Reinventando o desenvolvimento local

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1 Reinventando o Desenvolvimento Local Augusto de Franco (2011) Foram detectados diversos problemas práticos e teóricos com as metodologias de indução do desenvolvimento local aplicadas nas últimas quatro ou cinco décadas, no Brasil e em outras partes do mundo (inclusive com aquelas que ajudei a elaborar, testar e implementar). Alguns desses problemas foram superados com a criação de novas tecnologias sociais e com as várias versões de cada metodologia que se sucederam. De modo geral, entretanto, essas tecnologias ou metodologias, em todas as suas versões e denominações, revelaram-se, em grande parte, em dessintonia com os conhecimentos, que só ficaram disponíveis nas duas últimas décadas, sobre a sociedade em rede que está emergindo e sobre a fenomenologia da interação social. PROBLEMAS PRÁTICOS Dentre os principais problemas práticos, destacam-se os seguintes: 1 – Quando tais metodologias são aplicadas por organizações cujos titulares têm um mandato, a troca desses dirigentes em geral causa incontornável descontinuidade nos processos. Em instituições governamentais isso acontece com mais freqüência. Mas também ocorre quando as metodologias são aplicadas por outras organizações empresariais e sociais (cujos dirigentes são eleitos). 2 – Para ser aplicadas em uma localidade as metodologias dependem de um agente de desenvolvimento (com este ou qualquer outro nome) que deve ser capacitado, em geral, fora da localidade. Em muitos casos, quando tal agente abandona a localidade após o processo de implantação, a experiência costuma ser descontinuada. 3 – Em geral há dificuldade de custear o trabalho dos agentes de desenvolvimento pelo período que seria realmente necessário (que não se pode saber qual é de antemão e que varia de localidade para

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Reinventando o Desenvolvimento Local

Augusto de Franco (2011)

Foram detectados diversos problemas práticos e teóricos com as

metodologias de indução do desenvolvimento local aplicadas nas

últimas quatro ou cinco décadas, no Brasil e em outras partes do

mundo (inclusive com aquelas que ajudei a elaborar, testar e

implementar). Alguns desses problemas foram superados com a

criação de novas tecnologias sociais e com as várias versões de cada

metodologia que se sucederam. De modo geral, entretanto, essas

tecnologias ou metodologias, em todas as suas versões e

denominações, revelaram-se, em grande parte, em dessintonia com

os conhecimentos, que só ficaram disponíveis nas duas últimas

décadas, sobre a sociedade em rede que está emergindo e sobre a

fenomenologia da interação social.

PROBLEMAS PRÁTICOS

Dentre os principais problemas práticos, destacam-se os seguintes:

1 – Quando tais metodologias são aplicadas por organizações cujos

titulares têm um mandato, a troca desses dirigentes em geral causa

incontornável descontinuidade nos processos. Em instituições

governamentais isso acontece com mais freqüência. Mas também

ocorre quando as metodologias são aplicadas por outras organizações

empresariais e sociais (cujos dirigentes são eleitos).

2 – Para ser aplicadas em uma localidade as metodologias dependem

de um agente de desenvolvimento (com este ou qualquer outro

nome) que deve ser capacitado, em geral, fora da localidade. Em

muitos casos, quando tal agente abandona a localidade após o

processo de implantação, a experiência costuma ser descontinuada.

3 – Em geral há dificuldade de custear o trabalho dos agentes de

desenvolvimento pelo período que seria realmente necessário (que

não se pode saber qual é de antemão e que varia de localidade para

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localidade). Por outro lado, os formatos das metodologias impõem

níveis de exigência que em geral não se coadunam com a natureza

do trabalho voluntário (e esse é um problema também de ordem

teórica).

PROBLEMAS TEÓRICOS

Todos os problemas teóricos (que também têm suas conseqüências

práticas) decorrem de uma contingência, sobretudo para as

metodologias de indução do desenvolvimento local por meio de

investimento em capital social.

Quando tais metodologias foram desenhadas, não havia suficiente

clareza de que capital social nada mais é do que a rede social. Ocorre

que a nova ciência das redes, com o status que tem hoje (análise de

redes sociais + redes como sistemas dinâmicos complexos + redes

como estruturas que se desenvolvem), só surgiu na primeira década

do presente século e só no final dessa década foram tiradas as

primeiras inferências práticas do novo conhecimento da

fenomenologia das redes. Antes de meados da década de 2000 havia

pouquíssimo conhecimento sobre netweaving (articulação e animação

de redes). Algumas metodologias que surgiram a partir da metade da

primeira década deste século tentaram enfrentar os vários problemas

decorrentes dessa contingência (alguns mencionados abaixo), com

relativo sucesso. Mas não deram conta de resolvê-los totalmente,

nem adequadamente.

1 – As metodologias de indução do desenvolvimento local foram

pensadas originalmente como programas para ser aplicados por

alguma instituição hierárquica (um governo, uma organização da

sociedade, uma empresa, uma corporação). Ora, organizações

hierárquicas dificilmente podem articular e animar redes. Ademais, o

sujeito do desenvolvimento local não pode ser a instituição que aplica

a metodologia e sim a rede do desenvolvimento comunitário que se

articula no local, a qual deve ter autonomia para introduzir qualquer

tipo de modificação que julgar conveniente (o que, se bem que

estivesse previsto em princípio por boa parte das metodologias,

nunca foi totalmente digerido pelas instituições hierárquicas que as

aplicavam, que tendiam a se julgar meio donas do processo posto

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que forneciam os recursos para capacitar e custear o trabalho dos

agentes de desenvolvimento).

2 – As metodologias de indução do desenvolvimento local foram

pensadas como programas stricto sensu, programas proprietários.

Ainda que algumas delas tenham virado espécies de softwares livres

e, além disso, tenham se disseminado mais como “filosofias” do que

como metodologias ou tecnologias sociais, os passos metodológicos

fundamentais – aliás, universalmente adotados pelas diversas das

estratégias de desenvolvimento local – permaneceram mais ou

menos os mesmos: visão de futuro participativa => diagnóstico

participativo => plano participativo. Há aqui vários problemas

associados e não apenas um único.

3 – Em primeiro lugar, redes são ambientes de interação, não de

participação. Se o desenvolvimento é encarado como uma espécie de

metabolismo da rede comunitária, então ele não pode ser emulado

(nem simulado) por processos participativos. Seria necessário ensejar

uma dinâmica interativa, com o aumento da distributividade e da

conectividade das redes que se formam em cada localidade. Em

outras palavras, o desenvolvimento comunitário é uma dinâmica

emergente e não um processo planejado top down (e mesmo quando

é planejado por uma parcela de pessoas – as chamadas “lideranças”

– da própria localidade, ele continua sendo um processo de escolha

de caminhos compartilhado por poucas pessoas, que acabam se

constituindo como uma espécie de oligarquia participativa e impondo,

ainda que docemente, suas visões aos demais de cima para baixo).

Ademais, como os processos foram desenhados com base na

participação, eles estimularam o assembleísmo e o reunionismo: tudo

sempre acabava em uma reunião e as próprias metodologias viraram

uma seqüência de reuniões, com data e hora marcada, em vez de

estimular a conexão cotidiana das pessoas por todos os meios:

visitas, conversas presenciais, encontros lúdicos em happy hours e

festas, equipes de trabalho nas quais as pessoas vivem sua

convivência, troca de e-mails, telefonemas, interação em plataformas

interativas e... jogos! Ocorre que reuniões são péssimos instrumentos

de netweaving, sobretudo quando só acontecem se convocadas e

conduzidas por agentes externos (como também freqüentemente

ocorria).

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4 - Em segundo lugar, não se pode induzir uma localidade a adotar

uma (única) visão de futuro. São sempre várias visões, mesmo

dentro de cada uma das comunidades de projeto que se formam em

uma localidade. Além disso, essas visões variam com o tempo, não

havendo um caminho único para um futuro desejado e compartilhado

em determinado momento (o momento em que esse passo das

metodologias é aplicado). Não pode haver, portanto, um plano como

mapa do caminho para se alcançar tal futuro. Por último, a

contigüidade territorial não gera necessariamente comunidade.

5 - Como decorrência do último problema apontado acima, surgiu

outro problema de ordem prática de difícil superação. O público ativo

(que na verdade deveria ser o sujeito, composto pelos agentes

endógenos) do desenvolvimento local, acabou sendo formado mais

com base na necessidade das pessoas envolvidas do que nos seus

ativos e nos seus sonhos ou desejos. De sorte que, na imensa

maioria dos casos, esses participantes voluntários locais se

confundiam, em grande parte, com o público-alvo da assistência

social e com os beneficiários dos programas de transferência de

renda. Ou seja, os fóruns de desenvolvimento local (ou as equipes ou

comitês ampliados de articulação da rede do desenvolvimento

comunitário, nas versões mais aggiornadas da metodologia),

acabaram sendo compostos por pobres, não raro mantendo-os

confinados em seus clusters de pobreza, sem muitos atalhos, sem

muitas conexões para fora (o que é contraditório com uma estratégia

de superação da pobreza baseada em redes, segundo a qual a

pobreza deve ser encarada como insuficiência de conexões – ou

atalhos para fora dos ambientes em que se clusteriza – antes de ser

tomada como insuficiência de renda; ou seja, como se diz, “o pobre é

pobre porque seus amigos são pobres”).

6 - Derivam daí várias limitações práticas (para a aplicação dessas

metodologias). Pessoas pobres, consumidas pelo trabalho, têm pouco

tempo livre e pouca disposição para empregá-lo em atividades

voluntárias de desenvolvimento. O pouco tempo que lhes resta – aos

que trabalham fora, em geral os homens – é dedicado ao descanso, à

convivência familiar e ao lazer. Esse é um dos motivos das reuniões

contarem freqüentemente com uma maioria de donas de casa:

mesmo tendo que cuidar dos filhos e das tarefas domésticas, elas

permanecem mais tempo na localidade. Mas não se encontra, em

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número significativo (a não ser excepcionalmente, em algumas

localidades urbanas) estudantes universitários, professores,

profissionais liberais, empresários, técnicos e executivos

governamentais, dirigentes de ONGs, ciberativistas e jovens

empreendedores, o que dificulta a realização autônoma de certas

tarefas técnicas (como, por exemplo, a sistematização de

questionários de pesquisa para realização de diagnósticos das

necessidades e dos ativos) bem como o emprego de tecnologias

interativas de informação e comunicação que hoje são vitais nesses

processos (como uma plataforma digital).

REINVENTANDO A METODOLOGIA

Os problemas práticos e teóricos mencionados acima (dentre outros

tantos que não foram citados aqui por amor à brevidade) exigem a

introdução de modificações nas metodologias de indução do

desenvolvimento local (que estabeleciam um conjunto de passos ou

procedimentos participativos para formular coletivamente visões

compartilhadas de futuro, diagnósticos e planos de desenvolvimento).

No entanto, a natureza dos problemas apontados revela que não

basta produzir mais uma versão ou uma atualização dessas

metodologias. Faz-se necessário reinventá-las. Isso deve ser feito a

partir de um pressuposto básico e de novos fundamentos.

O pressuposto básico é o processo de comunitarização que

acompanha a glocalização atualmente em curso.

Os novos fundamentos dizem respeito às novas dinâmicas sociais

interativas que estão emergindo na transição da sociedade

hierárquica para uma sociedade em rede.

A partir desse pressuposto básico e desses novos fundamentos,

propõe-se reinventar o que se chama de metodologia de indução do

desenvolvimento local de tal sorte que ela:

1 – Deixe de ser uma metodologia de indução e passe a ser um

processo capaz de apostar na auto-organização comunitária,

ensejando a precipitação da nova fenomenologia das redes

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distribuídas, de uma nova dinâmica de inovação social que possa ser

interpretada como desenvolvimento.

2 – Deixe de ser um roteiro imposto de ações seqüenciadas ou de

passos previamente desenhados para obtenção de resultados

previsíveis, esperados ou desejados.

3 – Elimine as características remanescentes de um programa de

oferta e, para tanto, desestimule a formação de comunidades

compostas por pessoas com pouca diversidade econômica, social e

cultural e incentive o empreendedorismo individual e coletivo e o fund

raising em rede: a busca dos recursos necessários deverá ser feita,

antes de qualquer coisa, dentro da própria comunidade e a partir das

conexões entre comunidades assemelhadas e lançando mão de novos

processos mais compatíveis com as dinâmicas de rede (como o

crowdfunding).

4 – Desestimule as reuniões formais para discutir qualquer assunto,

substituindo-as por processos coletivos e dialógicos e, sobretudo

interativos, de criação, de invenção e de realização de atividades

comuns compartilhadas.

5 – Estimule as atividades lúdicas, as brincadeiras, as festas e outras

formas de celebração da convivência, incentivando a presença de

crianças e idosos em todas as atividades.

6 – Consiga abolir, até onde for possível, quaisquer formas e

mecanismos de comando-e-controle, inclusive aquelas disfarçadas

como sistemas de monitoramento e avaliação. E também não aceite

rankings e comparações entre experiências de desenvolvimento local,

assim como afaste a inútil e contraproducente idéia de best practices

(toda experiência é única e não pode ser comparada com qualquer

outra, sobretudo quando se usa, para tanto, indicadores formulados

exogenamente, em geral, para atender aos objetivos de alguma

instituição hierárquica em competição com outras organizações

hierárquicas, que precisa “fazer seu nome”, ganhar algum prêmio etc

para continuar fazendo jus a financiamentos externos).

7 – Seja aplicada por agentes de desenvolvimento voluntários da

própria localidade, que – ao invés de serem ensinados em salas de

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aula, por professores – constituam inicialmente uma comunidade de

aprendizagem em rede sobre netweaving.

8 – Nunca seja um programa proprietário de uma instituição

hierárquica (nem de um conjunto de instituições), mas um software

livre que possa ser reprogramado e rodado em localidades que

reúnam certas características, por iniciativa de qualquer comunidade

de aprendizagem (composta para começar por, pelo menos, três

pessoas). O papel das instituições interessadas em promover tal

processo deve ser apenas o de transferir a tecnologia social (ou a

metodologia).

9 – Estimule a conexão e a interação entre as diversas comunidades

de vizinhança, de aprendizagem, de projeto e de prática que se

formaram dentro de um mesmo ambiente territorial e entre diversos

ambientes territoriais (situados em qualquer lugar do país e do

mundo).

10 – Não seja mais um trabalho, a execução de uma rotina imposta

hetoronomamente, mas uma diversão, um jogo, um creative game

ao qual as pessoas aderem por que acham bacana, legal,

interessante e útil (mas não como uma tábua de salvação ou uma

liturgia a que tenham que se submeter resignadamente, como se

tivessem que pagar um preço para obter instrumentalmente alguma

coisa, ainda que seja para aumentar sua qualidade de vida ou

conquistar melhorias para sua localidade).

Fica claro, pelos dez pontos elencados acima, que a introdução

dessas mudanças desconstitui completamente o que até agora se

chamou de metodologia (de promoção ou indução) do

desenvolvimento local.

A adoção dessas modificações reinventa completamente essas

metodologias em quaisquer de suas versões ou adaptações, mas

reinventa também todas as metodologias assemelhadas ou voltadas

ao mesmo objetivo. Aliás, nenhuma dessas metodologias – no Brasil

ou em outros países – foram ou são baseadas em redes sociais

distribuídas.

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BASES PARA UM NOVO PROCESSO

Um novo processo de desenvolvimento local deve ser baseado em

pessoas e não em instituições internas ou externas à localidade.

Redes sociais acontecem quando pessoas interagem. Interação é,

basicamente, adaptação, imitação e cooperação.

As pessoas constituem uma comunidade quando vivem sua

convivência de modo a gerar uma identidade.

O processo deve ensejar a constituição comunidades (no plural)

dentro da localidade. Essas comunidades de vizinhança poderão ser

de aprendizagem, de projeto ou de prática. Sua formação é livre, não

orientada (a não ser para a realização de uma agenda-meio contendo

instrumentos e ferramentas de auto-aprendizagem e de auto-

desenvolvimento). As prioridades da agenda-meio são fortemente

recomendadas porque sem elas as comunidades conformadas na

localidade perdem interatividade. Dentre estas prioridades, a principal

é o acesso à internet banda-larga, wireless ou por outros meios, em

toda a localidade.

Pessoas podem se conectar para aprender qualquer coisa que

julguem útil ou que estejam a fim de aprender (como inglês ou

permacultura). Pessoas podem se conectar para elaborar ou executar

um projeto (como a montagem de um telecentro ou a construção de

uma horta comunitária). Pessoas podem se conectar para

desenvolver conjuntamente uma atividade, temporária ou

permanente (como limpar um córrego, promover festas ou

administrar um centro comunitário). E – não menos importante –

pessoas podem se conectar para, simplesmente, desfrutar a vida e se

comprazer na convivência com outras pessoas.