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Refletindo sobre a escolha livre
Roberta PIRES DE OLIVEIRA – UFSC/CNPq
As línguas naturais não apenas expressam quantidades – ou relações entre conjuntos,
para falar de uma maneira mais precisa -, mas o fazem “modalizando” a quantificação, o
que nem sempre é fácil de captar num sistema formal, mesmo recorrendo a implicaturas
pragmáticas e a sistemas mais poderosos como a semântica de mundos possíveis.
Assim, embora todas as sentenças abaixo expressem universalidade, elas não o fazem da
mesma maneira, não veiculam, portanto, exatamente o mesmo conteúdo:
(1) Todo homem é mortal.
(2) Todos os homens são mortais.
(3) Tudo quanto é homem é mortal.
(4) Qualquer homem é mortal.
(5) O homem é mortal.
Explicitar cada uma dessas diferenças é uma investigação de microscópio que requer
várias decisões, entre elas distinguir o que é veiculado semanticamente e portanto
impossível de ser cancelado daquilo que é do domínio pragmático, uma inferência
passível de suspensão1. Este artigo busca explicar a contribuição semântica de
‘qualquer’, através de uma reflexão mais miúda sobre a escolha livre, minha tradução
para “free choice”, termo que, salvo engano, foi cunhado por Ladusaw (1997 (referência
a tese de 1979)). Vendler (1967), no entanto, foi o primeiro a observar que ‘any’ tem
um significado especial que ele chamou de liberdade de escolha, distinguindo-o de
outros universais ‘all’, ‘each’ e ‘every’. Ele argumenta que um falante que profere (6)
afirma que “não importa quem você selecione entre vocês, eu posso bater nele:
(6) I can beat any of you.
A literatura sobre a escolha livre é vasta e se concentrou inicialmente nas restrições,
talvez sob a influência da pesquisa sobre itens de polaridade, para então se deslocar para
a semântica e mais recentemente, em Chierchia, para a sintaxe. Não é possível lidar com
todas as questões neste artigo. Aqui vamos buscar entender a livre escolha a partir da
1 Ilari (2000) entende dessa maneira a distinção semântica e pragmática.
2
análise de ‘qualquer’, ao mesmo tempo que mostramos que há, no português brasileiro,
como nas diferentes línguas2 várias maneiras de a expressarmos. Argumentaremos que a
escolha livre não pode ser confundida com a quantificação nem com a definitude. A
quantificação universal que parece, por exemplo, presente em (4), é fruto da
combinação da escolha livre com um quantificador universal que não é dado por
‘qualquer’. Argumentaremos que semanticamente a escolha livre induz a formação de
conjuntos de alternativas, tomadas do domínio mais amplo, o que nos levará à
modalidade (no sentido formal do termo, quantificação sobre mundos possíveis), e que
estão em disjunção conjuntiva (o que acaba por produzir uma implicatura de
possibilidade)3. Essa abordagem faz juz ao fato de que os itens de escolha livre tem uma
forte relação com as relativas livres, tópico que apenas mencionaremos na conclusão.
Os efeitos pragmáticos disparados pelo uso de uma expressão de escolha livre são
variados; eles vão do desdém à idolatria e iremos mostrar como alguns deles funcionam.
1. Qualquer: não tem força quantificacional
Talvez pelo fato de que a pesquisa sobre a escolha livre tenha iniciado com a
tentativa de diferenciar o ‘any’ de outros universais – e não, por exemplo, pelo seu uso
existencial como um item de polaridade negativa - , houve uma tendência de associá-la
à quantificação universal. De fato há um laço forte entre o uso de ‘qualquer N’, em
particular na posição de sujeito, e a expressão de universalidade. Esse laço pode ser
verificado pela dificuldade de combinar esse sintagma com predicados episódicos,
como atesta o estranhamento de:
(7) # Qualquer aluno colou na prova.
O fato de que itens de escolha livre não ocorrem com o passado foi apontado por vários
pesquisadores como uma restrição (Giannakidou (1997, 2001), por exemplo, afirma,
incorretamente como atesta o PB, que itens de escolha livre só ocorrem em contextos
não verídicos, o que excluiria a sua combinação com o passado, certamente verídico).
2 Jayez & Tovena (2005) pesquisam os diferentes itens de escolha livre no francês, Giannakidou (2001) no grego.3 Essa abordagem tem influência direta da proposta de Kratzer & Shimoyama (2002), que, basendo-se em Hamblin (1973), analisam os indefinidos como indutores de conjuntos de alternativas, como as perguntas, fechados por um quantificador sentencial.
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No entanto, é possível restaurar o uso de ‘qualquer N’ com predicados episódicos
através de procedimentos de restrição de domínio: ‘Qualquer aluno da sala de semântica
colou na prova’ é uma sentença boa. Há ainda falantes que aceitam (7) imediatamente
porque supõe restrições contextuais do domínio de alunos. Esse é o fenômeno
conhecido como “subtrigging” (Legrand, apud Dayal (1998)) e ocorre não apenas com
‘any’, mas também com ‘todo’ no PB e ‘all’ em inglês.4
Além disso, não apenas há casos de uso de ‘qualquer N’ com predicados episódicos,
exemplificados abaixo em (8) e (9), como em muitos casos a sua substituição por um
sintagma com quantificador universal como ‘todos os N’ produz sentenças com
condições de verdade diferentes:
(8) João teve qualquer problema (e por isso vai chegar atrasado para reunião)
(9) Carlos veio aqui qualquer dia desses (e deixou um recado)
(10) João sai com qualquer mulher.
(11) João sai com todas as mulheres.
Se comparamos (10) e (11) notamos que para que (11) seja verdadeira é preciso que
João saia com todas as mulheres. Suponha que temos 3 mulheres, Joana, Maria e Carla.
Para (11) ser verdadeira, ele precisa sair com cada uma delas. O mesmo não vale para
(10). Para que (10) seja verdadeira é preciso que ele não escolha com qual mulher ele
vai sair. Ele sai com não importa qual mulher, mas não precisa sair com todas.
Fundamentalmente para que (10) seja verdadeira, ele não precisa exaurir o domínio,
basta que sua escolha seja aleatória.
A idéia de que com um item de escolha livre a verificação é não exaustiva já está
em Vendler que entende que a diferença entre ‘any’ e ‘all’ pode ser apreendida através
do método de verificação. Na quantificação universal presente em ‘every’ e ‘all’, diz o
autor, verifica-se exaustivamente todos os elementos do conjunto; só é possível
dizermos que é verdade que todos os homens são mortais se verificarmos um a um, ao
passo que para o ‘any’, no caso limite, basta uma única rodada de verificação, desde que
ela seja cega, para que à sentença possa ser atribuída a verdade. Em outros termos, se
sorteio aleatoriamente um e esse um verifica a proposição, o valor de verdade já pode
4 O fenômeno é ainda mais claro com ‘todo’:(1) * Todo aluno colou na prova.
O subtrigging também melhora a aceitabilidade com ‘todo’. Ver Quadro Gomes (2009) para uma explicação.
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ser estabelecido. O que importa é o método ser cego. Nesse sentido, nos diz Vendler, a
verificação de ‘any’ não é exaustiva, enquanto que para ‘all’ ela precisa ser.
É preciso, pois, desvincular a quantificação da escolha livre. Outro argumento a
favor desse desvinculamento está em (12), em que a escolha livre está combinada com
uma quantificação existencial:
(12) A gente se encontra qualquer dia desses.
(12) não veicula que iremos nos encontrar todos os dias, mas que haverá um dia,
tomado ao acaso, em que o encontro irá ocorrer. É verdade que em (12) temos um caso
de futuro que pode ser interpretado como um modal e sabemos que itens de escolha
livre se combinam muito bem com modais. Mas, o mesmo ocorre em (13) abaixo:
(13) A gente se encontrou qualquer dia desses.
Finalmente, há itens de escolha livre que são existenciais, como sugeriu Lima da
Silva (2007) em sua dissertação de mestrado, para o ‘algum’ e outros que são
universais, como a expressão ‘tudo quanto/que é N’5:
(14) Tudo quanto/que é aluno tirou 10 na prova.
E há outras que são “não” marcadas quantificacionalmente, como ‘não importa
qual/que’, ‘tanto faz o que’. Para nós, ‘qualquer’ veicula apenas aleatoriedade, a
universalidade para ser um efeito colateral da escolha livre.
2. ‘Qualquer’ é um “aleatorizador”: mas o que significa isso?
Uma rápida busca no google nos mostra que ‘qualquer N’ ocorre em várias
posições, principalmente em sintagmas preposicionados, que semanticamente se unem
pela idéia de “aleatoriedade”, escolha livre. Ratificando o que já dissemos, em alguns
contextos simplesmente não é possível substituir ‘qualquer N’ por uma quantificação
universal, como em (15) e (16), em outros essa substituição é inadequada porque produz
condições de verdade ligeiramente distintas, como em (17) e (18):
5 Agradeço a Cristina de Souza Prim ter me chamado atenção para essa expressão.
5
(15) Abraçadas uma a outra, como crianças cochichando qualquer coisa,.
(16) Justiça a qualquer preço.
(17) e o direito que uma MULHER de 9 anos (ou de qualquer outra idade)
tem de abortar
(18) “comparar qualquer número da economia de hoje com o início de 2008
vai mostrar piora substancial;” (Clóvis Rossi, Folha de São Paulo, 11/03/2009)
Para comprovamos (18) precisamos apenas sortear um número da economia de hoje, no
caso da substituição por ‘todo’ essa verificação requer que sejam verificados cada um
dos números.
Independente do contexto em que ‘qualquer N’ aparece, a substituição que é sempre
possível é pela expressão ‘não importa qual’, que indica explicitamente a escolha livre.
Experimente substituir.
A contribuição semântica de ‘qualquer’ é fornecer alternativas para que possa haver
“escolha”, isto é, as alternativas estão ligadas pela disjunção inclusiva6. Assim, quando
afirmamos que João sai com qualquer mulher, estamos dizendo que as alternativas que
constituem o domínio definido pelo predicado ‘mulher’ estão em disjunção: Ele sai com
Joana ou ele sai com Maria ou ele sai com Carla. Como se trata de uma disjunção
inclusiva, pode bem ser que ele saia com todas, mas essa não é uma necessidade.
Combinado com predicados genéricos, a interpretação de exclusão de alternativas,
gerada em alguns contextos, provavelmente via implicatura escalar também presente
nos usos correntes de ‘ou’, não é deflagrada. Em contextos em que a exclusão é
necessária por razões pragmáticas, a leitura inclusiva é bloqueada. Assim, em (8),
‘Carlos teve qualquer problema (e por isso chegou atrasado)’, entendemos que ele teve
um problema que causou o seu atraso, porque em geral não temos vários problemas,
mas esse impedimento não é dado pela semântica de ‘qualquer’.
Quando um falante veicula semanticamente que há alternativas disjuntas num
contexto episódico perfectivo, como em (8), em que a sentença veicula que João teve
um problema, mas que há alternativas de problema, problema a ou problema b, ele
implica seu desconhecimento de qual problema exatamente ocorreu; implica que ele não 6 Essa análise difere substancialmente da proposta de Aloni (2002) para quem as alternativas estão em disjunção exclusiva. Dessa forma ela explica o estranhamento de (7) acima que seria contraditória porque as alternativas estão em exclusão ao passo que a quantificação universal impõe que todas estejam disponíveis. O problema é que esse raciocínio deveria também se aplicar a (4)!
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sabe qual é o problema. Ao usar um item de escolha livre, o falante explicita que
desconhece a “identidade” do referente, dado que há alternativas. Ele deve efetivamente
desconhecê-la porque o método é cego. Por isso, o estranhamento da seqüência
discursiva abaixo, ausente no uso do indefinido ‘um’, compatível com situações em que
não há alternativas:
(19) * João teve qualquer problema, ficou sem gasolina..
(20) João teve um problema, ficou sem gasolina.
‘Qualquer’ exige a existência de alternativas em disjunção (inclusiva), logo ele é
incompatível com a identificação de um indivíduo em particular, mesmo que a sentença
expresse que há um indivíduo sua identidade é desconhecida (ou apresentada como tal)
porque há alternativas. Logo, o falante ao explicitar que sabe que houve um problema,
mas que há alternativas, dispara a implicatura de que ele não sabe qual é esse problema.
Jayez & Tovena (2005) tomam a não individualização como o traço essencial dos itens
de escolha livre. No nosso entendimento, a não individualização é decorrência da
exigência de que há alternativas igualmente prováveis para serem escolhidas.
A necessidade de alternativas exigida por ‘qualquer N’ é também máxima, isto
é, não é possível excluir do domínio nenhuma alternativa. Suponha mais uma vez que
temos três mulheres, ao usar ‘qualquer N’ temos necessariamente que considerar o
domínio máximo de alternativas. Autores como Kratzer & Shimoyama (2002) e
Chierchia (2006), na esteira dos pioneiros Kadmon & Landman (1993), entendem que a
contribuição semântica atrelada a escolha livre é precisamente a ampliação maximal do
domínio, o que implica em considerar também os casos não normais. Nesse caso, para a
checagem, o domínio máximo deve estar disponível, devemos incluir os casos
excepcioniais, o que explica o estranhamento de (22):
(21) Qualquer coruja caça, mesmo as doentes..
(22) ?? Qualquer coruja caça, a não ser as doentes.
Um exemplo famoso é o das batatas na geladeira. Se ‘qualquer batata serve para
fazer esse suflê’, então ele pode ser feito mesmo com aquelas batatas que já estão
murchas e criando raízes. Considerar casos excepcionais é ampliar o domínio para além
dos mundos normais, afinal no mundo normal ninguém faz suflê com batata criando
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raízes. Nesse ponto entra o componente modal associado aos itens de livre escolha.
Dayal (1998), por exemplo, trata o ‘any’ como um operador universal modal. No nosso
entendimento, um item de escolha livre toma como domínio da quantificação, universal
ou existencial, mundos alternativos que não estão tão próximos do mundo real.
Mas domínio máximo não explica o contraste entre (10) e (11) acima, já que
também com ‘todo’ há maximalidade7. Ou a diferença entre:
(23) Pegue qualquer carta do baralho.
(24) Pegue todas as cartas do baralho.
Para explicar essa diferença é preciso também ter a noção de aleatoriedade, que é dada
pelo fato de que as alternativas estão em disjunção em (23), enquanto elas estão em
conjunção em (24): o pedido em (24) é para que se pegue cada uma das cartas (a carta a
e a carta b e...) ao passo que em (23), pede-se para que se escolha aleatoriamente (a
carta a ou a carta b)... Semanticamente, teríamos que para todas as alternativas há um
mundo na base modal em que essa alternativa é escolhida. No final, todas as alternativas
são escolhidas, mas isso não necessariamente ocorre no mundo real. Se, numa situação
limite, o ouvinte pega todas as cartas do baralho, ele está dessa forma rompendo com
uma máxima pragmática, já que ao utilizar ‘qualquer’ o falante solicita que a verificação
seja aleatória (exaurir o conjunto é deixar de ser aleatório).
A ampliação de domínio também não explica porque a identidade do referente
não é conhecida. Para que o referente permaneça “oculto” é preciso que haja
alternativas a ele; ele não é identificável, porque há necessariamente alternativas a
serem escolhidas. Não é possível usar ‘qualquer N’ se se souber a identidade do
referente, porque então não há mais “escolha” livre.8
Assim, tanto o fato de que se veicula desconhecimento do referente quanto a não
exaustividade parecem ser decorrência da escolha aleatória que exige que todas as
alternativas estejam igualmente disponíveis; o que a ampliação do domínio garante é
que nenhuma entidade deixará de estar disponível para ser examinada (embora ela não
precise ser acionada na verificação), inserindo o elemento modal.
7 Ver Quadro Gomes (2009)8 Usar uma expressão de escolha livre quando é conhecimento mútuo que tanto falante quanto ouvinte sabem individualizar o referente (e sabem que eles sabem isso) gera implicaturas.
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Domínio máximo e aleatoriedade são incompatíveis com a determinação de um
evento definido:
(25) * Qualquer queda do João aconteceu ontem às 2.
Não parece haver alternativas de evento, ao contrário parece haver um único evento de
queda, o que inviabiliza o uso de ‘qualquer’. Sem alternativas não é possível usar o
‘qualquer’.
Assim, a inserção de ‘qualquer N’ num ambiente episódico é problemática se
não for possível haver alternativas; a definição do momento exato da queda impede que
haja alternativas de queda. Note o contraste:
(26) ?? A Maria leu qualquer livro.
(27) A Maria leu qualquer livro que estava na lista de leitura.
Para Dayal, ‘any’ é um quantificador universal e a não aceitabilidade de (26) e (28) se
explica pelo fato de que a torta teria que ser roubada por todas as pessoas e Maria teria
que ter lido todos os livros. Aparentemente esse bloqueio é pragmático. A função do
“subtrigging” é criar intervalos temporais, que permitem distribuir indivíduos e
situações.
Explicar o contraste entre essas sentenças e ao mesmo tempo manter que é
possível usar ‘qualquer N’ em ambiente episódicos, como mostrou (8) e também as
sentenças abaixo, não é tarefa fácil, ao mesmo para o que estamos propondo, porque se
‘qualquer’ gera alternativas e é possível impor uma leitura exclusiva via pragmática,
esse raciocínio deveria salvar (26). Ao mesmo tempo, o que o subtrigging e também o
uso de nomes genéricos como ‘coisa’ e ‘um’ parecem fazer é ampliar o domínio
maximamente, abrindo caminho para as alternativas:
(28) Ontem falei/encontrei com qualquer um que queria falar comigo.
(29) Comprei qualquer caderno que estava na promoção.
(30) Comi qualquer coisa antes de vir pra cá.
(31) Ontem à noite li qualquer coisa e dormi.
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Imaginamos com (30) que o falante não tenha comido todas as alternativas de coisas,
mas antes que ele comeu uma coisa tomada aleatoriamente (veja também o efeito
“minimizador”, o falante não comeu algo substancioso); o mesmo vale para a sentença
em (31). A sentença em (32) é indeterminada: o falante pode ter comido todas as coisas
que viu pela frente ou apenas algumas delas.
(32) Comi qualquer coisa que eu vi pela frente.
Resumindo: estamos propondo que a semântica de um item de livre escolha exige que
haja alternativas e que o domínio seja máximo, o que introduz um ingrediente de
modalidade. Para todas as alternativas, tomadas no domínio máximo, existe um mundo
na base modal em que essa alternativa tem a propriedade em questão.
3. A negação e ‘qualquer N’
Talvez o que primeiro apareça quando pensamos sobre a relação entre ‘qualquer
N’ e a negação seja o fato de que ela torna natural sentenças com ‘qualquer’ e predicado
episódico:
(33) Ontem, não encontrei qualquer aluno.
Talvez por isso Ilari (1984) tenha sugerido que ‘qualquer’ é um item de polaridade
negativa. Mas esse não pode ser o caso, porque ‘qualquer N’ ocorre em contextos
positivos e que são de acarretamento crescente9, como em:
(34) Todo aluno leu qualquer livro da lista.
Se ‘qualquer N’ fosse uma expressão de polaridade negativa deveríamos esperar que a
sentença em (34) fosse agramatical, como ocorre em (35) abaixo:
(35) * Todo aluno leu sequer um livro da lista.
9 O tópico polaridade negativa já é bastante explorado. Uma propriedade que se costuma associar a eles é o fato de que eles exigem estar em contextos de acarretamento decrescente (limitado, Heim (1987)).
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A negação torna aceitável o uso de ‘qualquer N’ em contextos episódicos, porque com
ela o domínio está maximinizado e a escolha pode ser aleatória, já que não importa qual
seja a entidade escolhida.
Ainda com relação à interação com a negação há dois outros fatos curiosos.
Quando na posição de sujeito de sentenças genéricas, sua combinação com a negação é
exdrúxula:
(36) * Qualquer aluno não cola.
Mas essa não é uma característica exclusiva de ‘qualquer’, o mesmo se nota com ‘todo
N’ e ‘todos os N’. A explicação para esse fato deve talvez ser procurada na existência
de um item lexical especializado para negação universal: ‘nenhum’. Nada podemos
dizer sobre essa restrição.
Outro fato curioso é que a combinação da negação com ‘qualquer N’ na posição
de objeto produz sistematicamente sentenças ambíguas, o que sugere que ‘qualquer’
seja algum tipo de operador, uma hipótese que iremos questionar. Retornemos à
sentença em (33): ‘Ontem, não encontrei qualquer aluno.’ Essa sentença comporta duas
interpretações, cada qual acompanhada por uma curva entonacional bem particular, que
carecem de um estudo mais detalhado: se houver ênfase contornando entoacionalmente
‘qualquer’, proferido com acento ascendente em ‘quer’, a interpretação será de que o
falante encontrou um aluno, um aluno que de alguma forma se destaca. No entanto, é
também possível a curva entoacional contornar enfaticamente o sintagma nominal
inteiro ‘qualquer aluno’ e ‘qualquer’ ser proferido silabicamente. Nesse caso, a negação
atua aleatoriamente: considere o domínio máximo, escolha aleatoriamente uma
alternativa, o falante não encontrou essa alternativa. Nesse caso, a sentença é sinônima
de ‘Ontem eu não encontrei nenhum aluno’, a forma mais natural de expressarmos esse
conteúdo.10 Essas duas interpretações estão explicitadas abaixo:10 Inicialmente, acreditávamos que a interpretação preferencial de (33) era (37). Uma busca via google mostrou que não é esse o caso. Ao contrário, a interpretação em (37) é sempre dada explicitamente. Casos em que a negação está pré-verbal tem leitura preferencial como (38). Eis alguns exemplos:
(1) Ada não queria viver no Rio ou qualquer outra cidade grande. Conversamos muito mas não chegamos a qualquer decisão.
(2) Fiesp diz "não temer qualquer tipo de investigação"
3. "A denúncia que fazia referência ao Banco Insular ao lado do BPN (Banco Português de Negócios) não explicava qualquer relacionamento. Era uma denúncia muito simples, que tinha duas ou três linhas" afirmou o responsável à Comissão de Inquérito ao caso BPN e supervisão.
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(37) Não foi qualquer aluno que eu encontrei ontem.
(38) Ontem não encontrei sequer um aluno.
Podemos imaginar que na interpretação apresentada (37) a negação incide sobre
a aleatorização, negando-a, num processo semelhante à negação do universal (ou a
negação metalingüística): não qualquer, apenas alguns. Se as alternativas estão em
disjunção - (p v q) -, a maneira de capturar essa interpretação é negando os disjuntos,
distribuindo a negação entre eles: (~p v ~q)11. Suponha que temos três alunos: João,
Pedro e Paulo. Para todas as alternativas existe um mundo em que eu não encontrei essa
alternativa. Teremos: não encontrei João ou não encontrei Pedro ou não encontrei
Paulo. Note que nesse caso é possível que o falante tenha encontrado um ou mais dos
alunos, já que o que está em disjunção é a negação. Essa sentença só será falsa se o
falante encontrou todos os alunos. Essa solução permite que a sentença em (33) seja
verdadeira se o falante não encontrou nenhum aluno, refletindo o problema já
encontrado com a sentença em (23), ‘Pegue qualquer carta’, em que no limite pode-se
pegar todas as cartas. O bloqueio deve nesse caso ser pragmático. Algo como: se o
falante quisesse negar todas as alternativas, ele poderia ter usado ‘nenhum’ ou proferido
(33) com outra entonação, se não o fez é porque ele quer bloquear essa possibilidade.
Note ainda que o tratamento que estamos propondo não precisa entender que a
aleatorização seja o resultado da aplicação de um operador.
Na interpretação em (38), aleatoriza-se a negação: não importa qual o indivíduo
escolhido, o falante não encontrou ele. Nesse caso, temos a negação atuando sobre a
disjunção - ~ (p v q) -, cujo efeito é ser verdadeira apenas no caso em que o falante não
encontrou nenhum aluno (se p e q forem falsas). Nega-se todas as alternativas e temos o
resultado esperado. Para todas as alternativas da base modal não há um mundo em que o
falante a tenha encontrado.
O próximo exemplo introduz a questão da avaliação:
(39) Eu não como qualquer carne.
11 Façamos a derivação lógica: (~p v ~q) é verdadeira se ~p é verdadeira ou se ~q é verdadeira ou ambas. Ela só é falsa se tanto ~p quanto ~q forem falsas, ou seja se p e q forem verdadeiras.
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Na interpretação mais natural, o falante veicula que ele come carne, mas essa escolha
não é aleatória: algumas ele come, outras não. Ele é “opinativo”, ou seja, as alternativas
não são mais igualmente válidas. É essa leitura que parece ser metalingüística em que
estaríamos negando o uso de ‘qualquer’: não é possível usar ‘qualquer’ nessa situação.
Essa interpretação ganha força na medida em que há algo de “correção” nesse uso da
negação. Estamos propondo que, semanticamente, (39) veicula que para todas as
alternativas há um mundo em que o falante não come aquela alternativa, isto é, há
mundos em que ele come aquela alternativa. Nega-se a aleatoriedade da escolha. Em
geral, (39) também veicula que o falante só come carnes especiais. Como capturar essa
significação?
Por que o falante expressa que há alternativas para negar que elas sejam
“equivalentes”, para negar que a escolha seja aleatória? Porque ele quer veicular, via
implicatura, que as alternativas estão ordenadas, que ele é “opinativo”. Essa ordenação
das alternativas é dada contextualmente. Se a conversa for sobre cortes de carne de
vaca, o falante implica que ele come apenas alguns tipos, aqueles mais nobres, como
veremos na próxima seção. Se estamos falando sobre carnes mais saudáveis, elas são
ordenadas por esse critério e as carnes brancas aparecem como a melhor alternativa.
Vamos, então, às implicaturas.
4. ‘Qualquer N’ e suas implicaturas
Uma outra dimensão normalmente atrelada ao uso de itens que veiculam a escolha
livre é a da avaliação, que o falante expressa, positiva ou depreciativa, a depender do
contexto:
(40) Não é qualquer aluno que faz um trabalho desses.
Como já mostramos na seção anterior, com (40), o falante nega a aleatoriedade:
um aluno fez esse trabalho, mas não é possível escolhê-lo aleatoriamente (e por isso a
negação da livre escolha é compatível com a identificação do referente: Não é qualquer
aluno que fez isso, foi o Carlos). Até aqui estamos no plano semântico. Passamos para o
plano pragmático quando acrescentamos a implicatura de que essas alternativas estão
ordenadas. O falante usou um item de livre escolha para negá-lo porque ele quer
veicular que ele tem uma opinião sobre as alternativas, que elas estão em algum tipo de
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ordenamento e com isso ele pode também expressar a sua avaliação. Qual critério é
utilizado para ordenar as alternativas depende do contexto de enunciação. Se sabemos
que o trabalho está acima da média, então vamos entender que as alternativas que estão
sendo negadas são as que tomam os alunos da média para baixo, ou seja, só os alunos
mais aptos poderiam ter feito esse trabalho. Veja que partimos do dado de que o
trabalho está acima da média. Podemos, no entanto, selecionar da média para baixo.
Suponha que o trabalho esteja muito ruim, nesse caso, a seqüência discursiva para (40)
seria: ‘só os muito vagabundos.’ Se sabemos que o trabalho está ruim, então as
alternativas que estão sendo negadas referem-se àqueles que fariam bem o trabalho.
Logo, esse trabalho só poderia ser feito por alunos incompetentes.
Vejamos agora um caso de sentença afirmativa:
(41) Qualquer pesquisador entende essa questão.
Do ponto de vista semântico, a sentença expressa que considerando o domínio
máximo de pesquisadores, que está em disjunção inclusiva, pode-se escolher livremente
porque independente da escolha, mesmo que por acaso se tome o pesquisador menos
preparado, o resultado será o mesmo, ele entende a questão em questão. O domínio não
está ordenado. Se o falante optou por explicitar que a escolha do pesquisador toma o
domínio máximo e é livre, é porque ele quer implicar que não há restrições para se
entender o problema. Não há restrições ao pesquisador porque a questão é entendida
independentemente do critério pesquisador. Logo, ela deve ser uma questão
extremamente simples, tão simples que qualquer pesquisador a entende. O raciocínio
depende do fato de que ampliamos o domínio para incluir até mesmo aqueles que são
marginalmente pesquisadores. Que se trata de uma implicatura pode ser demonstrado
pelo fato de que é possível cancelá-la:
(42) Qualquer matemático sofre para entender essa questão.
Dado o que sabemos sobre matemáticos e a presença do verbo ‘sofrer’ somos levados a
entender que se trata de uma questão muito difícil, já que se estamos no domínio
máximo, ele inclui aqueles que receberam a Medalha Fields. Se todos se comportam da
mesma forma, se todos sofrem para entender a questão, é porque ela é difícil.
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5. Outras expressões de escolha livre
‘Qualquer N’ não é o único aleatorizador no português brasileiro. Nesta seção
vamos apresentar algumas outras expressões de escolha livre, sem uma discussão mais
detalhada sobre elas, a não ser para ‘um N qualquer’.
5.1 Um N qualquer
A grande diferença entre ‘qualquer N’ e ‘um N qualquer’ é que esse último não
parece poder expressar universalidade de uma maneira natural, muito provavelmente
por causa da presença de ‘um’, que impõe que as alternativas estão em exclusão. A
quantificação parece, pois, ser dada pelo ‘um’ e o que ‘qualquer’ faz é colocar as
alternativas em disjunção:
(43) ?? Um homem qualquer é mortal.
O estranhamento de (43) parece ser decorrência de que semanticamente veicula-se que
há uma entidade exclusiva que é homem, embora não seja possível identificá-la, que é
mortal, ao passo que sabemos que todos somos mortais.12 O estranhamento desaparece
na sentença abaixo, porque agora é possível atribuir um predicado genérico a apenas um
indivíduo:
(44) Um aluno qualquer cola na prova.13
O falante veicula que há um aluno que cola mas como há alternativas ele não sabe quem
é esse aluno, sua identidade. Importante notar que a leitura universal está bloqueada,
mas não pelas alternativas que continuam em disjunção, mas pelo ‘um’, que impõe que
elas estejam em exclusão. Essa também parece ser a explicação para o estranhamento da
sentença (45), em contraste com (46):
12 ‘Um homem, qualquer um, é mortal’ é boa porque agora ‘um’ é independente e ‘qualquer um’ explicita a aleatoriedade. 13 Preferencialmente a expressão ocorre com predicados episódicos, ‘um aluno qualquer está colando na prova’, o que mais uma vez aponta para uma especialização de uso e parece ligado ao fato de que a cardinalidade implica na existência, o que nos empurra para o episódico.
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(45) * Gosto de um cachorro qualquer.
(46) Gosto de qualquer cachorro.
A delimitação do número impõe que se trata de pelo um cachorro, mas não parece ser
possível ser capaz de identificar que há um cachorro de que se gosta sem se saber a
identidade dele. Como em (46) os indivíduos estão em disjunção inclusiva e estamos
num contexto “genérico” (predicado de indivíduo), a leitura é universal: não importa
qual seja o cachorro, o falante gosta dele.
Na posição de objeto em sentenças episódicas, há uma implicatura
conversacional generalizada de “rebaixamento” (facilmente interpretada como
“desprezo”):
(47) Ontem eu comprei um livro qualquer.
O falante implica que não se trata de um livro muito importante, precisamente porque
ele não escolheu o livro, tomou aleatoriamente. Mas de novo essa é uma implicatura.
Semanticamente veicula-se que houve aleatoriedade, isto é, não houve escolha:
(48) Peguei um livro qualquer e sai. Só em casa, vi que era uma obra
raríssima.
A interação com a negação é curiosa. A única possibilidade parece ser a negação
de ‘qualquer’:
(49) Não comprei um livro qualquer.
Em (49) a única interpretação disponível é que o falante comprou um livro, mas não foi
um livro qualquer. O falante afirma que algumas dessas alternativas não são válidas, ou
seja ele é “opinativo”. E aí temos as implicaturas já discutidas. A pergunta que sobra é:
por que a negação de todas as alternativas não está disponível? Talvez pela existência de
‘sequer’ (‘Não comprei um livro sequer.’ Ou ‘Não comprei sequer um livro’), que é um
item de polaridade negativa.
Uma outra questão complicada é o uso da expressão ‘um N qualquer’ em
posição predicativa, impossível para ‘qualquer N’. Aparentemente, essa construção é
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restrita, ocorrendo naturalmente apenas com algumas profissões e com predicados
genéricos como ‘coisa’, ‘produto’:
(50) ?? Esse é um livro qualquer.
(51) João é um escritor qualquer.
(52) Carro hoje é um produto qualquer.
Em (52) não há interpretação depreciativa. A sentença abaixo tampouco parece ser
depreciativa (veja o trecho na nota 8, tirado de um blog de patricinhas):
(53) Ela é uma empregada qualquer.14
Parece, pois, que o julgamento depreciativo é uma implicatura, fortemente associada a
alguns predicados, como em (51). Como chegamos a avaliação depreciativa de que João
é um escritor ruim (abaixo da média)? Primeiramente, ‘um escritor qualquer’ está na
posição predicativa. Como se trata de um predicativo, estamos indicando pertença a um
conjunto que não é mesmo ordenado. O que parece ocorrer, nesse caso, é que a adição
de ‘qualquer’ impõe que o domínio seja considerado maximamente, incluindo casos que
não seriam normalmente incluídos. Ora se o falante pode simplesmente dizer ‘João é
um escritor’ para expressar que João é escritor, por que ele disse mais do que precisaria?
Por que ele disse explicitamente que é preciso considerar o conjunto máximo, incluindo
casos marginais, para afirmar que João é um escritor? Porque é só nessa condição que
podemos considerá-lo escritor. Logo, João é um escritor apenas se considerarmos as
“bordas” do ser escritor, seus casos mais marginais. O que implica que ele não deve ser
um bom escritor.
Outro aspecto interessante é que o uso de ‘um N qualquer’ em posição
predicativa parece ser uma expressão de polaridade negativa:
(54) Esse não é um livro qualquer.
(55) a. Ela não é uma mulher qualquer.
b. ?? Ela é uma mulher qualquer.14 “Gente,eu tenho uma amiga super in que também é patricinha,mais ela é do RJ e ela veio passar uns dias aqui em casa,afinal ela ainda está de férias!!(Ai que vida boa) bom,eu recebi uma empregada nova,chamada Mariana,ela tem uns torno de 17 ou 18 anos,ela é uma empregada qualquer.” http://inforum.insite.com.br/6154/msgs/393/
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Note que (55a) não diz o mesmo que (56):
(56) Ela não é uma mulher.
Em (56) negamos que ela pertença ao conjunto das mulheres (talvez por ela ser ainda
menina), mas com (55a) mantemos que ela é mulher, o que negamos é que ela seja uma
mulher como outra qualquer, ela tem algo de especial (para o bem ou para o mal). Mais
uma vez a negação parece incidir sobr e o ‘qualquer’. O algo de especial é dado
contextualmente, como pode ser comprovado pelo fato de que pode ser negativo:
(57) Ele não é um machão qualquer.
(58) Ele não é um bandido qualquer.
É possível entender que os julgamentos veiculados por essas sentenças sejam negativos:
ele é um super machão, ele é um bandido terrível, mais que sanguinário.
Mas como funciona essa negação? O que está sendo negado? O ‘não’ parece
negar a aleatoriedade, mas na posição predicativa não podemos falar em alternativas,
porque estamos atribuindo uma propriedade a um indivíduo. Na afirmativa, dissemos
que a diferença é que ao usar ‘qualquer’ o falante amplia maximamente o conjunto,
incluindo casos marginais, disparando portanto implicaturas: para que esse indivíduo
pertença a esse conjunto é necessário incluir casos marginais, portanto é preciso
considerar mundos não normais, mundos em que para ser escritor basta que ele escreva.
O que ocorre na negação?
(59) Ele não é um escritor qualquer.
Na negação, o falante nega que para considerarmos que ele seja um escritor tenhamos
que considerar o conjunto máximo, incluindo as margens. Ao contrário, ele informa que
ele é um escritor mesmo que não consideremos os casos marginais. Ao negar o
‘qualquer’, que impõe que o conjunto seja formado por propriedades que são
compartilhadas até mesmo por casos marginais, o falante veicula que ele tem
propriedades “particulares”, que nem todos os escritores têm. Ele restringe o domínio de
‘escritor’; nega que o domínio é máximo. Semanticamente, o domínio do predicado é
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restrito: não considere o conjunto máximo, ele pertence a extensão restrita do predicado.
O que irá desencadear implicaturas. Mais uma vez o fato de que tendemos a atribuir
propriedades positivas é dado contextualmente. Nos exemplos em (57) e (58) podemos
imaginar contextos em que consideramos que as propriedades que os tornam
particulares enquanto machões ou bandidos são negativas.
5.2 Tudo que/quanto é N15
Nesse caso a quantificação é fixada pela presença de ‘tudo’ que é um universal,
não há possíbilidade de leitura existencial, ou seja, as alternativas estão em disjunção
inclusiva e só a inclusão vale, por causa do operador universal:
(60) Tudo que/quanto é homem é mortal.
(61) Tudo que/quanto é aluno colou na prova.
(62) “Marisa Monte lê tudo quanto é porcaria”.
(63) “Meu amigo já tomou tudo quanto é remédio”.
Não há como ter uma leitura em que se considere parcialmente o conjunto, nem mesmo
na posição de objeto, como em (62) e (63). Nesse caso afirma-se semanticamente que
todas as alternativas valem (note que esse é o caso de ‘qualquer N’ em sentenças
genéricas). A diferença entre essa expressão e ‘qualquer’ é que esse último parece
veicular alternativas, sem se comprometer com o fato de que todas sejam válidas (que
isso possa ocorrer deve-se a sua combinação com predicados genéricos, por exemplo).
Compare:
(64) O João (es)tá com qualquer problema.
(65) O João (es)tá com tudo quanto é problema.
Em (64) o falante veicula que não sabe qual é o problema que João tem porque há várias
alternativas “possíveis”: ele pode estar com o problema a ou pode estar com o problema
b ou com os dois. Em (65), o falante afirma que todas as alternativas, consideradas
maximamente, são válidas (é claro que estamos falando do mundo que a linguagem
15 Cristina de Souza Prim está, no momento, desenvolvendo uma pesquisa sobre essa expressão.
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constrói), por causa da presença do quantificador universal. Qual é a diferença entre
usas ‘tudo quanto/que’ e ‘todos’?:
(66) ?? O João está com todos os problemas.
Em (66), o falante veicula que sabe quais são os problemas; os problemas são definidos,
conhecidos. Já em (65), o falante desconhece quais são os problemas, não é capaz de
idenficá-los. Além disso, com (66) o domínio é restrito àqueles problemas que o falante
sabe que João têm, enquanto que em (65), o domínio é ampliado para que sejam
consideradas até os problemas menos óbvios. É claro que essa é uma questão que
precisa ainda ser investigada.
A interação com a negação mais uma vez mostra que a interpretação preferencial
é de negação do universal; com (67), veicula-se, mais naturalmente, que ela lê alguns
livros; mas a alternativa da universalidade da negação, isto é, ela não lê livro algum,
existe, embora ela dependa de uma entonação particular e seja mais difícil de obter:
(67) Marisa Monte não lê tudo quanto é livro.
5.3 Outras maneiras de expressar a escolha livre
Há ainda outras maneiras de expressar a escolha livre, em particular: ‘tanto faz’
(‘tantufas’) e ‘não importa qual/que’, que parecem claramente exprimir que a escolha
não é restrita. Eis um exemplo:
(68) “Tantufas sejam os militares, o Cretináceo ou o Dirceu. De uma maneira
ou de outra, a gente sempre paga a conta.”
A literatura (von Fintel 2000) também entende que as relativas livres, como
exemplificada abaixo, expressam escolha livre:
(69) O que quer que o João esteja cozinhando tem muito alho.
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Uma diferença importante é que agora temos uma expressão de escolha livre que é
definida. Ou seja, ser ou não definido parece também ser independente da expressão da
escolha livre. Mas esse é um tópico a ser explorado.
6. Conclusão
Como conclusão ficam algumas especulações que qualquer dia desses eu
enfrento... A estrutura que parece subsidiar o sintagma ‘qualquer N’ parece ser de uma
sentença wh, afinal há a presença de ‘qual’. O que temos procurado é uma semântica em
que as alternativas em disjunção sejam dadas pelo ‘qual’, ou seja, na expressão
‘qualquer’ ele funciona da mesma maneira, como uma palavra wh e tem as mesmas
restrições: é preciso que haja mais de um indivíduo e eles estão em alternativa. O fato
de que essas alternativas estão em disjunção inclusiva parece ser também o caso para o
‘qual’, já que o diálogo abaixo parece possível:
(70) Qual aluno tirou 10?
O João e o Pedro.
A exclusão para apenas uma alternativa parece ser pragmática, já que podemos ter como
resposta ‘todos’.
A ampliação do domínio e consequentemente a modalidade parece ser a
contribuição de ‘quer’, incluindo mundos não normais (esse caráter de modalidade em
‘qualquer’ aparece claramente quando temos a forma estendida da relativa ‘qualquer
que seja o aluno’, na presença obrigatória do subjuntivo).
Onde ocorre essa operação? No nosso entender, ela ocorre no nível do sintagma
(e não em IP como sugere Aloni(2002)), mas essa é um questão para a qual não temos
um argumento.
Qualquer ajuda é bem vinda!
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