Reflectir a imagem

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Publication that brings together three documents that praise relics Portuguese jobs that become timeless works of excellence.

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// Reflectir a ImagemDesign de Diana Vila PoucaPublicação realizada no âmbito da disciplinaEstudos de Design na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto 1º Edição Junho 2011 Impressão Sempre Imagem Digital

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Helena Almeida, Negro Agudo/Sharp Black, Narrativa Fotográfica, 1981

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// Joana Ascenção

Entre movimento e narratividade: paradoxos da sequência fotográfica.

// Lúcia Marques

A contrução fotográfica da imagem da cidade:

A partir da Lisboa, cidade triste e alegre de Victor Palla e Costa Martins.

// Margarida Medeiros

Revisitar Olho de vidro – uma história da fotografia,

um breve comentário.

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Joana Ascensão

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No final da década de 80, Raymond Bellour escreve que a sequência fotográfica não é uma ideia clara, encontrando o seu lugar de eleição num tempo que retira a sua força da desagregação das especifici-dades, mesmo quando estas ainda são garantidas pelo afastamento entre as suas condições técnicas, como é o caso da fotografia e do cinema.

Vinte anos depois, ao afirmarmos que a sequên-cia fotográfica é uma figura paradoxal, na medida em que reintroduz a experiência da duração no re-gisto da imagem fixa e aproxima a fotografia do cine-ma, não podemos deixar de concordar com Bellour. Todavia, devemos acrescentar que, se a posição de destaque ocupada pela sequência fotográfica se prolonga até hoje, as origens da sua utilização em larga escala remontam aos anos 60, momento em que a fotografia é apropriada por campos como a performance e a arte conceptual.

Período conturbado em que se começa a questio-nar a especificidade dos meios e em que se assiste ao desenvolvimento de uma sensibilidade em tudo contrária ao paradigma do “instante decisivo” for-mulado por Henri Cartier-Bresson, a qual se traduz por uma tendência para a expansão da temporali-dade das obras, expressa, entre outras formas, no recurso à série e à sequência de imagens. Não obs-tante a multiplicidade de configurações assumidas pela sequência fotográfica, se as suas utilizações recentes desenvolvem em grande parte o legado taxinómico característico do século XIX, como o de-monstram os trabalhos de Christian Boltanski, e se se verifica uma revisitação esporádica do modelo histórico da crono fotografia, tem-se evidenciado um outro tipo de sequência, não tanto assente em princípios seriais ou de movimento, mas sobretudo em questões narrativas. Divisão que se tem reflec-tido em várias tipologias que analisam esta forma particular do fotográfico, entre as quais as elabo-radas por Philippe Dubois e por Perin Emel Yavuz.

// Entre movimento e

narratividade: paradoxos

da sequência fotográfica.

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Philippe Dubois, na sua procura das relações entre o cinema e a fotografia contemporânea, que o con-duziu à concepção da exposição L’effet-film, matières et formes du cinéma en photographie, distingue basicamente estes mesmos dois tipos de sequência: aquelas que lidam com a questão do movimento e aquelas que, sem relação directa com as diferentes fases do movimento.

Perin Emel Yavuz, por seu lado, descreve outros dois tipos de sequência que, embora englobem os descritos por Dubois, não os recobrem. O primeiro, que associará à monstration du temps, baseia-se no princípio serial e na exibição do fluxo temporal na sua duração, e consiste na sucessão ordenada de imagens com uma ligação muito forte entre si, captadas com intervalos mais ou menos regulares. Compreendendo as sequências de movimento apresenta-se, no entanto, como uma categoria mais abrangente. A segunda dessas formas, que Yavuz relacionará com a configuration du temps, assenta no desenvolvimento de uma lógica narrativa como princípio orientador da organização e montagem das imagens, que, por não estar subordinada a uma ordem predefinida, possibilita a criação de uma nova temporalidade. Embora a distinção entre as categorias propostas por Dubois radique na repre-sentação do movimento, e a divisão de Yavuz na representação do tempo, as duas tipologias são em parte coincidentes, pois ambos os autores opõem o que definem como formas elementares de repre-sentação do tempo e do movimento à construção narrativa.

Ultrapassando as diferenças entre as duas perspectivas, estas tipologias ajudar-nos-ão a pensar a pertinência da bipolarização da sequência fotográfica e a esclarecer algumas das suas caracterís-ticas essenciais, entre as quais as várias modalidades do seu relacionamento com o fílmico e com a ideia de filme. Se, por um lado, as sequências que reproduzem as fases sucessivas de um movimen-to, se inscrevem claramente no território onde se cruza a imagem fotográfica e o fotograma cinema-tográfico, incorporando a sua tensão, por outro lado, as sequências fotográficas, assentes não tanto no princípio do movimento mas sobretudo em questões narrativas, embora manifestem uma relação menos clara com o cinema, não deixam de revelar um explícito “efeito-filme”.

Desenho Habitado, Fotografia a preto e branco e colagem de fio de crina, 1977

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Mas enquanto nestas últimas o sentido se cons-trói pela aplicação do princípio da montagem à or-ganização das imagens que as compõem, a conexão entre as sequências de movimento e o cinema é tan-to mais evidenciada quanto maior a regularidade dos intervalos com que são captadas as suas imagens. Facto testemunhado pelas primeiras experiências científicas de registo do movimento em sequências de instantâneos equidistantes, desenvolvidas por Eadweard Muybridge e por Étienne-Jules Marey, que anteciparam o próprio cinematógrafo, sem contudo abandonarem a condição de conjuntos de imagens.

Se Marey recusa explicitamente a síntese das imagens registadas através da cronofotografia, pois não acredita que a ilusão do movimento possa acrescentar algo de benéfico a uma análise atenta das imagens isoladas, Muybridge, ao utilizar um zo-opraxinoscópio para animar as fotografias com que ilustrava as suas conferências sobre locomoção ani-mal, será aquele que mais se aproxima do cinema-tógrafo, sem contudo ultrapassar o que poderemos classificar como um “cinema fotográfico”. Mas, ob-servando mais detalhadamente o caso particular de Muybridge, são vários os aspectos que contrariam a visão estritamente científica e documental do pro-jecto associada à neutralidade e à equidistância das várias poses, pois, para além da frequente omissão de imagens pertencentes a uma sequência em vir-tude do seu menor interesse estético, nos seus últi-mos trabalhos questão do movimento parece surgir como um pretexto para a apresentação de vários temas com uma forte componente narrativa.

A tendência para a ficção e para a narrativização destes conjuntos de imagens, em que a definição de sequência de movimento parece assumir uma das suas formas mais puras e um grau mais elevado de identificação com o cinema, não apontará para o questionamento da divisão entre sequência de mo-vimento e sequência narrativa?

Interessa-nos de seguida abordar esta questão a partir do caso particular das séries e sequências fotográficas realizadas por Helena Almeida. Ima-gens que sugerem o registo de uma sucessão de movimentos, mas cujo objecto se distingue da re-presentação desse mesmo movimento.Sequências aparentemente cronofotográficas que se revelam longe da cronofotografia, apontando para uma im-bricação das duas tendências. O caso particular das sequências de helena almeida. Ao longo de mais de 40 anos Helena Almeida tem desenvolvido uma obra que experimenta incessantemente os limites dos

diferentes meios que envolve, sejam eles a pintura, o desenho, o vídeo ou a fotografia, na qual a auto--representação e a sequência fotográfica assumem um papel determinante.

Para além da utilização ocasional de imagens isoladas, a artista recorre, de forma sistemática, a conjuntos de imagens fotográficas que aparentam documentar momentos sequenciais de uma acção, em que deparamos invariavelmente com Helena a pintar, a desenhar ou a interagir com o espaço e com os objectos que a rodeiam. Dentro de mim (1998), sequência composta por dezoito fotografias em que o seu corpo roda em torno de si próprio, ou um trabalho sem título, realizado em 1999, em que a artista se representa em diferentes posições de corrida, são exemplos de séries com uma compo-nente cronofotográfica muito acentuada, na medida em que apreendemos em contínuo o movimento de um corpo que aparece e desaparece entre as várias imagens. Se o movimento e a sua aparente decom-posição parecem surgir como uma vertente essen-cial de uma obra onde domina a sequência fotográ-fica, esta indicia obedecer a um propósito distinto da representação desse mesmo movimento.

Enquanto na sequência de movimento, consi-derada em termos genéricos, o instante fotográfico corresponderá a uma fase qualquer do movimento que, por não ter de obedecer aos princípios de regu-laridade e de equidistância exigidos pelo cinema ou pela sequência cronofotográfica, poderá ser objecto de selecção posterior, nos trabalhos de Helena Al-meida deparamos com uma sucessão de instantes verdadeiramente privilegiados que correspondem à eleição de um conjunto de poses e à sua apresenta-ção em séries narrativas.

// Ao longo de mais de 40

anos Helena Almeida tem

desenvolvido uma obra que

experimenta incessantemente

os limites dos diferentes meios

que envolve.

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Sem título, Instalação (pormenor), 20 Fotos a preto e branco com pintura vermelha, 1995

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(1) Giorgio Agamben, “Notes sur le geste”, Moyens sans fins: Notes sur la politique, Paris, 1995(2) Definição de “síncope”, proposta por Louis Marin em De la représentation, Paris, 1993

Poses que, na sua aparente simplicidade, são cuida-dosamente esboçadas e preparadas pela artista, e que só pela sua exposição em sequência nos condu-zem a uma ilusão de movimento. Esta imobilidade de base é tanto mais paradoxal quanto maior a ins-tabilidade dos gestos que Helena Almeida auto-en-cena, como exemplificam as séries Voar (2001), em que o seu corpo, após um voo simulado, sucumbe à queda. E é tanto mais clara quanto maior o nível de elaboração cénica envolvido pelas suas obras, o que é particularmente evidente nas sequências que incluem a utilização de pigmento, pois a concretiza-ção de cada uma das imagens apresentadas em su-cessão exige um longo trabalho prévio associado à reconfiguração da disposição do pigmento com que a artista interage.

Tarefa invisível que só pode ser realizada à custa da dilatação dos intervalos que separam as várias fotografias. Mas se a expressividade e o poder de condensação destas séries decorrem em grande medida da força das imagens individuais que as compõem, estas só adquirem pleno sentido na to-talidade da sequência em que se inscrevem, pois cada fotografia não pode deixar de ser considerada como parte de um conjunto de poses fixas inseridas em construções ficcionais que se sucedem, citando e interrompendo o ritmo do cinema. Recorrendo a uma afirmação de Giorgio Agamben a propósito do projecto Mnemosyne de Aby Warburg, poderemos dizer que, no interior destas sequências, «chacune des images est envisagée moins comme une réalité autonome que comme photogramme» (1), embora não tanto no sentido da produção da impressão de movimento, mas devido à importância assumida pela contextualização e pela montagem.

Ao convocar a sequência como forma de conciliar a instantaneidade da fotografia com a continuidade do tempo para o desenvolvimento de uma história, Helena Almeida concebe verdadeiras micro-narra-tivas cujo sentido se deduz por montagem. Ficções manifestamente autobiográficas que não caem no auto-retrato, nem na teatralização de várias perso-nagens, mas na reafirmação da sua presença, parti-cipando assim de uma tradição fotográfica próxima da prática performativa, que incorpora a experiência subjectiva de quem a realiza.

Se toda a sequência fotográfica possui um ca-rácter elíptico e descontínuo ditado pelos intervalos entre as suas imagens, nestas sequências esses intervalos assumem um papel particularmente re-levante, pois insinuam-se ainda no interior de cada

uma das imagens que as compõem. Terceiro modo de identificação com o cinema, não já pela repre-sentação do movimento, ou pela montagem asso-ciada a questões de ordem narrativa, mas pelas características que aproximam cada uma destas imagens das propriedades do fotograma cinema-tográfico quando extraído da sequência em que se insere. Imagem por definição instável, atravessada por qualidades como o tremido, a mancha, o des-focado, ou um modo particularmente dinâmico de composição e de enquadramento.

Não obstante a natureza cinematográfica destes trabalhos, complementada por esta associação ao fotograma, não poderemos deixar de referir que He-lena Almeida, ao contrário de muitos artistas plás-ticos e fotógrafos que se aproximam da forma e do pensamento cinematográfico, não ultrapassa ver-dadeiramente a fronteira entre a sequência de ima-gens e o fílmico. Em 2006, quando a interrogámos sobre a sua relação com o cinema, Helena Almeida mencionou-nos o interesse que desde sempre votou às fotografias publicitárias expostas nos átrios dos cinemas, em virtude do seu carácter metonímico e poder de condensação.

Afirmação reveladora da sua clara preferência pela sequência fotográfica em relação ao cinema, através da qual procurará conciliar a expressividade e o poder de condensação do instantâneo com a ex-ploração das possibilidades narrativas da sucessão de imagens.

Na fronteira entre movimento e narratividade, as séries de Helena Almeida contradizem esta mesma divisão, apontando para a necessidade do abandono das categorias estáveis a favor de uma contamina-ção, que reproduz o estatuto paradoxal da própria sequência fotográfica. Estas são sequências pon-tuadas por grandes vazios que contradizem aquilo que aparenta repetir-se, fixando estados e postu-ras corporais cujos intervalos devemos preencher. Envolvem «une répétition qui serait l’intensification simultanée d’une présence et d’une absence» (2), revelando verdadeiras “histórias” cujo protagonis-ta é um corpo em metamorfose permanente que, cristalizando-se numa multiplicidade de poses fixas muito construídas, se oculta e se prolonga de modo intermitente no espaço.

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Voar, Série de quatro fotografias em tons de azul, (4x) 124x180cm, 2001

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Pintura Habitada, Acrílico sobre fotografiaa preto e branco, Coleção Módulo, 46x40cm, 1976

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Lúcia Marques

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(...) Outra vez te revejo,Cidade da minha infância pavorosamente perdida...Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui... (...) Lisboa e Tejo e tudo.Álvaro de Campos, Lisbon Revisited (1926)

Eis o excerto do poema que abre o projecto fotográ-fico publicado em 1959. Trinta anos depois do poema de Fernando Pessoa, a dupla de arquitectos-fotó-grafos Victor Palla (1922) e Costa Martins (1922-1996) começa a sua deambulação pela cidade de Lisboa, fotografando dia e noite, durante cerca de três anos, os diferentes quotidianos dos seus habitantes e transeuntes, procurando um registo pessoal e com-prometido dos seus espaços, cartografando pela luz uma urbanidade mais realista que pitoresca.

Seriam os primeiros honorários da produção ar-quitectónica inicial de Palla e Martins que financia-riam este mapeamento afectivo da cidade, tomando como mote um dos versos da Lisboa revisitada pelo heterónimo pessoano Álvaro de Campos, glosando uma Lisboa, cidade triste e alegre em imagens de grande cumplicidade com os seus actores, realça-das por um envolvimento autobiográfico assumido em cada imagem. Filho de um fotógrafo amador, Victor Palla (e Carmo) nasceu em Lisboa em 1922 e desde cedo que se iniciara na fotografia para ajudar o pai. Concluído o curso de arquitectura em meados dos anos 40, após frequência da Escola de Belas--Artes de Lisboa e de uma breve incursão na do Por-to, acaba por se fixar por alguns anos nesta última cidade, onde dirige a Galeria Portugália a partir de 1944. Foi, aliás, um dos principais organizadores das “Exposições Independentes”.

Mas foi nas “Exposições Gerais de Artes Plásti-cas”, que mostrou pela primeira vez as suas provas, entre 1946 e 1956, altura em que a inovadora abertu-ra à fotografia no certame é suspensa.

// A contrução fotográfica

da imagem da cidade:

A partir da Lisboa, cidade

triste e alegre de Victor

Palla e Costa Martins.

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Mas é a partir de 1956 que se dedica de um modo mais sistemático, com Costa Martins, ao projecto fotográfico em torno de Lisboa. Aliás, o projecto in-tegraria imagens ainda de finais dos anos 40, que ambos os autores haviam feito separadamente so-bre Lisboa e cuja coincidência de olhares viria pre-cisamente a motivar o projecto abraçado por ambos em 1956. Em 1979, Palla obteria uma Bolsa da Gul-benkian para estudar e fotografar “O Grafismo na Cidade”, concentrando-se, cerca de 20 anos depois, na dinâmica da paginação amplamente explorada no projecto colectivo com Costa Martins.

(Manuel) Costa Martins, também nascido em Lis-boa em 1922, e falecido em 1996, frequentara tam-bém o ensino superior das Belas-Artes em Lisboa e no Porto, e concluiria o curso de arquitectura só em 1948. Tornar-se-á logo depois funcionário público, nomeadamente na função de arquitecto-projectista para o Ministério das Obras Públicas, paralelamente a uma dedicação mais sistemática, a partir de 1956, ao projecto fotográfico sobre Lisboa, que entretanto iniciara com o seu colega e amigo Victor Palla.

Num país onde a fotografia se aninhava em re-gulamentos ditados pelos concursos dos Salões, e se hegemonizava através das actividades promovi-das pelo Grupo Câmara, pelo Fotoclube 6x6 e pela Associação Fotográfica do Porto, a presença dos ar-quitectos Francisco Keil Amaral e Victor Palla _ que foi também um dos organizadores das “Exposições Gerais” _, com fotografias, na viii Exposição Geral de Artes Plásticas (snba, 1954), reflectira um alarg mento fatidicamente pontual à fotografia, que logo terminaria na sua décima edição (1956), coincidindo com o arranque do projecto da Palla/ Martins em torno da capital lisboeta.

A EXPOSIÇÃO, LISBOA/ PORTO (1958)É em 1958 que estas imagens se dão a conhecer numa primeira selecção de Palla/Martins, exibindo--se numa montagem surpreendente de tão arrojada no seu desenho no espaço, quer na Galeria Diário de Notícias, em Lisboa, quer ainda na Divulgação, no Porto (actual Livraria Leitura), também no mesmo ano. Dispostas em sequência e perspectiva clara-mente referenciadas no cinema italiano de Fellini, Rosselini, ou até mesmo de Antonioni, estas foto-grafias propunham um percurso imagético que ne-gava a visão globalizante do plano e exponenciava a natureza subjectiva do fragmento, do editing. Era uma outra cidade aquela que então se mostrava, a

cidade habitada, em renovado crescimento arqui-tectónico e humano, sintomaticamente com parti-cular atenção às mulheres e às crianças.

As ousadias experimentais de Palla/ Martins na devolução de um retrato desfocado, recortado, dis-ruptivo, da capital tiveram, no entanto, um reduzido impacto nos seus contemporâneos, passando pra-ticamente despercebidas no provinciano contexto português dos anos 50 (recordem-se os Verdes Anos que Paulo Rocha viria a reflectir de modo tão ines-quecível e pertinente, pouco tempo depois da publi-cação do livro).

O LIVRO (1959)A continuação desse empreendimento fotográfico, socialmente empenhado e revelador da expectativa de abertura democrática e de combate à arquitec-tura do “regime” através do modelo internacional, resultaria depois na publicação do livro homónimo, que prossegue e radicaliza o ensaísmo gráfico, fo-tográfico e cinematográfico das duas exposições de 1958, incluindo também imagens captadas depois da realização dessas mostras.

De um total de cerca de seis mil clichés, os seus autores escolheram trabalhar cerca de duzentos, paginando-os em profícua relação com excertos de poesia da autoria de Fernando Pe ssoa (et Álvaro de Campos, Ricardo Reis), António Botto, Almada Ne-greiros, Camilo Pessanha, Mário de Sá-Carneiro, Alberto de Serpa, Cesário Verde, Gil Vicente, e iné-ditos de Eugénio de Andrade, David Mourão-Ferrei-ra, Alexandre O’Neill, Jorge de Sena, entre outros nomes da cena literária portuguesa de então, com destaque ainda para o texto de abertura de José Rodrigues Miguéis (1). Apenas José Borrêgo dedi-cou especial atenção à edição do livro, que mere-ceu uma crítica extensa e positiva na revista cinéfila Imagem, em 1960.

O livro foi editado em sete fascículos mensais, de modo a possibilitar o financiamento dos seus custos através do sistema de assinatura, e assim tornar também mais acessível ao leitor a aquisição da pu-blicação, sendo esta, aliás, uma estratégia editorial bastante comum na época.

Na “Advertência” que acompanhou o 10º fascícu-lo do álbum, Costa Martins e Victor Palla comentam esta opção dando-lhe a seguinte justificação: “...foi sobretudo a vantagem da maior acessibilidade da obra (ao leitor e aos autores- editores) que nos levou a reduzi-la a tomos parciais.

(1) Nos materiais de apoio do curso foi distribuída a transcrição integral dos 32 trechos literáriosdo Livro, dos quais 9 são poemas inéditos.

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//...foi sobretudo a vantagem da

maior acessibilidade da obra

que nos levou a reduzi-la

a tomos parciais.

Costa Martins, Victor Palla – Página 47, Lisboa: Círculo do Livro, 1956-1959

Em boa verdade, cremos que, por muito interes-se que possa ter esta bizarra experiência de desven-dar mensalmente e passo a passo, as excelências ou defeitos dum livro estudado como um todo, ex-periência a que a edição em fascículos nos habituou e obriga, ela tem pelo menos a importuna contra-riedade de apresentar o pormenor antes do conjun-to, de enevoar as razões do plano e, parafraseando uma citação famosa, permitir ver que, por causa das árvores, o leitor não veja a floresta. Afortunadamen-te, sete fascículos depressa passam. Que se perdoe este processo de publicar um livro a um livro que sem este processo não teria sido publicado.”

Aliás, os escritos do cunho dos próprios autores acerca do álbum constituem as fontes mais precio-sas para o seu entendimento, como se pode veri-ficar no suplemento técnico intitulado “Índice” que fecha o livro com comentários à paginação.

O “Índice” do livro Lisboa foi redigido pelos pró-prios autores e assinado colectivamente, tal como as fotografias que dele fazem parte. É nessa sec-ção do livro que se reproduz em pequena esca-la e num formato uniforme todas as imagens que foram seleccionadas dos cerca de seis mil clichés

que compunham o corpus inicial do projecto edito-rial. E a acompanhar cada par dessas reproduções, mostrando-se duas páginas do livro aberto em cada imagem, encontramos então os comentários ecléticos e empenhados de Victor Palla e de Cos-ta Martins. As suas notas à margem versam sobre os mais variados aspectos das fotografias para as quais remetem: desde po menores técnicos de exe-cução, ao local onde a fotografia foi tirada, até às suas reflexões pessoais e bastante informadas, so-bre “o interesse humano” de uma “boa fotografia”, as propostas estéticas e éticas de outros fotógrafos e, principalmente, referenciados nos escritos e ditos de alguns dos mais reputados cineastas, tanto ame-ricanos quanto europeus.

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Costa Martins, Victor Palla – Página 76/77, Lisboa: Círculo do Livro, 1956-1959

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Daí que o elencar dessas referências mais signifi-cativas clarifique o empenho e entusiasmo da dupla Palla/ Martins na criação de uma edição, tratando--se neste caso da edição de um livro de fotografias extremamente cuidado em todos os seus pormeno-res. Essa listagem de algum modo “tutelar” tam-bém torna mais explícita a amplitude internacionalem que o livro se inscreve, seja pelas influências que assume e assimila, seja ainda pelas propostas inovadoras com que avança enquanto produto edito-rial. Aliás, o livro foi antecedido, inclusive, por uma pré-apresentação em formato expositivo, revelan-do-se nas suas diferentes componentes como uma espécie de ensaio fotográfico aplicado.

E em última instância, podemos mesmo consi-derá-lo um ensaio fotográfico a partir de uma ideia subjectiva de Cidade, uma cidade vista a partir do seu interior, dos seus habitantes, e, neste caso, não apenas naturais da própria cidade mas também ar-quitectos por formação e ofício. Então que Lisboa é essa que se dá a ver pelas imagens da poesia e da fotografia? Para enquadrar devidamente as motiva-ções e escolhas desta visão humanizada da cidade partimos das remissões mais significativas do “Ín-dice” de Lisboa.

1. Os escritos “de penn a wayne miller” (relativos à página 1); De Penn a Wayne Miller, uma antologia dos escritos dos grandes fotógrafos de hoje seria na verdade, além dum grande livro, um livro muito grande. À sombra de tantos grandes bem se pode desculpar neste passeio ao longo de Lisboa o nossotagarelar, que não é mais do que o “shop-talk” de quem mostra provas a um colega. Pois a quem mais senão a um fotógrafo poderia interessar, por exem-plo, que esta fotografia tivesse sido feita pela tard nha, no verão, com uma eica equipada com Elmar 50 mm e filme Tri X, a 1/ 30 f. 4.5?

2. “O povo, as pessoas”, como principal estímulo do projecto, ali nha n do com a posição de richard avedon (relativos à página 4 e às páginas 60 e 61); Como Richard Avedon, poderíamos dizer que o que sempre nos estimulou “foi o povo, as pessoas, nunca, ou quase nunca, as ideias”. A técnica não é senão o instrumento; e por vezes apetece concluir, como Avedon, que “a máquina é quase sempre um estorvo. Se eu pudesse fazer o que quero com os olhos apenas, seria feliz”. [...] Por esta altura já deve ter-se tornado claro que este livro não quis retra-tar acontecimentos espectaculares ou sensacionais mas antes o espírito do ordinário, do quotidiano, das

pessoas a serem elas próprias (e não transtornadas pelo excepcional) movendo-se dentro dum ambiente familiar, conhecido.

3. A demarcação da ortodoxia do “momento decisi-vo” de cartier- bresson face ao “cropping” (relativos às páginas 16 e 19); Retratos de crianças de vários bairros de Lisboa. Factor importante deste conjunto:o corte. Os negativos originais dariam numerosos rectângulos diferentes. Pese a Cartier Bresson (que não só considera sempre definitivos os seus 24x36mm, como ameaça processar o editor de revis-ta que lhos enquadrar diversamente), persistimos em encarar como um dos elementos fundamentais do labor fotográfico o “cropping”, arma que mane-jada imprudentemente pode não passar de simples artimanha, mas que nem por isso deixa de ser um direito verdadeiro e fecundo do fotógrafo.

4. O equipamento mínimo do fotógrafo (referido a propósito da página 22); Tentámos reduzir o nosso equipamento ao mínimo. Tripés, estojos, correias, são outros tantos obstáculos à mobilidade e à na-turalidade e “invisibilidade”do fotógrafo. A máquina nua na mão, as restantes objectivas nas algibeiras; tudo o mais se aprende a dispensar. Os amadores mais evoluídos escandalizar-se-ão talvez se aqui dissermos que ganhámos um despreso considerá-vel pelos filtros e que só em casos especialíssimos e muito deliberados os usámos.

Ao fim de milhares de exposições, também o fo-tómetro perde decididamente importância, quando muito, uma única leitura inicial dá o Lá, para toda a tarde ou manhã, das afinações eventuais que os assuntos e as variações luminosas exigirem.

5. A sintonia com o alerta de cornell capa face à “desumanização” do fotógrafo Cornell Capa disse: “Há um problema importante: deve o fotógrafo so-frer, dado que o seu trabalho é antes de mais nada observar? Observar continuamente e nunca partici-par é deixar de ser humano.”Os autores deste livro, que trabalham em Portugal e não são repórteres profissionais, julgam encontrar nesse facto antido-to suficiente contra essa desumanização que Capa receava e que é afinal o mal de toda a especializa-ção desenfreada. Há além desse remédio caseiro, um outro muito importante, que se acrescenta ao respeito pela pessoa humana de que falávamos há pouco: a ternura, a ternura pura e simples.

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Costa Martins, Victor Palla – Página 62/63, Lisboa: Círculo do Livro, 1956-1959

6. Defesa do profissional “amador”, tal como procla-mada por eisenstaedt; _ Mas a melhor solução para este problema _ humanização da tarefa de utilizar sistemàticamente um instrumento mecânico como o fotográfico _ talvez possa ser a de Eisenstaedt: “Todo o profissional deveria permanecer, no fundo do coração, um eterno amador”.

7. Referência a lhote, numa articulação da fotografia com a pintura [...] aqui temos outra vez muita coisa de pintura: a organização plástica, com um “quadro” dentro doutro quadro; as “passagens” do claro-es-curo de que fala Lhote.

8. Sintonia conjuntural com “um cinema a que os italianos deram a expressão mais completa” (pá-ginas 40 e 41); Nenhum intuito imitativo aqui tam-pouco, ou influência sofrida conscientemente. Mas todos os que vêem estas fotografias (mais sublinha-damente a da direita) nos apontam a semelhança do seu clima e atributos físicos com os dum cinema a que os italianos deram a expressão mais completa.

Não nos parece que dessa semelhança de re-sultados venha algum dano; ela é natural, dados os parentescos circunstanciais; além disso, estamos em crer que só pode haver vantagens na inter-influ-ência das artes do nosso tempo, que têm muito que aprender umas com as outras.

9. Contraproposta ao “esteticismo de salon”, me-diante actualização de referências internacionais (páginas 56 a 59); Indispensável se torna nestes co-mentários abordar o problema da composição do livro. Temos insistido em que o ofício de fotógrafo se deve afastar muito do obter “bonitas” provas isola-das, pequenos quadros de cavalete auto-suficientes e válidos por si. Hoje tudo tende a separá-lo desse esteticismo de “salon”: o novo idioma da reporta-gem fotográfica, as grandes revistas ilustradas, os livros documentais ou de “picture-stories”.

E o simples facto de uma fotografia se destinar a ser incluída num conjunto, gravada, impressa, vista por milhares de leitores, tem por força de originar características especiais, determinar uma estética, talvez até toda uma filosofia.

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10. Dimensão experimental e processual do projecto fotográfico,nomeadamente na planificação de um segundo volume dolivro (relativos às páginas 56 a 59, 62-63-64, 127 a 136); e que se pôde vislumbrar apenas em 1982, com o cartaz-exposição Lisboa e Tejo e tudo na Galeria ether, que incluiu imagens não publicadas no primeiro volume, bem como desenhos preparatórios do respectivo arranjo gráfico; a que o catálogo publicado em 1989 pela Fundação de Serralves, precisamente por altura de nova remontagem da exposição, também deu destaque. O negativo é cada vez mais um passo intermédio. O que conta é o conjunto final; o ampliador torna-se tão importante como a câmara, o cilindro do gravador torna-se tão importante como o ampliador. E o campo de experimentação, que já era con siderável, alarga-se. Talvez agora mais legitimamente ainda, porque se apoia em meios de larga co-municação e saiu das narcisistas e quase sempre estéreis aventuras do quarto escuro, baixos relevos, pequenas crises de adolescência que não há que evitar, mas que o fotógrafo maduro ultrapassa ràpi-damente. Não fugimos ao experimental: e não presumimos sair airosos de todos os ensaios.

11. Semelhança da metodologia adoptada pelos autores à do cineasta robert flaherty e à “disciplina do cientista” segundo david riesman (páginas 68 e 69); O nosso método foi inconscientemente muito semelhante ao de Robert Flaherty, que coligia material para cada um dos seus filmes sem grandes pré-concepções, e que, ao contrário do cineasta vulgar, que pensa primeiro e filma depois, “filmava primeiro e depois pensava”. Essa espécie de abandono, em que a personalidade do artista se rende àquilo que é maior do que ele, para que isso que é maior possa ser trazido para a luz, essa espécie de abandono é, segundo David Riesman, a disciplina do cientista, a sua humildade, a sua busca de verdade. Era com o material que colhia dia a dia que Flaherty construia finalmente os seus filmes. A montagem torna-se assim como que o substituto duma pré-planificação.

Costa Martins, Victor Palla – Página 62, Lisboa: Círculo do Livro, 1956-1959

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12. Afinidade com o conceito de “montagem” de fellini (também relativo às páginas 68 e 69); Fellini pensa de maneira muito semelhante. E o que ele diz sobre a montagem pode aplicar-se a este livro, e acrescentar-se ao nosso comentário das páginas 57 e 58: “A montagem é um dos aspectos mais emocio-nantes de fazer filmes. Nada há mais excitante do que ver uma fita começar a respirar; é como vermos crescer um filho nosso. O ritmo pode não estar ain-da estabelecido, a sequência inteiramente definida. Mas nunca filmo uma segunda vez. Acredito que uma boa fita tem de ter defeitos. Tem de ter erros como a vida, como as pessoas. O mais importante é conseguir que o filme se torne uma coisa viva”.

13. Aproximação à posição de Jean Renoir a propósi-to de cinema; (2) Diz Jean Renoir, falando de cinema: “Todos os refinamentos técnicos me desencorajam. Perfeição fotográfica, écrans maiores, alta fidelida-de de som, tudo isso torna possível aos medíocres a reprodução servil da natureza; e esse género de reprodução aborrece-me. O que me interessa é a interpretação da vida por um artista”.

14. Chamada de atenção para as “inúmeras varia-ções de registo possibilitadas pela reprodução foto-gráfica e rotográfica”, segundo cecil beaton; Disse Cecil Beaton que não compreendia por que razão o fotógrafo não trabalhava em mais estreita colabora-ção com o gravador.

15. Relação entre a génese do livro lisboa e a mon-tagem de “a paixão de joana d’arc” por carl dreyer; Quando Carl Dreyer, em Paris, em 1928, acabou a montagem de “A Paixão de Joana d’Arc”, os geren-tes da companhia cinematográfica resolveram exibir a cópia final, perante um grupo de setenta a oitenta intelectuais, escolhidos especialmente para o efei-to, e imparciais escritores, historiadores e directo-res de revistas de várias especialidades. O fim dessa exibição era descobrir cenas ou sequências capazes de criar dificuldades, levantar atritos ou faltar à ver-dade histórica, porque havia ainda tempo de fazer alterações antes de passar ao grande público.

(2) Dreyer (que conta esta história em Film, n.1), “os directores da companhia já não podiam ter dúvidas: a fita tinha de ser exibida com a forma que eu lhe dera.”

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Costa Martins, Victor Palla – Página 46, Lisboa: Círculo do Livro, 1956-1959

16. Crítica à desumanização do grafismo “abstrac-to” e à “experimentação”essencialmente formal, e reequacionamento do regresso a um “naturalismo mais documental”; Numa época em que um grafis-mo cada vez mais abstracto desumaniza a comu-nicação e em que a experimentação incide primor-dialmente sobre o formal, até mesmo na fotografia (seja esse formal, em dois polos, o dos Salons ou o dos creative methods americanos), apetece por ve-zes voltar ao naturalismo mais documental.

17. Da ilustração à obra gráfica: interacção entre fo-tografia e poesia (páginas 94-95, páginas 98 e 101 e páginas 116-117); O que aproximou estas duas ima-gens foi o excerto de Armindo Rodrigues. Na cons-trução de um livro como este é impossível manter um processo de trabalho rígido; e se, na maior parte das vezes, a poesia veio ilustrar sequências gráficas existentes, não pouco frequentemente aconteceu dar-se o contrário, e dois ou três versos nos im-pressionarem a ponto de procurarmos seguir a sua sugestão e escolhermos entre as nossas fotografias as que a concretizassem melhor. Este é um exemplo muito claro desse facto; nalgumas outras páginas

já hoje nos é difícil reconstituir o que se passou, e onde, como e por que lado começou a ilustração.Tudo justificava uma nova arquitectura gráfica. Não era necessário colher mais imagens, mas escolher, cortar e dispor elementos existentes, dando corpo a um “divertissement” visual que espelhasse o es-pírito e a forma do poema. A introdução de objec-tos reais, com a sua sombra projectada na página, acrescentaria à picante vivacidade pretendida. O que se publica é um de muitos ensaios e tentativas.

18. O papel original da revista lilliput nas “justapo-sições” de fotografias (páginas 104-105); Foi a velha revista Lilliput que inaugurou na história da fotogra-fia as “justaposições”, a mais elementar maneira decompor conjuntos de fotografias, forma binária que consiste no simples colocar lado a lado de duas ce-nas que qualquer parentesco (habitualmente for-mal) une, e cuja aproximação provoca efeitos trági-cos ou pícaros. Nesses tempos heróicos e ingénuos a relação era acentuada por uma legenda que a so-phistication de hoje consideraria insuportável.

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19. O “realismo poético” e a “ironia da realidade” da fotografia, na esteira de sonthonnax, seguido da “autenticidade” de doisneau, izis e brassaï (páginas 114-115); Perante estes documentos apetece-nos ci-tar Sonthonnax: “Em toda a escrita simbólica cada sinal exprime duas coisas: o objecto representado e uma ideia abstracta. Toda a reunião de dois ou mais sinais representa uma ideia abstracta. No choque provocado por uma fotografia convenientemente re-alizada há o mesmo processus psicológico. O espe tador vê o objecto e outra coisa atrás do objecto que não é parte integrante dele e que, todavia, se impõe pela maneira como nos é mostrada. Isto ultrapassa a noção de “assunto” e nada tem a ver com o “sím-bolo”. No entanto, sem a fotografia, pela simples vi-são do objecto, não se produziria isto. Esta ambigui-dade pode também ser realizada, pela fotografia nodomínio do sentimento. Está, talvez, na origem de efeitos dificilmente concebíveis antes dela: o realis-mo poético e a ironia da realidade, em particular.

20. Da cumplicidade do “acaso” com o resultado compositivo:fotografia, poesia e cinema; A perfeitacomposição de cada uma destas fotografias, em que tudo está colocado onde é preciso, cientado o leitor desprevenido. O livro aí está. Chama-se “Lisboa”, mas é o retrato de homens, mulheres, crianças que nela habitam, traçado por dois homens que nela nasceram e vivem. Visão parcial? Evidentemente. Incompleta, tendenciosa? Pois claro. Não tivemos a ambição de fazer um documentário total. Um so-neto pode dizer mais do que um poema épico, um hai-kai mais do que um soneto; um romance pas-sado em Dublin num só dia pode explicar melhor o homem do que uma História Universal. O documento em si pouco interessava; para isso ficam os jornais, as revistas, os arquivos. Deixem--nos terminar com uma última citação, esta de Ir-ving Penn, que nunca acharemos demais repetir: “... O fotógrafo moderno não pensa na fotografia como uma forma artística, nem na sua prova final como um objecto de arte. Mas, de vez em quando, neste meio de criação como em todos os meios de cria-ção, alguns de entre os que o praticam são artistas. Na fotografia moderna tudo o que é arte é-o como subproduto dum trabalho sério e útil, feito com ho-nestidade e amor.” O objecto, a cena, têm um nú-mero infinito de aspectos; exprimindo-o por um só deles, o fotógrafo termina desse modo a pe quisa das aparências que movimenta o espectador na vida prática. Mas para conseguir essa expressão o fotógrafo tem ainda de dominar numerosos facto-

res que estão no polo oposto do acaso: a escolha de máquina, do filme, de exposição; a revelação e im-pressão; o corte. E, sobretudo, a escolha do famoso “momento decisivo”, de que já falámos no início, o reconhecimento de que tudo está onde e como deve. O que não é obra do acaso; Cartier Bresson chega a dizer: “O viver requer tempo, as raízes crescem lentamente; por isso, o momento decisivo pode ser o produto final de longa experiência.” Isto arruma uma parte da questão. Mas há mais: aceitemos a parte do acaso, e lembremo-nos do acaso controla-do dos cientistas, instrumento de trabalho legítimo e valioso. Além de tudo isto não há arte em que o acaso não tenha um papel fundamental. [...] Porque a conclusão é sempre a mesma: o resultado é que conta. Ninguém se lembrará de ir regatear ao poeta a parte que o acaso teve na felicidade das suas ri-mas, ou ao cineas ta tudo o que de acidental tenha acontecido durante a filmagem e ele aproveitado.

21. Posicionamento face a escolas e reportagens de referência: da nova escola naturalista (documen-tal), e da candid camera, a bert hardy, passando pela “aldeia espanhola” de eugene smith e pela “naked city” de weegee, numa aproximação do fotógrafo ao realizador de cinema (página 142); Desta página emdiante só aparecerão fotografias conseguidas de noite, dentro ou fora de casa, mas sempre à luz am-biente, aproveitando as situações sem qualquer es-pécie de ensaio ou encenação. Se acentuamos estes pontos é porque eles não são tão incontroversoscomo a nova escola naturalista, documental, parece indicar. É costume, por exemplo, catalogar Eugene Smith, o Smith da “Aldeia Espanhola”, como um es-pecialista do 35mm e da luz ambiente. A realidade é que ele próprio tem uma opinião muito diversa: “...sinto que não pertenço realmente a nenhuma escola de fotografia. O meu equipamento inclue tudo, des-de as Leicas às máquinas de estúdio. Usarei flash ou tudo o que necessário for para conseguir deter-minada fotografia que me interessa [...] Quando tal é preciso, rearranjo os elementos duma situação da maneira que julgo mais correspondente à verdade , fotogràficamente falando; mas não tenho o direito de desviar-me do espírito da verdade.

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...Corre, olhar, em roda!O que te intimida?A vida? Só todaPode amar-se, a vida.

Alberto de Serpa, RUA

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Para além dos já citados no “Índice”, como Brassaï (autor de Paris de Nuit, com Paul Morand em 1933), Weegee (e a sua Naked City de 1945), de Robert Doisneau e de Henri Cartier-Bresson, e que consti-tuem influências assumidas por Victor Palla e Costa Martins, destacam-se ainda outras referências de ordem conjuntural, como o impressionante livro de William Klein sobre a cidade de Nova Iorque (Life is good and good for you in New York) e o não menos fulgurante Love on the left bank de Ed Van der El-sken, ambos editados em 1956, data de arranque do projecto de Victor Palla e Costa Martins.

Les Américains de Robert Frank, com a sua visão deceptiva da sociedade americana, seria um primei-ro álbum publicado em Paris, em 1958, e só um ano depois na América, dada a dificuldade em encontrar um editor que o perfilhasse, à semelhança do que acontecera em 1956 com o livro de Klein. Mas não esquecemos a pista pioneira de António Sena, que filia o livro-exposição dedicado a Lisboa no emble-mático livro-exposição que Edward Steichen reali-zou para o Museum of Modern Art (MOMA) de Nova Iorque em 1955. Sabemos por António Sena, na sua incontornável História da Imagem Fotográfica em Portugal, que a exposição The Family of Man (em português, A Família do Homem), organizada em 1955 pelo fotógrafo Edward Steichen enquanto di-rector do Departamento de Fotografia do MOMA de Nova Iorque, não chegou a vir a Portugal, mas o seu convite-programa foi publicado na revista Fotografia ,em Março de 1954 e o respectivo filme-documen-tário divulgado pela embaixada americana nalguns clubes. Já o livro-catálogo teve alguma projecção, merecendo por parte do Boletim do Grupo Câmara um comentário depreciativo e, por isso mesmo, elu-cidativo das opções estéticas vigentes no domínio

da fotografia, ao defender que nele se abordava «o valor humano em prejuízo do artístico».

Esta pista de António Sena motivou a concentra-ção da pesquisa no Arquivo do MOMA, onde se en-contram nada menos do que cinco caixas repletas de documentação sobre a itinerância de The Family of Man, durante quatro anos, pelos vários continentes. 503 fotografias por 273 fotógrafos de 68 países (como Ed Van der Elsken), seleccionadas por Edward Stei-chen com a assistência do fotógrafo Wayne Miller, que como já vimos é também citado por Victor Palla e Costa Martins no “Índice” de Lisboa.

E são bem visíveis os vários pontos de contacto entre o projecto editorial e expositivo de Steichen em 1955 e o de Victor Palla/ Costa Martins, em 1956-59. Desde logo na montagem dinâmica das imagens no espaço expositivo, variadas no formato e na dis-posição, criando um percurso desnivelado; até à ar-ticulação entre as fotografias e os trechos literários na paginação em livro.

O “poema gráfico” de Victor Palla e Costa Mar-tins, termo empregue pelos próprios autores pela composição poética das imagens, constitui, também ele no seu conjunto um excelente reflexo de uma vi-ragem paradigmática no entendimento moderno, mais humanista, da Cidade. É uma exortação visual, também de imaginários, apoiada numa compreen-são mais sensível das necessidades sociais que os projectos urbanísticos devem contemplar. Na sua dupla vertente expositiva e editorial, é um projecto que renova a visão da cidade de Lisboa através de imagens, tanto fotográficas quanto poéticas.

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Margarida Medeiros

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O texto que se segue tem origem na comunicação oral realizada no contexto da palestra que teve por mote a série de dois episódios para a rtp, realizada em 1982 por António Sena e Margarida Gil, sobre a Fotografia e a sua História.

O interesse histórico deste filme, sendo António Sena, à época, e ainda hoje, um pioneiro ímpar na historiografia portuguesa da fotografia, é múltiplo e variado, não apenas pelo enfoque didáctico que constitui, mas, sobretudo, pela forma como invent ria as diferentes existências da fotografia no seio da cultura contemporânea. De objecto privado a pú-blico, de instigadora de pensamentos nostálgicos e meio de registo objectivo e histórico, de plataforma artística incontornável do século XX, todo o potencial com que a fotografia se desenvolveu e embrenhou

na cultura ocidental, desde a sua invenção, está aqui inventariado. Centrado, inevitavelmente, pelo seu formato didáctico, nos pontos de ancoragem histórica consagrados em obras como a de Beau-mont Newhall ou Helmut Gernsheim, este docu-mentário preocupa-se em real çar a dimensão es-tética da fotografia e a forma como essa estética envolve, de forma tantalizante, os mais recônditos gestos do quotidiano.

Um dos momentos mais interessantes do filme, e que remetem para toda a história da ontologia da fotografia, de Oliver Hendell Holmes a Barthes, é o momento em que, na abordagem dos anos 50, os realizadores tomam como exemplo o livro de Victor Palla e Costa Martins, Lisboa, cidade triste e alegre, na última parte do documentário. Depois de apre-sentada a obra, que o próprio António Sena redes-cobriu, na sua busca de uma história da fotografia portuguesa, em particular do período dos anos 50. Os realizadores, a sua equipa de filmagem e os pró-prios autores do livro deslocam-se a Alfama, um dos bairros de Lisboa onde tinha sido realizada parte das imagens que constituem a obra, e vão à procura das pessoas que ali se encontram fotografadas.

// Revisitar Olho de vidro

– uma história da

fotografia, um breve

comentário.

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Fotograma do filme Olho de vidro – uma história da fotografia

António Sena (Toé) e Margarida Gil, 1982/Produção RTP, Lisboa

É toda uma algazarra que se gera e filma, motiva-dapelo encontro com a imagem de si que estas pes-soas reencontram trinta anos depois. No pequeno grupo de pessoas que se junta em torno da equipa, de livro aberto na mão, algumas pessoas vão identi-ficando os personagens ainda vivos.

Mas o centro de todo o episódio é o momento em que uma senhora vai a casa buscar o vestido com o qual fora fotografada décadas antes, abrindo-se um plano em que vestido,“real”, e fotografia no livro, da rapariga envergando, com ar sonhador, o mesmo vestido, são mostrados lado a lado. Esta relação au-tentificadora da fotografia com a “vida real”, de con-tiguidade, foi sempre uma das suas propriedades mais idiossincráticas, que levou Walter Benjamin a reflectir sobre as suas consequências no modo (a)crítico com que uma fotografia é recebida.

Para Benjamin, tudo mudara com as sucessivas modificações técnicas introduzidas na aparelhagem fotográfica, que permitiam imagens cada vez mais rápidas, ou seja, que permitiram introduzir o “ins-tantâneo”, roubando à fotografia aquela aura de dis-tância que se obtinha na contemplação das antigas fotografias, nas quais o tempo da produção era uma das suas marcas constitutivas.

Esta realidade foi, para Benjamin, responsável pela “degenerescência” da fotografia, já que se tor-na num objecto “transparente”, onde é impossível demorar o olhar, onde a realidade do presente se confunde com a sua imagem (1). Ora é esta verti-gem realista da fotografia, esta “transparência”, que leva a esquecer que se trata apenas de um pedaço de papel, ou de uma página de um livro, que é bem documentada, “ao vivo”, em Olho de vidro – uma his-tória da fotografia. «O referente adere», dizia Bar-thes, ou seja, a imagem fotográfica apela à emoção provocada pela retrospecção do real que se acredita sempre ter existido como está representado.

A imagem convoca a percepção, mesmo que re-trospectiva, da experiência real e é essa condição inabalável da fotografia, mesmo que digital, que permite que esta se tenha insinuado como uma ferramenta básica da comunicação moderna, bem como da arte contemporânea.

Assim, ao longo do documentário, deambula-se pela história da fotografia, como pela presença da mesma nos sítios mais perto ou mais longe, desde as imagens da necrofilia no jornal às fotografias de casamento, desde as imagens dos grandes mestres às colocadas nas campas do cemitério dos animais no Jardim Zoológico.

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Assim, ao longo do documentário, deambula-se pela história da fotografia, como pela presença da mesma nos sítios mais perto ou mais longe, desde as imagens da necrofilia no jornal às fotografias de casamento, desde as imagens dos grandes mestres às colocadas nas campas do cemitério dos animais no Jardim Zoológico.

Mas este deambular não é realizado de forma anódina ou compilativa. Para além da voz off, que nos vai sugerindo relações, histórias, citações, cro-nologias, a banda sonora tem um papel fundamen-tal na transmissão das propriedades sensoriais da fotografia. Medium quase sem textura, plano e por vezes mesmo transparente, o paradoxo da fotografia está, também, na capacidade para convocar outros sentidos, como o tacto, o odor ou o som, na medida em que convoca sempre, inevitavelmente, os pro-cessos subjectivos da memória, quer esta seja pri-vada ou colectiva.

A banda sonora, música ligeira intercalada tam-bém com outra mais clássica, tem também um pa-pel fundamental, indicando de forma persistente uma trajectória de leitura para as fotografias apre-sentadas. Pequenos desvios lúdicos, como o texto de Alice que surge das imagens de Lewis Carroll, sequências em que canções nos remetem para a imagem que passa diante dos olhos do espectador, canção pop americana e inglesa, música portugue-sa , toda esta constelação sonora contribui para re-forçar uma leitura simultaneamente eufórica e dis-fórica da fotografia.

Eufórica, porque a articulação permanente entre a música, a voz off e as imagens que vão deslizando perante o espectador, parece ter por objectivo su-blinhar a tensão emocional provocada pela estéti-ca fotográfica: uma estética que se baseia na pos-sibilidade de rever o visto (mesmo se nunca antes visto), que vive da possibilidade de olhar fixamente para uma realidade que já passou, ou não se viu suficientemente, ou nunca se pôde observar direc-tamente; eufórica porque revela ‘a realidade’ diante dos nossos olhos, por obra de um movimento me-cânico; mas a perspectiva é também eufórica por-que constantemente nos revela a fotografia, como uma forma de celebração dos heróis e dos grandes acontecimentos do século XX: a resistência, as lutas sociais, a Grande Depressão e a Farm Security Ad-ministration.

Mas a leitura que nos fornece é também disfó-rica, não relativamente à fotografia em si mesmo,

face à qual o discurso é sempre entusiasta e en-tusiasmante; mas porque nos conduz numa deri-va, consequência inevitável da própria ontologia da fotografia, pela fotografia a partir de sequências de imagens, orientadas por canções (românticas), que promovem a percepção da mesma como objec-to nostálgico, produto de uma cultura centrada na rememoração do passado como parte essencial da sua construção identitária. Este olhar da fotografia para trás é apresentado no filme de forma quase insustentável. É pela filmagem das imagens fixas, numa sequência não arbitrária nem aleatória, sem sequer dar oportunidade ao espectador de nelas se poder fixar mais alguns instantes do que os permi-tidos pela montagem do filme, que aquele é mobili-zado para esse sentimento, e pode, no final, concluir da eficácia do medium enquanto forma de memento mori, como sublinhava Susan Sontag.

Um dos aspectos mais fascinantes deste filme é a forma como utiliza, de forma ostensivamente manipulativa o cinema para estabelecer uma con-textualização de algumas épocas da história da fo-tografia. Enquanto a fotografia vai sendo apresenta-da por épocas, preocupações, grandes mestres ou estilos, o seu contexto histórico é-nos induzido por pequenos inserts cinematográficos; assim, em cer-tos momentos da narrativa histórica da fotografia, o real social, a conjuntura política ou histórica é-nos fornecida por outro media, ao qual, supostamente, neste contexto, se atribui o papel de apresentador de uma realidade objectiva, que estaria para lá da objectiva fotográfica e que serviria, assim, de funda-mento apodíctico do discurso elaborado em voz off ao longo da série.

(1) Walter Benjamin, “Pequena História da Fotografia”, in A Modernidade (Lisboa, Assírio &Alvim, 2006, trad. de João Barrento).

// A imagem convoca a

percepção, mesmo que

retrospectiva, da experiência

real e é essa condição

inabalável da fotografia.

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O que cria um paradoxo, extremamente interessante e responsável pelo sentimento de candura que hoje este documentário desperta: enquanto a imagem fotográfica é descrita em toda a sua complexidade, variedade de géneros e transversalidade cultural, o cinema aparece, nas frestas “históricas” da narrati-va, como algo “sem código”, como uma linguagem meramente do real, passível de promover no espec-tador um efeito de verosimilhança relativamente à narrativa histórica proposta. Se o cinema reverte sobre todo o conjunto do filme esse “efeito de real”, é porque em grande parte a narrativa histórica em torno da fotografia nos é dada como, apesar do avi-so inicial, de que se trata de “uma” história da foto-grafia, numa perspectiva diacrónica, desde os seus primórdios (Niépce, Daguerre, Talbot) até ao tempo em que o filme foi feito e se encaixa, portanto, no modelo do “era uma vez”, inevitável a qualquer “his-tória da fotografia”.

Assim, a perspectiva temporal que é realizada no filme é entrecortada por esses breves inserts de real fornecidos pelo hiperrealismo do cinema, com a sua dimensão temporal, a sua linguagem articu-lada no tempo. Essa relação estabelecida é parti-cularmente incisiva na abordagem da fotografia do género fotojornalístico, onde às imagens de grandes repórteres se associam pequenos excertos fílmi cos dos grandes acontecimentos do meio do século.

Mas curiosamente, esta técnica narrativa de que se servem ludicamente os realizadores exibe de for-ma muito clara a diferença entre a fotografia e o ci-nema. Barthes denunciara já o paradoxo manifesto na fotografia enquanto «mensagem sem código»(2): a forma como esta, apresentando-se como tal, es-conde frequentemente o seu contrário: o código, isto é, a truncagem, a ideologia, a pose. Mas nada pode desmantelar completamente o efeito brutal exercido pela fotografia, mesmo que, sabendo isso tudo, procuremos distanciar-nos desse efeito “trau-mático”, obsceno, imposto pela imediatez com que a imagem precipita quem a olha no poço fantasmático designado por “real”.

Com o cinema é outra história. Entre o docu-mento dos irmãos Lumi ére e a ficção evasora de Hollywood, o cinema envolve o espectador num tempo simulado (mesmo que coincida com o tempo “real”), e com ele sabemos sempre “que estamos no cinema”. Não é tão brutal, embora possa ser mais alucinante. Com uma doçura que é negada à foto-grafia, a introdução destes breves excertos reforça a associação livre do espectador da História da Fo-

tografia de António Sena e Margarida Gil, devido à própria estrutura da montagem, no sentido em que mobiliza a sua percepção dos mesmos filmes como o pano de fundo de “real” onde se inscreve a narrativa fotográfica, e que a justifica. Um efeito magistral, de perfeitos ilusionistas.

Mas, finalmente, o que este filme sublinha – numa espécie de demonstração prática das mais determinantes teses sobre a ontologia fo-tográfica, e que marcaram a história da sua teo-ria até essa data (Benjamin, Kracau er, Barthes, Sontag) – é a forma como a fotografia convoca, mais do que qualquer outro medium, o incons-ciente, colocando assim o sujeito face a face com as suas memórias desejadas mas também in-desejadas, como a memória/consciência do fluir do Tempo, coadjuvada pelos materiais que en-volvem toda a narrativa do documentário.

É possível que este documentário seja hoje visto por gerações mais novas como um objecto “datado”. Mas essa, para além de outras, é uma das riquezas históricas deste filme, feito “no seu tempo”, colocando as questões que se coloca-vam “no seu tempo” e que são ainda, em grande parte, as mesmas – a aceleração dos processos, com a chegada do digital, apenas vem acentuar alguns desses aspectos mais agonísticos convo-cados pela fotografia desde o seu início.

O seu desenho epocal (realizado com um modo de produção que seria hoje impensável em termos de direitos de banda sonora) é uma das suas mais-valias, na medida em que permi-te situar o documentário no tempo através de elementos que não se reportam a um “envelhe-cimento” do conteúdo mas que revelam as es-truturas formais com as quais o desenho deste documentário procurava situá-lo no seu espaço discursivo: a necessidade, urgente, de divulgar a história da fotografia, a sua importância cultu-ral e as suas referências fundamentais. No seu conjunto, visto a esta distância, é também um retrato de António Sena, e da militância com que procurou integrar a fotografia e a sua história na cultura portuguesa, procurando todos os meios de divulgação ao seu alcance.

(2) Cf. Roland Barthes, “Le Message Photographique”, in Communications, 1, 1961, reeditadoem L’Obvious et l’Obtus (Paris, Folio, 2001).

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Três documentos que exaltam relíquias portuguesas, trabalhos que tornam eternas obras como, por exemplo, um livro quase mitológico do design – Lisboa, cidade triste e alegre, de Vitor Palla e Costa Martins. Retirados do livro AG Prata, Reflexões Periódicas Sobre Fotografia, editado por Susana Lou-renço Marques, José Carneiro e Vítor Almeida, estes conjunto de letras refletem a prática fotográfica em Portugal e o seu cruzar com as artes plásticas – trabalho de excelência da autora Helena Almeida.

Helena Almeida recorre a conjunto de imagens fotográficas que aparentam documentar momen-tos sequenciais de uma ação que, ao contrario, dos outros textos que apresenta um caráter mais teatral, mas que não me deixam de fascinar igualmente.

Com o texto de Margarida Medeiros assistimos a uma afirmação da fotografia como um médium que convoca, mais do que qualquer outro, o inconsciente da mente humana, conseguindo criar uma certa nostalgia ou mesmo melancolia no seu receptor, devido ao facto de colocar “o sujeito face a face com as suas memórias desejadas mas também indesejadas” [1]

A fotografia é tida, assim como no livro de Vitor Palla e Costa Martins, como fonte de saudade, sublinhando o inconsciente e caracterizada como um recurso que capta a vida real com vertigens realistas afirmando o momento na sua passagem temporal.

(1) Medeiros, Margarida _ Revisitar Olho de vidro - uma história da fotografia, um breve comentário

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