Reflexões e interferências

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Regina Gouveia Reflexões e interferências

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poemas inspirados em conceitos científicos

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Regina Gouveia

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Diz António Gedeão que todo o tempo é de poesia, desde a arrumação do caos à confusão da harmonia. Por sua vez, Inês Pedrosa diz que a poesia é uma barragem contra a desumanidade. Talvez seja por isso que Regina Gouveia escreve poesia. Escreve-a e guarda-a num ficheiro de computador. Achei que a sua poesia tinha que ganhar asas e assim considero- me um pouco responsável por este livro. Falar da autora e da sua poesia? Tudo o que eu dissesse poderia parecer suspeito. Por isso, limito-me a citar o que outros disseram. Conheci Regina Gouveia porque ela é uma daquelas pessoas de que nunca mais nos ausentamos, depois de as conhecermos. Foi por isso que um seu antigo aluno, hoje um prestigiado técnico superior, me falou dela, de uma forma tão especial que a quis conhecer. Reconhecemo-nos, após marcarmos encontro telefónico, sem senhas nem códigos, numa confeitaria do Porto, e foi como se nos tivéssemos conhecido desde sempre. E é o conhecimento dessa Regina que gostava de partilhar. O seu corpo de aspecto frágil, a sua voz suave, não chegavam para esconder uma paixão enorme pelo que fazia: ensinar. Era (é) quase comovedor ouvi-la falar do que faz, da sua entrega na tentativa de transmitir a alunos e futuros professores esse amor pela partilha do saber e por gostar de aprender, esse conhecimento de que tudo está em todos. Descobri, entretanto, que há muito usava a Poesia como elemento motivador para o ensino da sua disciplina, Física e Química, e que se não tinha esquecido de semear esse presente em todos aqueles que lhe passavam por

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perto. Impressionava-me o seu conhecimento de literatura e a sua capacidade para descobrir o poema certo para cada assunto. E uma obra sua explicando como se tinha tornado professora, entretanto publicada, mostrava como a sua prosa era igualmente poética. Não podia deixar de lhe perguntar por que não escrevia Poesia. Respondeu-me com aquele seu sorriso delicado e modesto:" E quem lhe disse que não escrevo? "Tinha que a ler e em breve tive o prazer e a honra de ter em mãos os seus escritos. Li-os com um certo espanto: eram tão reais, falavam das coisas de todos os dias e, ao mesmo tempo, mostravam-nas de uma forma que nos permitia vê-las como se pela primeira vez. É, pois, para mim, uma honra poder dizer que fui das primeiras pessoas a ver em Regina Gouveia uma Poeta que, escrevendo e ensinando, partilha um Dom mais que humano. Pois não serão os Poetas os Profetas do nosso tempo? (Extractos do texto de apresentação da autoria da Drª Maria do Carmo Cruz e que consta da colectânea Tempera(Mental), na qual foram incluídos seis poemas da autora

Pequenos poemas impressionistas nos quais as palavras, lançadas como pequenas pinceladas descrevem os sentimentos da autora, motivados por factores tão diversos como a Natureza, uma conversa ou uma notícia na televisão. Um conjunto de textos pautados pelo ritmo e pela melodia, onde a alegria de memórias passadas contrasta com os problemas da sociedade presente. (Texto de apreciação do júri do Concurso on-line "Novos Talentos" promovido pela Porto Editora, concurso a que a autora concorreu e no qual lhe foi atribuída a classificação de 4 estrelas)

Fernando Gouveia

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Ausência

Hoje não estou para ninguém. Se alguém telefonar, nem que seja algum ministro, (como se fosse vulgar algum ministro ligar...) digam só que eu não existo, ou então fui viajar, que ando à deriva no espaço, que estou morta de cansaço. Sentada no meu terraço, hoje não estou para ninguém. Quero ver o pôr do sol, mais logo, ao entardecer, quero ver Vénus nascer e a lua desabrochar. Quero dormir ao luar, é noite de lua cheia. Quero ter como lençol este céu que me rodeia, um céu de estrelas pejado. Quero ver a estrela polar, Marte, Júpiter, Dragão Cassiopeia, Leão, quero ver estrelas cadentes, correndo no céu estrelado brilhando, muito luzentes. Quero sonhar com pulsares com galáxias, quasares, e à luz das constelações embriargar-me de amor. Quero esquecer meus pesares e todo este amargor que por dentro me consome ao pensar que ainda há um ror, são oitocentos milhões, de gente que passa fome.

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Enleios

O poeta enleia palavras e faz um soneto, o compositor, enleando notas compõe um concerto, uma valsa, uma polka, uma sonata, que por vezes a um poema se adapta. Os químicos não recorrem às líricas; com números e letras escrevem fórmulas empíricas, moleculares, iónicas, racionais, e tantas outras com nomes que tais. Enleando números, físicos e matemáticos, tentam deslindar casos problemáticos. Enleando fios, a minha tia Ausenda fazia toalhas e colchas de renda, enquanto enleada num amor passado, continuava à espera do príncipe encantado.

Certeza

Falavam-nos de heróis e de vilões, e eram sempre os outros os vilões. Contavam-nos batalhas e traições, falavam de epopeias, de façanhas, de guerras desiguais, mesmo assim ganhas. A meio da lição, já eu montava no meu alazão e uma vezes era D. João, outras vezes D. Sebastião ou D. Fernando, morto em Fez, ou então, D Filipa, a linda Inês, o Decepado, sempre com a bandeira, ou ainda Brites, a famosa padeira. Cresci e desde então não mais sonhei usar a espada, guerrear, ser realeza. Passei a confrontar-me com a certeza que um belo dia nada mais serei que molécula, átomo ou ião, mistura de cinza com poeira provavelmente pisada no chão.

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Navegação

No meu barco de sonhos icei vela, vela latina. Não sei se o meu barco é nau ou caravela sei que me fiz ao largo, de bolina. e não usei de Bernouilli o teorema. Para navegar, só precisei de um poema de Sofia com gosto a mar e cheiro a maresia

Infinito

O que é o infinito? Será um estado de alma num dia de muita calma, em que o ar fica parado de tão sereno e tão quente? Será um oito deitado dos que vêm nas sebentas, nos compêndios, nos opúsculos, ou serão as tardes lentas que precedem os crepúsculos? Ou será o quociente em toda e qualquer divisão, sem indeterminação, em que zero é o divisor? Ou será um grande amor? Ou será a imensa dor sentida ao perder alguém? Ou será a imensidão do Universo em expansão? Ou será mesmo o Além? Será a suprema alegria de ver um filho nascer? Será talvez a magia de ver a vida crescer? O que é o infinito? Talvez seja aquele grito que eu tento a custo suster

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Nave

Não tem nome minha nave seja de um deus ou de um sábio. Sem bússola, sem astrolábio, computador ou radar, cá vou eu na minha nave mais uma vez a girar, no meu passeio orbital. Minha nave é espacial. Com qualquer velocidade e momento linear, vai girando minha nave com seu momento angular. Minha nave é singular. Minha nave não precisa de impulsão nem gravidade, pelo espaço ela desliza, só precisa liberdade. Não tem motores de explosão, não há qualquer combustão nem reacção nuclear. Ela pode viajar sem energia solar e sem ajuda do vento. O motor da minha nave é só o meu pensamento.

Ozono

O ozono é um gás de fórmula O3, que diminui ano a ano, mês a mês, lá nas camadas da estratosfera, porque o homem, com a sua insensatez, continua a lançar "CêEfeCês", todos os dias na atmosfera E uma menina de seu nome Vera, de olhos azuis e com clara tez, que faria cinco anos no próximo mês, morreu de melanoma, no passado dia três.

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Tempo

Para os físicos, o tempo é uma grandeza, não por ser grande, com toda a certeza. É grandeza porque é mensurável e é esta ideia que eu acho contestável. Usando raciocínios, em geral profundos, os físicos, a contratempo, em horas, minutos e segundos, tentam dividir o tempo. E ainda usam múltiplos, outras vezes submúltiplos, como nano, pico, fento. Ora há minutos que duram como vidas e há vidas que nem segundos duram, como há imagens que ficam esquecidas enquanto outras para sempre perduram. O tempo do calendário e da agenda é simplesmente um tempo por encomenda. Que saudades eu tenho do tempo de criança, tempo da ilusão, do sonho, da esperança, tempo de quimera, em que o tempo não era tempo, porque o tempo, simplesmente não era. Mas voa o meu pensamento para as crianças da rua, que embaladas pelo vento, tendo a velá-las a lua, dormem no chão ao relento, enquanto passa, alheio, o tempo.

Ensinamentos

Com o meu pai aprendi a olhar o céu, que era mais belo quando da cor do breu. Com ele aprendi o que era um cometa e que a estrela da tarde era apenas um planeta. Foi ele quem me ensinou a identificar o norte, o sul, o nascente e o poente, o futuro, o passado e o presente. Então eu não podia imaginar, no futuro tanto passado e tanto ausente.

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Neve

A neve é um cristal com padrão hexagonal. De origem molecular, tem átomos de hidrogénio ligados a oxigénio de uma forma regular. Em flocos, lembrando enxames, e com o vento a ajudar, volteia com ademanes antes de no chão pousar. Transforma-se em branco manto, e é motivo de espanto, de êxtase, contemplação. É fonte de inspiração para poetas, pintores, para amantes sonhadores. Ela é todas as cores em uma só reunidas, mas também é mãos doridas em gentes desprotegidas do frio cruel, cortante, que enregela num instante. Cobrem-se com velhos trapos, com jornais e com farrapos, e nós fechamos os olhos a todos estes escolhos. É cómodo ignorar. É bem mais fácil pensar nos cristais hexagonais e na neve dos postais.

Indeterminismo

O nosso Universo é quadrimensional, a quarta dimensão é fundamental e já não faz sentido a seta do tempo. Daí eu não saber se este sofrimento, esta angústia infinda que me invade o peito, afinal é causa ou será efeito.

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Poesia

Gosto do narciso poeta i aquela flor cuja corola, por dentro amarela, é branca por fora. Colhi duas. Uma decidi comê-la cuidando assim engravidar de poesia Mas a poesia, tão arredia, riu-se de mim. Cheia de mágoa, à beira da água lancei ao mar a outra flor, daquelas duas. E fiquei a olhar, a flor boiar na onda que vai e que logo vem, que se reflecte e se refracta, que interfere e se difracta. A luz do sol bateu no mar fê-lo de prata, reflexão também. Por entre os meus dedos, a areia fluía suavemente. A flor boiava dolentemente e a onda, sempre a ir e voltar, e o som do mar com seus segredos e o gosto a sal a pairar no ar deixando um cheiro a maresia. Então, por magia, luz , céu e ar, onda do mar, no ir e voltar, areia, sal , flor a boiar, tudo em redor foi poesia

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Mar

Mar, lugar de encantamento onde por vezes o vento se agita em remoinhos, mar de baleias, golfinhos, de algas e de corais, mar de sais... Mar de navios, veleiros, e de grandes petroleiros, mar de botes e traineiras, de grandes frotas pesqueiras que navegam norte e sul, mar azul... Mar que tantos nomes usas, mar de argonautas, medusas, mar, que ora estás encrespado, ora calmo, mar parado onde a lua se retrata,

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mar de prata.... Mar que namoras estrelas, mar de naus e caravelas, mar de istmos e estreitos, mar de navios desfeitos, guardando tanto tesouro, mar de ouro... Mar de ondas e de vagas, mar que as areias afagas, mar de águas frias e quentes, mar que ligas continentes e ilhas em todo o mundo, mar profundo... Mar de viagens, naufrágios, mar de bons e maus presságios, mar de piratas, corsários, mar de homens temerários, mar de gente destemida, mar de vida.... Mar onde espreita a tormenta, mar da rota da pimenta e de outras especiarias, da seda, das pedrarias, mar que Neptuno reclama, mar de fama... Mar onde nadam sereias, mar das grandes epopeias, mar do cabo Bojador, do gigante Adamastor, mar de Gama e de Cabral, mar fatal... Mar de tanta fantasia, mar da grande nostalgia, de sonho e desilusão, mar de vida e mar de morte, temo pela tua sorte nas garras da poluição.

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Indicador

Indicador, o que indica, pode ser dedo da mão, mas também identifica carácter de solução. Pode ser o tornesol, ou a fenolftaleína, pode ser bromotimol, ou também heliantina. Há quem não encontre o rumo e precise de um sinal, talvez um fio de prumo que lhe indique a vertical. Há quem passe pela vida, só entregue à sua sorte, com a bússola perdida, jamais encontrando o norte, deixando confusos rastos. Há quem diga que os astros no Universo em expansão são grandes indicadores. Há quem neles leia amores, venturas e dissabores. E há quem leia uma paixão num simples ramo de flores.

Abrigo

A minha capa inglesa com setenta anos abrigou amores, sonhos, desenganos. Era de meu pai. Apesar da idade que não se adivinha ainda me protege da chuva que cai, forte ou miudinha, e ainda me abriga do frio e do vento. Só não me protege daquela saudade, que, qual neve, invade o meu pensamento

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Sorriso

Junto à campa da minha mãe nasceram lírios no passado mês. Alguns dos seus elementos, o magnésio talvez, já terão sido, por certo, pertença da minha mãe. Há momentos, passava perto de um lírio que ali cortei e quando o olhar fixei, pareceu-me ver alguém que sorria para mim. Doce, o sorriso, sem fim. Por certo era a minha mãe, só ela sorria assim.

Saturno

Usando a minha luneta observo o céu nocturno e eis que me surge Saturno, um fabuloso planeta.. É de uma estranha beleza com os seus anéis gelados que brilham iluminados. Para o sistema solar é um planeta gigante mas, ideia extravagante, poderia flutuar se pousado em grande mar. Fascina tanta grandeza deste infinito universo em que o mundo está imerso. Possui-me um grande fervor e agradeço ao Criador, seja lá Ele qual for, e agradeço a Galileu por me ajudar a olhar o Céu.

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Chama

Dançava a chama, voluptuosa, espalhando em redor um tom vermelho-rosa As achas ardiam na lareira e a criança batendo as palmas, rindo, dizia "lindo, lindo", apontando a fogueira. Era uma chama voluptuosa e ao mesmo tempo etérea, por causa do plasma, o quarto estado da matéria. Vibravam núcleos e iões, e em estranhas convulsões, electrões davam saltos quânticos. Era a energia que assim se emitia em passos de dança, sensuais, românticos. A criança que, batendo as palmas, rindo, dizia "lindo, lindo", adormeceu sorrindo. E então a louca chama, pressentindo que a criança já estava dormindo, deu em esmorecer, foi-se extinguindo.

Apolo

Para os antigos romanos Apolo era deus da Arte e como deus, imortal. Após mais de dois mil anos o homem, simples mortal, projecta idas a Marte. Da Lua, pisou o solo, viajando na Apolo, uma nave espacial..

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Exploração

Qual exploradora, parti um dia. Embrenhei-me na selva da vida onde sabia andar escondida a poesia Encontrei-a na luz ténue do sol ao fim do dia, na molécula, no átomo, no quantum de energia, nas leis de Newton, no conceito de entropia. Encontrei-a na reflexão da luz, na impulsão no ar, no cheiro a maresia e nas algas do mar, no orvalho, na geada, na chuva, no luar. Encontrei-a no ínfimo e no imenso que a vista não alcança, nas rugas dum idoso, no rir de uma criança, numa tela, num concerto, numa dança. Encontrei-a no voo da gaivota, na pétala da flor, na chama que tremula e se multiplica em cor e que irradia energia na forma de calor Encontrei-a nas estrelas, nas galáxias mais distantes, no olhar apaixonado daqueles dois amantes, nos extintos dinossauros de dimensões gigantes. Encontrei-a em medusas, corais, nos fundos oceanos, no vento a agitar nas árvores os ramos, em pinturas rupestres com vários milhares de anos Encontrei-a na violeta escondida no canto do jardim e no frasco que continha essência de jasmim. Tentei então guardá-la só para mim. Foi assim que ela se evolou e de novo eu aqui estou a procurá-la.

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Sensações

Tem um cheiro inconfundível a minha casa da aldeia Não sei se é do rosmaninho que perfuma todo o linho dentro das arcas guardado, se é da madeira das portas, dos tectos e do sobrado se é das pratas no lambrim ou das peças de faiança, são travessas e são pratos, nas paredes pendurados, se é das peças de mobília uma herança de família, não sei se é dos retratos que às vezes, a horas mortas, falam, sorriem para mim. Terão perfume as memórias de quando eu era criança? Terá perfume a lembrança? Tem um cheiro inesquecível a minha casa da aldeia Mas não é só o odor

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São as cores e são os sons que vejo e ouço em qualquer lado e em tudo o que me rodeia. Lembro lágrimas, sorrisos, por vezes já imprecisos. Lembro sussurros e histórias imagens em vários tons plenas de luz e de cor ou também acinzentadas baças, sem cor, desbotadas. Têm cor alguns dos sons Sons e cores têm odor A minha casa da aldeia cheira a afecto e amor. Mesmo quando estou distante às vezes, por um instante, chego a pensar que estou lá, pois apesar da distância eu sinto aquela fragrância. Que explicação haverá? Será acção magnética? Uma interacção eléctrica? Força electromagnética? Gravítica? Nuclear? Forte ou fraca interacção? É difícil de explicar pois não há explicação que assente só na razão. Esta estranha sensação tem a ver com o coração.

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Cor

A cor, o que é afinal? Energia, no essencial. É emissão de fotões, é um salto de electrões, absorções, emissões, ou também interacções entre a luz e a matéria. Pode ser sublime, etérea. Ela é interferência é período, é frequência ela é excitação, e logo desexcitação, ela é inspiração na paleta do pintor. Afinal o que é a cor? È o vermelho de Almada? É o azul de Chagall? Seja ela tudo ou nada, a cor é fundamental. Seja no azul do mar, que às vezes é cor de breu, seja no azul do céu ou no verde de um olhar, seja no roxo dos montes, seja no cinza das fontes, nas searas amarelas, perturbantes de tão belas, seja no verde das plantas, no colorido das mantas, seja em janelas, portadas, seja em telhados, fachadas, em azulejos, vitrais ou em tantas coisas mais, a cor é fundamental. O que é a cor afinal? Energia, no essencial

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Pastoral

Ainda hoje não sei se apenas o sonhei ou foi real. A orquestra tocava a Pastoral e eu, comovida, aplaudia. Pareceu-me ver que estremecia a flor que eu usava na lapela. Creio que também ela se comovia. Ou então seria por causa da tal da ressonância. Sei que a minha mente era toda ela sinfonia e fragrância. Ao allegro seguia-se o andante e mais adiante um outro allegro, a tempestade - Beethoven, a genialidade. O som crescia, enchia todo o ar, e, de repente, um dos violinos pareceu-me ser um querubim não sei se aquele do canto do jardim se o outro, na capela à direita no altar. Pareceu-me que eu estava a flutuar e que a orquestra tocava a Pastoral só para mim. Ainda hoje não sei se tudo isto eu sonhei ou se foi mesmo assim tudo real.

Afagos

A onda rasga-se em espuma, a bruma seduz o ar, e o vento afaga a duna. Escondo-me dentro da bruma, torno-me em coisa nenhuma, e deitada sobre a duna, afago a espuma do mar

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Abril

Foram cravos vermelhos nos canos das espingardas Cortaram-se grilhões, abriram-se prisões, soltaram-se emoções, há muito adormecidas. Foram cravos vermelhos nos canos das espingardas Após tão longa espera, aquela primavera, aquele Abril, trouxera esperança a muitas vidas. Foram cravos vermelhos nos canos das espingardas Foi o sonho a flutuar, foi o amor a pairar, a alegria a fervilhar, nas praças, nas avenidas. Depois, murcharam os cravos nos canos das espingardas. Por que hão-de sempre murchar as flores ?

Amazónia

A floresta Amazónica é o pulmão do mundo e, segundo a segundo, está a desaparecer, porque homens, sem qualquer ideal, para além do vil metal, a mandam abater. Rancorosos, brutais, mandaram abater o Chico Mendes e outros mais, só porque eles não queriam ver a Amazónia desaparecer. A Amazónia é o pulmão do mundo, a Amazónia não pode morrer. A Amazónia é o pulmão do mundo, a Amazónia não pode morrer. A Amazónia é o pulmão do mundo, a Amazónia não pode morrer.

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Paz

Palavras leva-as o vento. Também leva o pensamento, leva ainda as folhas soltas que caem no fim do tempo e vão por aí revoltas, revoltas, a ondular quais aves a esvoaçar. Palavras leva-as o vento e não as pode arrumar, tantas são, tão diferentes, umas duras, outras quentes, outras um pouco dormentes, que podem significar coisas tão surpreendentes, e tantas coisas diversas! Palavras leva-as o vento e andam por vezes dispersas sem ninguém que as queira usar. Veja-se a palavra paz, tão bonita, como jaz perdida por esse mundo, completamente esquecida qual folha morta caída, num charco sombrio, imundo.

Sida

Tomás morreu ontem com sida na flor da vida. Entretanto, num casino da Florida, Joe, traficante de heroína, de ecstasy, crack e cocaína, jogava a vida de Tomás.

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Imagem

Minha mãe era brasileira de alma e coração, para ela, o Brasil era país de eleição. O meu pai era brasileiro de torna- viagem e assim, do Brasil eu construí uma imagem. Nessa imagem há uma miscelânea tal que vai de Salvador até ao Carnaval, de Copacabana à aguardente de cana. É Elis, Betânia, Caetano, Jobim é jeito de samba, sabor de quindim. São as cataratas do Iguaçu e as cachoeiras lá em Avaré É jaca, acerola, pitanga, caju gosto de garapa, cheiro de café, É Sena, Pelé. É Oscar Niemeyer disperso em Brasília é toda a família Irmãos, tios, primos, sobrinhos, sei lá, ali em S.Paulo, Goiás, Paraná Santa Catarina. È Chico Buarque, o meu cantor dilecto, Cabral de Melo Neto,

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"Vida e Morte Severina" É Manuel Bandeira e é Jorge Amado Érico Veríssimo, Alcântara Machado Di Cavalcanti, Vinicius, Heitor Villa Lobos. É impossível enumerar todos. É a bandeira, verde e amarela, é cheiro de cravo, sabor a canela É telenovela, coronéis, jagunços, grandes fazendeiros, fazendas, engenhos, bois e boiadeiros. É praia e é mar, é Sol a brilhar É o Céu Azul e o Cruzeiro do Sul É pamonha de milho e é vatapá Enfeitando os jardins, é o manacá É um povo que canta e seus males espanta È a Amazónia e é o Pantanal, Pedro Álvares Cabral É um testemunho bem colonial como em Olinda e em Parati, é o negro Zumbi, os Tupi-Guarani É onça pintada, tatu, colibri É cheiro a cocada, gosto de siri É mistura de gentes É o Tiradentes É o Lampião É o Rio Amazonas e o Maranhão É arroz com feijão nem sempre na mesa É a extrema pobreza dos descamisados, marginalizados, dos sem terra e sem pão, gente do sertão. É Carmen Miranda, afinal portuguesa, tudo isto é Brasil com toda a certeza

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Mina

Mina faz lembrar minério, e também algum mistério, naquelas muito profundas, e muitas vezes imundas, onde espreita frio e cru o perigo do grisu. Mina, lembra ouro, diamantes, e as condições degradantes em que se extraem da terra. Mina também lembra guerra com todo o horror que encerra. Gimbi, menino de Angola, não vai mais jogar à bola pois ficou estropiado, sem as pernas, mutilado, ao pisar em chão minado.

Estrelas

A estrela que ambos olhamos pode já não existir há vários milhões de anos. E tu olhas-me a sorrir, pensas que estou a mentir. A luz que então enviou pelo espaço vagueou e só agora chegou, enquanto a pobre da estrela, que em tempos fora tão bela, foi minguando, definhou, e em anã se transformou, ou então foi em gigante, talvez em buraco negro. É como o desaconchego daquela paixão de amante que ao morrer, depois de intensa, deixa uma dor negra imensa.

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Mãe

Como eu me lembro bem, mãe. Catorze anos seria talvez a minha idade, uma colega do liceu disse que tu eras a senhora mais bonita da cidade E eu fiquei toda cheia de vaidade. Lembro-me de tanta outra coisa mãe Do linho esticado dentro do bastidor e dos teus bordados em ponto pé-de flor, em matiz, ponto de sombra ou de grilhão, ao sabor da imaginação, como o vestido da minha comunhão. Lembro-me dos cozinhados que fazias com paixão; chamavas-lhe quitutes, mãe. Receita portuguesa, brasileira, italiana, ainda hoje os teus quitutes têm fama entre os amigos que os saborearam. Ainda há dias alguns os recordaram. Lembro-me ainda que não era só o sabor, era o aspecto. Em tudo colocavas muito afecto e sempre a tua a sensibilidade infinda. Além de sensível eras tolerante, corajosa, lutadora, criativa, generosa. Como eu recordo, mãe, tantas histórias inventadas por ti, em que o sabiá e a surucucu

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contracenavam com o colibri, com a jibóia e o bicho tatu. Como eu recordo, mãe, a tua lindíssima voz de soprano cantando árias de Verdi, de Puccini, (da Madame Butterfly, da Traviata), do barbeiro de Sevilha de Rossini, ou ainda Shubert, a serenata, tentando eu acompanhar-te no piano que, por falta de talento, mal tocava, o que algum desgosto te causava. Um dia, já a tua mente muito vária, apercebi-me de que não gravara a tua voz Tentei então que cantasses uma ária para ficar com os registos entre nós Tarde demais De reconhecer a música tu foste incapaz Tinhas apenas cinquenta e oito anos. E a partir daí a doença, tão voraz, foi-te destruindo dia a dia a mente, dia após dia causando mais danos e eu, recusando-me a aceitar tais desenganos, era contigo que me revoltava, mãe. Que foi feito de ti mãe outrora tão sensata, inteligente? Que foi feito da tua sensibilidade, da tua coragem e força de vontade? Porque te deixaste assim destruir, mãe? Ficaram as fotos, a recordação, tanto vazio no meu coração, tantas lembranças, algumas em bocados. Como herança deixaste o bastidor, as partituras, as receitas, os bordados. Ficaram sentimentos de culpa e muita dor. Por dizer ficou ainda tanto amor.

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Imaginário

O meu imaginário lembra, em imagens, um caleidoscópio, sem o sonho, seria como um baroscópio, a que faltou o ar para o empurrar. No meu imaginário cruzam-se dois mundos ligados por laços, em geral, profundos No meu imaginário há onças pintadas, mouras encantadas, há o bem-te-vi, há o colibri, há a andorinha, e a joaninha, que voa, que voa vai para Lisboa, há o bicho tatu, a surucucu, há o gato e o cão, a assombração, o bicho papão. Há jaboticabas, caquis e goiabas, há nozes, amêndoas, pitangas e mangas há cerejas, castanhas e jacas, tamanhas. Há cocos, coqueiros bolotas, sobreiros. Há cheiro a jasmim, há o alecrim, há o sabiá, há o jacaré. Há frio e há fumo que sai da chaminé Há montes e há sol, há neve e há mar, histórias ao luar.

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Há o Zé do Telhado, há o Lampião o lobo, a raposa, a cobra pitão há o mocho, há o cuco, a perdiz, o tucano há o vira, o malhão, samba todo o ano. Há todas as gentes e todas as cores, múltiplos cheiros, múltiplos sabores. Há bacalhau no Natal e no fim do ano, há arroz doce, folar, e há couve mineira há feijoada, bem à brasileira, há pão- de - ló, leite creme, rolete de cana, há pé de moleque e cocada baiana. Há bonecas de trapos e de porcelana. Há navegantes e há bandeirantes, há escravos, há reis e há imperadores, há grandes senhores, há marqueses, vilões, condes e barões, burguesia, nobreza e muita pobreza. Há muito opressão, muita exploração. Há jugo e há canga, grito do Ipiranga. Há guerras com Espanha, e a Restauração Há muita façanha e muito visionário. No meu imaginário, que une dois mundos, há laços profundos, de muita beleza. Há canto de canário, sabor a medronho, há quimera e sonho, cheiro a maresia, alguma tristeza, e muita nostalgia, cor azul turquesa.

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Afectos

Hoje eu decidi escrever um poema com os afectos por tema. Podia ser sobre a buganvília, sobre a família, sobre o gosto do mel, sobre o bolero de Ravel, sobre o meu filho Miguel , que em pequenino, os olhos a cintilar de amor, aplaudia ao ver qualquer flor a que chamava tanta, sobre os livros de Florbela Espanca, Pessoa, Saramago, Aquilino Manuel Alegre, Gedeão, Quental. Podia ser sobre o Natal com a família reunida à mesa e as chaminés a expelir fumo Podia ser sobre a Cláudia, sobre a Teresa sobre o meu filho Nuno que me dizia, em pequenito, gosto de ti até ao infinito. Podia ser sobre o cheiro do tomilho, o sabor da pamonha de milho, sobre o meu gato andarilho, sobre a minha mãe, que cantava tão bem de Verdi, a Traviata, de Schubert, a serenata. Podia ser sobre o alecrim que, aos molhos, faz chorar os olhos, como cantava o meu pai. Podia ser sobre o meu bonsai Podia ser sobre as cadeiras que herdei da avó,

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tal como do avô a caixa do rapé, podia ser sobre as colchas em filé, rede de nó, rendadas, bordadas, feitas por várias tias. Podia ser sobre as tristezas e as alegrias que partilho, por inteiro com o marido, amante e companheiro. Podia ser sobre os chapéus da mãe e as suas luvas, podia ser sobre o gosto das uvas nas vindimas, em Setembro. Podia ser sobre Paris, sobre Veneza, sobre as conversas à mesa ou sobre as histórias ao serão, em Dezembro. sobre Mozart, Chopin, sobre Gauguin, Renoir, sobre o sol, sobre a lua, sobre o mar, sobre a areia quente no verão, sobre a neve a cobrir o chão, sobre a amizade, sobre a saudade. Mas eu decidi que ia escrever um poema tendo os afectos por tema. E o poema que escrevi fala de afectos Fala de afectos nas linhas, e nas entrelinhas, fala de afectos através de imagens e de viagens pelo espaço e pelo tempo Os afectos estão dispersos, implícitos nos vários versos. Com afectos povoei meu pensamento.

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Vida

O mundo com todas as suas fragrâncias é feito de elementos, misturas, substâncias. Elementos mais ou menos cem. Como pode acreditar alguém, com senso, que a diversidade de um universo tão imenso a partir de tão pouco seja conseguida? Mas o mais estranho é o que agora vem. Muito menos elementos tem aquilo a que resolvemos chamar vida.

Flores

Eram flores selvagens embelezando Maio, junto ao caminho. Eram muitas e singelas, rubras, azuis, roxas , brancas, amarelas. Os seus nomes? Creio que uma se chamava rosmaninho, as outras não sei, mas não importa. Numa conferência a que a memória me reporta Feynman, Nobel da Física, sobre a ciência dizia que o nome das coisas não é o que mais importa, até porque de lugar para lugar varia. Importa muito mais observar, reflectir, interrogar. Só assim se pode compreender a natureza. E também amar, eu acrescentaria. Veio isto a propósito das flores, junto ao caminho que me impressionaram pela singeleza, mas cujo nome não sei. Por isso as baptizei; a uma chamei ternura e a outra afecto, a uma outra alegria, a uma dei o nome fantasia, a outra atribuí o nome de paixão. A uma que logo ali murchou, e murcha se quedou baptizei-a com o nome de ilusão.

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Ilusão

Em pleno estio os meus olhos vagueiam na ladeira que exulta em cor, em cheiro e em sons que me afloram o ouvido, subtis Os meus olhos vagueiam na ladeira exuberante em todos os seus tons tecendo à minha volta mil ardis É o amarelo das searas, das oliveiras, o verde prateado, dos troncos dos sobreiros o tom acastanhado, mais além um outro verde, das figueiras. Pobres figueiras em terras tão avaras, avaras de água, que não de encantamento

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que esse de há muito me há a mim tomado enquanto dolente passa o vento que agita os ramos das amendoeiras. Os meus olhos vagueiam na ladeira em pleno estio e sinto um arrepio Lá em baixo serpenteia preguiçoso o rio e o céu, por cima, dum azul sem fim, parece olhar para mim . Sinto no ar toda uma fragrância e volto sem querer à minha infância de sonhos que nunca mais foram sonhados. Amoras, mel, uvas e mosto de repente sinto-lhes o gosto Tudo se repete agora e logo, de onde em onde. Cigarras, besouros, libelinhas gaviões, pardais e andorinhas, urze, giesta, papoilas e tomilho, tudo se agita; é grande a euforia nos meus pensamentos enredados, grávidos de sonho e fantasia que parecem gerar como que um filho, envolto em tule, rendas e brocados. Afaga-me uma onda de alegria matizada de muita nostalgia, aproxima-se a noite, ao fim do dia. No ocaso, o sol vermelho já se esconde, porém, já lá não está, é ilusão! Ainda o vemos devido à refracção

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Miragem

Estou sentada no café do cais aqui na Ribeira junto ao rio, um passante segue pela rádio o desafio, e, ao meu lado, uma jovem enlevada olha com o olhar perdido a outra margem, enquanto um casal recorda uma viagem. Os demais conversam sobre tudo. Aqui e além falares dispersos. Aqueles ali creio que falam eslavo e conversam com um ar muito sisudo

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Na minha mesa está pousado um cravo e o livro que ando a ler "Primeiros versos"ii Não me apetece ler, de enamorada que fico ao olhar esta paisagem mista de sonho e de realidade, nem sei se ela existe ou se é miragem. Do outro lado, as caves imponentes; atravesso a ponte e já me encontro em Gaia, na vila nova que agora é cidade. Vejo o Douro, os barcos rio acima levam turistas e passam indolentes, vejo as fachadas de granito, e bem por cima ameaçando chuva o céu cinzento. Um ar frio perpassa-me, é o vento o tal a que chamam de nortada. Regresso e inicio uma viagem, entro num carro eléctrico, na paragem e aí vou eu vagueando com o olhar, S. Francisco, S. Pedro em Miragaia, a Alfândega, Massarelos , vários cais. O eléctrico avança um pouco mais e do outro lado já vejo o Cabedelo, o rio encontrou o Oceano, entrou no mar. Difusos através da bruma, uma traineira, um navio parado, que para entrar na barra ao largo aguarda. enquanto o mar se agita e regurgita espuma. A difusão da luz torna tudo mais belo, mas o meu passeio vai findar, não tarda. O meu corpo está enregelado e o vento desalinha-me o cabelo. É quase noite, urge regressar mas é difícil ter que abandonar estas paisagens de bruma e de granito. Não sei se adivinhando o meu pensar uma gaivota solta um pio, aflito.

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Amantes

É Agosto Amam-se na praia, com o sol já posto, fundem-se as bocas, do sal fica o gosto, salpica-os a espuma que o mar regurgita. Amam-se na praia à luz do luar, gemidos de amor, bramidos do mar, tudo se confunde quando o mar se agita. É Agosto Envolvem-se os corpos, ela toda nua, tendo a vigiá-los, sempre atenta a lua. A areia brilha, os corpos resplandecem. No Céu, andam anjos muito divertidos, vão lançando setas, fazem de Cupidos. Na praia os amantes, por fim adormecem. É Agosto Acordam mil vezes pela noite fora Amam-se de novo não importa a hora nem a areia húmida nem a noite fria Amam-se uma vez, mais outra, mais outra É de amor e sal o gosto na boca Nunca um tal êxtase nem tanta magia É Agosto Acordam bem cedo, cheira a maresia. Amam-se de novo ao romper do dia.

Idílio

Olhava para a Lua e pensava nela Então, de repente ficou sem saber se a Lua era ela. Viu-a toda nua mas ela era a Lua e então, docemente ouviu "Eu sou tua" Ficou sem saber se era ela ou a Lua

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Telejornal

Vejo o Telejornal no canal dois A apresentadora fala da BSE, de clonagem, do Kosovo e, logo depois, de um acidente no Cais do Sodré e da instabilidade na Guiné. E eu empreendo no tempo uma viagem... O Braima, a Binta, o Adrião, onde andarão neste momento? Conheci-os em Bafatá, há muito tempo, iam buscar o "cume" no fim da refeição. Recordo os seus olhos vivos de crianças pele negra, dentes alvos, sem igual os passos apressados quando o vento anunciava em breve um temporal Eu era aluna e eles mestres do crioulo de que mal guardo lembranças. Das mulheres, recordo as suas vestes fossem mulheres grandes ou "bajudas" no tronco, eram em geral desnudas, presos na cinta panos coloridos que, de compridos, chegavam quase ao chão. Algumas eram de tal modo belas que pareciam extraídas de telas Recordo, servindo-me o café, o Infali com aquele seu olhar tão doce e triste talvez o ar mais triste que eu já vi.

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Será que o café ainda existe? Recordo aquele condutor, o Mamadu mostrando com orgulho o seu menino Que terá feito deles o destino? Recordo os passeios na estrada do Gabu os mangueiros, os troncos de poilão, a mesquita, o mercado, a sensação de paz que tudo irradiava, apesar do obus de Piche que atroava, apesar da maldição da guerra cujo espectro por cima pairava. Recordo ainda o cheiro e a cor da terra, o Colufe e o Geba sinuosos onde canoas esguias deslizavam, recordo macaquitos numerosos que entre os ramos das árvores saltavam enquanto que lagartos, preguiçosos, ao sol, pelos caminhos se espraiavam e uma miríade de insectos buliçosos ao nosso redor sempre volteavam. Recordo o batuque daquele casamento Na foto ficou bem impresso o momento em que o dançarino fazia um mortal numa fantástica expressão corporal Foi lá na Ponte Nova, naquela tabanca onde de azul se coloriam panos que as mulheres usavam em volta da anca e que desciam quase até ao chão. Tudo isto se passou há muitos anos. A apresentadora fala agora em danos causados por uma longa estiagem e mostra uma desértica paisagem. Eu regresso da minha viagem e tento organizar o pensamento. O telejornal está quase no final. Deve seguir-se a previsão do tempo.

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Heroína

Para mim, em criança, heroína era pessoa, obviamente feminina. Podia ser Maria, Brites ou Joana, era mulher, de grande lenda e fama. Mais tarde vim-me a aperceber das que não tinham direito a notícias, lutavam, morriam, sofriam sevícias, mas delas não rezava a história que, na escola, eu tinha que aprender. Hoje, esculpe-se na minha memória com fino escopro, a expressão da dor em rostos de mulheres ao mundo divulgados, e por câmeras para sempre fixados, no Kosovo, na Argélia, em Timor. Por isso, dar o nome de heroína a uma droga que mata e arruina, só pode ser uma questão de negro humor.

Hiroxima

Foi no Japão. Mil novecentos e quarenta e cinco, era Verão, caiu a morte em Hiroxima. Poucos ficaram para contar daquela bomba tão assassina, chamada bomba nuclear, que transportada no Enola Gay, alguém lançou mesmo por cima. Quantos morreram, isso não sei. Foi no Japão, mil novecentos e quarenta e cinco, era Verão, e ainda ontem, em Hiroxima, nasceu sem vida uma menina, por causa da bomba assassina

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Grave

Grave era o acento, da ortografia, quando á era à e eu não sabia e, por isso, dava erros quando escrevia, redigia, era assim que se dizia. Grave era o ar do Sr. Jorge Aragão, com relógio de ouro e bengala na mão, ou o do Sr. Abade, pregando o sermão, ou o da minha tia Conceição, sempre suspirando profundo, dizendo que vinha aí o fim do mundo, que já levara lá para bem fundo, o pobre do meu tio Edmundo, que confundindo sonho e realidade, subira à torre mais alta da cidade, e se deixara cair, que ingenuidade, ignorando não só as leis da gravidade, mas que grave não era apenas o acento, nem o ar do Sr. Jorge Aragão em outro tempo, nem o ai da tia Conceição, que sofrimento, nem o sermão do abade, que tormento! Grave é também a folha solta ao vento.

Paixão

Cintila o olhar e brilha o sorriso num luzir sem fim. Tudo é som de riso, tem cor de luar, e toque de cetim. Tudo sabe a mel, tudo cheira a flor, a horto, a vergel. É isto o amor. É isto a paixão. Pobre coração! Bate acelerado e descompassado. Quer sair do peito e não encontra jeito.

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Palavrões

Quando em pequenina, mãe, me contavas histórias aos serões, também me dizias: Não se dizem palavrões. Mal sabias, quando contavas histórias aos serões, que eu iria aprender muitos, muitos palavrões. Não aqueles a que te referias nos serões, mas outros geradores de muitas confusões. Os nucleões que são os neutrões e os protões, e os que giram á volta do núcleo e como piões, e que são chamados de electrões, todos eles aos biliões, de biliões, de biliões. Mais tarde vieram os bariões, os mesões e os positrões, os antiprotões e os antineutrões, e ainda os fotões, os muões e os fermiões. Havia os ciclotrões que aceleravam iões, os betatrões acelerando electrões, os sincrotões, podiam ser bevatrões, que aceleravam protões. Tantos, tantos palavrões.... Ouvia falar de charme, de spin, de estranheza, e do princípio da incerteza. Apanhada de surpresa, que saudades tinha, então, de estar contigo ao serão.

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Tchador

Déboras, Irinas, Svetlanas ucranianas, sul- americanas, não importa. Partiram em busca de uma porta que lhes desse acesso a melhores vidas. e acabaram ludibriadas, iludidas, nas mãos de proxenetas. São traficadas são exploradas, vezes sem conta são violadas

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e quando, apesar de jovens, acabadas, são abandonadas, jogadas nas sarjetas. Sandras, Bintas, não importa o nome, a vida deu-lhes até hoje violência e fome. Aquela com onze anos, tão menina, de uma outra menina já é mãe. Por certo é a primeira boneca que ela tem. E nos olhos, em vez de ódio e de revolta, uma lágrima solta, enquanto embala a filha com amor. Aquela outra ali é argelina, talvez a "pietá" que correu mundo. Nos olhos um desgosto tão profundo, maior que o próprio mundo. E aquelas outras das quais não vejo o rosto que, se doentes, não podem ser tratadas, que são impuras, se desvirginadas, que se forem violadas poderão por castigo ser queimadas? O que dirão os seus olhos por baixo do tchador? Humilhação? Desgosto? Resignação? Rancor? Talvez revolta? Se eu um dia usar tchador por meu querer acreditem que não é para me esconder é só para tentar não ver tanta injustiça, tanto horror, tanto fanatismo, tanta dor, neste mundo cruel à nossa volta.

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Hipocrisia

Lactarius deliciosus. Não sei se foi Lineu quem o nome lhes deu. Eu, no meio do pinhal, com gestos suaves, subtis, vou-as colhendo uma a uma. São as sanchas, frágeis, delicadas, como que envergonhadas, por baixo da caruma. Chapéu e pé em tom alaranjado, já em pequenina, a medo, eu as colhia pois sabia que mesmo ali ao lado, outros cogumelos, alguns muito mais belos, teciam seus ardis. Insidiosos, perigosos, escondem em si a muscarina, a psilocibina, tanta, tanta toxina, tantas vezes fatal. Tal qual a hipocrisia nos humanos, desumanos, antes eu diria, que enchem a boca com a democracia e a globalização, visando um mundo novo, enquanto vendem armas para matar o povo que subjugam pela exploração.

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Impulsão

Arquimedes não descobriu Ganimedes, que é uma lua. Diz a lenda que saiu nu para a rua, gritando Eureka, Eureka, com enorme satisfação. Acabara de descobrir a impulsão. E é essa a principal razão por que, volvidos mais de dois mil anos, navios continuam a cruzar os oceanos.

Alteridade

Quando, em pequenina, me via ao espelho daquele guarda fatos tentava abrir a porta, em busca da menina que eu achava estar do outro lado. Já então eu achava que a menina era uma outra menina que não eu. Hoje, quando me vejo no espelho daquele guarda fatos ou em outro qualquer, não importa qual, sei também que o que vejo não sou eu. Tudo o que eu faço, do outro lado, a outra faz em simetria. Saúdo-a com a minha mão direita e ela que me espreita, talvez por ironia, devolve-me com a esquerda a saudação. Eis a razão de eu não conhecer o meu real porque a outra que de lá me respondeu não era eu mas a imagem simétrica, direita, virtual.

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Mole

Se me falam em mole, por associação, posso pensar em macio, em massa informe, mas posso pensar em rígido, isso conforme pensar no significado ou na oposição. Mas estranho é falar de mole como quantidade, a que corresponde aquela enormidade, seis vezes dez elevado a vinte e três. É estranho ou esotérico talvez, mas é assim que o nosso mundo é feito. Não deixaria ninguém satisfeito uma mole de pão já que nos esmagaria e, de tal jeito, nem poderíamos morrer de indigestão. Mas se ao mundo chegasse uma mole de amor, por certo o mundo desabrocharia em flor. A exploração, a xenofobia, a guerra, a fome, tudo acabaria e um novo mundo, então, começaria.

Lata

Quando ia à praia, em criança, levava pá e balde em lata, que eram azuis e cor da prata. Lembro também, eu criança, que em casa da família Malcata, que usava talher de prata, trabalhava a senhora Liberata, que vivia num bairro de lata e que, um dia, emigrou para França. O seu endereço, perto da Flandres, tenho-o na agenda, em papel almaço. O balde e a pá, azul e prata com que eu brincava em criança, e a casa da senhora Liberata que um dia emigrou para França, eram de lata- folha de Flandres, folha que é feita com estanho e aço.

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Arco-íris

Passeio no jardim das Tulherias, o céu é cinza, o ar é baço. Pelo espaço ecoam doces melodias que uma criança extrai da concertina. Não sei se é menino ou se é menina, só vejo as mãos e os olhos de um negro penetrante. Um velho casaco do irmão, talvez do pai cobre-lhe a cabeça e sobre os ombros cai, tentando protegê- la do frio que é cortante

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É Abril, um Abril de chuva e frio, o dia é sombrio. No Céu, um arco íris imenso cobre a cidade com um halo intenso. Lá ao fundo o obelisco hirto e só, recorda o Egipto, e um certo faraó. Mais além o Arco do Triunfo e la Défense "Honni soit qui mal y pense". Para trás, o Louvre e a Catedral ali à esquerda, sempre monumental, a torre Eiffel qual torre de Babel onde se ouvem os idiomas mais diversos, são os turistas, por Paris dispersos. Lá em cima, o Sacré Coeur, Monmartre, esta é a cidade luz, da boémia e da arte no país de Renoir, Rodin, Ravel e Sartre, Belmondo, Godard, Chevalier do grande Le Corbusier, de Descartes e Lavoisier, de Aznavour, Piaff e Juliette Paris dos Boulevards, de la Vilette, do centro Pompidou, Beaubourg, Les Halles do Moulin Rouge e de Pigalle, da Ópera, da Madalena, das pontes sobre o Sena. É Abril, um Abril de chuva e frio. A música flutua no ar denso e no Céu, sombrio, um arco íris imenso. Tudo isto me fascina e me seduz: Paris, o som da concertina, e a dispersão da luz

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Xenofobia

Quando era criança deram-me a boneca da prima Rebeca Tinha uma trança loira, cor do trigo. Chamei-lhe Constança. Usava um vestido que ia até ao chão e quando a voltava era a sensaçãoiii Eis a Joaninha com um negro rosto e negra carapinha. Vê-la dava gosto. As duas vestiam o mesmo vestido, muito colorido, e lá se entendiam. De qual mais gostava sei que não sabia, pois tenho a ideia que a cor não contava, e a ambas eu queria. Eu não conhecia. a xenofobia. Palavra tão feia, quem a quer usar não teve a boneca da prima Rebeca p´ra poder brincar

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Normal

Normal. Pode ou não ser vertical, a algo é perpendicular. Pode significar regular como alguns poliedros, cubos e tetraedros, como alguns verbos também que, outros, defeitos têm, o que não impede ninguém de sempre os utilizar de uma forma natural. Normal. Basta apor-lhe só um A e não normal aí está,

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o que nem todos respeitam por vezes até rejeitam. É isto a intolerância, fruto da ignorância, pois a água, substância à vida fundamental, não é lá muito normal. Durante o aquecimento, em vez de o volume sofrer um continuado aumento, começa por decrescer até um dado momento, de máxima densidade, depois começa a crescer, quase com normalidade. Tudo isto é anormal, e é essa anormalidade que vai permitir explicar que se a água congelar o gelo fique a boiar, como acontece no mar duma região polar. Tal qual como um cobertor, o gelo, isolador, cobre o mar com muito amor, não deixa a água gelar. A vida dentro do mar pode assim continuar. Para a vida é fundamental e tudo isto, afinal, porque a água é anormal

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Luz

Como deve estar cansada, direi mesmo extenuada, sempre, sempre a viajar, e sem poder descansar, mudando de direcção, reflexão e refracção.... Por vezes até nos finta, viajando pelo Mundo a três vezes dez à quinta quilómetros por segundo. Viaja há quanto tempo, perscrutando o firmamento ? Terá muito que contar se alguém a quiser escutar. Os físicos e os poetas, os amantes e os profetas escutam-na à sua maneira, mas em toda esta viagem ela traz uma mensagem para a humanidade inteira. Da forma que as coisas vão poderá acontecer que ela deixe de correr e fique tudo em escuridão.

Transformações

Podem ser físicas e químicas as transformações. Às segundas chamamos reacções, mas há as que ocorrem nos corações e que vão de paixonetas a paixões, que podem destruir, quais furacões, que a cinzas podem reduzir, como vulcões, esperanças, sonhos e ilusões. Foi isso o que aconteceu ao meu tetravô Bartolomeu, que com um enfarte morreu por causa duma paixão que (não) viveu...

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Amón-Rá

Keops, Kefren, Mikerinos, as monumentais Pirâmides em Gizé Eu ali ao lado, em pé, senti-me menor que um grão de areia daquela que as pirâmides rodeia no deserto, uma imensidade, ali mesmo ao lado da cidade. Sobrevoar o Egipto é impressionante Tudo é deserto, apenas junto ao Nilo uma estreita faixa verdejante. Navegar no Nilo é emocionante Karnak, Luxor, Edfu, Kom Ombo, Assuão, a ilha Elefantina, assim se navega rio acima. São vários os templos ao longo das margens, veleiros deslizam ao sabor das aragens. Tudo impressiona naquelas paragens. Assuão lembra o paraíso, pelo menos é assim que o ajuízo, uma calma, uma beleza, todo um encantamento que não provém só da natureza. È uma melopeia de inúmeros sons, são os cheiros e as cores, em infinitos tons. Ir ao Egipto é recuar muito no tempo Cleópatra, Ramsés, Tutankhamon Akhenaton, a rainha Hatschepsut, deuses e deusas, como a deusa Nut, o deus Hórus ou o deus Aton, a deusa Hathor da alegria e do amor, Amon Rá, deus dos deuses, deus do Sol, o mesmo Sol que, volvidas tantas gerações, ainda presenteia o Egipto com fotões.

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Guerra

Guerra rima com terra e com serra. Estranhamente, guerra não rima com dor, com horror, com terror, mas a guerra é um estupor. Estranhamente, guerra também não rima com milhões de vidas desperdiçadas à toa, com biliões em dinheiro, seja o dólar ou a coroa, que vai enriquecer mafiosos, nem um pouco escrupulosos. Estranhamente, guerra que devia rimar com dor, rima com terra e com serra que deveriam rimar com flor.

Meninos

Num dia primaveril, numa escola em Arganil, meninos de bibe anil, entoam canções de Abril, enquanto que no Brasil, meninos, bem mais de mil, entregues à sua sorte, temem o esquadrão da morte e na ilha de Timor meninos, também um ror, envoltos em muita dor tentam esquecer o horror.

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Betão

O menino ouvia, ouvia enquanto o avô descrevia o que em pequenino via sempre que à janela ia. Via uma floresta densa que se espraiava, imensa, árvores grandes, frondosas. Na floresta havia esquilos, répteis, batráquios, grilos, muitas aves, mariposas, lebres, coelhos e gamos. O menino ouvia, ouvia, enquanto o avô descrevia o que via há muitos anos. Havia líquenes, fungos, e meninos de olhos profundos corriam pela floresta. Os dias eram de festa, davam-se grandes passeios e ali nasciam enleios. A floresta era pujança, era vida, era esperança. Fecha os olhos o menino e tenta, tenta imaginar. Chega até a acreditar que quando os olhos abrir a floresta vai surgir. Que grande desilusão! Abre os olhos o menino mas só vê o desatino de uma floresta em betão.

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Amosia

Sofro de um estranho mal que se agrava dia a dia Já fiz muita endoscopia raios X, tomografia, LASER e sonografia, uma densitometria, e até cintilografia. O relatório final, lacónico, por sinal, reza apenas na sentença Desconhecida a doença.. Há dias aconteceu algo estranho e anormal. Vi surgir, vindo do céu, um ser de forma espiral, com uma voz de metal, oriundo doutra galáxia. Falei logo no meu mal, dele era conhecedor. Não o disse por falácia pois donde vinha é banal. É doença bem estudada e tem por nome amosia. Sabe-se ser provocada por vírus de nome amor e bactéria poesia. É de fácil solução, basta usar medicação, KXcalomelanos. Não a trouxe na bagagem e a fórmula não quis dizer Porém, ficou de a trazer já na próxima viagem, daqui a mil milhões de anos.

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Poeta

Isto de se ser poeta é pior que uma peçonha, é uma peste medonha que o corpo e a mente infecta Num turbilhão de emoções o sangue arde, crepita, o corpo sua, tirita, a mente toda se agita em tremendas convulsões. Sob uma angústia infinita e a sensação de abandono, perde-se a fome e o sono, cuida-se de ensandecer. Depois de dura agonia, após a obra nascer e o poema virar flor, surge uma branda acalmia. Mas ao poeta, coitado, sem forças, desalentado, banhado em mental suor, só lhe apetece morrer ou então permanecer em estado de torpor.

Elasticidade

Não sei se obedece à lei de Hooke ou não, mas é elástico o coração. Uns são muito elásticos, outros não. Uns têm o amor como bandeira podem amar a humanidade inteira, outros vão amando aqui e além, outros amam sempre alguém e há os que nunca amam ninguém. Tem que haver uma razão para tanta desigualdade. Só vejo uma explicação, a constante de elasticidade

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Balcãs

A guerra dos Balcãs é, aliás, como todas as guerras, irracional. Tentam fugir dela a criança, o homem, a mulher bela. A guerra dos Balcãs é, aliás, como todas as guerras, brutal. Tenta fugir da guerra dos Balcãs aquele ancião cheio de cãs. A guerra dos Balcãs é, aliás, como todas as guerras, sensacional. Na comunidade internacional pode ver-se em qualquer telejornal e homens e mulheres falam dela na rua E a guerra ? Ah, a guerra, essa continua...

Internet

Através da Internet, a estrada da informação, escrevi ao primo João, casado com a prima Arlete, que nasceu no Maranhão e vive lá no Japão. O seu e-mail escrevi -o endereço electrónico- e logo a seguir recebi a resposta do nipónico, que afinal é brasileiro. Maravilhosa invenção! Pensar eu que o electrão, com ajuda do fotão, é um grande mensageiro em toda esta transmissão, que numa fracção de segundo liga entre si todo o mundo!

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Castro

Em mato de urze, de giesta, de carrasco, fica ali escondido, abandonado, o castro, castelo dos mouros, como o povo diz, de onde, quem sabe, uma moura donzela fugiu para Castela num belo alazão enquanto soprava o vento suão. Partiu com um mouro, ou partiu com cristão? De livre vontade ou partiu infeliz? Quem sabe, não descenderia da moura donzela minha bisavó, de seu nome Ana que era castelhana fugida da guerra, da luta intestina entre um tal D. Carlos e D. Cristina? Quem sabe? Pergunto ao carrasco, mas não existia, ao tempo, no castro. Questiono o rio que corre no fundo, mas a água de outrora correu, foi embora, perdeu-se no mundo.

Amor

É belo o amor quando acontece e torna-se sublime, se floresce. Mas se dá fruto, para além da flor, não há adjectivos para o amor. Uma nova palavra, um termo novo urge inventar com perfume de luar, e som de esperança, com cor de bem-aventurança, com volteios de ninfa em etérea dança.

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Ausência_______________________________________ 4

Enleios________________________________________ 5

Certeza________________________________________ 5

Navegação______________________________________ 6

Infinito_______________________________________ 6

Nave___________________________________________ 7

Ozono__________________________________________ 7

Tempo__________________________________________ 8

Ensinamentos___________________________________ 8

Neve___________________________________________ 9

Indeterminismo_________________________________ 9

Poesia________________________________________ 10

Mar___________________________________________ 11

Indicador_____________________________________ 13

Abrigo________________________________________ 13

Sorriso_______________________________________ 14

Saturno_______________________________________ 14

Chama_________________________________________ 15

Apolo_________________________________________ 15

Exploração____________________________________ 16

Sensações_____________________________________ 17

Cor___________________________________________ 19

Pastoral______________________________________ 20

Afagos________________________________________ 20

Abril_________________________________________ 21

Amazónia______________________________________ 21

Paz___________________________________________ 22

Sida__________________________________________ 22

Imagem________________________________________ 23

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Mina__________________________________________ 25

Estrelas______________________________________ 25

Mãe___________________________________________ 26

Imaginário____________________________________ 28

Afectos_______________________________________ 30

Vida__________________________________________ 32

Flores________________________________________ 32

Ilusão________________________________________ 33

Miragem_______________________________________ 35

Amantes_______________________________________ 37

Idílio________________________________________ 37

Telejornal____________________________________ 38

Heroína_______________________________________ 40

Hiroxima______________________________________ 40

Grave_________________________________________ 41

Paixão________________________________________ 41

Palavrões_____________________________________ 42

Tchador_______________________________________ 43

Hipocrisia____________________________________ 45

Impulsão______________________________________ 46

Alteridade____________________________________ 46

Mole__________________________________________ 47

Lata__________________________________________ 47

Arco-íris_____________________________________ 48

Xenofobia_____________________________________ 50

Normal________________________________________ 51

Luz___________________________________________ 53

Transformações________________________________ 53

Amón-Rá_______________________________________ 54

Guerra________________________________________ 55

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Meninos_______________________________________ 55

Betão_________________________________________ 56

Amosia________________________________________ 57

Poeta_________________________________________ 58

Elasticidade__________________________________ 58

Balcãs________________________________________ 59

Internet______________________________________ 59

Castro________________________________________ 60

Amor__________________________________________ 60

i É assim designado, por vezes, o narciso cuja campânula central é amarela e em que as pétalas exteriores são brancas ii de António Nobre

iii quando eu era criança brinquei com uma boneca que tinha

duas cabeças opostas, uma branca, outra negra. . Quando exibia uma, a outra ficava coberta pelo vestido.