Reforma Luterana

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Histria do cristianismoPerguntam SANTOS do Rio de Janeiro e DEODATO de So Paulo: Motivos da Reforma Luterana Quais os motivos que levaram Lutero a querer reformar a Igreja? Quais eram as indulgncias contra as quais reagiu? Para entender o gesto de Lutero (1483-1546), torna-se imprescindvel reconstituir tanto o cenrio histrico em que viveu, como o problema prprio que atormentou o dito Reformador. 1. O cenrio histrico Os sculos XIV c XV foram perodos de grandes provaes, de transformaes sociais, assim como de declnio no setor da cultura em geral. a) Em poltica, manifestavam-se tendncias particularistas, nacionalistas (na Frana, com Filipe IV o Belo; na Alemanha, com Lus IV da Baviera; na Espanha, na Inglaterra, nas cidades da pennsula itlica), que contradiziam unidade do Sacro Imprio e acarretavam detrimento para os interesses comuns dos povos. b) Na vida social, os camponeses e os cavaleiros, que haviam sustentado os grandes feitos da histria medieval, eram ridicularizados por uma classe ascendente : a dos habitantes das cidades, os burgueses. Propalavam-se novas teorias e reivindicaes sociais (por vezes, um certo socialismo ou comunismo) contrrias s instituies vigentes. c) A Filosofia e a mentalidade dos homens tambm passavam por crise. Parece que os doutos se haviam cansado de fazer uso da razo e seguir as normas da lgica ou do intelecto; davam primado cada vez mais acentuado vontade (voluntarismo), ensinando no haver verdade nem bem absolutos; se Deus o quisesse, os mais hediondos vcios, ato mesmo o dio ao Criador, poderiam ser atos meritrios Esse voluntarismo acarretava consequncias funestas:- relativismo, indiferentismo, frente verdade;- excessiva estima das representaes da fantasia, consequente ao descrdito em que cara o raciocnio;- cultivava-se a dialtica vazia, a ginstica da mente para provar as teses que menos provveis parecessem (assim Guilherme de Occam, +1349, abusando dos termos e quase zombando da lgica, queria demonstrar proposies como: A cabea de Cristo o p de Cristo; O olho de Cristo a mo de Cristo). d) Mesmo os que estudavam as cincias positivas, envolviam-nas em um sistema pouco racional, de sabedoria oculta. Certo Agripa de Nettesheim (+1535), seguindo tendncias anteriores, fundou em Paris uma fraternidade secreta que, cultivando a Alquimia, se propunha descobrir a pedra filosofal, a qual operaria a transmutao dos metais em ouro; Joo Reuchlin (+1552), bom conhecedor do hebraico e do grego, continuando a cabala, ensinava que cada letra do alfabeto hebraico encerra um poder prprio de ao... e) Em tal ambiente, o autntico senso religioso dos cristos no podia deixar de se ressentir. No h dvida, existia fervor notvel no sc. XV. Contudo essa piedade era pouco esclarecida, tendendo, por isto, a cair no sentimentalismo superficial, no subjetivismo. Eis, por exemplo, como pregava Geyler von Kayserberg, famoso orador do sc. XV: Cristo o nosso po-de-l, o qual consta da farinha de lentilhas da Divindade, da velha farinha de centeio do corpo e da farinha de trigo da alma. Acompanha-O o mel da misericrdia. Crenas mais ou menos supersticiosas se mesclavam a certas afirmaes religiosas do povo; assim se multiplicavam as histrias de bruxas, ou seja, de mulheres que tinham pacto ou comrcio carnal com os demnios; dava-se voga ASTROLOGIA, como se o curso da histria dependesse dos anjos que dirigem os planetas no firmamento. Com ou sem propsito, os homens falavam de monstros, cometas e outros sinais exticos! Da parte dos homens da Igreja (alto e baixo clero), vrios senes eram ocasio de mau exemplo e descontentamento pblico: o chamado exlio dos Papas em Avinho, de 1309 a 1376, e o grande cisma do Ocidente (1378-1417), durante o qual dois e mesmo trs cabeas visveis (um Papa legitimo e dois antipapas) eram propostos cristandade, acarretaram notvel detrimento para a vida crist. f) As calamidades (peste e fome) decorrentes das guerras e das desordens sociais despertavam nas massas um sentimento de medo; muitos julgavam que o Anticristo e o fim do mundo estavam prximos. Queriam premunir-se contra os castigos, multiplicando as peregrinaes, o culto das relquias, as devoes aos santos, dos quais esperavam milagres, aparies, etc. Certos grupos de penitentes, chamados Flagelantes, percorriam a Europa, professando ideias religiosas fanticas, revolucionrias. A autoridade da Igreja no deixava de reprimir as aberraes, mas com exguo resultado (notvel, por exemplo, a bula de Inocncio VIII Summis desiderantes, de 5 de dezembro de 1484). Estes poucos traos j do a ver que a mentalidade do sc. XV era assaz irrequieta; pairava no ar a expectativa de uma novidade, a qual jorrava da conscincia de que era preciso reformar o estado de coisas vigente, reformar at mesmo certos costumes da vida crist. A insatisfao geral facilmente explodiria, bastando para isto uma centelhazinha, um brado forte que soubesse interpretar e explorar o sentimento das massas. No se poderia deixar de mencionar ainda o movimento renascentista ou humanista, que muito marcou a segunda metade do sc. XV c o inicio do sc. XVI. A Renascena j era de certo modo uma resposta ao desejo comum de renovao, resposta, porm, que, junto com grandes mritos, teve o demrito de muitas vezes acentuar o individualismo, o relativismo j vigentes; vrios humanistas queriam at certo grau experimentar e viver a mentalidade dos antigos pagos; tentavam combinar a ideologia crist com os modos de falar e pensar dos clssicos greco-romanos. Tais autores (dos quais o principal foi Erasmo de Rotterdam, +1536) contribuam para diluir elegante e sorrateiramente o vigor da f crist, assim como a integridade do dogma. 2. O problema pessoal de Lutero Foi dentro de tal quadro histrico que viveu Martinho Lutero (1483-1546). Educado em ambiente de famlia assaz severo, Lutero em 1505 resolveu entrar para o convento dos Agostinianos de Erfurt (Alemanha); dava este passo, movido no propriamente pelo amor de Deus (ele o tinha, no h dvida) e o ideal da vida claustral, mas principalmente pela impresso de temor que experimentara quinze dias antes, ao ser colhido por uma tempestade em viagem: Sant'Ana, exclamara ento, vinde em meu auxlio, e tornar-me-ei monge!. No convento, Lutero procurou ser fiel sua Regra, mas ressentiu-se continuamente de angstia e tristeza; alm de no ter genuna vocao, era, por seu temperamento melanclico, levado a pensar obsessivamente no juzo de Deus e na predestinao, o que lhe causava apreenses, no compensadas por filial abandono Providncia Divina: Ests louco, dizia-lhe o seu confessor, caracterizando o seu estado de alma; no Deus que est irado contra ti, mas s tu que te achas encolerizado contra Ele (Tischreden t. II n. 122). Aos poucos, Lutero foi concebendo a soluo para o seu caso; julgando-se impotente para vencer a natureza desregrada, resolveu desistir do combate angustioso; a fim de se emancipar da inquietude que o atormentava, props-se a questo: quem sabe se a f em Cristo por si s no basta para a salvao eterna, independentemente de quaisquer boas obras? Para afirmar isto, Lutero teria que reformar toda a Teologia crist; vrias proposies dogmticas seriam entendidas de novo modo ou simplesmente rejeitadas. No hesitou, porm. Veio a ensinar que, desde que algum tenha confiana nos mritos do Salvador, estes lhe so imputados, sem que a concupiscncia e o pecado sejam extirpados; a justificao ou santificao meramente jurdica, ela no reforma o ntimo do cristo. Porseguinte, embora o pecado permanea no indivduo, este no se deve perturbar, pois a natureza humana foi irremediavelmente viciada pela culpa de Ado; que o crente confie ainda mais fortemente em Jesus, e Este o recobrir, dando-lhe uma filiao divina nominal, no real nem ontolgica (a graa mero ttulo). Impulsivo como era, Lutero julgava que nenhum homem possui liberdade de arbtrio para resistir s paixes e praticar o bem. Estas so as proposies centrais do luteranismo, das quais outras decorrem logicamente (a rejeio do santo Sacrifcio da Missa, do sacerdcio hierrquico, do purgatrio, das indulgncias, das obras de penitncia, etc.). A exploso do drama ntimo de Lutero se deu em 1517. Naquela poca, pregadores percorriam a Alemanha incitando os fiis a contribuir com esmolas indulgenciadas para a reconstruo da baslica de So Pedro em Roma; o modo exagerado como o faziam (tornou-se famoso neste particular Joo Tetzel) deu ocasio a que o frade agostiniano lanasse o seu brado de protesto; segundo ele, a vida crist devia ser reformada, e ele a reformaria de acordo com a sua compreenso pessoal, emancipado de qualquer escola ou tradio. A soluo luminosa que ele concebera para o seu problema pessoal, ele a formulou nos termos teolgicos acima enunciados e a props ao mundo como novo modo de entender o Cristianismo; Lutero assim projetou a sua individualidade, fazendo do seu caso pessoal um caso comum, ao qual em nome de Deus ele quis dar a sua soluo subjetiva. No necessrio descrever o andamento da revoluo luterana. O fato que ela encontrou o terreno preparado, dado o descontentamento religioso e social vigente na Europa. Eis agora, em sntese, os fatores que explicam o surto e o progresso do luteranismo : 1) O subjetivismo, o individualismo, que se alastravam nos diversos setores do pensamento e da atividade dos homens desde o sc. XIV. Eu e a minha Bblia, que julgo ser a Palavra de Deus, eis a posio que Lutero toma para reformar a Religio. E qual o critrio para interpretar essa Palavra de Deus? No um magistrio extrnseco ao indivduo, mas a experincia subjetiva, o sentimento (ou o sentimentalismo) do crente. Lutero se atribua (com que direito objetivo?) uma misso recebida de Deus para reformar a Igreja (Deus me revelou esta doutrina, eis uma afirmao frequente em seus escritos). Ora, bem poderia dizer qualquer discpulo do Reformador: se admito como vlida a posio de Lutero, no vejo porque no possa tambm eu ser um Iluminado, que Deus chama a redescobrir o Evangelho. Foi isto o que de fato pensaram centenas de reformadores subsequentes a Lutero, os quais, tomando a Bblia em mos, passaram a interpret-la do seu modo, fundando novas e novas seitas protestantes, fazendo as reformas da reforma... Porque acreditariam mais em Lutero do que no seu prprio sentimento de piedade? Donde se v o dilema: ou aceitar os ensinamentos da tradio que sempre iluminaram a Bblia no decorrer dos sculos, ou simplesmente abrir mo de toda norma de f, renunciar prpria Bblia. 2) A Filosofia decadente do sc. XV. O Nominalismo tendia a negar contedo ontolgico aos nomes; os ttulos (justificao, graa) seriam meras frmulas, que nada supem no sujeito. A demasiada estima atribuda vontade (o voluntarismo), em detrimento da lgica, dava a Lutero a impresso de estar diante de um Deus caprichoso, voluntarista, que ele, apesar de todo o seu esforo asctico, jamais podia ter certeza de haver contentado. 3) A mentalidade humanista, que, em alguns de seus expoentes, era paganizante; dilua o significado de certas verdades crists. 4) Os costumes abusivos vigentes na sociedade, sem exceo do clero; luxo, tendncias mundanas haviam penetrado no esprito dos mais altos dignitrios da Igreja. A piedade do povo, em consequncia, era superficial, necessitando de ser reestruturada no dogma e na Sagrada Escritura. Entre outros males, deve-se reconhecer a leviandade com que se tratavam as indulgncias, dando a impresso de mercantilismo religioso. 5) A isso tudo sobreveio a personalidade de Lutero, Tribuno, escritor popular, que se deixara levar pela paixo mais do que pelo raciocnio objetivo e sbrio (gostava do bom vinho e da boa mesa), Lutero apresentou-se ao povo alemo como o homem do momento; soube explorar no somente os queixumes religiosos contra a suprema autoridade da Igreja, mas tambm uma inveterada animosidade poltica que distanciava de Roma e da Itlia a populao da Alemanha; fazia questo de se dizer o Enviado de Deus nao (haja vista o seu livrinho intitulado nobreza crist da nao alem). Em concluso, dever-se- reconhecer que Lutero tinha uma alma profundamente religiosa, capaz de intuies e gestos notveis. Foi, porm, vitima da mentalidade de seu tempo, qual deu expresso muito concreta no seu cisma religioso. Lutero quis reformar a Igreja e a tradio, arvorando o prprio Eu como rbitro posto acima de qualquer outro critrio. Isto equivalia a negar o carter transcendente da Religio e cair no antropocentrismo ou no egocentrismo. Na verdade, no era a Igreja, em seu dogma e em sua estrutura essencial, que necessitava de reforma, mas eram os homens (clrigos e leigos) que faziam parte da Igreja; esta (como est dito na resposta 8 deste fascculo - A Riqueza da Igreja -) no se identifica plenamente com nenhum de seus membros, mas transcende a todos, porque, na qualidade de Esposa de Cristo, indefectvel; mesmo quando os cristos pecam, a Igreja no peca, mas a primeira a denunciar as falhas e tambm a lhes propor o remdio salutar. Por isto nunca se poder falar de necessidade de reforma da Igreja, mas, sim, de necessidade de reforma na Igreja. Oxal o Reformador tivesse compreendido isto! Sendo assim, o prestgio que Lutero obteve no setor religioso foi decaindo; no decorrer dos tempos apareceram reformadores da reforma luterana. A outro ttulo, porm, Lutero profundamente estimado pelos nossos contemporneos: quando nos anos de 1917/1919 se celebrou em Worms o quarto centenrio da Reforma, o que se exaltou no foi tanto o seu papel de mestre religioso, mas o de heri nacional, benemrito pela sua monumental traduo alem da Bblia e principalmente pelo seu ardoroso patriotismo. Como religio, o luteranismo a expresso de uma poca e de sua mentalidade depauperada. D. Estevo Bettencourt O. S. B.