Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

21
1 Refletindo sobre a escolha livre Roberta PIRES DE OLIVEIRA – UFSC/CNPq As línguas naturais não apenas expressam quantidades – ou relações entre conjuntos, para falar de uma maneira mais precisa -, mas o fazem “modalizando” a quantificação, o que nem sempre é fácil de captar num sistema formal, mesmo recorrendo a implicaturas pragmáticas e a sistemas mais poderosos como a semântica de mundos possíveis. Assim, embora todas as sentenças abaixo expressem universalidade, elas não o fazem da mesma maneira, não veiculam, portanto, exatamente o mesmo conteúdo: (1) Todo homem é mortal. (2) Todos os homens são mortais. (3) Tudo quanto é homem é mortal. (4) Qualquer homem é mortal. (5) O homem é mortal. Explicitar cada uma dessas diferenças é uma investigação de microscópio que requer várias decisões, entre elas distinguir o que é veiculado semanticamente e portanto impossível de ser cancelado daquilo que é do domínio pragmático, uma inferência passível de suspensão 1 . Este artigo busca explicar a contribuição semântica de ‘qualquer’, através de uma reflexão mais miúda sobre a escolha livre, minha tradução para “free choice”, termo que, salvo engano, foi cunhado por Ladusaw (1997 (referência a tese de 1979)). Vendler (1967), no entanto, foi o primeiro a observar que ‘any’ tem um significado especial que ele chamou de liberdade de escolha, distinguindo-o de outros universais ‘all’, ‘each’ e ‘every’. Ele argumenta que um falante que profere (6) afirma que “não importa quem você selecione entre vocês, eu posso bater nele: (6) I can beat any of you. A literatura sobre a escolha livre é vasta e se concentrou inicialmente nas restrições, talvez sob a influência da pesquisa sobre itens de polaridade, para então se deslocar para a semântica e mais recentemente, em Chierchia, para a sintaxe. Não é possível lidar com todas as questões neste artigo. Aqui vamos buscar entender a livre escolha a partir da 1 Ilari (2000) entende dessa maneira a distinção semântica e pragmática.

Transcript of Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

Page 1: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

1

Refletindo sobre a escolha livre

Roberta PIRES DE OLIVEIRA – UFSC/CNPq

As línguas naturais não apenas expressam quantidades – ou relações entre conjuntos,

para falar de uma maneira mais precisa -, mas o fazem “modalizando” a quantificação, o

que nem sempre é fácil de captar num sistema formal, mesmo recorrendo a implicaturas

pragmáticas e a sistemas mais poderosos como a semântica de mundos possíveis.

Assim, embora todas as sentenças abaixo expressem universalidade, elas não o fazem da

mesma maneira, não veiculam, portanto, exatamente o mesmo conteúdo:

(1) Todo homem é mortal.

(2) Todos os homens são mortais.

(3) Tudo quanto é homem é mortal.

(4) Qualquer homem é mortal.

(5) O homem é mortal.

Explicitar cada uma dessas diferenças é uma investigação de microscópio que requer

várias decisões, entre elas distinguir o que é veiculado semanticamente e portanto

impossível de ser cancelado daquilo que é do domínio pragmático, uma inferência

passível de suspensão1. Este artigo busca explicar a contribuição semântica de

‘qualquer’, através de uma reflexão mais miúda sobre a escolha livre, minha tradução

para “free choice”, termo que, salvo engano, foi cunhado por Ladusaw (1997 (referência

a tese de 1979)). Vendler (1967), no entanto, foi o primeiro a observar que ‘any’ tem

um significado especial que ele chamou de liberdade de escolha, distinguindo-o de

outros universais ‘all’, ‘each’ e ‘every’. Ele argumenta que um falante que profere (6)

afirma que “não importa quem você selecione entre vocês, eu posso bater nele:

(6) I can beat any of you.

A literatura sobre a escolha livre é vasta e se concentrou inicialmente nas restrições,

talvez sob a influência da pesquisa sobre itens de polaridade, para então se deslocar para

a semântica e mais recentemente, em Chierchia, para a sintaxe. Não é possível lidar com

todas as questões neste artigo. Aqui vamos buscar entender a livre escolha a partir da

1 Ilari (2000) entende dessa maneira a distinção semântica e pragmática.

Page 2: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

2

análise de ‘qualquer’, ao mesmo tempo que mostramos que há, no português brasileiro,

como nas diferentes línguas2 várias maneiras de a expressarmos. Argumentaremos que a

escolha livre não pode ser confundida com a quantificação nem com a definitude. A

quantificação universal que parece, por exemplo, presente em (4), é fruto da

combinação da escolha livre com um quantificador universal que não é dado por

‘qualquer’. Argumentaremos que semanticamente a escolha livre induz a formação de

conjuntos de alternativas, tomadas do domínio mais amplo, o que nos levará à

modalidade (no sentido formal do termo, quantificação sobre mundos possíveis), e que

estão em disjunção conjuntiva (o que acaba por produzir uma implicatura de

possibilidade)3. Essa abordagem faz juz ao fato de que os itens de escolha livre tem uma

forte relação com as relativas livres, tópico que apenas mencionaremos na conclusão.

Os efeitos pragmáticos disparados pelo uso de uma expressão de escolha livre são

variados; eles vão do desdém à idolatria e iremos mostrar como alguns deles funcionam.

1. Qualquer: não tem força quantificacional

Talvez pelo fato de que a pesquisa sobre a escolha livre tenha iniciado com a

tentativa de diferenciar o ‘any’ de outros universais – e não, por exemplo, pelo seu uso

existencial como um item de polaridade negativa - , houve uma tendência de associá-la

à quantificação universal. De fato há um laço forte entre o uso de ‘qualquer N’, em

particular na posição de sujeito, e a expressão de universalidade. Esse laço pode ser

verificado pela dificuldade de combinar esse sintagma com predicados episódicos,

como atesta o estranhamento de:

(7) # Qualquer aluno colou na prova.

O fato de que itens de escolha livre não ocorrem com o passado foi apontado por vários

pesquisadores como uma restrição (Giannakidou (1997, 2001), por exemplo, afirma,

incorretamente como atesta o PB, que itens de escolha livre só ocorrem em contextos

não verídicos, o que excluiria a sua combinação com o passado, certamente verídico).

2 Jayez & Tovena (2005) pesquisam os diferentes itens de escolha livre no francês, Giannakidou (2001) no grego.3 Essa abordagem tem influência direta da proposta de Kratzer & Shimoyama (2002), que, basendo-se em Hamblin (1973), analisam os indefinidos como indutores de conjuntos de alternativas, como as perguntas, fechados por um quantificador sentencial.

Page 3: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

3

No entanto, é possível restaurar o uso de ‘qualquer N’ com predicados episódicos

através de procedimentos de restrição de domínio: ‘Qualquer aluno da sala de semântica

colou na prova’ é uma sentença boa. Há ainda falantes que aceitam (7) imediatamente

porque supõe restrições contextuais do domínio de alunos. Esse é o fenômeno

conhecido como “subtrigging” (Legrand, apud Dayal (1998)) e ocorre não apenas com

‘any’, mas também com ‘todo’ no PB e ‘all’ em inglês.4

Além disso, não apenas há casos de uso de ‘qualquer N’ com predicados episódicos,

exemplificados abaixo em (8) e (9), como em muitos casos a sua substituição por um

sintagma com quantificador universal como ‘todos os N’ produz sentenças com

condições de verdade diferentes:

(8) João teve qualquer problema (e por isso vai chegar atrasado para reunião)

(9) Carlos veio aqui qualquer dia desses (e deixou um recado)

(10) João sai com qualquer mulher.

(11) João sai com todas as mulheres.

Se comparamos (10) e (11) notamos que para que (11) seja verdadeira é preciso que

João saia com todas as mulheres. Suponha que temos 3 mulheres, Joana, Maria e Carla.

Para (11) ser verdadeira, ele precisa sair com cada uma delas. O mesmo não vale para

(10). Para que (10) seja verdadeira é preciso que ele não escolha com qual mulher ele

vai sair. Ele sai com não importa qual mulher, mas não precisa sair com todas.

Fundamentalmente para que (10) seja verdadeira, ele não precisa exaurir o domínio,

basta que sua escolha seja aleatória.

A idéia de que com um item de escolha livre a verificação é não exaustiva já está

em Vendler que entende que a diferença entre ‘any’ e ‘all’ pode ser apreendida através

do método de verificação. Na quantificação universal presente em ‘every’ e ‘all’, diz o

autor, verifica-se exaustivamente todos os elementos do conjunto; só é possível

dizermos que é verdade que todos os homens são mortais se verificarmos um a um, ao

passo que para o ‘any’, no caso limite, basta uma única rodada de verificação, desde que

ela seja cega, para que à sentença possa ser atribuída a verdade. Em outros termos, se

sorteio aleatoriamente um e esse um verifica a proposição, o valor de verdade já pode

4 O fenômeno é ainda mais claro com ‘todo’:(1) * Todo aluno colou na prova.

O subtrigging também melhora a aceitabilidade com ‘todo’. Ver Quadro Gomes (2009) para uma explicação.

Page 4: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

4

ser estabelecido. O que importa é o método ser cego. Nesse sentido, nos diz Vendler, a

verificação de ‘any’ não é exaustiva, enquanto que para ‘all’ ela precisa ser.

É preciso, pois, desvincular a quantificação da escolha livre. Outro argumento a

favor desse desvinculamento está em (12), em que a escolha livre está combinada com

uma quantificação existencial:

(12) A gente se encontra qualquer dia desses.

(12) não veicula que iremos nos encontrar todos os dias, mas que haverá um dia,

tomado ao acaso, em que o encontro irá ocorrer. É verdade que em (12) temos um caso

de futuro que pode ser interpretado como um modal e sabemos que itens de escolha

livre se combinam muito bem com modais. Mas, o mesmo ocorre em (13) abaixo:

(13) A gente se encontrou qualquer dia desses.

Finalmente, há itens de escolha livre que são existenciais, como sugeriu Lima da

Silva (2007) em sua dissertação de mestrado, para o ‘algum’ e outros que são

universais, como a expressão ‘tudo quanto/que é N’5:

(14) Tudo quanto/que é aluno tirou 10 na prova.

E há outras que são “não” marcadas quantificacionalmente, como ‘não importa

qual/que’, ‘tanto faz o que’. Para nós, ‘qualquer’ veicula apenas aleatoriedade, a

universalidade para ser um efeito colateral da escolha livre.

2. ‘Qualquer’ é um “aleatorizador”: mas o que significa isso?

Uma rápida busca no google nos mostra que ‘qualquer N’ ocorre em várias

posições, principalmente em sintagmas preposicionados, que semanticamente se unem

pela idéia de “aleatoriedade”, escolha livre. Ratificando o que já dissemos, em alguns

contextos simplesmente não é possível substituir ‘qualquer N’ por uma quantificação

universal, como em (15) e (16), em outros essa substituição é inadequada porque produz

condições de verdade ligeiramente distintas, como em (17) e (18):

5 Agradeço a Cristina de Souza Prim ter me chamado atenção para essa expressão.

Page 5: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

5

(15) Abraçadas uma a outra, como crianças cochichando qualquer coisa,.

(16) Justiça a qualquer preço.

(17) e o direito que uma MULHER de 9 anos (ou de qualquer outra idade)

tem de abortar

(18) “comparar qualquer número da economia de hoje com o início de 2008

vai mostrar piora substancial;” (Clóvis Rossi, Folha de São Paulo, 11/03/2009)

Para comprovamos (18) precisamos apenas sortear um número da economia de hoje, no

caso da substituição por ‘todo’ essa verificação requer que sejam verificados cada um

dos números.

Independente do contexto em que ‘qualquer N’ aparece, a substituição que é sempre

possível é pela expressão ‘não importa qual’, que indica explicitamente a escolha livre.

Experimente substituir.

A contribuição semântica de ‘qualquer’ é fornecer alternativas para que possa haver

“escolha”, isto é, as alternativas estão ligadas pela disjunção inclusiva6. Assim, quando

afirmamos que João sai com qualquer mulher, estamos dizendo que as alternativas que

constituem o domínio definido pelo predicado ‘mulher’ estão em disjunção: Ele sai com

Joana ou ele sai com Maria ou ele sai com Carla. Como se trata de uma disjunção

inclusiva, pode bem ser que ele saia com todas, mas essa não é uma necessidade.

Combinado com predicados genéricos, a interpretação de exclusão de alternativas,

gerada em alguns contextos, provavelmente via implicatura escalar também presente

nos usos correntes de ‘ou’, não é deflagrada. Em contextos em que a exclusão é

necessária por razões pragmáticas, a leitura inclusiva é bloqueada. Assim, em (8),

‘Carlos teve qualquer problema (e por isso chegou atrasado)’, entendemos que ele teve

um problema que causou o seu atraso, porque em geral não temos vários problemas,

mas esse impedimento não é dado pela semântica de ‘qualquer’.

Quando um falante veicula semanticamente que há alternativas disjuntas num

contexto episódico perfectivo, como em (8), em que a sentença veicula que João teve

um problema, mas que há alternativas de problema, problema a ou problema b, ele

implica seu desconhecimento de qual problema exatamente ocorreu; implica que ele não 6 Essa análise difere substancialmente da proposta de Aloni (2002) para quem as alternativas estão em disjunção exclusiva. Dessa forma ela explica o estranhamento de (7) acima que seria contraditória porque as alternativas estão em exclusão ao passo que a quantificação universal impõe que todas estejam disponíveis. O problema é que esse raciocínio deveria também se aplicar a (4)!

Page 6: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

6

sabe qual é o problema. Ao usar um item de escolha livre, o falante explicita que

desconhece a “identidade” do referente, dado que há alternativas. Ele deve efetivamente

desconhecê-la porque o método é cego. Por isso, o estranhamento da seqüência

discursiva abaixo, ausente no uso do indefinido ‘um’, compatível com situações em que

não há alternativas:

(19) * João teve qualquer problema, ficou sem gasolina..

(20) João teve um problema, ficou sem gasolina.

‘Qualquer’ exige a existência de alternativas em disjunção (inclusiva), logo ele é

incompatível com a identificação de um indivíduo em particular, mesmo que a sentença

expresse que há um indivíduo sua identidade é desconhecida (ou apresentada como tal)

porque há alternativas. Logo, o falante ao explicitar que sabe que houve um problema,

mas que há alternativas, dispara a implicatura de que ele não sabe qual é esse problema.

Jayez & Tovena (2005) tomam a não individualização como o traço essencial dos itens

de escolha livre. No nosso entendimento, a não individualização é decorrência da

exigência de que há alternativas igualmente prováveis para serem escolhidas.

A necessidade de alternativas exigida por ‘qualquer N’ é também máxima, isto

é, não é possível excluir do domínio nenhuma alternativa. Suponha mais uma vez que

temos três mulheres, ao usar ‘qualquer N’ temos necessariamente que considerar o

domínio máximo de alternativas. Autores como Kratzer & Shimoyama (2002) e

Chierchia (2006), na esteira dos pioneiros Kadmon & Landman (1993), entendem que a

contribuição semântica atrelada a escolha livre é precisamente a ampliação maximal do

domínio, o que implica em considerar também os casos não normais. Nesse caso, para a

checagem, o domínio máximo deve estar disponível, devemos incluir os casos

excepcioniais, o que explica o estranhamento de (22):

(21) Qualquer coruja caça, mesmo as doentes..

(22) ?? Qualquer coruja caça, a não ser as doentes.

Um exemplo famoso é o das batatas na geladeira. Se ‘qualquer batata serve para

fazer esse suflê’, então ele pode ser feito mesmo com aquelas batatas que já estão

murchas e criando raízes. Considerar casos excepcionais é ampliar o domínio para além

dos mundos normais, afinal no mundo normal ninguém faz suflê com batata criando

Page 7: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

7

raízes. Nesse ponto entra o componente modal associado aos itens de livre escolha.

Dayal (1998), por exemplo, trata o ‘any’ como um operador universal modal. No nosso

entendimento, um item de escolha livre toma como domínio da quantificação, universal

ou existencial, mundos alternativos que não estão tão próximos do mundo real.

Mas domínio máximo não explica o contraste entre (10) e (11) acima, já que

também com ‘todo’ há maximalidade7. Ou a diferença entre:

(23) Pegue qualquer carta do baralho.

(24) Pegue todas as cartas do baralho.

Para explicar essa diferença é preciso também ter a noção de aleatoriedade, que é dada

pelo fato de que as alternativas estão em disjunção em (23), enquanto elas estão em

conjunção em (24): o pedido em (24) é para que se pegue cada uma das cartas (a carta a

e a carta b e...) ao passo que em (23), pede-se para que se escolha aleatoriamente (a

carta a ou a carta b)... Semanticamente, teríamos que para todas as alternativas há um

mundo na base modal em que essa alternativa é escolhida. No final, todas as alternativas

são escolhidas, mas isso não necessariamente ocorre no mundo real. Se, numa situação

limite, o ouvinte pega todas as cartas do baralho, ele está dessa forma rompendo com

uma máxima pragmática, já que ao utilizar ‘qualquer’ o falante solicita que a verificação

seja aleatória (exaurir o conjunto é deixar de ser aleatório).

A ampliação de domínio também não explica porque a identidade do referente

não é conhecida. Para que o referente permaneça “oculto” é preciso que haja

alternativas a ele; ele não é identificável, porque há necessariamente alternativas a

serem escolhidas. Não é possível usar ‘qualquer N’ se se souber a identidade do

referente, porque então não há mais “escolha” livre.8

Assim, tanto o fato de que se veicula desconhecimento do referente quanto a não

exaustividade parecem ser decorrência da escolha aleatória que exige que todas as

alternativas estejam igualmente disponíveis; o que a ampliação do domínio garante é

que nenhuma entidade deixará de estar disponível para ser examinada (embora ela não

precise ser acionada na verificação), inserindo o elemento modal.

7 Ver Quadro Gomes (2009)8 Usar uma expressão de escolha livre quando é conhecimento mútuo que tanto falante quanto ouvinte sabem individualizar o referente (e sabem que eles sabem isso) gera implicaturas.

Page 8: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

8

Domínio máximo e aleatoriedade são incompatíveis com a determinação de um

evento definido:

(25) * Qualquer queda do João aconteceu ontem às 2.

Não parece haver alternativas de evento, ao contrário parece haver um único evento de

queda, o que inviabiliza o uso de ‘qualquer’. Sem alternativas não é possível usar o

‘qualquer’.

Assim, a inserção de ‘qualquer N’ num ambiente episódico é problemática se

não for possível haver alternativas; a definição do momento exato da queda impede que

haja alternativas de queda. Note o contraste:

(26) ?? A Maria leu qualquer livro.

(27) A Maria leu qualquer livro que estava na lista de leitura.

Para Dayal, ‘any’ é um quantificador universal e a não aceitabilidade de (26) e (28) se

explica pelo fato de que a torta teria que ser roubada por todas as pessoas e Maria teria

que ter lido todos os livros. Aparentemente esse bloqueio é pragmático. A função do

“subtrigging” é criar intervalos temporais, que permitem distribuir indivíduos e

situações.

Explicar o contraste entre essas sentenças e ao mesmo tempo manter que é

possível usar ‘qualquer N’ em ambiente episódicos, como mostrou (8) e também as

sentenças abaixo, não é tarefa fácil, ao mesmo para o que estamos propondo, porque se

‘qualquer’ gera alternativas e é possível impor uma leitura exclusiva via pragmática,

esse raciocínio deveria salvar (26). Ao mesmo tempo, o que o subtrigging e também o

uso de nomes genéricos como ‘coisa’ e ‘um’ parecem fazer é ampliar o domínio

maximamente, abrindo caminho para as alternativas:

(28) Ontem falei/encontrei com qualquer um que queria falar comigo.

(29) Comprei qualquer caderno que estava na promoção.

(30) Comi qualquer coisa antes de vir pra cá.

(31) Ontem à noite li qualquer coisa e dormi.

Page 9: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

9

Imaginamos com (30) que o falante não tenha comido todas as alternativas de coisas,

mas antes que ele comeu uma coisa tomada aleatoriamente (veja também o efeito

“minimizador”, o falante não comeu algo substancioso); o mesmo vale para a sentença

em (31). A sentença em (32) é indeterminada: o falante pode ter comido todas as coisas

que viu pela frente ou apenas algumas delas.

(32) Comi qualquer coisa que eu vi pela frente.

Resumindo: estamos propondo que a semântica de um item de livre escolha exige que

haja alternativas e que o domínio seja máximo, o que introduz um ingrediente de

modalidade. Para todas as alternativas, tomadas no domínio máximo, existe um mundo

na base modal em que essa alternativa tem a propriedade em questão.

3. A negação e ‘qualquer N’

Talvez o que primeiro apareça quando pensamos sobre a relação entre ‘qualquer

N’ e a negação seja o fato de que ela torna natural sentenças com ‘qualquer’ e predicado

episódico:

(33) Ontem, não encontrei qualquer aluno.

Talvez por isso Ilari (1984) tenha sugerido que ‘qualquer’ é um item de polaridade

negativa. Mas esse não pode ser o caso, porque ‘qualquer N’ ocorre em contextos

positivos e que são de acarretamento crescente9, como em:

(34) Todo aluno leu qualquer livro da lista.

Se ‘qualquer N’ fosse uma expressão de polaridade negativa deveríamos esperar que a

sentença em (34) fosse agramatical, como ocorre em (35) abaixo:

(35) * Todo aluno leu sequer um livro da lista.

9 O tópico polaridade negativa já é bastante explorado. Uma propriedade que se costuma associar a eles é o fato de que eles exigem estar em contextos de acarretamento decrescente (limitado, Heim (1987)).

Page 10: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

10

A negação torna aceitável o uso de ‘qualquer N’ em contextos episódicos, porque com

ela o domínio está maximinizado e a escolha pode ser aleatória, já que não importa qual

seja a entidade escolhida.

Ainda com relação à interação com a negação há dois outros fatos curiosos.

Quando na posição de sujeito de sentenças genéricas, sua combinação com a negação é

exdrúxula:

(36) * Qualquer aluno não cola.

Mas essa não é uma característica exclusiva de ‘qualquer’, o mesmo se nota com ‘todo

N’ e ‘todos os N’. A explicação para esse fato deve talvez ser procurada na existência

de um item lexical especializado para negação universal: ‘nenhum’. Nada podemos

dizer sobre essa restrição.

Outro fato curioso é que a combinação da negação com ‘qualquer N’ na posição

de objeto produz sistematicamente sentenças ambíguas, o que sugere que ‘qualquer’

seja algum tipo de operador, uma hipótese que iremos questionar. Retornemos à

sentença em (33): ‘Ontem, não encontrei qualquer aluno.’ Essa sentença comporta duas

interpretações, cada qual acompanhada por uma curva entonacional bem particular, que

carecem de um estudo mais detalhado: se houver ênfase contornando entoacionalmente

‘qualquer’, proferido com acento ascendente em ‘quer’, a interpretação será de que o

falante encontrou um aluno, um aluno que de alguma forma se destaca. No entanto, é

também possível a curva entoacional contornar enfaticamente o sintagma nominal

inteiro ‘qualquer aluno’ e ‘qualquer’ ser proferido silabicamente. Nesse caso, a negação

atua aleatoriamente: considere o domínio máximo, escolha aleatoriamente uma

alternativa, o falante não encontrou essa alternativa. Nesse caso, a sentença é sinônima

de ‘Ontem eu não encontrei nenhum aluno’, a forma mais natural de expressarmos esse

conteúdo.10 Essas duas interpretações estão explicitadas abaixo:10 Inicialmente, acreditávamos que a interpretação preferencial de (33) era (37). Uma busca via google mostrou que não é esse o caso. Ao contrário, a interpretação em (37) é sempre dada explicitamente. Casos em que a negação está pré-verbal tem leitura preferencial como (38). Eis alguns exemplos:

(1) Ada não queria viver no Rio ou qualquer outra cidade grande. Conversamos muito mas não chegamos a qualquer decisão.

(2) Fiesp diz "não temer qualquer tipo de investigação"

3. "A denúncia que fazia referência ao Banco Insular ao lado do BPN (Banco Português de Negócios) não explicava qualquer relacionamento. Era uma denúncia muito simples, que tinha duas ou três linhas" afirmou o responsável à Comissão de Inquérito ao caso BPN e supervisão.

Page 11: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

11

(37) Não foi qualquer aluno que eu encontrei ontem.

(38) Ontem não encontrei sequer um aluno.

Podemos imaginar que na interpretação apresentada (37) a negação incide sobre

a aleatorização, negando-a, num processo semelhante à negação do universal (ou a

negação metalingüística): não qualquer, apenas alguns. Se as alternativas estão em

disjunção - (p v q) -, a maneira de capturar essa interpretação é negando os disjuntos,

distribuindo a negação entre eles: (~p v ~q)11. Suponha que temos três alunos: João,

Pedro e Paulo. Para todas as alternativas existe um mundo em que eu não encontrei essa

alternativa. Teremos: não encontrei João ou não encontrei Pedro ou não encontrei

Paulo. Note que nesse caso é possível que o falante tenha encontrado um ou mais dos

alunos, já que o que está em disjunção é a negação. Essa sentença só será falsa se o

falante encontrou todos os alunos. Essa solução permite que a sentença em (33) seja

verdadeira se o falante não encontrou nenhum aluno, refletindo o problema já

encontrado com a sentença em (23), ‘Pegue qualquer carta’, em que no limite pode-se

pegar todas as cartas. O bloqueio deve nesse caso ser pragmático. Algo como: se o

falante quisesse negar todas as alternativas, ele poderia ter usado ‘nenhum’ ou proferido

(33) com outra entonação, se não o fez é porque ele quer bloquear essa possibilidade.

Note ainda que o tratamento que estamos propondo não precisa entender que a

aleatorização seja o resultado da aplicação de um operador.

Na interpretação em (38), aleatoriza-se a negação: não importa qual o indivíduo

escolhido, o falante não encontrou ele. Nesse caso, temos a negação atuando sobre a

disjunção - ~ (p v q) -, cujo efeito é ser verdadeira apenas no caso em que o falante não

encontrou nenhum aluno (se p e q forem falsas). Nega-se todas as alternativas e temos o

resultado esperado. Para todas as alternativas da base modal não há um mundo em que o

falante a tenha encontrado.

O próximo exemplo introduz a questão da avaliação:

(39) Eu não como qualquer carne.

11 Façamos a derivação lógica: (~p v ~q) é verdadeira se ~p é verdadeira ou se ~q é verdadeira ou ambas. Ela só é falsa se tanto ~p quanto ~q forem falsas, ou seja se p e q forem verdadeiras.

Page 12: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

12

Na interpretação mais natural, o falante veicula que ele come carne, mas essa escolha

não é aleatória: algumas ele come, outras não. Ele é “opinativo”, ou seja, as alternativas

não são mais igualmente válidas. É essa leitura que parece ser metalingüística em que

estaríamos negando o uso de ‘qualquer’: não é possível usar ‘qualquer’ nessa situação.

Essa interpretação ganha força na medida em que há algo de “correção” nesse uso da

negação. Estamos propondo que, semanticamente, (39) veicula que para todas as

alternativas há um mundo em que o falante não come aquela alternativa, isto é, há

mundos em que ele come aquela alternativa. Nega-se a aleatoriedade da escolha. Em

geral, (39) também veicula que o falante só come carnes especiais. Como capturar essa

significação?

Por que o falante expressa que há alternativas para negar que elas sejam

“equivalentes”, para negar que a escolha seja aleatória? Porque ele quer veicular, via

implicatura, que as alternativas estão ordenadas, que ele é “opinativo”. Essa ordenação

das alternativas é dada contextualmente. Se a conversa for sobre cortes de carne de

vaca, o falante implica que ele come apenas alguns tipos, aqueles mais nobres, como

veremos na próxima seção. Se estamos falando sobre carnes mais saudáveis, elas são

ordenadas por esse critério e as carnes brancas aparecem como a melhor alternativa.

Vamos, então, às implicaturas.

4. ‘Qualquer N’ e suas implicaturas

Uma outra dimensão normalmente atrelada ao uso de itens que veiculam a escolha

livre é a da avaliação, que o falante expressa, positiva ou depreciativa, a depender do

contexto:

(40) Não é qualquer aluno que faz um trabalho desses.

Como já mostramos na seção anterior, com (40), o falante nega a aleatoriedade:

um aluno fez esse trabalho, mas não é possível escolhê-lo aleatoriamente (e por isso a

negação da livre escolha é compatível com a identificação do referente: Não é qualquer

aluno que fez isso, foi o Carlos). Até aqui estamos no plano semântico. Passamos para o

plano pragmático quando acrescentamos a implicatura de que essas alternativas estão

ordenadas. O falante usou um item de livre escolha para negá-lo porque ele quer

veicular que ele tem uma opinião sobre as alternativas, que elas estão em algum tipo de

Page 13: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

13

ordenamento e com isso ele pode também expressar a sua avaliação. Qual critério é

utilizado para ordenar as alternativas depende do contexto de enunciação. Se sabemos

que o trabalho está acima da média, então vamos entender que as alternativas que estão

sendo negadas são as que tomam os alunos da média para baixo, ou seja, só os alunos

mais aptos poderiam ter feito esse trabalho. Veja que partimos do dado de que o

trabalho está acima da média. Podemos, no entanto, selecionar da média para baixo.

Suponha que o trabalho esteja muito ruim, nesse caso, a seqüência discursiva para (40)

seria: ‘só os muito vagabundos.’ Se sabemos que o trabalho está ruim, então as

alternativas que estão sendo negadas referem-se àqueles que fariam bem o trabalho.

Logo, esse trabalho só poderia ser feito por alunos incompetentes.

Vejamos agora um caso de sentença afirmativa:

(41) Qualquer pesquisador entende essa questão.

Do ponto de vista semântico, a sentença expressa que considerando o domínio

máximo de pesquisadores, que está em disjunção inclusiva, pode-se escolher livremente

porque independente da escolha, mesmo que por acaso se tome o pesquisador menos

preparado, o resultado será o mesmo, ele entende a questão em questão. O domínio não

está ordenado. Se o falante optou por explicitar que a escolha do pesquisador toma o

domínio máximo e é livre, é porque ele quer implicar que não há restrições para se

entender o problema. Não há restrições ao pesquisador porque a questão é entendida

independentemente do critério pesquisador. Logo, ela deve ser uma questão

extremamente simples, tão simples que qualquer pesquisador a entende. O raciocínio

depende do fato de que ampliamos o domínio para incluir até mesmo aqueles que são

marginalmente pesquisadores. Que se trata de uma implicatura pode ser demonstrado

pelo fato de que é possível cancelá-la:

(42) Qualquer matemático sofre para entender essa questão.

Dado o que sabemos sobre matemáticos e a presença do verbo ‘sofrer’ somos levados a

entender que se trata de uma questão muito difícil, já que se estamos no domínio

máximo, ele inclui aqueles que receberam a Medalha Fields. Se todos se comportam da

mesma forma, se todos sofrem para entender a questão, é porque ela é difícil.

Page 14: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

14

5. Outras expressões de escolha livre

‘Qualquer N’ não é o único aleatorizador no português brasileiro. Nesta seção

vamos apresentar algumas outras expressões de escolha livre, sem uma discussão mais

detalhada sobre elas, a não ser para ‘um N qualquer’.

5.1 Um N qualquer

A grande diferença entre ‘qualquer N’ e ‘um N qualquer’ é que esse último não

parece poder expressar universalidade de uma maneira natural, muito provavelmente

por causa da presença de ‘um’, que impõe que as alternativas estão em exclusão. A

quantificação parece, pois, ser dada pelo ‘um’ e o que ‘qualquer’ faz é colocar as

alternativas em disjunção:

(43) ?? Um homem qualquer é mortal.

O estranhamento de (43) parece ser decorrência de que semanticamente veicula-se que

há uma entidade exclusiva que é homem, embora não seja possível identificá-la, que é

mortal, ao passo que sabemos que todos somos mortais.12 O estranhamento desaparece

na sentença abaixo, porque agora é possível atribuir um predicado genérico a apenas um

indivíduo:

(44) Um aluno qualquer cola na prova.13

O falante veicula que há um aluno que cola mas como há alternativas ele não sabe quem

é esse aluno, sua identidade. Importante notar que a leitura universal está bloqueada,

mas não pelas alternativas que continuam em disjunção, mas pelo ‘um’, que impõe que

elas estejam em exclusão. Essa também parece ser a explicação para o estranhamento da

sentença (45), em contraste com (46):

12 ‘Um homem, qualquer um, é mortal’ é boa porque agora ‘um’ é independente e ‘qualquer um’ explicita a aleatoriedade. 13 Preferencialmente a expressão ocorre com predicados episódicos, ‘um aluno qualquer está colando na prova’, o que mais uma vez aponta para uma especialização de uso e parece ligado ao fato de que a cardinalidade implica na existência, o que nos empurra para o episódico.

Page 15: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

15

(45) * Gosto de um cachorro qualquer.

(46) Gosto de qualquer cachorro.

A delimitação do número impõe que se trata de pelo um cachorro, mas não parece ser

possível ser capaz de identificar que há um cachorro de que se gosta sem se saber a

identidade dele. Como em (46) os indivíduos estão em disjunção inclusiva e estamos

num contexto “genérico” (predicado de indivíduo), a leitura é universal: não importa

qual seja o cachorro, o falante gosta dele.

Na posição de objeto em sentenças episódicas, há uma implicatura

conversacional generalizada de “rebaixamento” (facilmente interpretada como

“desprezo”):

(47) Ontem eu comprei um livro qualquer.

O falante implica que não se trata de um livro muito importante, precisamente porque

ele não escolheu o livro, tomou aleatoriamente. Mas de novo essa é uma implicatura.

Semanticamente veicula-se que houve aleatoriedade, isto é, não houve escolha:

(48) Peguei um livro qualquer e sai. Só em casa, vi que era uma obra

raríssima.

A interação com a negação é curiosa. A única possibilidade parece ser a negação

de ‘qualquer’:

(49) Não comprei um livro qualquer.

Em (49) a única interpretação disponível é que o falante comprou um livro, mas não foi

um livro qualquer. O falante afirma que algumas dessas alternativas não são válidas, ou

seja ele é “opinativo”. E aí temos as implicaturas já discutidas. A pergunta que sobra é:

por que a negação de todas as alternativas não está disponível? Talvez pela existência de

‘sequer’ (‘Não comprei um livro sequer.’ Ou ‘Não comprei sequer um livro’), que é um

item de polaridade negativa.

Uma outra questão complicada é o uso da expressão ‘um N qualquer’ em

posição predicativa, impossível para ‘qualquer N’. Aparentemente, essa construção é

Page 16: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

16

restrita, ocorrendo naturalmente apenas com algumas profissões e com predicados

genéricos como ‘coisa’, ‘produto’:

(50) ?? Esse é um livro qualquer.

(51) João é um escritor qualquer.

(52) Carro hoje é um produto qualquer.

Em (52) não há interpretação depreciativa. A sentença abaixo tampouco parece ser

depreciativa (veja o trecho na nota 8, tirado de um blog de patricinhas):

(53) Ela é uma empregada qualquer.14

Parece, pois, que o julgamento depreciativo é uma implicatura, fortemente associada a

alguns predicados, como em (51). Como chegamos a avaliação depreciativa de que João

é um escritor ruim (abaixo da média)? Primeiramente, ‘um escritor qualquer’ está na

posição predicativa. Como se trata de um predicativo, estamos indicando pertença a um

conjunto que não é mesmo ordenado. O que parece ocorrer, nesse caso, é que a adição

de ‘qualquer’ impõe que o domínio seja considerado maximamente, incluindo casos que

não seriam normalmente incluídos. Ora se o falante pode simplesmente dizer ‘João é

um escritor’ para expressar que João é escritor, por que ele disse mais do que precisaria?

Por que ele disse explicitamente que é preciso considerar o conjunto máximo, incluindo

casos marginais, para afirmar que João é um escritor? Porque é só nessa condição que

podemos considerá-lo escritor. Logo, João é um escritor apenas se considerarmos as

“bordas” do ser escritor, seus casos mais marginais. O que implica que ele não deve ser

um bom escritor.

Outro aspecto interessante é que o uso de ‘um N qualquer’ em posição

predicativa parece ser uma expressão de polaridade negativa:

(54) Esse não é um livro qualquer.

(55) a. Ela não é uma mulher qualquer.

b. ?? Ela é uma mulher qualquer.14 “Gente,eu tenho uma amiga super in que também é patricinha,mais ela é do RJ e ela veio passar uns dias aqui em casa,afinal ela ainda está de férias!!(Ai que vida boa) bom,eu recebi uma empregada nova,chamada Mariana,ela tem uns torno de 17 ou 18 anos,ela é uma empregada qualquer.” http://inforum.insite.com.br/6154/msgs/393/

Page 17: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

17

Note que (55a) não diz o mesmo que (56):

(56) Ela não é uma mulher.

Em (56) negamos que ela pertença ao conjunto das mulheres (talvez por ela ser ainda

menina), mas com (55a) mantemos que ela é mulher, o que negamos é que ela seja uma

mulher como outra qualquer, ela tem algo de especial (para o bem ou para o mal). Mais

uma vez a negação parece incidir sobr e o ‘qualquer’. O algo de especial é dado

contextualmente, como pode ser comprovado pelo fato de que pode ser negativo:

(57) Ele não é um machão qualquer.

(58) Ele não é um bandido qualquer.

É possível entender que os julgamentos veiculados por essas sentenças sejam negativos:

ele é um super machão, ele é um bandido terrível, mais que sanguinário.

Mas como funciona essa negação? O que está sendo negado? O ‘não’ parece

negar a aleatoriedade, mas na posição predicativa não podemos falar em alternativas,

porque estamos atribuindo uma propriedade a um indivíduo. Na afirmativa, dissemos

que a diferença é que ao usar ‘qualquer’ o falante amplia maximamente o conjunto,

incluindo casos marginais, disparando portanto implicaturas: para que esse indivíduo

pertença a esse conjunto é necessário incluir casos marginais, portanto é preciso

considerar mundos não normais, mundos em que para ser escritor basta que ele escreva.

O que ocorre na negação?

(59) Ele não é um escritor qualquer.

Na negação, o falante nega que para considerarmos que ele seja um escritor tenhamos

que considerar o conjunto máximo, incluindo as margens. Ao contrário, ele informa que

ele é um escritor mesmo que não consideremos os casos marginais. Ao negar o

‘qualquer’, que impõe que o conjunto seja formado por propriedades que são

compartilhadas até mesmo por casos marginais, o falante veicula que ele tem

propriedades “particulares”, que nem todos os escritores têm. Ele restringe o domínio de

‘escritor’; nega que o domínio é máximo. Semanticamente, o domínio do predicado é

Page 18: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

18

restrito: não considere o conjunto máximo, ele pertence a extensão restrita do predicado.

O que irá desencadear implicaturas. Mais uma vez o fato de que tendemos a atribuir

propriedades positivas é dado contextualmente. Nos exemplos em (57) e (58) podemos

imaginar contextos em que consideramos que as propriedades que os tornam

particulares enquanto machões ou bandidos são negativas.

5.2 Tudo que/quanto é N15

Nesse caso a quantificação é fixada pela presença de ‘tudo’ que é um universal,

não há possíbilidade de leitura existencial, ou seja, as alternativas estão em disjunção

inclusiva e só a inclusão vale, por causa do operador universal:

(60) Tudo que/quanto é homem é mortal.

(61) Tudo que/quanto é aluno colou na prova.

(62) “Marisa Monte lê tudo quanto é porcaria”.

(63) “Meu amigo já tomou tudo quanto é remédio”.

Não há como ter uma leitura em que se considere parcialmente o conjunto, nem mesmo

na posição de objeto, como em (62) e (63). Nesse caso afirma-se semanticamente que

todas as alternativas valem (note que esse é o caso de ‘qualquer N’ em sentenças

genéricas). A diferença entre essa expressão e ‘qualquer’ é que esse último parece

veicular alternativas, sem se comprometer com o fato de que todas sejam válidas (que

isso possa ocorrer deve-se a sua combinação com predicados genéricos, por exemplo).

Compare:

(64) O João (es)tá com qualquer problema.

(65) O João (es)tá com tudo quanto é problema.

Em (64) o falante veicula que não sabe qual é o problema que João tem porque há várias

alternativas “possíveis”: ele pode estar com o problema a ou pode estar com o problema

b ou com os dois. Em (65), o falante afirma que todas as alternativas, consideradas

maximamente, são válidas (é claro que estamos falando do mundo que a linguagem

15 Cristina de Souza Prim está, no momento, desenvolvendo uma pesquisa sobre essa expressão.

Page 19: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

19

constrói), por causa da presença do quantificador universal. Qual é a diferença entre

usas ‘tudo quanto/que’ e ‘todos’?:

(66) ?? O João está com todos os problemas.

Em (66), o falante veicula que sabe quais são os problemas; os problemas são definidos,

conhecidos. Já em (65), o falante desconhece quais são os problemas, não é capaz de

idenficá-los. Além disso, com (66) o domínio é restrito àqueles problemas que o falante

sabe que João têm, enquanto que em (65), o domínio é ampliado para que sejam

consideradas até os problemas menos óbvios. É claro que essa é uma questão que

precisa ainda ser investigada.

A interação com a negação mais uma vez mostra que a interpretação preferencial

é de negação do universal; com (67), veicula-se, mais naturalmente, que ela lê alguns

livros; mas a alternativa da universalidade da negação, isto é, ela não lê livro algum,

existe, embora ela dependa de uma entonação particular e seja mais difícil de obter:

(67) Marisa Monte não lê tudo quanto é livro.

5.3 Outras maneiras de expressar a escolha livre

Há ainda outras maneiras de expressar a escolha livre, em particular: ‘tanto faz’

(‘tantufas’) e ‘não importa qual/que’, que parecem claramente exprimir que a escolha

não é restrita. Eis um exemplo:

(68) “Tantufas sejam os militares, o Cretináceo ou o Dirceu. De uma maneira

ou de outra, a gente sempre paga a conta.”

A literatura (von Fintel 2000) também entende que as relativas livres, como

exemplificada abaixo, expressam escolha livre:

(69) O que quer que o João esteja cozinhando tem muito alho.

Page 20: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

20

Uma diferença importante é que agora temos uma expressão de escolha livre que é

definida. Ou seja, ser ou não definido parece também ser independente da expressão da

escolha livre. Mas esse é um tópico a ser explorado.

6. Conclusão

Como conclusão ficam algumas especulações que qualquer dia desses eu

enfrento... A estrutura que parece subsidiar o sintagma ‘qualquer N’ parece ser de uma

sentença wh, afinal há a presença de ‘qual’. O que temos procurado é uma semântica em

que as alternativas em disjunção sejam dadas pelo ‘qual’, ou seja, na expressão

‘qualquer’ ele funciona da mesma maneira, como uma palavra wh e tem as mesmas

restrições: é preciso que haja mais de um indivíduo e eles estão em alternativa. O fato

de que essas alternativas estão em disjunção inclusiva parece ser também o caso para o

‘qual’, já que o diálogo abaixo parece possível:

(70) Qual aluno tirou 10?

O João e o Pedro.

A exclusão para apenas uma alternativa parece ser pragmática, já que podemos ter como

resposta ‘todos’.

A ampliação do domínio e consequentemente a modalidade parece ser a

contribuição de ‘quer’, incluindo mundos não normais (esse caráter de modalidade em

‘qualquer’ aparece claramente quando temos a forma estendida da relativa ‘qualquer

que seja o aluno’, na presença obrigatória do subjuntivo).

Onde ocorre essa operação? No nosso entender, ela ocorre no nível do sintagma

(e não em IP como sugere Aloni(2002)), mas essa é um questão para a qual não temos

um argumento.

Qualquer ajuda é bem vinda!

Referências bibliográficas

Aloni, Maria. 2002. Free choice in modal contexts. In Proceedings of Sinn und Bedeutung 7, ed. M. Weisgerber, 25–37.

Chierchia, Gennaro. 2006. Broaden your views: Implicatures of domain widening and

Page 21: Refletindo sobre a escolha livre - Unicamp

21

the “logicality” of language. Linguistic Inquiry 37:535–590.

Dayal, Veneeta. 1998. Any as inherently modal. Linguistics and Philosophy 21:353–422.

von Fintel, Kai. 2000. Whatever. In Proceedings of Semantics and Linguistic Theory, volume 10.

Giannakidou, Anastasia. 1997. The landscape of polarity items. Doctoral Dissertation,University of Groningen, The Netherlands.-----. 2001. The meaning of free choice. Linguistics and Philosophy 24:659–735.

Haspelmath, Martin. 1997. Indefinite pronouns. Oxford: Oxford University Press.

Heim, I. 1982. The Semantics of Definite and Indefinite Noun Phrases. Phd Dissertation, Amherst: UMass.

1987. Notes on negative polarity and downward entailingness. In: Jones, C. & Sells, P. eds.. Proceedings of NELS, 14. Amherst: GLSA, 98-107.

Ilari, Rodolfo. 1984. Locuções Negativas Polares: Reflexões sobre um tema de todo mundo. In: Lingüística: Questões e Controvérsias. Série estudos 10. Fac. Integrada de Uberaba. 83-97.

2000. Semântica e Pragmática: Duas formas de descrever e explicar os fenômenos da signficação. Revista de Estudos Lingüísticos, vol. 9 n. 1: 109-162.

Jayez, Jacques, and Lucia Tovena. 2005. Free choiceness and non-individuation. Linguistics and Philosophy 28:1–71.

Kadmon, Nirit, and Fred Landman. 1993. Any. Linguistics and Philosophy 4:353–422.

Kratzer, Angelika, and Junko Shimoyama. 2002. Indeterminate pronouns: The view from Japanese. In The Proceedings of the Third Tokyo Conference on Psycholinguistics, 1–25.

Ladusaw, A. William. 1997. Negation and polarity items. In The handbook of contemporary semantic theory, ed. S. Lappin, 321–341. Blackwell Publisher.

Lima da Silva, Lídia. 2007. A distinção entre os indefinidos ‘um’ e ‘algum’ no português brasileiro. Dissertação de mestrado não publicada. USP.

Quadro Gomes, Ana Paula. 2009. O efeito grau máximo nos domínios. Tese de Doutorado não publicada. USP.

Vendler, Zeno. 1967. Linguistics in Philosophy. Ithaca: Cornell University Press.ン