exemplo Kit Galloway e Sherrie Rabinowitz (SATELLITE ARTS PROJECT 77 / http://www.ecafe.com/getty/table.html) e mais recentemente: Kitsou Dubois que com dana no espao sem gravidade (http://www.arsastronautica.com/zero-g.php), o grupo Palindrome (www.palindrome.de) e Konic Thtr (www.koniclab.info) que se ocupam de tecnologias em cena alm de Ivani Santana cuja dana envolve telepresena.

A Wikipedia pode ser um bom roteiro de leitura sobre este e demais assuntos. http://en.wikipedia.org/wiki/Performance_art.

http://www.stockholmfringe.com/http://www.stockholmfringe.com/

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http://www.acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/46935/5/02_redefor_d08_arte_tema_04.flv

TEMA 4

Arte e Tecnologia

No tema Arte e Tecnologia vamos conhecer no tpico 1, Modalidades de Arte-Tecnologia, como acontece essa relao e as modalidades de arte que surgem dentro desse contexto. No tpico 2, Interatividade, trataremos dessa questo que um dos principais elementos nesse contexto da arte-tecnologia e ser desenvolvida em detalhes para uma melhor compreenso de como se constitui a obra interativa.

4.1 Modalidades de Arte-Tecnologia

O termo tecnologia apresenta certa resistncia por muitas pessoas, por entend-lo como algo no humano, que contribui para uma frieza nas relaes humanas. Talvez esse sentimento seja

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menor nas geraes contemporneas. Sempre que uma nova tecnologia surge, quanto maior sua capacidade de transformao, maior a rejeio encontrada. Porm, a tecnologia um dos fatores que diferenciou o ser humano de outras espcies. A tecnologia vivncia e reflexo materializada, conhecimento organizado nas estruturas do aparato tecnolgico. Quando o ser humano tenta mover uma pedra muito grande e mesmo com muitos homens no consegue faz-lo, isso se torna um problema para ele. Aps muitas experimentaes e reflexo consegue uma soluo inteligente quando relacionando elementos que parecem no ter nada em comum, como uma pedra e um tronco, consegue montar esses elementos de uma forma que cria um sistema que denominamos de alavanca e possibilita deslocar aquela pedra grande que muitos homens juntos no eram capazes de movimentar. A organizao dessa pedra e desse tronco torna-se um pensamento materializado. A tecnologia isso e no apenas um amontoado de peas num aparato tcnico. Esse pensamento est presente nas teorias de Gilbert Simondon, na obra Du mode dexistence des objets techniques, publicada em 1958.

Cada poca apresenta um retrato do conhecimento humano atravs da sua tecnologia. Uma civilizao pode ser estudada atravs dos produtos tecnolgicos de sua poca, que carre-gam os conhecimentos dessa poca. Aparatos tecnolgicos de culturas antigas podem revelar para o futuro todo o conhecimento da poca armazenado na sua estrutura. O mecanismo de Antictera1 um exemplo disso, produto do sc. I antes da era crist, encontrada no incio do sculo XX nas profundezas do mar, perto da ilha grega de Antictera, revela um conhecimento avanado de astronomia materializado nessa mquina atravs da organizao das engrenagens, possibilitando o clculo de eventos astronmicos no passado e no futuro. Embora tambm tenhamos na histria exemplos da utilizao da