Redes viárias de Alenquer e suas dinâmicas. Um estudo de arqueogeografia

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estudo das redes viárias na longa duração

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Miguel Cipriano Esteves Costa

Redes virias de Alenquer e suas dinmicas.Um estudo de arqueogeografia.

Dissertao de Mestrado em Arqueologia e Territrio, especialidade em Arqueogeografia, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientao do Professor Doutor Grard Chouquer.

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2010

ndice geralndice geral Agradecimentos 1. Introduo 2. Ambiente e recursos 2.1. Geografia e Geologia 2.2. Os recursos 3. As fontes histricas e arqueolgicas 3.1. Breve descrio histrica 3.2. As fontes histricas 3.3. As fontes arqueolgicas 3.4. Concluses sobre as fontes disponveis 4. As novas fontes: uma abordagem diferente da documentao 4.1. As cartas 4.2. As fotografias areas 4.3. As cartas cadastrais 5. A foto-interpretao 5.1. Deteco automtica 5.2. Metodologias de foto-interpretao 5.3. A foto-interpretao no territrio de Alenquer 5.4. Concluses 6. Abordagem epistemolgica 6.1. O modelo sistmico. Um programa utpico! 6.2. As razes de escolha dos mtodos da arqueogeografia 7. A arqueogeografia 7.1. Os fundamentos do cosmopolitismo metodolgico 7.2. Dinmicas do espao 7.2.1. Modalidades de transmisso no espao-tempo 7.3. A ocupao do espao 7.4. Compilao de dados 7.4.1. Os Sistemas de Informao Geogrfica 7.5. Morfologia 7.6. O difcil cruzamento de dados entre arqueologia e morfologia 8. O estudo das vias: mtodos e tcnicas 8.1. As metodologias de Eric Vion, Magali Watteaux, e Sandrine Robert 8.2. A triagem numrica 8.2.1. Limites da triagem numrica 8.3. Fluxos, itinerrios, traados, e modelados 9. As dinmicas das redes virias de Alenquer 9.1. Os centros 9.1.1. Os centros de escala supra-regional 9.1.2. Os Centros de escala regional 9.1.3. Os centros de escala local 9.1.4. As formaes radio-concntricas 9.2. Os itinerrios e os estabelecimentos arqueolgicos vizinhos 9.3. As Ligaes 9.3.1. Ligaes entre locais pr-romanos 9.3.2. Ligaes supra-regionais 9.4. Itinerrios de grande percurso 9.4.1. Abordagem geral1

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9.4.2. Itinerrio 1 9.4.3. Itinerrio 2 9.4.3.1. Itinerrio 2a 9.4.3.2. Itinerrio 2b 9.4.4. Itinerrio 3 9.4.4.1. Itinerrio 3 a 9.4.4.2. Itinerrio 3b 9.4.4.3. Itinerrio 3c 9.4.5. Itinerrio 4 9.5. Concluso sobre as redes virias 10. Estudo do espao geogrfico 10.1. Villa Vedra um povoado romano 10.2. Vila Verde dos Francos uma fundao de raiz? 10.3. Planimetria de Berbelita 11. Concluso Bibliografia Arqueogeografia Desenvolvimento sustentvel Economia Epistemologia Estudos cartogrficos e virios Estudos de paisagens Foto-interpretao, deteco automtica, e metodologias Geografia e Geologia Histria e arqueologia geral Histria e arqueologia locais Anexos Suporte Informtico Suporte Cartogrfico ndice das figuras ndice dos quadros ndice dos mapas Figuras Quadros Mapas

80 82 82 84 87 88 91 92 95 96 98 98 98 99 101 103 103 104 104 104 104 105 105 105 l06 108 112 113 114 115 116 117 120 128 167

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Agradecimentos:Agradeo de forma sincera a todos aqueles que conscientemente ou de maneira involuntria ajudaram elaborao deste trabalho: dona Alice, e dona Gina, funcionrias do Instituto de Arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, pela disponibilidade, e pela ajuda no trabalho de Biblioteca. Ao Sr. Carrio, morador nas Eiras, pelo seu contributo para a localizao da Serra de Ripas. Dr. Eunice Arajo pela pacincia que manifestou nos ltimos anos. Ao Dr. Filipe Rogeiro pelo dilogo franco e aberto, e pelas facilidades que disponibilizou no Museu Municipal de Alenquer. Ao Doutor Grard Chouquer pela confiana demonstrada, e pela forma contagiante com tem divulgado a arqueogeografia. A Antnio Rodrigues Guapo pela forma pronta e sincera como abordou a questo complexa dos achados da Berbelita. A Joo Antnio Gomes Teixeira e Joo Carlos Bispo dos Reis pela amizade sincera. Ao Dr. Jorge Nunes, pela recepo calorosa, e pela afabilidade com que disponibilizou os seus conhecimentos sobre a Freguesia de Cabanas de Torres. Doutora Magali Watteaux pela sua disponibilidade nas questes complexas dos Sistemas de Informao Geogrfica. Ao amigo Manuel (polcia) pelas informaes sobre um achado nos Casais da Marmeleira. minha me pela pacincia. Ao Sr. Paulo Machado sempre disponvel para ajudar. Ao Sr. Perdigo pelas informaes sobre o Vale Junco. Ao Sr. Pedro Joo Tordo pela colaborao nos dados dos Pardieiros. Prof. Doutora Raquel Vilaa pela sua disponibilidade. tia Idalina pelas facilidades nas deslocaes rodovirias. A Maria Ftima Esteves pela sua interveno na obteno das fotografias junto da C. M. Alenquer. E a todos aqueles que me esqueci e nomear.

Bem hajam!

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1. Introduo.No mbito do Mestrado em arqueologia e territrio da Universidade de Coimbra, apresentamos esta dissertao na especialidade de arqueogeografia. O principal objectivo desta tese perceber a evoluo da rede viria do territrio de Alenquer, sendo que para tal iremos utilizar as metodologias enunciadas pela arqueogeografia. Nomeadamente, os mtodos e as prticas que o Doutor Grard Chouquer e todos os investigadores que participam na construo da arqueogeografia como cincia tm desenvolvido e aperfeioado. Este trabalho ir incidir, principalmente, sobre uma rea administrativa do territrio portugus situada na provncia da Estremadura: o actual concelho de Alenquer (ver mapa 1). Mas, tendo em conta que as vias de circulao no tm somente uma utilizao local, como bastante bvio, e que foram no passado, como no presente, utilizadas para a circulao de pessoas e bens num espao geogrfico mais vasto, expandimos a rea do estudo para um territrio mais amplo, no confinado ao Concelho de Alenquer. O espao geogrfico utilizado foi o que considermos til e suficiente para compreenso da problemtica viria da regio que estamos a estudar. Uma das questes habituais que surge no incio desta investigao de natureza cronolgica. Quando que determinada via foi construda 1? E, no sabemos se conseguiremos ter respostas satisfatrias a este tipo de perguntas, que poderemos formular. A questo das cronologias parece ser mais problemtica para as vias mais antigas, do que para as vias mais recentes. Porque, em relao rede viria contempornea os documentos escritos podem ser suficientemente esclarecedores, mas nem sempre assim. Podemos ter um documento escrito que nos diga que, numa data especfica, foi construda uma determinada estrada; mas, nada nos diz que, essa estrada no foi j edificada sobre uma antiga estrutura, semelhante ou diferente desta. Porque mesmo as vias de construo recente foram, muitas vezes, edificadas sobre traados mais antigos, formando vrios estratos sobrepostos, em que os mais recentes cobrem os mais antigos, formando um palimpsesto composto por vrias camadas cronologicamente distintas. Como se v, mesmo para os traados recentes, no se afigura fcil estabelecer cronologias. E no pretendemos inferir as datas das vias quando isso no for possvel. Este um desafio complexo a que nos submetemos e, s no final do trabalho teremos as respostas, satisfatrias ou no, aos objectivos a que nos propomos nesta introduo. Tambm temos em conta que as respostas s questes surgidas sero essencialmente1 A interrogao sobre a data para o historicismo metodolgico uma das questes habituais e primordiais. A questo das origens e das identidades dos povos leva normalmente os investigadores a privilegiarem as questes do tempo sobre as questes do espao. Esta questo torna-se muitas vezes obsessiva, e uma verdadeira dificuldade; porque as planimetrias e os objectos geogrficos so complexos, e de difcil datao (CHOUQUER; 2007: 59).4

multidisciplinares. No procuramos as respostas dentro de uma disciplina cientfica especfica, como por exemplo: a Histria, a Arqueologia, a Geografia, ou outra; mas sim, na interaco de dados entre diversas disciplinas cientficas, na medida em que essas disciplinas nos possam facultar documentao til para as problemticas surgidas. As dvidas tero tambm de ter em conta as relaes dinmicas que se estabelecem nas sociedades, e entre os homens e a natureza onde estes se instalam. Porque no achamos que uma investigao cientfica deva distinguir o que social daquilo que natural; pensamos que estes dois conceitos, que os cientistas tm por hbito separar, so acima de tudo complementares porque o Homem, na sua vivncia diria, no vive isolado do meio ambiente que o rodeia. O nosso territrio de estudo, o actual Concelho de Alenquer, est situado na provncia da Estremadura, no centro litoral de Portugal. Esta regio tem como fronteiras naturais: a oeste o Oceano Atlntico, e a este o Rio Tejo. A geologia da regio comporta duas zonas morfolgicas bem distintas: uma zona calcria - tpica do macio estremenho, e uma zona de aluvies junto ao grande rio Tejo (ZBYSZEWSKI; 1965). Desde h bastante tempo (pelo menos desde meados do sculo XIX) que tm sido desenvolvidas vrias investigaes de mbito histrico e arqueolgico sobre este territrio, e algumas apresentam resultados interessantes. Esta rea teve uma ocupao humana bastante densa desde tempos bastante antigos. Foi encontrada uma enorme quantidade de artefactos de cronologia pr-histrica desde, pelo menos, o Paleoltico Superior. O debutar da pesquisa arqueolgica deu-se em pleno sculo XIX com os trabalhos do gelogo Carlos Ribeiro; este erudito investigou a enorme disperso de slex com vestgios de trabalho humano que na altura (como na actualidade) se observava na regio (RIBEIRO; 1866). As suas concluses foram reveladas comunidade cientfica em alguns congressos em que participou, havendo nesse tempo grande discusso sobre a possibilidade da existncia do Homem Tercirio [ARNAUD in (VVAA; 1999: 31-36)]; controvrsia que animava os eruditos da poca, e este territrio era propcio s investigaes que ento se faziam. Foi tambm em pleno sculo XIX que surgiram os primeiros ensaios de histria local da autoria de Guilherme Joo Carlos Henriques (HENRIQUES; 1873 e HENRIQUES; 1902); este cidado ingls (que adoptou nome e cidadania portugueses) publicou alguns trabalhos interessantes e pioneiros sobre a sua terra de adopo. Houve posteriormente uma continuidade nas investigaes da histria e dos patrimnios locais. Luciano Ribeiro publicou na primeira metade do Sculo XX um ensaio intitulado Alenquer Subsdios para a sua histria (RIBEIRO; 1936); esta obra uma monografia local que pretende tratar da histria de Alenquer desde tempos pr-histricos. Uma leitura atenta destes dois trabalhos revela as insuficincias metodolgicas dos seus autores e, embora os seus resultados sejam importantes pela ausncia de trabalhos anteriores so evidentes as5

suas lacunas numa perspectiva cientfica actual. Como se pode constatar, ao cotejar as metodologias utilizadas com os mtodos propostos por Jorge de Alarco para este tipo de trabalhos (ALARCO; 1982). J em pleno sculo XX, um alenquerense e arquelogo amador (cuja formao era em enologia) de nome Hiplito Cabao impulsionou a pesquisa arqueolgica no concelho. Iniciou uma srie de trabalhos arqueolgicos que prolongou at ao final da sua vida (que ocorreu no ano de 1970). O seu trabalho foi de enorme valia no campo da prospeco arqueolgica, tendo revelado aos seus pares - uma quantidade imensa de stios arqueolgicos (PEREIRA; 1970b), todavia foi sem dvida insuficiente nos campos da divulgao e da publicao dos dados. As inmeras escavaes arqueolgicas em que participou (e que normalmente dirigiu) foram efectuadas com mtodos completamente amadores; e s fez uma publicao, sobre a necrpole da Quinta do Bravo, em parceria com o padre Eugnio Jalhay (CABAO et al.; 1934). Mas h que dizer (sem reservas) que os mtodos de investigao normalmente utilizados na arqueologia da poca, e tidos na altura como boas prticas cientficas, no favoreceram o entendimento que actualmente podemos ter sobre os verdadeiros contextos em que se inseriam as jazidas arqueolgicas ento exploradas; hoje sabemos que esses mtodos no eram os melhores; mas eram os conhecidos e os que se praticavam naquele perodo. Assim, os trabalhos arqueolgicos feitos desde ento, como tambm o trabalho que agora estamos a fazer, tero de ter em conta as insuficincias metodolgicas das investigaes efectuadas nesse tempo, assim como a actual dificuldade em conhecer os verdadeiros contextos em que se inseriam as jazidas arqueolgicas exploradas nesse tempo. Os mtodos e prticas utilizados nas investigaes efectuadas a partir da segunda metade do sculo XX so diferentes, para melhor! Houve a adopo por parte da comunidade cientfica de paradigmas cientficos actuais, usuais, e funcionais (na perspectiva ordinria que temos actualmente de cincia!). No mbito da arqueologia da regio surgiram recentemente trabalhos de pesquisa bastante importantes, como por exemplo, a tese de mestrado sobre o Calcoltico nas regies de Torres Vedras e Alenquer da autoria de Maria M. Lucas (LUCAS; 1994), e tambm um trabalho sobre o Castro da Pedra de Ouro, efectuado por Maria Gertrudes Branco (BRANCO; 2007). A histria local beneficiou, da mesma maneira, dos progressos cientficos e da adopo de metodologias historiogrficas; surgiram alguns trabalhos de enorme valia, como por exemplo: o trabalho de Joo Pedro Ferro (FERRO; 1996) que foi um enorme passo em frente na divulgao da histria medieval do concelho. Tambm so de assinalar outros trabalhos que se revelam bastante importantes, como os realizados por Filipe Rogeiro; este historiador executou alguns trabalhos de sntese de dados histricos, como por exemplo a obra Alenquer, Prespio de Portugal (ROGEIRO;6

2005), e tambm utilizou pela primeira vez 2 a fotografia como fonte para o conhecimento histrico no seu trabalho intitulado Alenquer desaparecida (ROGEIRO; 2002). Nos anos 80 surgiu uma obra, em quatro volumes, intitulada O Concelho de Alenquer (MELO et al.; 1987): este um trabalho de conjunto de grande importncia pela diversidade de temas que aborda, e pela competncia cientfica com que os seus autores aprofundaram os temas tratados, que so essencialmente a arte e a etnografia, no descurando a divulgao arqueolgica. No ano de 2008 tivemos o prazer de assistir publicao da transcrio das Memrias Paroquiais de 1758, da autoria do Padre Jos Eduardo Martins, com o ttulo Alenquer 1758 - O Actual Concelho nas memrias paroquiais (MARTINS; 2008). Este trabalho uma transcrio dos textos originais que revela a percepo que os coetneos letrados (os clrigos) tinham sobre o territrio do concelho em meados do sculo XVIII, que abre uma nova janela sobre o perodo iluminista - possibilita um novo entendimento sobre a realidade geogrfica deste territrio nesta poca; , assim, uma fonte essencial para qualquer investigao futura que se queira fazer sobre o concelho, como o caso da nossa prpria investigao. Depois deste interldio sobre investigaes passadas, vamos debruar-nos sobre o que pretendemos fazer no presente. A dissertao que nos propomos fazer assenta sobre paradigmas cientficos diferentes daqueles que foram utilizados nos trabalhos descritos anteriormente porque constatamos que as fontes utilizadas so redutoras em relao realidade observada. Desde logo as fontes escritas do-nos algumas informaes relevantes para este trabalho: itinerrios percorridos, locais de habitat, e alguns traados utilizados em tempos passados (de difcil localizao). Quando consultamos alguns dos textos existentes ficamos cientes que estas informaes se reportam essencialmente aos movimentos das elites. Podemos conhecer alguns itinerrios percorridos por reis, rainhas, e outra gente nobre - como os homens de armas a caminho de alguma batalha tornada ilustre pelos homens das letras. Os textos tambm referem alguns traados, e estes esto da mesma forma associados deslocao de pessoas ilustres; mas neste caso, dificilmente conseguiremos precisar a localizao dos caminhos. Assim sendo, as informaes que podemos obter so sempre parciais. Nos textos tambm surgem referncias a localidades de maior e de menor importncia; so normalmente fontes primrias - registos paroquiais, documentos das edilidades, etc. Estes documentos no so provenientes das elites sociais, mas, pelo contrrio, oriundos de simples acontecimentos quotidianos, como compras e vendas de propriedades, nascimentos, bitos, etc. Estas so informaes mais concretas porque provm de acontecimentos triviais e quotidianos, que dizem respeito a toda a populao, e no s a algumas personalidades mais ilustres. Mas, de uma forma geral, os textos escritos so limitados para o trabalho que nos propomos2 No mbito de um trabalho historiogrfico sobre o Concelho de Alenquer.7

fazer. Alguns textos tericos sobre estas problemticas (nomeadamente geogrficas) tm normalmente um discurso econmico, ideolgico e intelectual sobre a paisagem que muitas vezes necessita de uma efectiva validao cientfica. Foram produzidas afirmaes como: a estrutura agrria colectivista de origem pr-romana (RIBEIRO et al.; 1991: 631), a estrutura agrria submetida aos princpios da propriedade privada em perodo romano (Id.: 634), e profunda transformao das paisagens e modos de viver durante a romanizao (Ibid.: 652); e tambm alguns discursos sobre a situao econmica como: O pequeno proprietrio (em perodo romano) viu-se ento obrigado a desfazer-se das suas terras, (), produzindo-se um lento desaparecimento da pequena propriedade (VAZQUEZ DE PRADA; 1986: 53). Estes textos inferem sobre situaes de posse da terra e da diviso das propriedades, e podendo condicionar a forma como actualmente se investigam as paisagens: estas devem as suas formas maneira como os homens exploram e trabalham a terra. Em princpio estes discursos provm da inferncia sobre uma realidade material, que a paisagem, e no tm muitas vezes em conta essa mesma realidade material, que pode ser observada e estudada. Assim sendo, teremos as necessrias reservas em considerar estes trabalhos de ndole econmica e geogrfica como representativos da organizao e da explorao dos campos. Os documentos arqueolgicos tambm so limitados para o estudo que nos propomos fazer. Desde logo, as limitaes das investigaes arqueolgicas surgem, nalguns casos, associadas aos mtodos de trabalho utilizados, que frequentemente no utilizam as metodologias cientficas adequadas. As leituras dos arquelogos sobre os assentamentos e as suas funes so feitas geralmente num tempo e num espao determinado, e este tipo de leitura produz uma viso parcial porque est condicionada ao estado de conservao dos dados e s possibilidades da prpria escavao em si. sempre uma viso incompleta e pontual do passado porque interpreta o assentamento arqueolgico e no a sua relao com o espao envolvente. No nosso trabalho tambm utilizamos as mesmas fontes que os trabalhos descritos anteriormente, mas fizemos a sua critica de forma a podermos retirar somente a informao que considermos vlida. E ainda, completmos esses dados com todo o tipo de dados cientficos que nos foi possvel encontrar - na medida da sua existncia. No utilizamos somente as fontes escritas e arqueolgicas, mas igualmente outro tipo de documentos: adicionamos s fontes utilizadas tradicionalmente nas pesquisas histricas e arqueolgicas todo o tipo de dados que nos possam elucidar sobre o espao observado. Neste sentido, todo o tipo de investigao cientfica produzida sobre determinado espao, no nosso caso especifico o territrio de Alenquer, ser de toda a utilidade para a nossa investigao. No hesitaremos na sua utilizao; mas sobretudo, procuraremos investigar todo o tipo de informao8

disponvel, de maneira a que a possamos utilizar. Desde logo, utilizamos toda a cartografia existente (disponvel em vrias escalas) como documentos para o estudo que nos propomos fazer, relacionamos esta documentao, comparando-a em vrias dimenses, cotejamos os dados neles presentes, e teremos informaes preciosas sobre o espao que estamos a estudar. Tambm a fotografia area nos possibilita outro entendimento sobre o espao de estudo (PICARRETA et al.; 2000); desde logo, as fotografias de altitude revelam formas existentes na paisagem que de outra maneira no conseguiramos percepcionar, porque muitas vezes, s uma visualizao de altitude nos pode consciencializar da existncia de determinadas estruturas no solo. As fotografias areas tambm nos revelam, por vezes, estruturas arqueolgicas fsseis; isto , aquelas que esto soterradas no solo e que s so visveis a partir de um suporte fotogrfico. Os mecanismos de manifestao pelas fotografias de estruturas soterradas so complexos, e sero abordados mais adiante, como mais nos convm! Mas, no deixamos de referir que a fotografia area opera uma revelao da viso, porque tem potencialidades muito superiores comum observao a olho nu. A utilizao dos documentos grficos referidos anteriormente (mapas em vrias escalas e fotografias areas), assim como todo o tipo de estudos cientficos existentes sobre determinado territrio, possibilita que estudemos a paisagem como um objecto cientfico. No partilhamos do dogma que a paisagem algo que somos incapazes de estudar - pela sua complexidade; antes pelo contrrio, ns achamos que a paisagem um objecto cientfico perfeitamente definido, que possvel estudar, se utilizarmos as metodologias adequadas (CHOUQUER; 2000). Tambm defendemos que o conceito de paisagem palimpsesto, que proposto por alguns investigadores, em que esta composta de vrias camadas que se sobrepem - em que a mais recente e topograficamente superior, cobre uma mais antiga e topograficamente inferior - no se aplica ao estudo das paisagens - apesar de ser um critrio perfeitamente vlido em geologia (READ; 1976), e em arqueologia (HARRIS; 1991). Consideramos que as formas observadas na paisagem so factos histricos da prpria paisagem (CHOUQUER et al.; 2002), porque revelam aces sobre esta. Apesar da dificuldade dos investigadores as considerarem, normalmente, como tal. As formas que encontramos so essencialmente hbridas, no so estritamente provenientes das aces sociais, nem pelo contrrio, de aces da natureza sobre o meio; provm na maior parte das vezes de aces simultaneamente sociais e naturais. Assim, cada forma da paisagem um facto e tem a sua prpria histria, que independente das demais. Porque as paisagens so um complexo de interaces dinmicas, e cada forma que nela existe tem o seu prprio tempo morfolgico interno CHOUQUER; 2007: 271).9

Estes conceitos sero dissecados na altura prpria. Com os documentos que pretendemos trabalhar, no iremos ter uma viso parcial confinada a determinado assentamento especfico; mas pelo contrrio, iremos ter uma viso contnua do espao. As formas so reveladas sobre um grande espao geogrfico circundante. E como as podemos inserir nesse espao global, teremos um bom entendimento sobre as formas globais de organizao do espao (CHOUQUER; 1993). Estes documentos tambm nos permitem uma boa apreenso do meio ambiente, e assim, perceber as maneiras hbridas de relacionamento entre Homem e natureza. Possibilitam uma boa visibilidade dos traos fsseis, e dessa forma, a revelao de estruturas arqueolgicas at agora desconhecidas. A viso continua do espao possibilita-nos ver que os assentamentos arqueolgicos no eram inseridos no terreno alheios s contingncias geogrficas e da implantao dos outros estabelecimentos coetneos. A implantao humana sobre o solo ter sempre em conta a interaco entre pessoas e estabelecimentos coevos; duvidamos de uma autarcia completa dos locais de habitao e explorao. A uma noo particular de cultura, preferimos outra - uma noo interacionista de cultura - em que esta dinmica e estuda o espao como contedo de relaes sociais, na medida do que defende o antroplogo Marc Aug (AUG; 1994). Pensamos que entre estabelecimentos arqueolgicos contemporneos haveria caminhos por onde se estabeleciam as comunicaes; os fluxos (ou a circulao de pessoas, bens, e ideias) efectuar-se-iam por esses caminhos (e/ou simples carreiros) j desde tempos imemoriais. Ao investigamos a rede viria, temos de ter em conta que o que importa em primeiro lugar a rede, e que colocaremos em evidncia os segmentos pertencentes s redes. Tambm sabemos que a complexidade do estudo da rede viria exige que se utilizem metodologias prprias e adequadas para este tipo de estudos. Pensamos que estudar as redes virias na longa durao no se coaduna com a segmentao temporal imposta pelas cincias; por exemplo, estudar o traado das vias romanas a partir dos vestgios encontrados deste perodo, epigrafes, caladas, textos antigos e vestgios diversos insuficiente pela viso parcial que temos a partir dos vestgios e pelos longos perodos de utilizao das estruturas virias. Por isso procuramos metodologias diferentes, mas j utilizadas desde h algum tempo pelos especialistas da rea. Desde logo, utilizamos a fotointerpretao, como props Pierre Sillires (SILLIRES; 1987), como mtodo privilegiado para uma abordagem genrica do espao. Mas utilizaremos principalmente as metodologias propostas por Eric Vion, no seu texto: L`analyse archologique des rseaux routiers: une rupture mthodologique, des rponses nouvelles (VION; 1989); um trabalho que consideramos fundador de uma nova era no estudo das redes virias. Como nos previne Eric Vion: para estudarmos as redes virias, o que interessa o todo (as redes) que prevalece sobre as partes (as vias). A rede j no o10

ponto de chegada, mas sim o ponto de partida do estudo (VION; 1989: 69). As metodologias propostas por este autor foram posteriormente desenvolvidas com os trabalhos produzidos por Claire Marchand (MARCHAND; 2000), Sandrine Robert e N. Verdier (ROBERT et al.; 2009), e Magali Watteaux. Os trabalhos destes autores utilizam os mtodos propostos por E. Vion, mas, todos eles so evolues metodolgicas (que estes investigadores desenvolveram); estes tm uma adequao prpria aos vastos espaos geogrficos em estudo. So simultaneamente a evoluo e a continuidade do trabalho iniciado por E. Vion; cada um imputando nas suas metodologias os ensinamentos dos trabalhos anteriores. No nosso trabalho iremos fazer adaptaes metodolgicas, nomeadamente em relao aos documentos utilizados para a triagem numrica 3. Consideramos que os mtodos utilizados por Magali Watteaux, na sua tese de doutoramento intitulada La dynamique de la planimtrie parcellaire et des rseaux routiers en Vende mridionale - tudes historiographiques et recherches archogographiques (WATTEAUX; 2009), esto bem adaptados ao nosso estudo; iremos utilizlos e fazer as adaptaes que considerarmos necessrias. O uso que esta investigadora faz de software informtico altamente especializado, nomeadamente os sistemas de informao geogrfica (SIG), sem dvida bastante funcional e adaptado a este tipo de trabalho. Este software permite inserir e comparar diverso tipo de dados, sejam eles espaciais ou de outro tipo, numa mesma base dados geo-referenciada; e possibilita o relacionamento desses dados a vrias escalas de observao. A capacidade de geo-processamento4 de dados deste software afigura-se a mais adequada para o estudo que pretendemos fazer. Teremos de ter tambm em conta nesta investigao, semelhana do que acontece nos trabalhos referidos anteriormente, algumas noes tericas que, por vezes, so confundidas. As noes de fluxo, itinerrio, traado, e modelado, so absolutamente distintas e frequentemente confundidas; se as no soubermos distinguir o nosso raciocnio terico no est preparado para podermos estudar a problemtica das redes virias. Esta questo primordial no nosso trabalho e ser desenvolvida numa vertente terica - quando explicarmos as metodologias utilizadas na investigao. S fazendo uma clara distino destes conceitos, poderemos perceber a problemtica da rede viria; que mais complexa do que poderamos pensar inicialmente. Esta distino ter a sua aplicao prtica ao territrio que estamos a estudar - devido sua pertinncia funcional. Devido sua importncia, os aspectos tericos sero desenvolvidos a seu tempo, no havendo nesta introduo, como ordinrio, lugar a um desenvolvimento minucioso. No quero deixar de referir como intrito a esta tese, que o estudo das vias passa pela

3 Ver a alnea 8.2. 4 Utilizamos este termo no sentido de: processamento assistido de dados geogrficos.11

percepo da dinmica de circulao de pessoas, bens, e at de ideias, entre lugares, durante longos perodos de tempo. E que precisamente essa dinmica de circulao de pessoas e bens que proporciona a origem, manuteno, alterao, e ocaso dos traados virios. Como afirmmos, a partir de todos os dados cientficos que possamos angariar que pretendemos prosseguir o trabalho. A compilao de diverso tipo de dados ajuda-nos a completar a informao histrica e arqueolgica existente, que sempre parcial. A compilao de dados permite-nos criar um novo documento, que contenha toda a informao disponvel, a esse documento foi dado o nome original de carta compilada (ROBERT; 2003a: 259-348). Mas, mesmo com este documento, no teremos nunca, como ser espectvel, toda a informao sobre determinada realidade passada; com as metodologias que vamos utilizar, poderemos completar o mais possvel (na medida das potencialidades da documentao existente 5) o quadro terico existente, que se apresenta sempre incompleto. A rede viria, at aqui pouco conhecida, e que contm uma grande profuso de traados; pde ser investigada com as metodologias que enuncimos, e os resultados so interessantes; o trabalho permitiu um avano no conhecimento histrico do territrio de Alenquer. Foi possvel observar uma rede viria antiga que faz a ligao entre as principais cidades da Idade do Ferro e de poca Romana na regio. Esta rede viria que designmos como itinerrios de grande percurso, revela uma amplitude que ultrapassa a organizao do habitat na regio, enquadrando-se num desenvolvimento virio a partir das grandes cidades estremenhas. O estudo da rede viria, em vrias escalas, permitiu acrescentar alguns dados ao conhecimento anterior. Foi possvel determinar a existncia de uma rede viria supra-regional, cuja gnese est na ocupao dos stios de altura, e na longa diacronia deste processo milenar. Este trabalho tambm possibilitou a observao de uma rede de traados que faz a ligao entre os stios anteriores chegada dos romanos; em determinados locais (de ocupao esparsa) - nomeadamente a Serra do Montejunto - esses traados continuam a ser praticamente os nicos a existir, levando-nos a inferir a antiguidade destas ligaes. Tambm pudemos constatar algumas interpretaes erradas dos dados histricos, que levaram alguns investigadores a proferir afirmaes incorrectas. Neste mbito, provmos a impossibilidade da estrada real ser uma construo original do reinado de D. Maria I, porque as pontes existentes no traado desta via j existiam anteriormente, e negam, assim, a possibilidade desta via ser uma construo de raiz do ltimo quartel do sculo XVIII. O trabalho morfolgico tambm nos permitiu alvitrar a possibilidade da grande via de5 Temos a referir que a investigao produzida sobre este territrio diminuta, e essencialmente de mbito histrico e arqueolgico. No havendo, desta forma, muitas informaes de outros mbitos cientficos, que nos possam auxiliar no nosso trabalho.12

perodo romano entre Braga e Lisboa ter uma ligao directa entre Santarm e esta ltima cidade, com passagem por Vila Nova da Rainha, sendo - se esta hiptese se confirmar - esta a via principal que faria a ligao entre estas duas grandes cidades de perodo romano. Nesse caso, a via que parte de Castanheira do Ribatejo, com passagem pelo Carregado, Paredes - Alenquer, e que segue para Pontvel com passagem pelas pontes de So Bartolomeu, seria uma via secundria, e no a via principal, como se pensava at agora. O trabalho de foto-interpretao permitiu identificar algumas formas arqueolgicas soterradas no subsolo, que de outro modo dificilmente seriam identificadas. Os vestgios arqueolgicos da Berbelita - que corresponde a uma provvel necrpole da Idade do Ferro (MELO et al.; vol. 1, 1987: 119.) - revelaram, a partir da foto-interpretao, a existncia de um recinto que delimita a zona, assim como de um traado antigo que atravessa o referido recinto. No Casal do Reguengo pudemos interpretar a partir da fotografia area, uma estrutura arqueolgica que deve corresponder a um circo de perodo romano, e que atesta a importncia deste local nos incios da era crist. Em jeito de eplogo a esta introduo diramos que conceito de fluxo subentende movimento de pessoas bens e ideias entre locais, implica a deslocao no espao geogrfico, e o movimento efectua-se de maneira horizontal entre esses locais. Nos estudos feitos nos sculos XIX e XX os investigadores incidiam sobre horizontes locais, os stios arqueolgicos ou geolgicos, e numa perspectiva vertical, uma sucesso de estratos geolgicos ou antrpicos que definem o tempo. Pensamos no ser essa a forma adequada de investigao. Como veremos no captulo 7, as relaes entre as perspectivas arqueolgica e geolgica (o tempo que se desenrola numa sucesso de estratos) por um lado, e a perspectiva geogrfica (o espao que se estende pelo horizonte) por outro lado, so complexas; e levam-nos a pensar o espao e o tempo de maneira conjunta; no perspectivando um estudo do stio, mas sim um estudo do espao. Este um paradigma diferente a partir do qual iremos investigar este territrio.

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2. Ambiente e recursos.2.1. Geografia e Geologia.

O territrio do actual Concelho de Alenquer situa-se na provncia da Estremadura e no

distrito de Lisboa, e tem uma superfcie aproximada de 302 km. O rio Tejo fixa a sua fronteira administrativa a este. A Serra do Montejunto - tambm conhecida (em alguns textos) por Serra da Neve - situa-se a norte, e o seu acidente orogrfico mais importante (ver mapa 19). A orografia tambm marcada a oeste pela Serra Galega e a Serra Alta; a Serra do Amaral, a sul, o ponto mais destacado da paisagem. Essencialmente o territrio repleto de acidentes orogrficos a oeste, uns de maior, e outros de menor imponncia, e a este, as plancies predominam abrangendo cerca de dez por cento do total da rea do territrio. um espao de charneira entre o macio calcrio estremenho e as plancies aluviais do Tejo. A Serra do Montejunto tem uma altitude mxima de 666 metros, que representa a maior elevao da regio. A regio de uma forma geral acidentada, com a excepo da zona aluvial a este do territrio. A rea dos aluvies est compreendida entre cotas de 2 metros - junto ao rio Tejo, at cotas aproximadas de 40 metros - prximo da vila de Alenquer. Os acidentes orogrficos mais importantes oscilam entre os 360 metros de altitude da Serra Galega - o ponto mais alto (excluindo a Serra do Montejunto), at aos 212 metros do Monte Redondo. Existem outros locais elevados que podemos referenciar: a Serra Galega, com 354 metros, o Cabeo de Santa Quitria, com 279 metros, e a Coteina, com 218 metros. Mas as altitudes mdias dos pontos mais destacados da paisagem oscilam entre os 200 e os 100 metros de altitude. Estas serras (que tm altitudes reduzidas) so recortadas pelos vales dos pequenos rios e inmeros ribeiros existentes na regio, estes representam alteraes constantes da orografia. Esta uma regio de altitudes no muito elevadas mas com uma orografia acidentada. A geologia do concelho dividida em trs zonas morfolgicas importantes: a este a plancie aluvial do Tejo, que uma zona que comea a sul de Vila Nova da Rainha e que se estende at Vila Franca de Xira. Na zona central do concelho predomina a zona terciria, que abrange essencialmente as zonas entre Ota, Alenquer, Carregado, e Vila Nova da Rainha. Na zona Ocidental do concelho predomina um extenso macio do Jurssico superior 6. As rochas mais representadas na regio so os calcrios, os calcrios com ncleos de slex, e os quartzos. de referir a existncia de chamins vulcnicas como o cabeo de Santa Quitria de Meca, e a Coteina; estes afloramentos de6 Carta Geolgica de Portugal, escala 1/50 000, folha 30D, Direco geral de minas e servios geolgicos.14

rochas eruptivas so constitudos por andesitos (anfiblicos e labradricos), traquitos, doleritos, teschenitos, basaltos, etc. Os solos so constitudos essencialmente por areias, areias argilosas, argilas, argilas com manchas ferruginosas, margas, saibro, grs, e grs feldspticos (ZBYSZEWSKI; 1965).

2.2. Os recursos.

A agricultura e a pastorcia foram (at h poucos anos) as actividades econmicas mais importantes desta regio. Mas, estas actividades tm sido paulatinamente substitudas por indstrias extractivas (essencialmente pedra e areia), indstrias transformadoras, e servios. Estas indstrias, de implantao recente, espalham-se de forma desordenada pelo territrio, sem nenhum tipo de critrio de ordenamento, proporcionando dessa forma, e como consequncia, um enorme crescimento urbano que desordenado e socialmente desequilibrado. O crescimento urbano e industrial, marcados pela ausncia de uma perspectiva de desenvolvimento sustentvel, tm descaracterizado as belas paisagens naturais e antrpicas deste territrio, sem que os actuais polticos locais tenham conscincia da insustentabilidade futura das situaes social e ambiental da regio. Sobre os solos h pouco a dizer porque a documentao exgua, mas a actual explorao rural intensiva faz-nos inferir sobre o seu potencial frtil; a maior parte dos solos do concelho esto plantados de vinha e de culturas arvenses de sequeiro, apesar da existncia de uma enorme rea de solos incultos. A vinha prolifera de forma agradvel, um pouco por todo o concelho; s a filoxera que atacou os vinhedos em finais do Sculo XIX (MARTINS; 1991), paralisou o despontar multicolor das plantas de Baco. Na plancie aluvial do Tejo predominam as culturas arvenses de regadio, a fertilidade destes solos de aluvio elevada. Ainda se aguarda a publicao da carta de uso e capacidade dos solos, que melhor nos poderia elucidar sobre as questes agrrias. No obstante, so vrias as zonas que se apresentam actualmente incultas: Serra da Atouguia, Serra de Ota, Monte Redondo, Serra do Amaral, Serra do Montejunto, Cabeo de Santa Quitria de Meca, Coteina, o morro sobranceiro Pedra do Ouro, toda a zona de serra entre a Carapinha e a Serra de Ota, etc. Algumas destas zonas estavam cobertas de um denso manto florestal, que os cclicos e nefastos incndios tm destrudo nos ltimos anos. O Concelho de Alenquer farto desse recurso imprescindvel que a gua. O Rio Tejo a linha de gua mais importante da regio e do pas, mas, tambm predominam linhas de gua menos imponentes, mas sem dvida com muita importncia a nvel regional: o Rio de Ota, o Rio de15

Alenquer, a Ribeira de Santana da Carnota e o Rio Grande da Pipa - so todos afluentes do Rio Tejo. Estes rios tm caudais com alguma importncia na poca das chuvas, e por vezes, nos anos em que a pluviosidade mais intensa, h cheias que provocam enormes prejuzos materiais s populaes, principalmente nos locais com altitudes mais baixas - junto ao rio Tejo e seus afluentes; mas nos Veres, os caudais dos rios so normalmente muito fracos. A relativa abundncia de gua, que sazonal, associada aos fenmenos de eroso e de deposio de sedimentos, foi responsvel pela criao dos aluvies existentes em toda a zona mais perto do rio Tejo, assim como dos vales do Rio de Ota, Rio de Alenquer, e Rio Grande da Pipa 7. Os aluvies so tambm responsveis pela grande fertilidade que apresentam alguns dos solos da regio, ao arrastarem enormes quantidades de sedimentos, aparecem na regio ciclicamente e so responsveis pela lenta transformao da zona mais a este do concelho; este fenmeno de sedimentao, ou acumulao aluvial, a continuao do enchimento que em poucos milnios colmatou o profundo esturio do Rio Tejo, resultante da transgresso flandriana (DAVEAU; 1980: 31). Desde o III milnio a.C. que o nvel do mar seria mais ou menos idntico ao actual. Este perodo de tempo - at actualidade, seria marcado apenas por pequenas variaes do seu nvel, essencialmente caracterizado por um isolamento dos esturios atravs do crescimento de restringas arenosas e respectiva transformao em espaos lagunares, bem como um intenso assoreamento de lagunas, esturios, e baas costeiras (FREITAS et al.; 1998). No incio do perodo Sub-Boreal8, em que este fenmeno de acumulao aluvial ainda no era muito desenvolvido, o leito do Rio Tejo iria muito mais alm do seu leito actual, ocupando a maior parte das zonas da actual plancie aluvial, que se encontra a cotas mais baixas. A regio tambm bastante rica em guas subterrneas, so vrios os lenis freticos existentes e a captao de gua atravs de poos e de furos praticada um pouco por todo o lado. Os terrenos a este da Vila de Alenquer so de uma forma geral de permeabilidade varivel e reduzida, e os terrenos a oeste so essencialmente de permeabilidade varivel a reduzida, mas por vezes elevada9. Os recursos minerais so diversificados; as argilas, e as margas, so utilizadas no fabrico de cermicas; as areias, e os saibros, so explorados para a construo civil; o grs, utilizado para o fabrico de ms; tambm existem calcrios (em grande abundncia); rochas eruptivas e o ferro. G. Zbyszewski refere a existncia de cobre na regio, mas no especifica qual a zona em7 Carta Litolgica de Portugal, escala 1/1 000 000, Direco geral de servios agrcolas. 8 Perodo que marca, aproximadamente, o incio do Calcoltico. 9 Carta Hidrogeolgica de Portugal, escala 1/1 000 000, Direco geral de minas e servios geolgicos.16

que tal ocorre (ZBYSZEWSKI; 1965: 92). Sobre o cobre Guilherme Henriques refere que Os autores antigos todos falam nas minas de azeviche (minrio de cobre?) que havia em Monte Junto, mas no nos consta que as haja actualmente (HENRIQUES; 1873: 11). A carta mineira no refere a existncia deste metal no territrio, e uma questo que fica por esclarecer! Os trabalhos arqueolgicos que foram efectuados na regio no nos permitem conhecer as coberturas vegetais antigas, no foram utilizados os mtodos das cincias paleo-ambientais, e como consequncia, no temos esse tipo de conhecimentos. Seria de todo o interesse que trabalhos futuros de arqueologia recorressem a mtodos cientficos que possibilitassem um melhor conhecimento das realidades vegetais antigas, mas, no estado actual dos conhecimentos, no podemos inferir sobre a sua realidade em tempos remotos. Tambm no existem (ou no temos conhecimento) de estudos sedimentolgicos feitos a partir de sondagens geoarqueolgicas. A consequncia um desconhecimento quase absoluto sobre as coberturas vegetais antigas, apesar de haver algumas tentativas de reconstituio (BRANCO; 2001), que consideramos insuficientes para uma caracterizao fivel. Estes dados seriam importantes, sem dvida. O conhecimento da cobertura vegetal permitiria uma melhor compreenso do territrio em tempos antigos, mas, o estado actual das investigaes no nos permite uma boa caracterizao; por isso, teremos que avanar considerando a exiguidade dos dados disponveis.

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3. As fontes histricas e arqueolgicas.3.1. Breve descrio histrica.

Neste breve captulo no se pretende uma descrio minuciosa dos acontecimentos histricos desta regio, mas, e antes pelo contrrio, s intentamos fazer uma breve exposio da longa cronologia de ocupao humana deste territrio. Para que os menos conhecedores da actual produo historiogrfica local possam ficar minimamente inteirados da problemtica histrica em causa. A ocupao humana da regio surge desde a Pr-Histria, como se presume. H a ressalvar, no entanto, que a identificao dos locais pr-histricos foi feita essencialmente por Hiplito Cabao - em prospeco; e esses locais no foram (normalmente) alvo de intervenes arqueolgicas; e alguns dos materiais arqueolgicos no foram convenientemente estudados10. Tendo em conta estes factos, temos a dizer que as cronologias atribudas aos materiais, e consequentemente aos assentamentos arqueolgicos, podem no ser as correctas; isto , no podemos confiar inteiramente nas cronologias propostas. No obstante, e na ausncia de melhores ndices cronolgicos que nos possamos basear, consideramo-las como relativamente vlidas, e sero tidas em conta na elaborao deste trabalho. Os vestgios pr-histricos so abundantes nesta regio, mas so poucos os que se possam atribuir indubitavelmente ao Paleoltico Inferior ou ao Paleoltico Mdio. H. Cabao encontrou alguns bifaces na Quinta da Bemposta e no Carregado, que podero corresponder a estes perodos cronolgicos. Mas a partir do Paleoltico Superior os vestgios so vastos. Devido aos condicionalismos da maior parte das investigaes j efectuadas - como j foi referido; decidimos juntar num mesmo mapa (ver mapa 2) os locais arqueolgicos com vestgios desde o Paleoltico Superior at ao Neoltico, e referimos as suas diferentes cronologias somente no quadro 1. No mapa est patente a sua distribuio espacial, e esta diversificada. S na regio mais a este do territrio se verifica ocupao da pr-histrica; e talvez este facto se justifique pela ausncia de prospeces sistemticas na zona mais a oeste do concelho. Tambm podemos observar que a ocupao humana se concentra junto aos trs rios principais: Rio Grande da Pipa, Rio de Alenquer, Rio de Ota. Este tipo de implantao espacial usual em sociedades de caadores-recolectores, estes habitavam preferencialmente junto aos cursos de gua. No normal a ausncia de vestgios junto ao Rio Tejo, que se pode justificar pelos cclicos aluvies que podero ter coberto os vestgios10 O estudo de uma grande parte do esplio presente no Museu Municipal de Arqueologia Hiplito Cabao ainda se encontra por fazer.18

existentes. Mais a norte do concelho, j em plena Serra do Montejunto, tambm existe outro ncleo composto de vrios locais com vestgios pr-histricos; tambm aqui as cronologias so dbias, havendo somente um local de cronologia relativa mais precisa: a importante necrpole Neoltica no Algar do Bom Santo (DUARTE; 1998: 107-118). No quadro 2 sintetizamos os locais com ocupao da Pr-Histria Recente, nomeadamente o Calcoltico, e o Bronze Inicial, e podemos observar a sua distribuio espacial no mapa 3. Verificamos uma ocupao mais ou menos uniforme sobre todo o territrio concelhio. Tambm neste caso as cronologias podero ser dbias, mas actualmente no temos forma de contornar este problema. Acresce outra questo problemtica, que est bem patente no quadro 2: determinados achados tm somente uma localizao toponmica, que nos coloca um problema de preciso geogrfica. Tambm podemos diferenciar alguns assentamentos pela sua funo: existem locais de evidente funo habitacional, como os conhecidos castros da Pedra de Ouro, de Ota, e de Pragana assim como importantes necrpoles, como o caso da gruta de Refugidos. Mas, a separao de funes no ser uma questo essencial nesta discusso, alguns autores defendem mesmo um carcter multifuncional dos recintos deste perodo (JORGE, 1999: 105), assunto que no nos parece problemtico. Uma abordagem da distribuio espacial destes assentamentos permite-nos diferenciar vrios ncleos de ocupao. Mais a norte, observamos vrios estabelecimentos arqueolgicos implantados na serra do Montejunto e nas suas cercanias: o Castro de Pragana, Achada, Vila Verde dos Francos, Cabanas de Torres, Cabanas do Cho, Abrigada, e Vale Trabum, correspondem a este ncleo. Nas proximidades do Rio de Ota podemos diferenciar outro ncleo, os locais de implantao so o Castro de Ota, Serra de Ota, Bairro, Ota, Vale das Lajes, Quinta do Esprito Santo, Canados, Quinta da Moita, e a Caverna da Moura; este ltimo o nico local de indubitvel funo funerria. O terceiro ncleo est localizado nas proximidades do Ribeiro das Ceroulas, e composto pelos achados de Paiol, Arneiro, Merceana, Aldeia Galega da Merceana, e Aldeia Gavinha. Todas as informaes sobre este ncleo so avulsas, provm de alguns materiais arqueolgicos de provenincia desconhecida, conhecemos somente as suas localizaes toponmicas. Junto ao Rio de Alenquer, e povoao de mesmo nome, h outro ncleo de implantao calcoltica composto por vrios locais prximos, que formam uma mancha densa de assentamentos arqueolgicos: Quinta do Chaco, Quinta do Bravo, Paredes, Cruz de Bufo, guas, Castelo de Alenquer, Porta da Conceio, Camarnal, Alto do Pedregal, Quinta da Boavista, e Vale de Junco. A Cruz de Bufo e o Alto do Pedregal seriam, certamente, locais com funo funerria. O Vale de Junco, que paradoxalmente um stio de altura, teria provavelmente uma funo

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habitacional11. O derradeiro ncleo que podemos nomear localiza-se nas proximidades do Rio Grande da Pipa, e do Ribeiro de Santana da Carnota: os locais identificados so o Carregado, Quinta da Granja, Alto da Pea, Antas, Santana da Carnota, Castro da Pedra de Ouro, Castro das Curvaceiras/Amaral, e Gruta de Refugidos. Como j tivemos ocasio de referir num trabalho anterior, consideramos que o Castro das Curvaceiras e o Castro do Amaral so um mesmo local arqueolgico, situado num imenso planalto (COSTA; 2006: 15-16), e no, dois locais perfeitamente diferenciados, opinio comum a Ernni Barbosa (BARBOSA; 1955: 115). A Gruta de Refugidos foi um local de inumao, de onde foram exumados diversos restos osteolgicos (ATHAYDE; 1933), assim como abundante cermica de estilo campaniforme. de notar a localizao deste importante local funerrio, que se situa no centro, e mais ou menos equidistante, aos trs castros conhecidos da zona: Castro das Curvaceiras/Amaral, Castro da Pedra de Ouro, e Alto da Pea. Quando comparamos os stios de presena humana na Pr-Histria, com os da Pr-Histria Recente, podemos sintetizar que, neste ltimo perodo se processou uma transferncia da ocupao para locais mais interiores (mais longe do Rio Tejo, e mais para o interior do concelho), privilegiando, sobretudo, os locais de altura com um bom domnio visual da paisagem. Tornando-se estes locais, por vezes, marcos incontornveis de referncia visual (JORGE, 2003a: 15) mesmo que, as suas muralhas possam ser nalguns casos, como por exemplo no castro da Pedra do Ouro, quase ornamentais [Victor S. Gonalves in (MEDINA; 2004: 384)]. Decidimos apresentar os locais com vestgios de ocupao da Proto-Histria no seu conjunto, no diferenciando os stios da Idade do Bronze dos stios da Idade do Ferro, como se observa no mapa 4. Mas esta diferenciao foi efectuada, quando possvel, no quadro 3. Constatamos que a ocupao deste perodo apresenta realidades diversas; por um lado locais de habitat e de enterramento que j foram ocupados durante o Calcoltico, e que tambm tm ocupao durante a proto-histria; estes locais apresentam materiais que podem ser atribudos aos dois perodos cronolgicos, como por exemplo a cermica de estilo campaniforme, sendo por isso, referenciados como tendo uma ocupao dos dois perodos. Comparando o mapa 3 com o mapa 4 fcil entender quais os locais onde se verifica esta realidade. de notar que no Castro de Ota, onde a presena de vestgios do Calcoltico bastante abundante, tambm se verifica uma forte presena de artefactos do Bronze Final (PEREIRA; 1969), que se manifesta pelos seus machados em liga de bronze; e tambm pela presena de um pequeno ponderal, que pode ter uma cronologia do Bronze Final/Ferro Inicial (VILAA; 2003). Mas tambm constatamos a existncia de artefactos da Idade do Bronze em locais onde no conhecemos testemunhos de uma presena humana anterior,

11 Este stio foi detectado em prospeco e deveria ser convenientemente estudado. Visto ns termos efectuado, por escassez de tempo disponvel, s uma anlise de cariz superficial.20

como so os casos do Castelo do Salvador e do Cabeo da Raposa, ambos os stios localizados fora do territrio concelhio. Tambm temos alguns casos de achados aparentemente descontextualizados, e que so normalmente chamados depsitos de bronze (VILAA; 2007), como por exemplo nos Casais das Pedreiras, localidade situada na aba sul da Serra do Montejunto, onde foram encontrados dois machados do Bronze Final (MACWHITE; 1951), um de alvado, e outro de talo; na Quinta da Escota (SILVA; 1880), um machado de alvado; e no Moinho do Raposo (JALHAY; 1943-44), um punhal tipo Porto de Ms. Pensamos ter localizado de forma conveniente estes dois ltimos stios num trabalho anterior 12 (COSTA; 2006). Em relao Idade do Ferro a quantidade de stios identificados bastante reduzida: o Castro de Ota e o seu pequeno ponderal (j referido); o Castro da Pedra de Ouro, onde foram identificadas algumas cermicas que so provavelmente deste perodo (CARDOSO; 1999: 63), e que so provenientes de uma possvel reutilizao deste local como necrpole; o Castro das Curvaceiras/Amaral, onde se encontrou uma moeda Hispano-Cartaginesa (FARIA; 1987); a Berbelita13, local onde foram encontrados durante uma surriba alguns materiais que possivelmente pertenciam a uma necrpole de incinerao (MELO et al.; vol. 1, 1987: 119), e onde ainda possvel observar um recinto atravessado por uma via, como se pode ver no mapa 30 e 31; e a Serra de Ripas, local de onde foi exumada uma xorca, que actualmente se encontra no Museu de Alenquer (GOMES et al.; 1983). Recentemente conseguimos localizar14 este achado prximo da localidade das Eiras, porque na publicao original no foi disponibilizada a sua localizao. Na localidade de Casais da Marmeleira foi encontrada h alguns anos uma pequena estatueta, por informaes a que tivemos acesso, esta poder ser da II Idade do Ferro, mas infelizmente no pudemos confirmar esta informao indita 15. A presena romana no concelho de Alenquer foi bastante efectiva, como testemunham os inmeros achados nesta regio. No quadro 4 apresentamos uma listagem exaustiva desses testemunhos, e no mapa 5 podemos observar a sua distribuio espacial. Mas, neste texto, somente iremos realar alguns dados que nos parecem mais importantes. Seria necessrio fazer uma abordagem cronolgica da presena romana na rea do concelho para melhor percebermos a sua evoluo, mas os dados disponveis no o permitem fazer. Mesmo sendo assim, ainda possvel destacar alguns dados provenientes da presena republicana no territrio. No extremo sul do concelho, j no territrio de Vila Franca de Xira, existe o povoado do Monte dos Castelinhos, que12 At ao ano de 2006 a sua localizao era desconhecida. 13 Agradecemos a colaborao do professor Antnio Rodrigues Guapo, que muito gentilmente disponibilizou todas as informaes que dispunha sobre o stio da Berbelita. 14 Agradecemos a gentileza do Sr. Carrio, morador na localidade das Eiras, que se prontificou a nos mostrar o local onde foi encontrada a xorca. 15 Apesar das diligncias que efectumos, o seu actual proprietrio recusou-se a nos mostrar a estatueta em causa, que pertenceria a seu falecido pai, negando a sua existncia. Mas, por informaes a que tivemos acesso, poder tratar-se de uma pequena estatueta de origem fencia.21

tem uma cronologia provvel dos sculos I a.C./I d. C. (PIMENTA et al.; 2008: 26-37). Tambm foram encontrados dois tesouros de cronologia republicana, um no Pinhal do Alvarinho (SAA; 1960), e o outro nos Casais dos Cabeos (VIEGAS et al.; 1984), ambos dos sculos II/I a.C., e possivelmente relacionados com as guerras dos finais da repblica romana. Os vestgios de perodo imperial so mais vastos, e de uma forma geral, foram encontrados um pouco por todo o territrio concelhio, mas tambm em concelhos limtrofes. H que destacar o aglomerado populacional que se encontrava na actual Paredes-Alenquer, este local j apresentava algumas estruturas de cariz urbano, que atestam a civilidade das populaes que a ento viviam16. A partir do fim do imprio romano os materiais arqueolgicos so raros, num documento indito de H. Cabao17 existe uma informao sobre a existncia de uma pvoa visigtica na Quinta do Falco (ver quadro 5); esta informao importante, mas carece de uma investigao aprofundada que a possa confirmar. Tambm o Santurio Mariano nos informa de um culto cristo praticado por uns eremitas nos incios do sculo VIII, no santurio da Nossa Senhora da Ameixoeira. Segundo o autor deste documento este culto efectuava-se num local onde estava a impresso da planta do seu sagrado p (de Nossa Senhora) estampada em uma pedra (MELO et al.; 1987, vol 2: 165-166). Com esta informao, ficamos a saber que o culto cristo no Santurio da Nossa Senhora da Ameixoeira j se praticava pelo menos desde o ano 700 d. C., mas no menos importante, a referncia a uma gravura rupestre neste local, que inferimos a partir da lenda da impresso do p de nossa senhora. Este tipo de lendas surge normalmente associada a gravuras rupestres - decorrentes de cultos pr-cristos (ver quadro 6). Por isso, este local de culto deveria ser muito anterior chegada do cristianismo. No mapa 6 podemos observar a implantao espacial destes locais, assim como dos que descrevemos de seguida. Sobre a invaso islmica e a consequente presena rabe e berbere, os dados que dispomos actualmente so bastante reduzidos, e no reflectem os mais de quatrocentos anos de predomnio dos seguidores de Maom neste territrio. Mas, mesmo assim, existem ainda alguns dados que podemos reportar a este perodo. O topnimo Mossorovia que parece indicar um stio anteriormente habitado por Morabes. Uma cermica proveniente do Castelo de Alenquer, nomeadamente uma taa exposta no Museu Municipal de Alenquer18, decorada a verde e mangans, mas esta, apesar de apresentar um mtodo decorativo semelhante ao utilizado em perodo islmico, dever ser posterior. Tambm a informao, dada por Guilherme Henriques que, a Igreja de Santo Estvo teria sido erigida por D. Afonso Henriques sobre uma mesquita de mouros (HENRIQUES; 1902: 87). Esta igreja foi destruda em finais do sculo XIX para dar lugar a uma escola de instruo primria (onde16 Assunto que ser convenientemente desenvolvido no captulo 10. 17 Um mapa, com a localizao de vrios stios arqueolgicos, que se encontra no Museu Municipal de Alenquer. 18 Tem, neste museu, o nmero de inventrio: 1713.22

se situa actualmente o Museu Municipal de Alenquer Hiplito Cabao), mas, o recinto que delimita o actual museu, e que poder corresponder s paredes exteriores da igreja, apresenta uma forma trapezoidal, com a parede do lado sul maior que a parede do lado norte19, podendo, desta forma, corresponder parede sul de uma mesquita (que est virada para Meca) onde os muulmanos instalavam normalmente o mirab. Assim, no nos parece especulativa a informao dada por G. Henriques, porque a morfologia do recinto do museu comprova a possibilidade de a igreja de Santo Estvo ter sido construda sobre uma mesquita. Sobre este perodo h tambm a referir o aparecimento de umas moedas rabes no castro de Ota, mas no conhecemos o seu contexto. Tambm o topnimo Meca nos leva a inferir a existncia de um local de culto islmico, mas nenhum vestgio material comprova esta especulao. Estes so os poucos dados que actualmente podemos disponibilizar sobre a presena da brilhante civilizao islmica no territrio alenquerense, e que podem reflectir o verdadeiro esprito das cruzadas - a intolerncia religiosa (MAALOUF; 2006), e a tentativa de aniquilao do passado islmico, atravs da destruio dos seus vestgios materiais. Os perodos que seguem so melhor conhecidos e seguem - de forma geral, a evoluo da histria da nao fundada por D. Afonso Henriques no sculo XII. Alenquer foi conquistada aos mouros no ano de 1148 por D. Afonso Henriques e as tropas em cruzada que o acompanhavam (RIBEIRO, 1936). Neste perodo h que realar a existncia de trs concelhos na regio: o de Alenquer, o de Vila Verde dos Francos, e o de Aldeia Galega da Merceana, que deviam corresponder a trs territrios administrativos distintos. Alguns anos aps a reconquista, o territrio de Alenquer foi doado pelo Rei D. Sancho I a sua filha Dona Sancha. Foi esta infanta que deu a primeira carta de foral a Alenquer em 1212. A carta de foral um documento que essencialmente regula os conflitos de interesse entre a donatria do territrio e o poder concelhio anteriormente estabelecido, normalizando, tambm, a regular cobrana de impostos para o sustento do poder senhorial. A partilha de poderes entre poder concelhio j instalado, e o novo poder de cariz senhorial, no ter sido pacfica e certamente ter provocado atritos. Estas comunidades, onde existia partilha de poderes, apresentam caractersticas particulares; so o que Jos Mattoso chama de comunidades hbridas que so resultantes de uma tentativa de conciliao do regime senhorial com a autonomia municipal, mesmo sob a chefia de senhorios privados (MATTOSO; 2001: 84). Neste perodo havia a tendncia geral a manter privilgios anteriormente adquiridos, os poderes locais eram encarados como comunidades naturais, e dificilmente lhe eram retiradas as suas prerrogativas. Por mais estranha que fosse a diviso administrativa herdada da histria, ela permaneceria quase inviolvel na maior parte dos casos19 A parede sul tem 17,30 metros de comprimento, e a norte 16 metros.23

[Nuno Gonalo Monteiro in (OLIVEIRA; 1996: 27)]. Mas a questo da partilha do poder que se verificou em Alenquer no se deve ter passado no concelho de Aldeia Galega da Merceana: este concelho recebeu a sua primeira carta de foral no ano de 1305, doado pelo Rei D. Dinis; pode ter mantido independente o seu poder concelhio (no temos dados que nos indiquem o contrrio). Mas a situao em Vila Verde dos Francos teve desenvolvimentos diferentes, este concelho teve um primeiro foral dado pelo seu primeiro donatrio D. Alardo, um cruzado franco, a quem este territrio foi doado, pelos seus prstimos nas armas, ao lutar na reconquista ao lado de D. Afonso Henriques. Este cruzado fundou um pequeno castelo senhorial a sul da actual povoao (ver quadro 7, e tambm o mapa 7). A atribuio por D. Alardo deste foral a Vila Verde dos Francos pode significar a regularizao de uma situao j existente, quero dizer, a regulamentao de uma situao anterior. Este local poderia j ser habitado antes da chegada dos francos, no sendo, por isso, uma fundao de raiz20. Esta situao poderia ser melhor esclarecida se conhecssemos o texto do primeiro foral, mas este no conhecido. Este primeiro documento foi posteriormente confirmado pelo Rei D. Afonso II que doou uma nova carta de foral no ano de 1217. A histria de Alenquer a partir deste perodo melhor conhecida. Pelos textos temos a percepo que o territrio comea a ser ocupado de forma mais intensa - estes referem diversas localidades - como podemos constatar ao consultar os quadros que esto em anexo. No sabemos certamente as datas de fundao destas localidades, que nos aparecem pela primeira vez nos textos, sabemos somente que essas localidades tero uma fundao anterior data em que pela primeira vez so referidas num documento, os textos do-nos assim uma datao ante quem para as localidades. Ao consultarmos os quadros 8, 9, 10, e 11, que no so um levantamento exaustivo do povoamento do concelho, mas s o levantamento que nos foi possvel efectuar, temos uma noo da intensa ocupao do territrio a partir da reconquista, e at finais da poca Moderna. Mas temos de ter a noo que este incremento de povoamento medieval e moderno pode ser enganoso, porque no conhecemos a realidade anterior de ocupao do territrio visto que para as datas anteriores reconquista os dados so bastante reduzidos e no nos ajudam a perceber esta problemtica, mas sem dvida, que as condies anteriores reconquista certamente influenciaram bastante o que se lhe seguiu (SILBERT; 1978: 91). Para a ocupao o territrio nos sculos XV/XVI utilizamos fundamentalmente a obra de Joo Pedro Ferro (FERRO; 1996: 30-35) e os topnimos nela referidos, como se pode ver no quadro 18 e no mapa 11. Existem mais dois quadros que tm os dados mais recentes sobre a ocupao do territrio. O

20 Na alnea 10.2 iremos proceder a uma anlise morfolgica deste territrio, de forma a tentarmos esclarecer convenientemente esta questo.24

quadro 12 apresenta a sntese da ocupao territorial no sculo XVIII, e a sua materializao espacial est expressa no mapa 13. Os locais que foram ocupados somente no sculo XIX e XX esto representados no quadro 13 e no mapa 14. A histria deste territrio tambm pode ser contada por alguns factos importantes. Durante a crise dinstica de 1383-85, o alcaide de Alenquer tomou partido contra o mestre de Aviz - futuro rei de Portugal - com consequncias graves para a Vila de Alenquer; o mestre transportou a sua artilharia desde Torres Vedras, durante o Inverno, e aps um longo cerco ocupou o castelo de Alenquer e como retaliao pela deslealdade do alcaide destruiu parte das muralhas deste burgo. Mas a destruio das muralhas no se confinou ao sculo XIV, pois j em pleno sculo XIX uma parte do pano das muralhas foi deitado abaixo para que melhor se pudesse construir a estrada entre a porta da Conceio e a praa do municpio (HENRIQUES; 1902: 37). Como se verifica, a destruio das muralhas no foi um exclusivo de uma mente medieval pragmtica, mas tambm, um produto dos esforos progressistas emanados dos ilustres espritos liberais! A histria de Alenquer tambm se poderia fazer por alguns dos seus naturais ilustres, mas vou somente referir a ilustre personalidade de Damio de Goes, protegido do rei, humanista, amigo de Erasmo de Roterdo, conhecido de Martinho Lutero, e vtima da inquisio!

3.2. As fontes histricas.

Para a elaborao da descrio histrica utilizmos vrias fontes; mas essencialmente empregmos obras de histria local, optando, conscientemente, por no consultar as fontes primrias. As fontes primrias colocar-nos-iam diversos problemas, nomeadamente a nossa ignorncia na cincia Paleogrfica - que no nos permitiria transcrever correctamente os textos antigos - assim recorremos aos trabalhos j publicados sobre este territrio. Os trabalhos existentes no so muitos, existem alguns de carcter geral que acabam por se referir tambm ao territrio de Alenquer, e outros de histria local, que como bvio s se debruam sobre este territrio. Os textos no tm s ideias, factos polticos, etc. Estes tambm contm informaes importantes de ndole geogrfica, como por exemplo nomes de lugares, casais, quintas, ermidas, pontes, estradas, produes agrcolas, recursos naturais, e outro tipo de informaes que nos permitem compilar um quadro geogrfico possvel do territrio. Neste mbito a obra Alenquer 1758 - O Actual Concelho nas Memrias Paroquiais (MARTINS; 2008) revela-se um documento imprescindvel para o conhecimento da geografia do sculo XVIII do Concelho de Alenquer. Mas, os textos no so suficientes para se ter um conhecimento profundo do territrio em25

estudo. Para o objectivo que nos propomos, temos de ter um conhecimento profundo sobre as paisagens actuais, de forma a podermos perceber as paisagens antigas; temos de ter em conta que, muitas vezes, o discurso sobre o espao geogrfico feito a partir de determinados pressupostos, sejam eles de ndole econmica, ideolgica, ou intelectual, que no se coadunam com a realidade observada no terreno, e sendo assim, temos de manter as devidas reservas, e efectuar a crtica necessria ao ler os discursos sobre as paisagens antigas.

3.3. As fontes arqueolgicas.

As fontes arqueolgicas so bastante abundantes para determinados perodos histricos, mas para outros so reduzidas e sem dvida insuficientes. Quando estudamos a realidade arqueolgica de uma qualquer regio, ou at de um stio arqueolgico, temos de ter a conscincia que os dados que conhecemos so sempre redutores em relao realidade do tempo que estudamos, e que nunca conseguiremos conhecer totalmente o passado - s parcialmente. Dito de outra forma, o trabalho dos investigadores do passado (independentemente da sua rea de formao) s revela uma parte da realidade existente num determinado tempo histrico, e essa revelao est condicionada pela quantidade, e pela qualidade, dos dados conhecidos. O Arquelogo tem de ter conscincia que a escavao de um local arqueolgico tambm lhe d sempre uma viso parcial desse mesmo local arqueolgico. Inevitavelmente o que o arquelogo escava um stio abandonado, e o momento que o arquelogo capta na escavao um momento de abandono do local arqueolgico, raramente um momento de plena actividade humana nesse local. Neste mbito, qualquer reconstituio do passado sempre parcial, e crer que podemos ter uma viso intacta do passado ilusrio. a essa iluso que por vezes alguns arquelogos tm que Laurent Olivier chama sndrome de Pompeia [Laurent Olivier in (WATTEAUX; 2009: 550)]. Este sndrome pressupe que os locais arqueolgicos no foram ordinariamente abandonados paulatinamente, mas sim, que no momento da escavao, esto tal e qual como estavam no seu perodo de funcionamento pleno - somente cobertos por uma (ou vrias) camada de sedimentos. Ora, como ns arquelogos bem sabemos, o estado intacto em que hoje se pode encontrar e escavar as runas de Pompeia, ou de Herculano, cidades soterradas pelas cinzas e pela lava do Vesvio, so excepes, e no a regra das escavaes arqueolgicas! Uma observao sobre uma longa ocupao de um espao foi efectuada por Jean-Franois BERGER e Ccile JUNG [BERGER, JUNG; in (CHOUQUER; 2007: 62)] em Pierrelatte, les Malones (Drme) (ver figura 6). Este desenho tem informaes pertinentes para a questo da validade das fontes arqueolgicas; podemos observar uma longa srie de unidades estratigrficas26

(HARRIS; 1991) que se desenvolvem umas sobres as outras, e que correspondem a cerca de 2000 anos de histria deste espao, um fosso inicial foi vrias vezes colmatado, e reaberto, mesmo nas ocasies em que estava completamente soterrado por uma camada que o cobria totalmente, e o deixava oculto. Este corte estratigrfico mostra-nos um exemplo de transmisso (com a mesma funo) e transformao (com uma funo diferente) isotpica 21 de um antigo fosso, este foi colmatado vrias vezes, mas transmitiu a sua herana ao parcelrio actual. uma situao de transmisso da informao antiga (representada pelas incises mais profundas) superfcie do solo pela transformao incessante desta poro de espao ao longo de 2000 anos. Esta transmisso explica que a localizao e a orientao dos fossos antigos so actualmente os dos limites agrrios arborizados (CHOUQUER; 2007: 62). Grard Chouquer ao referir-se ao pensamento naturalista estratificado, chamou a esta sequncia um funcionamento policclico fundado sobre um ciclo de criao-selagem-reactivao, vrias vezes repetido (CHOUQUER; 2000: 166). Mas este autor prefere analisar esta sequncia no espao. Este exemplo importante para que se perceba a existncia de um duplo movimento de transmisso e de transformao das formas, que no obedece ao modelo tradicional de analisar as paisagens - como um palimpsesto; mas pelo contrrio, como um processo dinmico e complexo! H outra questo pertinente que se reporta s investigaes arqueolgicas, estas estudam normalmente os locais, mas sem fazer uma conveniente ligao entre eles. Os locais arqueolgicos aparecem isolados uns dos outros, e sem ligao entre si. Basta observar os nossos primeiros mapas presentes neste trabalho 22, em que se colocou os assentamentos arqueolgicos em grupos, correspondendo esses grupos a perodos cronolgicos distintos, para que desta forma se tenha uma leitura dos assentamentos num tempo e num lugar determinados. Os stios aparecem como pontos isolados na paisagem, sem ligao com os outros locais contemporneos. Percebe-se facilmente que estes mapas no podero corresponder a uma efectiva realidade espacial antiga - e no me estou a referir ausncia, nesses mapas, dos elementos naturais desse tempo antigo; que seriam sem dvida muito importantes e necessrios. Mas que os locais coevos poderiam ter um funcionamento em rede, e no deveriam permanecer como pontos isolados dos demais. Este tipo de cartas arqueolgicas, apesar de representarem um determinismo, e um fixismo, e serem provenientes da forma linear de os arquelogos encararem o tempo (CHOUQUER; 2007: 279), so ainda assim uma boa forma de iniciar um trabalho de investigao, porque permitem georeferenciar as ocorrncias arqueolgicas no espao geogrfico. Representam a preponderncia dada ao stio em detrimento do espao (ROBERT; 2003b: 54). No so, desta forma, o ponto de chegada de uma investigao, mas

21 No mesmo alinhamento vertical. 22 Estou a referir os mapas desde o nmero 2, at ao nmero 14.27

sim o ponto de partida.

3.4. Concluses sobre as fontes disponveis.

Como as fontes que se utilizam normalmente na reconstituio do passado so redutoras em relao realidade do tempo, pretendemos trabalhar com outras fontes que nos possam auxiliar na reconstituio desse passado. Mas, tendo a plena conscincia que mesmo trabalhando com novos documentos, que nos ajudem a completar a informao sobre esse passado, o seu conhecimento ser sempre parcial.

28

4. As novas fontes: uma abordagem diferente da documentao.No campo da investigao cientfica devemos considerar toda a documentao existente como fontes para essa prpria investigao. G. Chouquer prope mesmo que se substitua o conceito de fonte, pelo conceito de documento (CHOUQUER; 2007: 217). E esta uma questo primordial para este autor, porque quando consideramos determinada fonte para o estudo de determinada realidade, estamos frequentemente a reduzir consideravelmente a sua amplitude informativa, ou at a amplia-la para l do seu valor informativo. Sobre esta questo temos a opinio de Magali Watteaux: um documento no com efeito uma fonte em si mas pode ser uma fonte para um dado problema em funo da sua natureza, da sua escala, dos seus objectivos da sua data, etc. (WATTEAUX; 2009: 149). Nenhuma sociedade produziu documentao com o intuito que esta se tornasse fonte para o conhecimento, mas somente criaram documentao, para suprir as suas necessidades de vria ordem. O que dizer por exemplo de um documento ( actual ou antigo) como uma carta cadastral: este documento uma fonte para o conhecimento histrico. Mas temos de ter tambm em conta, que as formas actualmente visveis na paisagem, e que correspondam efectivamente s divises parcelrias representadas nesse mesmo cadastro no so tambm estas formas, uma fonte para o conhecimento histrico. E qual destas duas representa melhor a realidade do terreno, a representao cadastral, ou a efectiva diviso parcelria que pode ser observada por uma fotografia area? E estas podem no ser coincidentes, um documento cadastral pode no estar de acordo com a realidade do terreno. Como interpretar duas representaes da mesma realidade geogrfica, que em certos pormenores so divergentes? Certamente o cruzamento de dados a melhor forma de dar resposta questo! Esta ltima observao leva-nos a uma outra. Devemos considerar as realidades observadas nas formas das paisagens, como fontes, ou documentos para o conhecimento. E este um problema mais vasto que tem a ver com a compartimentao disciplinar que se assiste nos nossos dias. Tradicionalmente compete histria estudar os textos, arqueologia os dados presentes no subsolo e os artefactos humanos, e geografia as formas presentes na paisagem. Mas ser essa compartimentao dos documentos pelas disciplinas especificamente competentes uma forma correcta de interpretar os dados existentes? No ser prefervel estudar todos os documentos de forma conjunta, cruzando os diversos dados neles presentes, de forma a podermos ter uma perspectiva mais completa possvel da realidade existente? Como metodologia para o nosso trabalho, utilizamos todos os documentos planimtricos (mapas, cadastros, fotografias areas) que conhecemos, e cruzamos os dados neles presentes com29

todo o tipo de documentao que conseguimos encontrar.

4.1. As cartas.

Para a elaborao deste trabalho efectumos uma pesquisa exaustiva da cartografia antiga. Foi na Biblioteca Nacional de Portugal, mais especificamente no seu stio da internet (Biblioteca Nacional Digital), que encontrmos uma extensa srie de mapas antigos - que consultmos. A cartografia antiga tem grandes lacunas tcnicas, e a maior parte dos mapas analisados no tiveram utilidade prtica para o estudo da rede viria. Desde logo, porque muitos dos mapas no tm a preciso geogrfica necessria para serem utilizados num trabalho deste tipo. Os principais problemas dos mapas antigos so as distncias e as orientaes - que no so as correctas, esto deformados em relao realidade geogrfica, e assim no servem para os objectivos propostos. Mas no abdicmos de os consultar, e vimos uma enorme quantidade de mapas, contanto que: eles nos permitiriam conhecer os topnimos mais importantes, ou aqueles situados nas estradas mais importantes, no momento da sua elaborao. Tendo em conta que os topnimos referidos nos mapas so anteriores elaborao dos mesmos, e que os mapas contm, no s os topnimos mais importantes, mas tambm aqueles que se situavam ao longo dos itinerrios mais importantes, porque a elaborao dos prprios mapas se deveria efectuar essencialmente de observaes efectuadas ao longo de itinerrios (DIAS; 2006: 5); optmos assim, pela anlise toponmica destes mas esta revelou-se difcil, essencialmente pela grafia utilizada nas obras, que dificilmente conseguimos decifrar. Como soluo utilizmos uma leitura toponmica j efectuada (ver figura 1), a partir do mapa que considerado o mais antigo de Portugal - do ano de 1561 (FERREIRA, et al.; 1956: 54-61), e aplicmos definitivamente esta anlise toponmica como a primeira vlida para o trabalho. Para a anlise toponmica tambm foi utilizado um mapa de 1758, o Mappa de Portugal de Joo Baptista de Castro (CASTRO; 1758). Mas este no um tradicional mapa grfico, mas sim um mapa descritivo efectuado com tabelas, uma forma diferente e original de fazer uma descrio cartogrfica, mas que no trouxe informaes relevantes. Mas pudemos utilizar outros mapas posteriores, que j nos deram informaes vlidas sobre a rede viria. Estou a referir-me aos mapas identificados no suporte cartogrfico com os nmeros 1 e 2, e a partir dos quais elabormos os nossos mapas 20 e 69. Estes dois mapas so os primeiros (na perspectiva cronolgica) que nos do informaes verdadeiramente vlidas sobre a rede viria. O primeiro foi elaborado em 1762, e o segundo em 1808, ambos tm j cartografadas as vias mais importantes. Mas tambm estes se revelaram disformes em relao realidade geogrfica, apesar30

de, aparentemente, terem sido elaborados com os mtodos cientficos adequados; quando os tentmos colocar numa base georeferenciada, o programa ArcGis, estes ficaram deformados, o que atesta a sua mal formao de base, e a impossibilidade de os colocar numa base georeferenciada, da termos optado por os colocar ao lado da documentao georeferenciada (mapas 20, e 69), para efectuarmos uma mera comparao visual. Alguns dos trabalhos de Maria Helena Dias foram de grande utilidade para o nosso estudo, apresenta-nos uma srie de mapas antigos, e imediatamente anteriores s invases francesas (DIAS; 2005 e DIAS; 2007), que representam a rede viria moderna e possibilitam outro entendimento sobre a rede viria antiga. Mas tambm nos recorremos de cartografia mais recente, nomeadamente as cartas militares na escala 1/25 000, que permitem uma leitura pormenorizada do terreno. E tambm a uma srie de cartografia temtica, que pode ser consultada no suporte cartogrfico.

4.2. As fotografias areas.

Utilizmos as fotografias areas como documentos de revelao do espao geogrfico. A Cmara Municipal de Alenquer cedeu-nos a cobertura area fotogrfica de todo o concelho, em formato TIFF: esta cobertura fotogrfica originria de um voo recente, j do sculo XXI, mas, mesmo assim, foi uma importante ferramenta de trabalho. Tambm utilizmos as fotografias provenientes de alguns stios da internet, que as disponibilizam, como: o Google Earth, o Live Maps, etc. O acesso a este tipo de fotografias est actualmente bastante facilitado pelos portais digitais. Permite-nos um acesso livre e rpido a imagens de todo o planeta, e estas, de uma forma geral, apresentam uma qualidade bastante satisfatria. Os portais permitem a visualizao de dados geogrficos de ndole diversa (com a utilizao da funo camadas), e a funo zoom possibilita uma viso detalhada do terreno. Estes portais tambm permitem a visualizao de fotografias mais antigas, para que se possa efectuar a comparao cronolgica das fotografias. Estes sites tambm permitem gravar imagens, para que as possamos utilizar como suporte digital em diversos programas informticos. As dificuldades que surgem muitas vezes para obter fotografias areas de boa qualidade, ou at de simples fotografias que muitas vezes tm uma qualidade limitada so superadas com a acessibilidade que nos proporcionam os portais digitais. Este um caminho de futuro na investigao cientfica. O acesso fcil a imagens de boa qualidade de todo o planeta, possibilitar num futuro bem prximo, como j possibilita na actualidade, a evoluo do conhecimento, tantos para os que se dedicam investigao de maneira profissional, como aos que o fazem de maneira estritamente amadora.31

Tambm solicitmos, junto do Instituto Geogrfico do Exrcito, fotografias areas referentes ao voo da Fora Area dos Estados Unidos da Amrica (USAF, voo n. 3), efectuado no ano de 1958, e que permitiam fazer uma anlise regressiva mais completa da paisagem em estudo. Esta documentao no nos chegou em tempo til e assim no foi utilizada. No obstante, a acessibilidade dos portais digitais e o conjunto de fotografias disponibilizadas pela Cmara Municipal de Alenquer, possibilitaram a execuo do trabalho.

4.3. As cartas cadastrais.

As cartas cadastrais tambm so uma importante ferramenta de trabalho, porque contm a diviso actual da propriedade rural e urbana e permitem perceber a diviso das propriedades mais facilmente, do que a partir das fotografias areas. Mas neste trabalho no utilizmos estes documentos, os nicos que nos foram fornecidos careciam de uma grelha de georeferenciada, tornando assim difcil o seu manuseamento, porque no fcil encontrar nestes documentos pontos comuns para os georeferenciar em SIG.

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5. A foto-interpretao.5.1 Deteco automtica.

A foto-interpretao consiste na interpretao das formas visveis nas fotografias areas. Este mtodo de trabalho um mtodo de deteco remota, mas no o nico. A deteco remota utiliza vrias ferramentas: a prospeco geofsica por radar, a interpretao de fotografias areas, a prospeco por satlite, etc. Estes mtodos so, j h algum tempo, utilizados por gegrafos, arquelogos, e profissionais de outras reas cientficas, na procura de metodologias diferentes das habituais em arqueologia, de forma que os resultados das investigaes tambm possam ser diferentes. A prospeco geofsica um dos mtodos de prospeco, e utiliza um geo-radar. Uma das prticas utilizadas a prospeco geomagntica, mtodo que consiste na medio da amplitude de determinado campo magntico, e na interpretao da carta geomagntica - documento derivado do processo e que apresenta as medies efectuadas, deve-se isolar as anomalias presentes neste documento, e compreender as paleoformas observadas, sejam elas de carcter antrpico ou no (SILVA et al.; 2007). Este mtodo apresenta custos menos elevados que a escavao arqueolgica, mas semelhana deste outro mtodo, os seus resultados no so completamente eficazes, havendo, por vezes, locais com ocupao antrpica que no so detectados como comprovou Sandrine Robert (ROBERT; 2003a: 291-320). A prospeco por satlite utiliza mtodos semelhantes foto-interpretao, mas no utiliza as simples fotografias areas a que normalmente temos acesso, mas sim, imagens por satlite. Estas imagens tm a capacidade de revelar espectros de luz muito superiores s fotografias, revelando assim, formas que as fotografias no nos possibilitam ver. Mas actualmente, o acesso a este tipo de imagens ainda algo restrito, o que dificulta a execuo de um trabalho j baseado nestes suportes de imagem. Tm-se desenvolvido recentemente outros mtodos da deteco automtica. Helena Rua props um mtodo de Deteco Automtica de Villae em Meio Rural no Portugal Romano (RUA; 2007), recorrendo aos sistemas de informao geogrfica (SIG). Este mtodo, que processa uma srie de variveis ambientais julgadas ideais para a implementao de villae, assim como a proximidade de vias romanas conhecidas, pretende determinar o potencial arqueolgico de uma regio para a implantao de exploraes rurais romanas, determinando os locais ptimos para o estabelecimento das villae. Pensamos que este mtodo tem as suas potencialidades. Mas temos uma ressalva a fazer, tendo em conta, que as variveis ambientais processadas so as conhecidas na33

actualidade, e que algumas vias romanas podem se encontrar sob as vias actuais (VION; 1989: 69); ser possvel que este mtodo revele somente um potencial arqueolgico romano, no revelar tambm o potencial arqueolgico desde o perodo romano at aos nossos dias? Porque efectivamente, os bons locais para a explorao rural no sero muito diferentes desde o perodo romano at actualidade!

5.2. Metodologias de foto-interpretao.

A foto-interpretao um dos mtodos de deteco remota que podemos utilizar. Este mtodo, j bastante antigo, consiste na captura, observao, e interpretao de fotografias areas, com o objectivo de identificar vestgios arqueolgicos; debutou nos incios do Sc. XX, e o resultado do desenvolvimento da aviao, e consequentemente da fotografia area. Aps a II Guerra Mundial, e resultado dos progressos tecnolgicos ento desenvolvidos, este mtodo teve um grande impulso - nomeadamente em Inglaterra; tendo havido tambm um grande incremento neste tipo de estudos em Frana, e em Itlia. Em Inglaterra a Royal Commission of Historical Monuments of England foi a instituio impulsionadora dos trabalhos. Foram pioneiros desta disciplina homens com Dr. Wilson, D. N. Riley, Roger Agache, e principalmente J. K. St-Joshep. Este ltimo captou mais de 400 000 fotografias durante a sua vida, e efectuou um trabalho meritrio na interpretao destas imagens. Tambm em Portugal estes mtodos j foram utilizados, algumas vezes, por alguns investigadores; o Doutor Manuel Calado da Universidade de Lisboa, o Doutor Jos Manuel Mascarenhas (MASCARENHAS; 1994) da Universidade de vora, e o Doutor Vasco Mantas (MANTAS; 1996a. e 1996b) da Universidade de Coimbra. Estes investigadores foram pioneiros da teledeteco em Portugal. Mas tambm h casos empricos, como o do Dr. Jos Roquette: este banqueiro encontrou fortuitamente a partir da observao em altitude um assentamento Prhistrico na sua Herdade dos Perdiges perto de Reguengos de Monsaraz. Os mtodos de foto-interpretao permitem ler, localizar e cartografar as formas visveis nas fotografias areas que tivermos acesso. A foto-interpretao recorre-se de fotografias de altitude verticais e/ou oblquas, e identifica formas fsseis 23 ou paleo-formas existentes no solo (CHOUQUER et al.; 1991: 209). Estas formas so visveis na paisagem como traos, e a arqueologia verifica posteriormente, atravs de sondagens arqueolgicas, se esses traos correspondem ou no a formas arqueolgicas (ROBERT; 2003b: 56). Independentemente de quais23 Forma fssil ser a maneira mais correcta de nomear os traos visveis por fotografia, devido ao seu carcter antigo.34

as estruturas que estejam soterradas, sejam habitaes, recintos de vria ordem, fossas, fossos, parcelrios, vias, etc., estas estruturas podem ser observadas por fotografia area, podem ser interpretadas e podem ser classificadas por sondagens de avaliao. As estruturas soterradas revelam-se superfcie - a partir da foto-interpretao, de vrias formas, como veremos de seguida. Na figura 4 est representada a linguagem dos traos em foto-interpretao. O aparecimento dos traos superfcie do solo, a partir da fotografia area, antes de tudo o resultado de reaces fsico-qumicas [DELTANG; 1998: 94 in (ROBERT; 2003: 297)]. Como se v no esquema, as estruturas soterradas provocam diferentes reaces superfcie do solo influindo na forma como a vegetao se desenvolve. Outro tipo de testemunhos superfcie do solo tambm so o resultado das estruturas soterradas. A humidade que se desenvolve junto s estruturas, e que marca o solo com tonalidades diferentes: a acumulao de humidade potencia uma tonalidade mais escura que o solo circundante. Mas para efectuar estes exerccios de foto-interpretao, tem de ser tido em conta a inclinao do terreno: esta relao topogrfica importante, porque as estruturas ao constiturem uma barreira ao sentido descendente da humidade, acumulam-na do lado de onde esta surge. Este factor significativo em foto-interpretao porque permite a visualizao das estruturas que se vem como traos no terreno, ao invs dos paleo-canais que apresentam formas difusas. Os traos das alteraes composio do terreno so provocados por estruturas que esto em desfragmentao, por causas naturais, ou por aco antrpica, por exemplo um arado; estas provocam uma tonalidade diferente no solo, porque a estrutura em desfragmentao de cor diferente do solo que a cobre e rodeia. Os traos de microrelevo que depois de serem cobertos pela sedimentao podem ser revelados a partir da fotografia, porque a superfcie do solo reflecte as suas formas, no obstante destas aparecerem de uma forma atenuada e algo difusa. Os traos de anomalias referem-se a relevos topogrficos que tambm potenciam uma diferente colorao do solo. E os traos de sobrevivncia referem-se a formas existentes superfcie, e que reflectem situaes herdadas na paisagem, testemunhos da sua antiguidade (PICARRETA et al.; 2000). Na foto-interpretao tambm devemos utilizar programas informticos especficos para o tratamento das fotografias, e algumas das ferramentas disponveis nestes programas de forma a realar determinadas ocorrncias das fotografias, que por vezes se encontram esbatidas, e por isso de difcil percepo. Anteriormente, os foto-intrpretes tinham de utilizar vrias combinaes de filmes fotogrficos e tempos de exposio desses filmes, para obterem vrias possibilidades de revelao da luz, atravs de cores e contrastes diferentes (BARISANO et al.; in BARISANO; 1988: 25-43). Actualmente, e recorrendo aos meios informticos disponveis (VVAA; 1998a), possvel obter vrias combinaes de revelao das fotos sobre o mesmo suporte fotogrfico; algumas35

funes24 permitem ver espectros de luz que no so captados pelo olho humano, mas que se tornam visveis ao aplicarmos funes que os transformam. A luz captada pelas fotografias revela formas que normalmente no poderamos percepcionar. Os documentos so observados a vrias escalas, recorrendo opo zoom dos programas informticos. As aerofotografias 25 so ampliadas para escalas maiores, com o objectivo de melhor lermos as formas nelas existentes, e consequentemente, termos uma maior