Relatório sobre os Direitos Humanos e a Administração da Justiça Penal em Angola 2006 - 2009

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RELATÓRIO SOBRE OS DIREITOS HUMANOS E A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA PENAL EM ANGOLA RELATÓRIO SOBRE OS DIREITOS HUMANOS E A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA PENAL EM ANGOLA AJPD 2006-2009 2006 - 2009 OS PROGRESSOS E OS RETROCESSOS DE UMA JUSTIÇA PENAL EM CRISE Ajuda Popular da Noruega A ASSOCIAÇÃO JUSTIÇA, PAZ E DEMOCRACIA (AJPD) é uma organização legalmente constituída em Angola que se propõe trabalhar na promoção, divulgação e advocacia dos direitos dos cidadãos e comunidades que forem violados por indivíduo, grupos de indivíduos e instituições públicas tendo em vista a construção do Estado de Direito Democrático em Angola. Os seus estatutos foram publicados no DIÁRIO DA REPÚBLICA DE ANGOLA, de 11 de Agosto de 2000, III Série N.º 31, págs 1377 - 1382. A AJPD tornou-se a primeira organização angolana a obter o estatuto de membro observador da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Este facto fez com que a AJPD colocasse em discussão junto das sessões da Comissão Africana a problemática dos Direitos Humanos em Angola, tendo, para o efeito, apresentado vários relatórios.

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Documento da AJPD - Associação Justiça, Paz e Democracia.

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RELATÓRIO SOBRE OS

DIREITOS HUMANOS E A ADMINISTRAÇÃO

DA JUSTIÇA PENAL EM ANGOLA

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OS PROGRESSOS E OS RETROCESSOS

DE UMA JUSTIÇA PENAL EM CRISEAjuda Popular da Noruega

A ASSOCIAÇÃO JUSTIÇA, PAZ E DEMOCRACIA (AJPD) é uma

organização legalmente constituída em Angola que se propõe trabalhar na

promoção, divulgação e advocacia dos direitos dos cidadãos e comunidades

que forem violados por indivíduo, grupos de indivíduos e instituições

públicas tendo em vista a construção do Estado de Direito Democrático em

Angola. Os seus estatutos foram publicados no DIÁRIO DA REPÚBLICA DE

ANGOLA, de 11 de Agosto de 2000, III Série N.º 31, págs 1377 - 1382.

A AJPD tornou-se a primeira organização angolana a obter o estatuto de

membro observador da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

Este facto fez com que a AJPD colocasse em discussão junto das sessões da

Comissão Africana a problemática dos Direitos Humanos em Angola,

tendo, para o efeito, apresentado vários relatórios.

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ÍÍnnddiiccee

Agradecimentos .........................................................................................................9

Contextualização .....................................................................................................11

Nota Introdutória e Metodologia.............................................................................13

1. Análise comparativa da situação da administração da justiça no sistema penal

angolano hoje à época do primeiro relatório........................................................15

2. Sistema Penal Angolano.......................................................................................19

2.1 A Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC)...........................19

2.2 Os Serviços Prisionais...............................................................................26

2.3 A Procuradoria - Geral da República (PGR).............................................31

2.4 Os Tribunais.............................................................................................38

3. Princípios e Direitos sistemáticamente violados: práticas de uma justiça penal

em crise ...............................................................................................................51

3.1 O princípio da separação de poderes e a independência do Poder Judicial........51

3.2 O direito à informação.........................................................................................58

3.3 O direito à assistência e patrocínio judiciários.....................................................61

3.4 O direito à vida e a prática das execuções sumárias .............................................66

3.5 O direito à integridade física e moral...................................................................71

3.6 A situação particular da província de Cabinda ....................................................77

3.7 Direito à liberdade ...............................................................................................82

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3.8 Direito à providência do «Habeas Corpus» .........................................................85

4. Alguns sinais positivos ......................................................................................................87

4.1 As reuniões de coordenação da justiça .................................................................87

4.2 Entrosamento dos tribunais com a sociedade civil ..............................................89

4.3 Criação do Tribunal Constitucional ....................................................................90

4.4 Cumprindo obrigações internacionais.................................................................92

4.5 Criação da Provedoria de Justiça..........................................................................93

4.6 Projecto de Reforma da Justiça e do Direito........................................................94

4.7 O Gabinete de Direitos Humanos do Ministério da Justiça...............................97

4.8 Aprovação de uma nova Lei Penitenciária ...........................................................99

4.9 A construção de novas cadeias e formação de profissionais...............................100

5. Conclusões e recomendações .........................................................................................103

5.1 Conclusões.........................................................................................................103

5.2 Recomendações .................................................................................................106

5.2.1 Ao Poder Executivo ...................................................................................106

5.2.2 Ao Poder Judiciário e seus agentes.............................................................107

5.2.3 Ao Poder Legislativo..................................................................................109

Anexos.................................................................................................................111

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DDAA JJUUSSTTIIÇÇAA PPEENNAALL EEMM AANNGGOOLLAA22000066 -- 22000099

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FICHA TÉCNICA

TÍTULO:RELATÓRIO SOBRE

OS DIREITOS HUMANOS E A ADMINISTRAÇÃODA JUSTIÇA PENAL EM ANGOLA 2006-2009

ELABORAÇÃO::AJPD

COPYRICHT:© AJPD 2009

PAGINAÇÃO, IMPRESSÃO E ACABAMENTO:EAL - Edições de Angola Limitada

TIRAGEM:2300 Exemplares

Endereço:Associação Justiça, Paz e DemocraciaAvenida Comandante Valódia,Prédio n.º 253, 2.º Andar, Apt C

Luanda - AngolaTelefones: (244) 222-430300 / 923-401023 / 222 430 299

E-mail: [email protected]@ajpdangola.org

Site: www.ajpdangola.org

Relatório publicado com o alto apoio da Oxfam Novib - Holanda e da Ajuda Popularda Noruega

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« (…) É função do governo prover a existência de serviços judiciários que garantam aos sujeitos em geral a existência e exercício dos seus direitos.

Esse é serviço tão vital quanto o fornecimento de água ou de outras necessidades básicas: sem ele as pessoas ficam submetidas aos interesses dos mais fortes, subordinadas às potências económicas, mediáticas e políticas»1

SÉRGIO CUNHA

« (…) Não há Estado Democrático de Direito sem uma actividade jurisdicional autónoma e independente,

assim como não há Estado Democrático de Direitoem que a sociedade civil não possa controlar as suas

Instituições Políticas, Legislativas e Judiciais»2.JOSÉ GERÓNIMO

1 CUNHA, Sérgio Sérvulo da, Fundamentos do Direito Constitucional, São Paulo, Saraiva, 2004, Vol 1, pag 309, 312,citado in CARVALHO, Kildare Gonçalves, Direito Constitucional-Teoria do Estado e da Constituição-Direito Cons-titucional Positivo, 15.ª Edição, Del Rei Editora, Belo Horizonte, 2009, pág 1273.

In O Controlo Extremo do Poder Judiciário e a Questão Democrática, pág 5.

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AGRADECIMENTOS

Este relatório é um ponto de convergência do trabalho realizado por várias pessoas edo investimento de múltiplos recursos com diferentes perspectivas. Antes de mais, queremos agradecer em nome da AJPD, a colaboração prestada pela

senhora Lívia França, Satter Human Rights Fellow, Harvard Law School. O nossoobrigado muito especial é dirigido a todos os membros e funcionários da AJPD quedirecta ou indirectamente emprestaram a sua experiência e o seu saber para a feitura dopresente relatório, nomeadamente: Serra de Assunção, Fernando Macedo, Lúcia daSilveira, João Reis, Sandra Furtado, Delma Monteiro, Godinho Cristóvão, Maria Henda,Carlos Alberto, Pedro Romão, Joaquim Gonçalves e Domingas Fortunato. Agradecível é também a senhora Nadejda Marques, ex-investigadora da Human

Rights Watch pela correcção e revisão do relatório que ora publicamos. Agradecemos também o apoio do Professor Doutor Germano Marques da Silva,

professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto (UCP)e convidado do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, em Portugal.Os nossos agradecimentos são também dirigidos às organizações Oxfam Novib

Holanda e Ajuda Popular da Noruega (APN) por terem aceitado a parceria com a AJPD,apoiando a produção e a publicação deste relatório.Agradecemos igualmente as instituições do Estado que deram o seu contributo para

a conclusão deste importante trabalho, sobretudo a Direcção Nacional dos ServiçosPrisionais, alguns juízes e procuradores e membros de alguns comités provinciais dosdireitos humanos. Agradecíveis são também todos os juízes e procuradores que receberam em audiên-

cias os membros da AJPD para trocar ideias e informações sobre o actual estado daadministração da justiça penal em Angola, bem como apresentar caminhos para a sua me-lhoria.

A Associação Justiça, Paz e Democracia,

António Ventura(Presidente da AJPD)

Luanda, Outubro de 2009

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CONTEXTUALIZAÇÃO

Angola é um país situado na África Austral, delimitada a Norte e nordeste pela RepúblicaDemocrática do Congo, a Leste pela Zâmbia e ao Sul pela Namíbia e a Oeste pelo OceanoAtlântico.Com uma área total de 1. 246 700 Km2 e uma linha de costa de 1.650km,Angola está dividida em 18 províncias e possui actualmente 15 milhões de habitantes22distribuídos principalmente pela orla costeira e planalto central ocidental.

Depois da sua independência em 1975, Angola entrou num período de guerra civile adoptou até 1992 o regime político monopartidário, de legalidade socialista e de inspiraçãoMarxista -Leninista.

Em consequência, os mecanismos de protecção dos direitos, liberdades e garan-tias fundamentais dos cidadãos contra os abusos e arbitrariedade do Estado foram sempresubalternizados à mera vontade do poder e do partido governante. Assim tambémo Poder Judicial!

O Poder Judicial ainda continua a enfrentar dificuldades que o impedem de ser, ispofacto, um verdadeiro poder. Essas dificuldades ainda são resquícios do período coloniale de legalidade socialista e monopartidária, e são fundamentalmente de natureza legal epolítica.

Em 1991, consagrou-se na Constituição angolana, o Estado de Direito Democrático– baseado no primado da lei, no multipartidarismo, no respeito e garantia dos direitose liberdades fundamentais e na separação de poderes - que conduziu o país a realizar asprimeiras eleições. Mas, logo depois das eleições, retomou-se a guerra civil que culminoucom a Assinatura do Memorando de Entendimento do Luena – Moxico, entre o Governoe a UNITA, em 2002. E em Agosto de 2006, o Governo angolano celebrou o Memorandode Entendimento com a Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC).

Depois de seis anos de paz e de preparação, realizaram-se as eleições legislativas emSetembro de 2008, tendo sido vencedor o partido no poder, MPLA.

Neste momento, faltam realizar dois actos políticos importantes, nomeadamentea aprovação de uma nova Constituição da República de Angola e a realização das eleiçõesPresidenciais, com vista a normalização da vida política em Angola. O processo deelaboração da futura constituição está em curso e as eleições presidenciais continuam semdata marcada.

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2 Segundo dado Instituto Nacional de Estatística, 2004.

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O recente relatório produzido pelo Centro de Estudos e Investigação Científica(CEIC) da Universidade Católica de Angola (UCAN) aponta o IDH angolano como0.484, a esperança de vida dos cidadãos angolanos é 43,1 anos, a taxa de mortalidadeinfantil em 2008 era de 130, o acesso à água potável estimado entre 2006/2007 é de apenas51% e o acesso ao saneamento básico estimado em 50%. Diz ainda que a taxa deanalfabetismo de adultos caiu de 32,6% para 31% em 2004.

Presentemente, Angola ocupa a posição n.º 143.ª do Indice de DesenvolvimentoHumano, segundo o Relatório das Nações Unidas recentemente publicado .33

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3 Cf. Recente Relatório das Nações Unidas, PNUD, disponível na internet.

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Nota Introdutória e MetodológicaÉ importante inserir algumas notas a respeito da metodologia utilizada para a feitura

deste relatório. Para elaborar o relatório, a AJPD utilizou três principais fontes de informações:(1) Notícias e entrevistas nas rádios e jornais; e (2) entrevistas a várias entidades ligadasà administração da justiça, juízes, procuradores e também alguns activistas dos direitoshumanos (3) constatações de alguns membros da AJPD na sua visita em determinadoslocais.

Além do mais, também foram utilizados o comunicado de imprensa do Grupode Trabalho sobre a Detenção Arbitrária da ONU, aquando da sua visita a Angola em2007, o primeiro Relatório elaborado pela AJPD sobre os direitos humanos no SistemaPenal Angolano em 2005, e os documentos do Seminário da Reforma da Justiça promovidopelo Governo de Angola.

Foram pesquisadas notícias em jornais de conteúdos abrangidos por este relatório, ouseja, os direitos humanos e o sistema penal. Pesquisaram-se notícias veiculadas entre osanos de 2006 e 2009, dando-se preferência às notícias mais recentes, de forma a mantera actualidade das informações aqui apresentadas.

Quanto às entrevistas, a AJPD inquiriu servidores públicos e personalidades dasociedade civil no período de Janeiro a Maio de 2009.

A AJPD solicitou audiências a várias entidades públicas desde Dezembro de2008. Infelizmente, apesar da insistência da AJPD manifestada, muitas vezes, através doreenvio de ofícios e de constantes telefonemas para os gabinetes das autoridades, muitasdelas nem sequer responderam aos ofícios que receberam. Outras entidades responderam,comprometeram-se a receber-nos, mas nunca o fizeram.

Em relação à abrangência geográfica, a equipe da AJPD visitou 9 das 18 provínciasdo País, contando com apoios locais que a auxiliaram no agendamento das entrevistas.

Em todo o país, foram realizadas um total de 52 entrevistas que permitiram a colectade dados. Desse número excluíram-se aquelas audiências em que as autoridades recebe-ram a equipe da AJPD, mas não forneceram nenhuma informação.

De forma a obter o máximo possível de informações, a equipe da AJPD comprometeu-secom as pessoas entrevistadas a não revelar seus nomes, ou mesmo dados que pudessemfacilmente identificá-los, por razões de protecção e de sua segurança. Assim, ao preço dorigor metodológico, os nomes dos entrevistados e, em muitos casos, os nomes de suasprovíncias, foram ocultados.

A leitora e o leitor perceberão que este relatório não menciona entrevistadas do sexofeminino. Isso, no entanto, não significa que mulheres não foram inquiridas; significa apenasque, para sua protecção, não fizemos referência a este facto. Ainda que este relatórionão tenha focado em questões de género, tornou-se evidente para os entrevistadores que

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uma minoria feminina ocupa cargos de poder nos serviços públicos, sendo a grandemaioria composta por homens. Assim, ao revelarmos o sexo da pessoa entrevistada, taldado poderia facilitar a sua identificação. Por esse motivo, todos os entrevistados foramapresentados como do sexo masculino, ainda que um número de mulheres tenha inte-grado o grupo de entrevistados.

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1. Análise comparativa da situação da administração da justiça nosistema penal angolano hoje à época do primeiro relatório Quando a AJPD publicou o 1.º Relatório sobre os Direitos Humanos no Sistma

Penal Angolano em 2005, Angola vivia uma realidade diferente da actual. Na altura, osistema de justiça penal angolano enfrentava várias dificuldades no capítulo da legislação,das infra-estruturas e dos recursos humanos.

A AJPD tinha constatado o seguinte:

1) Que apesar da transição formal do Estado socialista para o Estado Democrático dedireito, operada pela Lei Constitucional, aprovada pela Lei n.º 23/92, foi visível acontinuidade das práticas violadoras dos direitos e liberdades fundamentais;

2) Que não houve forte vontade política do Governo no ajustamento e reforma dosistema judicial tendo em conta os desafios do Estado de Direito;

3) Que a maioria da legislação estruturante do sistema judicial (sistema penal) estavadesajustada e/ou era inconstitucional; referindo-se à Lei 18/88, de 31 de Dezem-bro- Lei do Sistema Unificado de Justiça; Código Penal, datado de 1886; aoCódigo de Processo Penal (1929), a Lei da Procuradoria-Geral da República, a Leida Prisão Preventiva, inexistência de uma Lei Ordinária de “Habeas Corpus”;a Lei dos Serviços Prisionais, regulada pelo Decreto n.º 39 997 de 1955; a Lein.º 20/88 de 31 de Dezembro –Lei sobre o ajustamento das leis processuaispenal e civil, etc…, que necessitavam de revisão urgente.

4) Que haviam muitos casos de excesso de prisão preventiva e de prolongamento ilegaldas penas de prisão e atrasos no envio de certidões de sentença;

5) Que a maioria das infra-estruturas físicas que albergavam os tribunais, os cartóriosnotariais, as esquadras policiais (incluindo as DNIC e DPICs), os estabelecimentosprisionais não possuíam condições materiais dignas dos respectivos serviços;

6) Que os tribunais eram escassos para atender a demanda processual, as salas deaudiência, as secretárias, os gabinetes dos juízes e procuradores estavam cada vezmais degradados; eram escassos os meios de comunicação e de transportes para seefectuarem as diligências necessárias à prossecução da função jurisdicional;

7) Que a maioria das cadeias do país não possuíam condições dignas de habitabilidadee não realizavam o fim de reabilitação e reintegração social dos reclusos;

8) Que a competência de legalizar as detenções e de fiscalizar processos criminaisdeveriam ser tarefas próprias do Poder Judicial e não do Ministério Público comoacontece actualmente;

9) Que a nível dos recursos humanos, havia insuficiência de juízes, procuradores, in-vestigadores, instrutores, assistentes prisionais, oficiais de diligência etc…Outrossim,

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a AJPD tinha constatado que muitos desses agentes da justiça eram mal remuneradose não possuíam as melhores condições para realizarem dignamente as suas funções.

Volvidos que são 4 anos, no âmbito do seu Programa de Reforma Penal, em parti-cular, e de defesa dos direitos humanos, em geral, a AJPD após ter monitorado o fun-cionamento da justiça penal em Angola, constatou o seguinte:

1) Que a realidade da justiça penal em Angola melhorou em alguns aspectos, emanteve-se inalterável noutros.

2) Que a condição sine qua non para que se operem as profundas mudanças que seimpõem e se esperam ao nível do actual estado da justiça penal em Angola dependemde uma determinada vontade política do Executivo, do Presidente da República;e dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público.

3) Que os magistrados judiciais e do Ministério Público, bem como os respectivosconselhos destas Magistraturas, têm grande responsabilidade para que o actualquadro não se altere, porque eles recusam-se, por acto e omissões, a pugnar paraque as reformam sejam rapidamente efectuadas;

4) Que as condições remuneratórias dos actuais agentes da justiça melhoraram apenaspara os juízes e procuradores, sendo que os instrutores e investigadores, os oficiais dediligencia, os secretários judiciais, os escrivães de direito e seus auxiliares e os assistentesprisionais continuam a auferir salários não condicentes com o seu trabalho.

5) Que embora não seja ainda suficiente, o número de Magistrados Judiciais e doMinistério Público aumentou. Por exemplo, entre os anos 1990 e 2002, o númerode juízes tinha crescido de cerca de 50 para 82; o de Magistrados do MinistérioPúblico de cerca de 70 para 154.44 Já no período entre 2003 e 2008, o número dejuízes cresceu de cerca de 111 para 22255.

6) Que ao nível dos serviços prisionais, houve um aumento do número de psicólogos,de sociólogos e assistentes sociais para prestarem melhores serviços aos reclusos.

7) Que ao nível da alteração da legislação penal em Angola, apenas foram actualizadasou aprovadas a Lei n.º 08/08 de 29 de Agosto ( Lei Penitenciária); o Decreton.º 64/04 (Regulamento do Trabalho Prisional); e apresentado para discussão econtribuições públicas, o Ante-Projecto do novo Código Penal.

8) Que maior parte das infra-estruturas que albergam os serviços dos órgãos queintervêm na administração da justiça, nomeadamente os tribunais, as procuradorias

1166 Os Progressos e os Retrocessos de uma Justiça Penal em Crise

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4 Cf MARQUES, Luís Paulo Monteiro, Labirinto do Sistema Judicial Angolano-Notas para a sua compreensão, Lou-res, 2004,pág 92.

5 Fonte: Relação Nominal dos Magistrados Judiciais, actualizada a 30 de Dezembro de 2008, Comissão Para Reformada Justiça e do Direito. Na lista dos 222 Juízes, apenas 209 estão no activo, dos restantes 10 são jubilados e outros poroutras situações, não temos disponíveis os números de outros agentes da justiça por dificuldade no acesso às fontes.

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provinciais, a Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPICs), continuamdegradadas e que as benfeitorias nelas efectuadas são de pouca qualidade, como porexemplo, as DPICs em Malange, na Lunda Norte e Huíla.

9) Que o Governo construiu novos estabelecimentos prisionais nas províncias deCabinda, Lunda Norte, Bengo, Luanda (Kakila e sector feminino de Viana),Zaire e Malange; e novos pavilhões em alvenaria nas Cadeias de Viana, Kakila eCaxito, todas com capacidade de 600 reclusos.

10) Que o Governo está a construir, lentamente, 3 Palácios de Justiça em algunsmunicípios em Luanda e que as obras de construção e reabilitação de tribunais nas res-tantes províncias do país, bem como o seu apetrechamento são quase inexistentes;

11) Que continua a existir morosidade nos processos criminais por causa das leispenais ainda desajustadas, existir a falta de condições de trabalho nas secretariasdos tribunais, de comunicação e transporte quer da Polícia de Investigação, querdos estabelecimentos prisionais, quer dos tribunais. À esta realidade alia-se a fracacapacidade do pessoal auxiliar e da escassez de juízes e magistrados.66

12) Que o índice de produtividade na sala dos crimes comuns ainda continua aquémdas expectativas dos cidadãos. Por exemplo, no início de 2008, a Sala dos CrimesComuns do Tribunal Provincial de Luanda, tinha um total de 14.185 processos,dos quais 11.494 transitaram de 2007 e 2. 691 entrados em 2008. No fim de2008, apenas tinham sido julgados 1978, tendo transitado para 2009, 11.901processos.77 Ainda assim, pelas condições disponíveis para os juízes, para osprocuradores e sobretudo para os funcionários auxiliares dos tribunais, deve-seelogiar esforço.

13) Que continua a existir a prática de maus tratos e violação à integridade física doscidadãos nas Celas das DPICs e em algumas esquadras do país;

14) Que a cultura de confindencialismo e militarismo ainda é acentuada em muitosinvestigadores, instrutores, e em alguns procuradores e juízes.

15) Que até à data da elaboração deste relatório, o Tribunal nunca tinha dadoprovimento ao Habeas Corpus interposto por cidadãos e por advogados contra oabuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, contrariamente ao previstona Lei Constitucional (Artigo 42.º ss).

16) Que, apesar dos parcos investimentos no sector, os Tribunais ainda estão longe decumprir a sua função de defesa do direito e dos direitos: contribuir para a efectivaçãodos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e a defesa da legalidade demo-crática em Angola.

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6 Cf ainda « No Uíge para constatações, Presidente do Supremo reconhece falta de quadros»; Luanda, 22 de Outu-bro de 2009, n.º 11636, pág 2.

7 Fonte: Tribunal Provincial de Luanda, Março de 2009

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2. O SISTEMA PENAL ANGOLANO

2.1 A DIRECÇÃO NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL(DNIC) Nos termos da Lei 20/93, de 11 de Junho, a DNIC é o órgão afecto ao Ministério

do Interior com competência para investigar e instruir os processos criminais. É tam-bém chamada a Polícia de Investigação Criminal. É o órgão operativo central ao qual com-pete a investigação dos crimes, a realização de buscas e apreensões e a captura de suspeitos.Os resquícios de confidencialismo e militarismo – típicos da época de guerra, em que

o segredo e a hierarquia eram essenciais – vêm-se claramente nas DPICs, onde os cidadãossão impedidos de, com o intuito de aperfeiçoar a organização institucional no país,colher informações de natureza públicas.A verdade, no entanto, é que tal observação preliminar já indica aos mais atentos

alguns traços do quotidiano das DPICs. A mentalidade militarista está bastante presentetambém na extrema rigidez que leva não só ao desrespeito da legislação criminal, mas atémesmo à intolerância em casos onde profissionais buscam legitimamente informações paraaplicar a lei. O depoimento abaixo exemplifica essa situação. Quando perguntado acerca da utilização em peças processuais de normas de documentos

internacionais de direitos humanos, nos termos do artigo 21.º da actual Lei Constitucional,um procurador nos revelou que:« Isto é muito complicado. Sim, há determinados casos emque procuramos aplicar instrumentos também internacionais. Mas muitas vezes somos malcompreendidos, eu já tive essa experiência. Em muitos casos temos prisões ilegais. Então,naqueles casos em que o indivíduo estiver preso sem cumprimento da lei da prisão preventiva,ordeno que o processo me seja entregue, analiso os fatos e o enquadramento da lei e liberto oindivíduo. Mas isso já me levou a processos disciplinares! O maior problema é esse, as autoridadesque não compreendem. Sim, cito documentos internacionais de direitos humanos, comoCarta Africana. Os juízes não são o problema, o problema são os órgãos de instrução».

Este depoimento, como muitos outros colhidos, revela uma mentalidade aindamuito presente na DNIC e nas DPICs de considerar os suspeitos e arguidos como inimi-gos e não como cidadãos. Tal mentalidade já não se adequa aos tempos de paz e daconstrução do estado de direito democrático que os artigos 1.º e 2.º da actual Lei Consti-tucional consagram.Segundo o depoimento de um jornalista, « Por serem militares os investigadores são

arrogantes, continuam com a prepotência, não atendem convenientemente as pessoas, usamo poder para se vingar, usam tortura na investigação, é um sistema caduco. Precisam de formação,de reciclagem, precisam saber que direitos humanos precisam ser respeitados».

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Nas visitas efectuadas pela AJPD às Direcções Provinciais de Investigação Criminal– DPICs – constataram-se situações contrastantes quanto ao trabalho nesta instituição.Por um lado, os membros das DPICs aparentam ser aqueles que trabalham mais horasquando comparados com os funcionários dos Tribunais e das Procuradorias. É de fatoimpressionante a quantidade de horas de trabalho. Por outro lado, as suas instalações são,em geral, as menos apetrechadas, algumas a necessitarem de urgente reestruturação eaparelhamento.

Segundo o director de uma DPIC, a rotina de trabalho, além de pesada, é extensa nasDPICs: «Todos os dias há reunião às 23h, do quadro operativo; para evitar que fuja um ououtro que é esse horário. É para prestar contas do que foi produzido ao longo do dia; e outraàs 8h, com o Comando da Polícia».

As condições materiais são precárias. O procurador junto a uma das DPICs desabafou:«Fax, telefone, nada disso... Internet? [risos]. Nem tem luz aqui, já reclamamos». Já uminvestigador de uma DPIC revelou-nos o seguinte: « Não são boas as condições de trabalho,são péssimas, falta de quase tudo, material de escritório etc. Isso não impede que trabalhemos,mas não podemos fazer muita coisa».

Se as condições dos escritórios de algumas DPICs estão débeis, a situação das celasé desumana e “péssima”, nas palavras de um procurador entrevistado: « A cadeia juntoà DPIC, se vissem iam ficar arrepiados... uma casa assim, mínima, onde ficam mulherese homens no mesmo quarto, e onde se fazem necessidades no mesmo local».

Membros das DPICs queixam-se ainda da falta de um laboratório de análises criminais,o que possibilitaria que o procedimento de produção de prova se desse de forma maisobjectiva. Recentemente foi inaugurado em Luanda um moderno laboratório de análisescriminais; no entanto, a distância em relação às províncias dificulta que a estrutura sejautilizada nos fatos ocorridos distantes da capital.

Um dos profissionais disse-nos que, na sua prática diária como investigador, chegamà sua presença substâncias que são aparentemente psicotrópicos de uso proibido pelalegislação angolana. No entanto, a amostra somente deveria produzir prova adequada deum crime caso um perito pudesse avaliá-la e, após a utilização de reagentes e outrosinstrumentos adequados, comprovasse que de fato se trata de substância ilegal. Comodisse o investigador da DPIC: «Sou investigador e presumo ser cocaína, mas preciso enviarà peritagem própria, logística».

Perguntados acerca da existência e qualidade de cursos de superação, os membros dasDPICs disseram que, de fato, há uma série de cursos destinados ao aperfeiçoamento dosprofissionais da instituição. É clara a vontade de aperfeiçoar a qualidade técnica dosprofissionais. Dentro de seus limites orçamentais, percebe-se que o Estado está de factotrabalhando pela capacitação dos quadros das DPICs. O próximo passo, no entanto, éaumentar a qualidade dessas formações, ainda aquém das necessidades do pessoal, que

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chega às DPICs com uma série de debilidades resultantes do actual estado do sistemade ensino básico do país.

Notou-se ainda que a relação entre as DPICs e os Magistrados Judiciais e do MinistérioPúblico em geral são harmoniosas. No entanto, em alguns momentos tem havido tensõesque muitas vezes resultam simplesmente da vontade dos procuradores em manterem osprocessos na legalidade através do respeito dos prazos de instrução de processos-crimes.

A iniciativa mais louvável de todas é o projecto de patrulhamento de proximidade.Através dessa iniciativa, uma das DPICs está promovendo a aproximação da comunidade,baseada no princípio de que: “O alicerce da actividade criminal é a prevenção, ao investigar,estamos a falhar! Nossa palavra de ordem é a prevenção, se não mesmo o corte, da actividadedelituosa. Se tivéssemos mais investigadores, haveria menos crimes!”

Dessa forma, o Comando de Polícia tem-se reunido quinzenalmente com a comunidade,com líderes dos bairros, com os sobas, de forma a pesquisar como pode ser mais eficientee corresponder melhor aos anseios dos cidadãos: “Temos policiais que vão à casa do cidadão,perguntam como passaram a noite, se houve problema na rua etc.”Os números de telefonedo pessoal da DPIC foram tornados disponíveis à população que com eles podementrar em contacto directamente quando necessário.

Por isso a estratégia do patrulhamento de proximidade torna o policiamento maiseficiente: ao estreitar as relações entre os oficiais de polícia e a população, esta sente-semais disponível para compartilhar o que sabe a respeito da criminalidade local. O patru-lhamento de proximidade parece ser uma óptima iniciativa para se prevenir a criminalidade.

O trabalho de instrução de processos-crime feitos pelas DPICs foi tido como cheiode dificuldades na avaliação dos procuradores:

1) Uma delas é a formação académica de alguns investigadores, que, segundo osprocuradores, não é a desejável. Segundo eles, uma formação que os torne hábeisem lidar com a legislação penal e escrever peças é fundamental. Um magistrado doMP afirmou que « processos mal instruídos na polícia têm criado uma série dedificuldades para os advogados e magistrados». Já outro falou: « Peças mal instruídas,falta de formação. Um instrutor deve saber sobre os exames que instruem o processo, agravidade das lesões, o tempo que ele pode levar».

2) Outra dificuldade é a escassez de material de trabalho, o que se relaciona com umadependência ineficiente de recursos materiais em relação ao Comando Provincial.

3) Uma terceira dificuldade associada aos trabalhos das DPICs, é o facto de o Ministériodo Interior, sob cuja tutela se encontram as divisões de investigação, dispor de umaestrutura gigantesca de órgãos e instituições que impede que o cuidado especializadoque as DPICs merecem se materialize em um mais vigoroso apoio e aperfeiçoamentode procedimentos. Como consequência, essa desatenção se reverte em reflexosnegativos no dia-a-dia das DPICs: «Nós analisamos e vemos que o processo é incompleto,

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queríamos investigação mais aprofundada, mas eles não podem, porque não têm meios.Tudo depende do Comando; e o Comando é grande...».

Segundo alguns procuradores, tais dificuldades decorrem do facto de, nos termos doartigo 2.º do Decreto n.º20/93 (Estatuto Orgânico da Polícia Nacional), as DPICs,estarem subordinadas aos Comandos Provinciais, e estes, por sua vez, aos órgãos doMinistério do Interior nas Províncias.

Perguntado acerca da relação do MP com a polícia, um magistrado respondeuque:“Tem sido feito esforço para efectivamente as coisas correrem de outra forma. Mas édifícil porque a subordinação do chefe da DPIC ao Comandante da polícia reduz os poderesdo MP junto ao Director da DPIC. A minha chamada fica em segundo plano se chamo aomesmo tempo que o comandante, porque o investigador é militar, tem que responder ao su-perior; e se não obedecer não é promovido! A situação dos militares é complicada. Hácomandantes que compreendem, mas já tive comandante que, para eu ir visitar prisão, eutinha que comunicar ‘vou visitar no dia tal’. Mas quem faz fiscalização tem que surpreender!Quando chegar lá não vou encontrar problema nenhum... Exigem que, quando desloquemospara a instituição sob sua tutela, primeiro os demos a conhecer.

Eu por exemplo, se receber uma reclamação de um cidadão por causa de um processo, peço parao director me mandar o processo aqui; mas há directores que exigem que eu faça uma requisiçãopara o envio do processo. Para encontrar essa compreensão é preciso gerir e sacrificar algunsinteresses. Eu podia dar ordem, mas se eu disser ‘quero o processo tal no meu gabinete!’ ele meentende mal! Preciso dizer ‘senhor director, faz favor’. É preciso uma pessoa gerir. O cidadãoencontra mais facilidade para vir aqui do que ir até a DPIC! Às vezes tenho que ligar parao director e falar ‘fala com o porteiro para deixar entrar o cidadão tal’ .

A preocupação relatada acima remete-nos, mais uma vez, para a questão tratada já noinício deste subcapítulo: as atitudes militaristas que reinam nas DPICs. Muitos quadrosda investigação criminal ainda não compreenderam ou interiorizaram que se vive numEstado de Direito, onde, por definição, a lei é soberana. A obediência à hierarquia nãose pode confundir com o estrito cumprimento da lei.

Sobre o militarismo na DNIC e DPICs também se pronunciaram o Juiz Netode Miranda e o advogado Raul Araújo, ex-bastonário da Ordem dos Advogados nodebate sobre a integração da DNIC na justiça.

« Neto de Miranda, Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo, sustentou o seu ponto devista com o argumento de o objecto principal das actividades da DNIC tem um caráctercivil, contrariamente ao carácter paramilitar do órgão que hoje a tutela, rejeitando oargumento de transitoriedade com que se prolonga a integração daquele órgão de policiacriminal no seio do Comando Geral da Policia Nacional, e achando que o seu directordeve ser um magistrado». « (…) Raul Araújo defendeu, de igual modo, que enquantoestrutura militarizada, o Comando Geral da Policia Nacional não devia dirigir a DNIC,que tem como missão lidar com os cidadãos».

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O militarismo das DPICs, está directamente relacionado com a subordinação hie-rárquica dos directores das DPICs em relação aos Chefes dos Comandos Provinciais dapolícia. Tal hierarquia necessita de uma urgente reestruturação.

De facto, a hierarquia aparenta estar acima do respeito aos direitos e liberdades fundamentais.Uma leitura do Regulamento de Disciplina da Polícia Nacional ( Decreto no 41, de27/12/1996) revela que em nenhum de seus 99 artigos se faz menção à importância dese respeitarem os direitos humanos. O único dispositivo que se aproxima da questão -Artigo 3.o, parágrafo único – fá-lo de forma avessa ao princípio do Estado Democráticode Direito em que Angola hoje se deve pautar:

« Em casos excepcionais, em que o cumprimento de uma ordem possa originar inconve-niente ou prejuízo, o inferior estando presente somente o superior, pode, obtida a precisaautorização, dirigir-lhe respeitosamente as reflexões que julgar convenientes, mas, se o superiorinsistir na execução da ordem que tiver dado, o inferior obedecer a pronta e inteiramente,assistindo-lhe, contudo, o direito de solicitar a ordem por escrito».

Tal artigo é um indicativo de quão destoantes são as orientações legais fornecidasà polícia quando se trata de direitos humanos. No que toca ao direito internacional, jádesde 1950, os julgamentos do Tribunal de Nuremberg assentaram que a prática deacções que incidem em violações de direitos humanos não livram seu autor de culpano caso de terem sido ordenadas por superiores hierárquicos. É momento de Angolareconhecer esse princípio de direito internacional e aplicá-lo em sua ordem interna.

Outra preocupação ainda no tocante à preponderância da obediência hierárquicaem relação aos direitos, liberdades e garantias fundamentais está no n.º 27 do artigo 5.ºdo Regulamento da Polícia. Segundo tal disposição, é um dever da Polícia Nacional: “Sermoderado na linguagem, não murmurar das ordens de serviço nem as discutir, não se referira superiores, iguais ou inferiores por modo que denote falta de respeito ou de consideração, nãoemitir apreciações, conceitos ou opiniões que importem censura aos actos dos mesmos superiores,nem consentir que subordinados seus ou indivíduos estranhos à Polícia Nacional o façam.”

A dificuldade em cumprir as regras se manifesta também de uma outra forma extremamenteperniciosa: as chamadas “prisões de fim de semana”.

Alguns juízes e procuradores alertaram-nos para a prática de prender sem nenhumfundamento legal. De acordo com uma série de depoimentos, os “desafectos” de indivíduospróximos ao poder podem pagar um preço caro caso desagradem aos investigadores,policiais, procuradores ou juízes que não compreendem o princípio da legalidade.

Em algumas províncias, foi-nos dito que cidadãos, mesmo sem terem incorrido emqualquer conduta delituosa, são presos numa sexta-feira e somente soltos na segunda-feira. Isso porque em muitas províncias, os procuradores que atestariam a ilegalidade detais prisões e ordenariam a imediata soltura, nem sempre estão presentes nas DPICs ounas esquadras nos fins de semana. O seguinte depoimento de um entrevistado ilustra essaprática:

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«Há prisões ilegais na DPIC! Por tudo e por nada, vais à cadeia! Aqui, já notei isto! Porcapricho do investigador. Como as famílias estão próximas, basta haver alguma desavença,vai falar com o investigador, te prende na sexta, fica pelo menos de sexta a domingo preso! Épreciso que o procurador junto à investigação esteja atento e visite a cadeia aos fins de semanae feriados. Procurador tem que actuar, não tem que soltar só! Não é só mandado de soltura!Tem que saber quem prendeu, averiguar, interrogar: ‘É crime? Você tinha poder para detê-lo?’Se diz que sim, então não conhece a lei, então não pode trabalhar aqui. Se diz que estáerrado, agiu dolosamente, é preciso abrir processo contra essa pessoa. Se fizer isso, muda! Opapel da procuradoria não está a ser exercido. O procurador provincial tem que saber pôr umbom procurador na DPIC, com personalidade. Há algum tempo esteve lá um procurador quebebia muito. Com uma cerveja, lhe convenciam».

Em Luanda, a prática das “prisões de fim de semana” era comum e frequente até2008, depois de um despacho do Procurador Geral da Repúblicas que orientou os pro-curadores a se fazerem presentes nas esquadras e DPICs nos fins de semana com vista afiscalizar a legalidade ou ilegalidade das detenções efectuadas. Além disso, a polícia tambémtomou medidas para não permitir que sexta-feira se emitissem ou fizessem cumprirqualquer mandado de captura. Nas palavras do procurador, “Não posso dizer que acabou,MP não consegue chegar a todos os recônditos locais em que a policia está, mas desde 2008 a pior fasejá passou.”

A corrupção ainda está presente de forma marcante no trabalho das DPICs e daDNIC. Ela se manifesta basicamente de 2 formas: tráfico de influência e suborno. Umnúmero grande de magistrados afirmou que os traços do militarismo, já apontados nesserelatório, levam à confusão da obediência à hierarquia com a troca de favores violadoresda lei. Os magistrados narram que essa situação é frequente. Um juiz de um dos tribunaisprovinciais do país, narrou-nos o seguinte caso:“O filho de um dos responsáveis da DNIC,em racha de motas, morreu. Toda a instrução do processo foi feita nessa direcção: porque elefilho de não-sei-quem. A mota não tinha licença, arranjaram um livrete com a matrícula do[nome de província – omitido], depois soubemos que lá não havia registo de mota. A mota nãoapareceu nos autos. A viatura ficou aprendida, andaram atrás do rapaz para matá-lo, nadadisso contou no processo durante a instrução. Todo o resto, testemunhas etc., não interessava.Tem a ver com se ter instalado em nosso país em geral um certo sentimento de impunidade.A quem está em determinada posição, não é o ‘Zé ali da esquina’ que fica impune. É só ir-mos às cadeias e vermos quem lá está, irmos à DNIC e vermos contra quem os processos correm.Aqueles que se beneficiam dessa impunidade protegem os seus. Conseguir que o filho de umgeneral de nosso exército seja detido porque cometeu uma infracção qualquer de rua não é fácil.O contrário também não é fácil: já vi um general que queria à força meter na cadeia duasmeninas e um rapaz por discussão de rua, numa discussão com o motorista dele. As meninasqueriam meter o carro dentro da garagem delas, estavam em casa, e o motorista estavainterrompendo a passagem. O motorista saiu do carro e bateu na menina! Gerou-se confusão,era uma festa, o general saiu para ver o que estava acontecendo, o general disse que as miúdasbateram nele. Esse processo desapareceu, junto com o prédio da DNIC que caiu. O irmão das

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meninas veio em socorro delas também. As pessoas acham que beneficiam desse estatuto deimpunidade e transferem esse ‘direito’ para os seus».”

Em relação à segunda forma de corrupção, o suborno, também encontramos relatossobre a prática. Enquanto a polícia não criar a sua imagem de zeladora da lei, seráirónico que se tente cobrar que o cidadão não infrinja normas. De acordo com algunsentrevistados, é preciso criar condições para que o polícia não permita o aliciamento; umcidadão ou uma cidadã que possua um salário digno e boas condições de trabalhoestará menos vulnerável às tentações da corrupção. Na entrevista do Comissário JoaquimRibeiro concedido ao Semanário Angolense, em Maio de 2009, a questão dos baixossalários da polícia é abordada e relacionada com a prática do suborno ou da “gasosa”:

“Semanário Angolense – Um outro aspecto também importante para o próprio combateà criminalidade será um bom salário para todos os integrantes da polícia. Acha que os seushomens ganham bem?

Joaquim Ribeiro – Não. Nem pensar. Com o custo de vida que temos no país, ainda nãoganhamos como gostaríamos.” 88

É preciso dizer ainda que, segundo os depoimentos dos magistrados, a prática dacorrupção está instaurada na polícia e, mesmo que as condições materiais sejam melhoradas,ainda assim o problema persistirá se outro trabalho mais aprofundado não for realizadode forma a combater o problema.

São também esclarecedoras as declarações do Grupo de Trabalho da ONU sobrea Detenção Arbitrária:“As entrevistas feitas apontam para uma percepção de que existe umacorrupção generalizada dentro do sistema de administração da justiça, em particular no seioda polícia e das autoridades prisionais. O Grupo de Trabalho foi informado que a libertaçãodas pessoas detidas ilegalmente e o andamento célere da instrução preparatória muitas vezesdepende de subornos mais do que do cumprimento de procedimentos legais, em particular emLuanda. A ausência de registos de detenção adequados facilita tais comportamentos, porquetais registos não contêm a informação necessária para um controlo rápido e eficaz das chegadas,transferências e libertações dos presos, e da população carcerária.” 99

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8 Semanário Angolense, em 30 de Maio de 2009, “A gasosa é universal”, p. 42.9 African Press Organization, em 28/09/2007, “Nações Unidas: O grupo de trabalho sobre a detenção arbitrária vi-sitou Angola”, disponível em: http://appablog.wordpress.com/2007/09/28/nacoes-unidas-o-grupo-de-trabalho-sobre-a-detencao-arbitraria-visitou-angola/ e para mais informações Cf AJPD, Relatório de Direitos Humanos, umolhar sobre o Sistema Penal angolano, 2000-2004.

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2. 2 OS SERVIÇOS PRISIONAISNos termos do Decreto-Lei n.º 11/99, de 9 de Julho, os Serviços Prisionais integram

a estrutura orgânica do Ministério do Interior, como sendo Serviços Executivos Centrais.O seu artigo 23.º dispõe que os Serviços Prisionais são o órgão encarregue do controloda execução de penas e medidas de segurança impostas pelos tribunais aos indivíduossujeitos a privação de liberdade, sua reeducação, bem como do acompanhamento dos prazosde prisão preventiva.

A actividade dos Serviços Prisionais, como órgão que integra o sistema penal, é reguladada Lei n.º 8 /08 de 29 de Agosto, Lei Penitenciaria. Para complementar a execução daspenas, existe a o Regulamento da Organização do Trabalho Prisional (Decreto-Lei64/2004 de 1 de Outubro) com vista a dotar o recluso de formação técnico-profissional,que e facilite sua inserção social.

Durante as suas visitas, a equipa da AJPD constatou, em Luanda e nas províncias, quea atitude militarista é ainda mais acentuada no tratamento dos reclusos. A lógica da guerra– de que o preso é um inimigo, não um cidadão – ainda é muito viva nas prisões.

A óptica de que todas as pessoas merecem tratamento humano, independentementede estarem ou não atrás das grades, está longe de representar a mentalidade dominanteentre muitos investigadores das DPICs e funcionários das cadeias. O Director de umadas DPICs disse que: «Os presos têm tido tratamento devido, não especial, porque se forespecial não é preso. Há orientação que não se pode tratar mal os presos, são seres humanos.Pelo contrário, eles é que se portem mal».

O que esperar de uma província cujo director de investigação criminal parte do princí-pio de que os detidos e presos se portam mal unicamente por serem presos?

Verifica-se, dessa forma, flagrante violação do direito à integridade física e moral,expresso no artigo 23.º da actual Lei Constitucional que dispõe que “Nenhum cidadãopode ser submetido a tortura nem a outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos oudegradantes”);e no artigo 7.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos,ratificado por Angola segundo o qual “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penasou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter umapessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas”), na alínea c) don.º 2 do artigo 6o da Lei Penitenciária e nos artigos 31.º e 32.º das Regras Mínimas parao Tratamento dos Reclusos da ONU de 1955.

A ausência de profissionais do ramo da psicologia e psiquiatria também é lamen-tada pelos profissionais que trabalham nas cadeias. Lamenta-se a falta de apoio de espe-cialistas no diagnóstico de distúrbios e no tratamento de problemas mentais: «Nuncativemos educadores sociais. Eu faço decisões aqui que muitas vezes não estão correctas porqueeu não sei o interior do homem, eu preciso de conhecimento também, posso dizer que sujeitoestava anormal, mas na verdade não estava».

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Os juízes foram unânimes em revelar que não há nenhuma colaboração por parte dosprofissionais da área de assistência social. E que, mesmo quando se nota a necessidadeda actuação de pessoal dessa área, não há verbas para pagá-los.

Um magistrado ilustrou essa realidade no seguinte depoimento:« Tínhamos cerca de[número omitido] réus em Luanda que aqui apresentavam indícios de loucura. Abriram-seprocessos de alienação mental, mas aqui não havia especialistas; orientamos a cadeia amandá-los à cadeia de São Paulo, à psiquiatria. Fui ao São Paulo uma vez, pessoalmente, nãome davam informações sobre um réu preso, não sabiam nem onde o réu estava. Eu acheio rapaz, e perguntei ao médico: nesses casos onde a demência é notória, por que não fazemum relatório e liberam o preso? Eu soltei o réu. Alguns precisam de psicólogo, há uns quefingem loucura, mas há aqueles casos onde a demência é notória, é só atestar. “Estão aqui osmalucos todos!” foi o que me disseram. Era preciso trabalhar mais sério com esses doentes.Aquela cadeia de São Paulo não é psiquiatria, Luanda é que tem psiquiatria, eles própriosdeveriam encaminhar, não reter os doentes ali no São Paulo por muito tempo».

Segundo um funcionário de uma cadeia visitada, a maior dificuldade está em fixaros especialistas em sítios distantes de Luanda. Há poucos atractivos para os especialistas,a remuneração é insuficiente e as condições de habitação são precárias. É vital queo Estado crie medidas e planos que permitam a existência de melhores condições paraque psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais se fixem próximo às cadeias. De outraforma, a ideia de ressocialização permanecerá muito distante da realidade.

Os recursos humanos e financeiros afectos às cadeias são irrisórios para se atingir o fimda ressocialização. De acordo com declarações de Carlos Diamantino à Rádio Eclésia, em24/07/2008, em todo o País há apenas 24 assistentes sociais a trabalhar nos serviços prisionais.Quando se trata de psicólogos, há 16 em Luanda, 1 em Benguela, 1 no Uíge e 8 técnicosespecializados em psicologia em Viana, província de Luanda. Com esta equipa de apoio tãorestrita é impossível que as cadeias cumpram com seu papel de reeducação e reintegração.

As condições de habitabilidade em algumas cadeias do país continuam péssimas. Estaconstatação foi unânime na opinião da maioria dos entrevistados, entre procuradores,investigadores e funcionários prisionais.

Uma das cadeias visitadas alberga mais que 10 vezes o número de presos para a qualfoi planeada. O director de uma das cadeias afirmou que o orçamento destinado à suaunidade é diminuto e insuficiente para satisfazer as condições básicas do estabelecimentoprisional e que às vezes tira “dinheiro do próprio bolso para pagar dívidas”.

De acordo com o Ministro do Interior, Roberto Leal Monteiro, em Maio de 2008existiam em todo o país 15.000 reclusos, mas uma capacidade de internamento de apenas7500 pessoas.1100 Já no primeiro trimestre de 2009 a situação piorou de acordo com

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10 Portal Angop, 20/05/2008, “Excesso de prisão preventiva domina reunião entre Minint e órgãos de justiça”, in-formação disponível em www.portalangop.co.ao/

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dados fornecidos à AJPD pelos Serviços Prisionais, pois que para uma população penalde 16137 há uma capacidade efectiva de 8394 lugares. De acordo com o Departamentode Reeducação Penal dos Serviços Prisionais, o maior problema da instituição hoje é asuperlotação dos estabelecimentos prisionais.

Conforme a declaração de Roberto de Almeida, ex-presidente da Assembleia Nacional:« Durante as deputações realizadas às diversas províncias no âmbito da actividade daAssembleia Nacional, tem-se constatado em termos gerais que a Justiça no país atravessa umperíodo difícil, caracterizado pelas cadeias repletas de reclusos e detidos e com processos emtribunal a aguardar julgamento» 1111

Tal constatação também foi feita numa reportagem do Semanário Angolense. Há ques-tões de cunho processual que contribuem para a superlotação das cadeias. Todos osreclusos que tenham cumprido metade de suas penas podiam concorrer à liberdadecondicional, mas muitos não beneficiam deste direito por responsabilidade da entidadejudicial competente.1122

Mesmo as condições exigidas pela nova Lei Penitenciária1133 no que concerne ao tratamentodos reclusos ainda estão longe de se concretizarem. O director de uma das cadeiasafirmou que tem conhecimento que a nova Lei Penitenciária foi promulgada, mas aindanão possui uma cópia do documento.

De acordo com as visitas efectuadas às cadeias pela equipa da AJPD, em Outubro de2007, e também segundo o comunicado de imprensa da ONU sobre a visita a Angolado Grupo de Trabalho sobre a Detenção Arbitrária, de 27/07/2007, verificou-se o seguintequadro, em flagrante desrespeito aos direitos humanos dos reclusos:1144

- CCaaddeeiiaa ddoo CCoonndduueejjee,, LLuunnddaa NNoorrttee:: os dirigentes não sabem informar o númerode presos no estabelecimento. Por certo tempo os reclusos não tiveram as 3 refeições diárias,havia sinais claros de fome entre os presos e faltava viatura para o transporte dos reclusos.

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11 BERNADINO, Manje, Actual sistema de justiça é insuportável, Jornal de Angola, Luanda, 25/04/2008, Bernar-dino Manje.

12 Cf artigo 17 da Lei Penitenciária e artigo 120.º Codigo Penal ss13 A Lei Penitenciária, aprovada pela Lei n.º 8/08, de 19 de Agosto. No artigo 6.º, o diploma consagra, dentre umasérie de outros direitos assegurados aos presos, o direito ao respeito pela dignidade humana e ao desenvolvimentointegral da sua personalidade, à vida, à saúde e integridade pessoal e a não ser submetido à tortura, maus tratos oumedidas degradantes.

14 Além de violação ao direito à integridade física (conforme os dispositivos já citados no item 2.1.2 deste relatório),as constatações da AJPD revelam também a violação ao princípio da ressocialização do recluso e do princípio daprevenção geral e especial, expressos nos artigos 1o e 5o da Lei Penitenciária (Lei no 08/08), do direito à vida e à saúdedo recluso (artigo 6.º), e do direito à assistência médico-sanitária, médica e medicamentosa, expressos nos artigos54o e 55o da Lei Penitenciária e no artigo 16.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos; do direitoà assistência social, expresso no artigo 58o da Lei Penitenciária; ao acesso à cultura, expresso no n.º 2, alínea g) doartigo 6o, da Lei Penitenciária; do direito à assistência laboral, expresso no artigo 59o da Lei Penitenciária; do di-reito ao devido processo legal, conforme expresso no artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dosPovos; do direito à educação, conforme expresso no artigo 62o da Lei Penitenciária e no artigo 17.º da Carta Afri-cana dos Direitos do Homem e dos Povos.

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A prisão estava a abarrotar com o triplo de sua capacidade, o que contribuía para umcalor sufocante nas celas que na verdade são um “armazém” além de que o local erainundado quando chovia.Havia denúncias de abusos sexuais contra mulheresdetidas.

-- PPrriissããoo ddoo YYaabbii,, CCaabbiinnddaa:: a prisão e detenção à ordem das Forças Armadas Angolanas,embora não tenham competência para prender e deter civis, isso é prática corrente emCabinda. Muitos detidos não são apresentados a um juiz dentro do prazo legalmenteestabelecido. É muito recorrente a prática de torturas através do uso de armas de fogo.Há notícia de um detido que perdeu a perna após ter sido baleado.

A situação nas cadeias de Cabinda é desde há muito preocupante a ponto das autoridadeslocais terem impedido o grupo de trabalho sobre Detenção Arbitrária da ONU, em 2007,de visitar os estabelecimentos prisionais. Além disso, detidos que se encontravam na DPICe na Esquadra da Polícia de Cabinda foram transferidos para outros locais pouco antesda visita do grupo.

- CCaaddeeiiaa ddee VViiaannaa,, LLuuaannddaa:: vários presos apresentavam sinais visíveis de maus tratose tortura; água e comida são oferecidas em escassez aos presos. A cadeia foi construídapara abrigar 1250 presos, no entanto albergava 3125 em Maio de 2008. Alguns dospresos dormiam no chão e mesmo assim não havia espaço para todos se deitarem.1155

- CCaaddeeiiaa ddoo PPééuu PPééuu,, KKuunneennee:: as celas encontram-se em condições deploráveis.A cadeia não tem programas de ocupação dos reclusos com vista à sua reinserção nasociedade. As celas de transição das esquadras na província do Kunente, incluindo a daDPIC, não possuem condições de habitabilidade para os detidos que por ali passam,redundando em constantes violações de direitos humanos. Até então, na cadeia do Péu-Péua população penal era de 544 pessoas, entre as quais 238 condenados e 266 detidos,incluindo mulheres e 6 estrangeiros. Cerca de 70 detidos aguardavam julgamento, que não serealizam por falta de juízes suficientes e de carro celular à disposição para transportar osarguidos.

Em 01/10/2007, houve um motim na Cadeia Central de Luanda (CCL). Até então,havia 3.750 presos no estabelecimento com capacidade para abrigar apenas 300. Alémdo “confinamento”, outra violação que teria incitado a rebelião foi o hábito dos guardasprisionais roubarem a comida dos presos. Segundo o Semanário Angolense, quando nãopassa pelo roubo da comida, passa pela chantagem feita pelos guardas: a troca da comidados presos pela concessão de pequenos privilégios. Caso não cedam a comida, os presossofrem castigos e torturas psicológicas. De acordo com o jornal:“Com efeito, é fácilimaginar um tumulto numa prisão em que se juntam mais de três milhares de pessoas a aguardarjulgamento, em péssimas condições de vida, a sofrer os desmandos dos guardas prisionais, tendo

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15 ALEXANDRE, Elsa, «Falta de água e comida originou motim na cadeia de Viana», Jornal Angolense, Luanda, 10a 17 de Maio de 2008,pág 14-15.

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os presos consciência da ilegalidade, muitas vezes, do prolongamento da sua prisão preventivae, em muitos casos, alegando a sua inocência.” 1166

Mais de uma dezena de presos morreram por asfixia em 2006, numa cadeia deLunda Norte, devido à sobrelotação do estabelecimento. Em Outubro de 2007, dois outrospresos morreram também por asfixia devido à sobrelotação numa cadeia da Lunda Sul.1177Tal situação já tinha sido reportada pela AJPD no seu primeiro relatório em 2005 e maistarde pelo Grupo de Trabalho da ONU sobre a Detenção Arbitrária ao afirmar que« Os presos vivem em condições muito duras nas prisões e noutros locais de detenção. Ficama maior parte do dia em celas superlotadas sem participar em qualquer actividade. Comidae água constituem um problema sério, devido aos constrangimentos orçamentais das auto-ridades prisionais. As condições nas celas de detenção da DNIC; da Cadeia Central de Luandae da Cadeia Provincial de Condueji na Província de Lunda Norte são alarmantes.» 1188

Observa-se a boa vontade de alguns em relação à melhoria das más condições a quesão submetidos os presos. O seguinte depoimento é um exemplo dessa prática. Quandoperguntado acerca da existência de denúncias de maus tratos contra reclusos, o directorde uma das cadeias visitadas disse: « Eu recebo essas notícias às vezes. Maus tratos vêm naquelasmoléstias que às vezes um funcionário dá. Tenho recebido. Nós temos umas caixas dentro dacadeia onde o preso lança a reclamação e eu mando recolher. Às quintas, os presos conversamcomigo. Muitos às vezes não sabem escrever, precisam conversar, um de cada vez. Para ocolectivo, uma vez por mês os reúno todos ali fora e conversamos. Eu apuro as denúncias semrevelar a identidade dos presos».

Tal prática de comunicação estreitada com os reclusos deveria ser mais incentivada nasdemais cadeias. Se o que se espera é a ressocialização, ou seja, que os reclusos, aoterminarem o cumprimento de sua pena estejam aptos a reingressar na vida em sociedade,é indispensável que lhes sejam concedidas oportunidades de fazer valer seus direitos decidadania. Se o Estado garantir que o recluso possa comunicar à autoridade competentea violação dos seus direitos, sem o medo de represálias, ao invés de ser condicionado aaceitar passivamente as violações, não estará fazendo nada mais do que sua obrigação decriar estruturas para que os cidadãos sejam respeitados e tenham uma vida mental eemocional sadia.

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16 KALIENGUE, José. COSTA, Dani. MARGOSO, Ana, “Roubo de comida, sobrelotação e excesso de prisão pre-ventiva na base da rebelião”. Semanário Angolense, Luanda, 6 a 13/2007, pag 14.

17 Semanário Angolense, «Abuso da prerrogativa da prisão preventiva», 06.10.2007.18 African Press Organization, em 28/09/2007, “Nações Unidas : O grupo de trabalho sobre a detenção arbitrária vi-sitou Angola”, disponível em: http://appablog.wordpress.com/2007/09/28/nacoes-unidas-o-grupo-de-trabalho-sobre-a-detencao-arbitraria-visitou-angola.

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2.3 A PROCURADORIA – GERAL DA REPÚBLICA (PGR)Nos termos da Lei 5/90 de 7 de Abril, « a Procuradoria-Geral da República tem como

função principal o controlo da legalidade socialista, velando pelo estrito cumprimentodas leis (…)».

Vale dizer, a semelhança do que constatamos aquando do primeiro relatório, que onosso sistema penal fere gravemente o princípio da separação de poderes e o princípiodo acesso à Justiça, uma vez que relega para o Ministério Público a competência delegalizar as detenções e de fiscalizar os processos criminais, tarefas que são, por essência,próprias do poder judicial.

Em termos gerais, os gabinetes dos Procuradores Provinciais visitados, nomeadamenteMalange, Bengo, Benguela e Cabinda, possuem condições materiais de trabalho. Umgrande número deles está apetrechado com computadores, fax e mobiliário de escritórioadequado.

Em algumas províncias, porém, há condições lastimáveis de trabalho para os procu-radores. Um deles afirmou que: «Quando chove temos que nos ausentar das instalações porcausa da água que entra». Também se observou que em grande número de municípiosnão há serviços de procuradoria e nos que os têm não existem casas-função para osprocuradores lá destacados.

Um dos piores problemas apontados pelos procuradores no que toca à estrutura ma-terial é a ausência ou o número insuficiente de viaturas. Numa província visitada, os pre-sos são conduzidos a pé por funcionários por distância maior que 1 quilómetro. Ainda,em mais de uma província, os procuradores relataram que a prioridade da concessão decarros é aos Procuradores Provinciais. Como as viaturas são escassas, os ProcuradoresMunicipais têm seus trabalhos profundamente prejudicados, uma vez que a sua deslocaçãopara vilas e comunas – muitas vezes distantes dos centros urbanos – ainda que necessária,é inviável. Um procurador revelou sua insatisfação da seguinte forma:

« Os Procuradores Municipais não têm carros. Atrapalha porque trabalham em áreas extensas,é preciso ir à comunas, às aldeias. Quem tem a responsabilidade de dar os carros é a PGR. Jáfoi solicitado várias vezes, de diversas formas, dizem ‘amanhã, amanhã’ e não chega nunca».

O número de procuradores municipais, e sua qualidade técnica, é com frequênciaapontada como insuficiente. Ocorre muitas vezes destacarem-se procuradores para asprocuradorias municipais, mas como muitos deles não encontram condições materiaismínimas para lá funcionarem acabam por ficar a trabalhar nas capitais provinciais.

Neste ponto, revela-se uma dependência danosa ao princípio da separação de poderes:os procuradores provinciais, ainda que tenham a competência para reger o orçamentorecebido pela PGR, não dispõem de verbas extras para a construção de prédios de raizpara abrigar novos gabinetes ou sequer para reformar antigos edifícios para torná-los emcondições mínimas de abrigarem os procuradores municipais. Assim, os procuradores

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provinciais precisam negociar com órgãos do Poder Executivo de forma a convencergovernadores provinciais a conceberem as estruturas mínimas de trabalho para osprocuradores municipais. Tais barganhas podem enfraquecer o poder da PGR nos locaisafastados dos centros e resultar numa relação promíscua de troca de favores que deve sercombatida com todo o vigor.

O número insuficiente de Procuradorias Municipais também é um problema que afectagravemente a operacionalidade da justiça, especialmente nas províncias de maior extensão.O principal problema é reunir os elementos para permitir uma análise adequada dos factos,já que o procurador que irá analisar a legalidade da situação está, muitas vezes, a centenasde quilómetros do local onde a situação ocorreu. Como disse um procurador entrevistado:

“A justiça assim não pode andar! Um indivíduo preso em [local omitido] chega às vezesem 5, 6 dias ao procurador. Quando o magistrado vai ver, o crime é banal e o indivíduojá sofreu, muitas vezes até pancadas. A Justiça não anda bem, podemos concluir sem medode errar. Atinge direitos das pessoas! Nos casos em que o indivíduo é detido longe da sede,às vezes tenho que sacrificá-lo e mandar precatória para que ele venha; e são pessoas que nãotêm meios para vir! No fim do julgamento, pessoa vem me dizer que não tem família aqui,nem conhece ninguém, nem tem dinheiro pra regressar! Muitas vezes já dei dinheiro do meubolso para a pessoa regressar à vila de onde veio.”

Há independência orçamentária para a PGR, o que é um sinal positivo. No entanto,o mau sinal é a insuficiência dos recursos transferidos. Acresce que nem sempre as datasde transferência do dinheiro são respeitadas, como alertou um dos procuradores: « Hoje,dia 16, ainda não recebemos a quota financeira do mês».

De acordo com os procuradores com quem conversamos, o dinheiro recebido pelas unidadesda PGR nas províncias é insuficiente para que melhorias sejam levadas a cabo. Os recursossão apenas suficientes para a manutenção do trabalho do dia-a-dia, mesmo assim comlimitações indignas da importância do trabalho da PGR. Um dos procuradores nos disseque o orçamento permite apenas a compra de “papel, pastas, material informático”.Outro revelou que “A verba disponibilizada não é satisfatória, dá para resolver algumas coisas”.

Províncias vizinhas de Luanda não recebem exemplares do Diário da República.A propósito, dois procuradores disseram-nos; é preciso “mandar trazer”e“temos que comprarcom dinheiro do nosso bolso”. Biblioteca é o sonho de vários procuradores, mas distanteda realidade. A verdade é que os procuradores precisam despender dinheiro de seuspróprios bolsos para encomendar livros e códigos.

A respeito dos cursos de superação, ainda que haja cursos, disseram-nos que, além dasactividades ocorrerem em periodicidade inferior à desejável, muitos são genéricos, nãoatendem a matérias específicas, o que faz com que as necessidades concretas dos magistradosnão sejam atendidas.

Quando perguntados a respeito da aplicação da legislação interna e dos documentosinternacionais ratificados por Angola relativos aos direitos humanos, nota-se, por vezes,

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uma grande confusão e alguns dos magistrados nem mesmo aparentam ter ciência do as-sunto. Um procurador disse-nos que “somente precisaria lidar com essa questão se lidássemoscom cidadãos de outras nacionalidades, estrangeiros”, e que o assunto deveria “ser colocado anível do Tribunal Supremo” e outro que «A chamada de uma disposição sobre a DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos de forma directa não seria a solução mais correcta».

Esses procuradores desconhecem que os direitos humanos devem ser aplicados atodas as pessoas, independentemente de sua nacionalidade, e que qualquer magistradono país, seguindo o inscrito no art. 21 da Lei Constitucional, não pode deixar de considerartais direitos. É ainda digno de nota dizer que, exceptuando os juízes-presidentes dos tribunais das

províncias que foram entrevistados, apenas um procurador afirmou ter actuado emprocesso em que as normas internacionais de direitos humanos foram aplicadas em matériarelativa a prisões ilegais.Mais preocupante ainda é o fato de apenas o mesmo procurador haver mencionado

a existência da circular 571/01.05.04/998, do então Procurador-Geral da República,Augusto Carneiro, que obriga a aplicação de diplomas de direitos humanos quando setratar de prisões ilegais, independentemente da legislação interna. Perguntados acerca do papel do Conselho Superior Magistratura do Ministério

Público, os procuradores apresentaram opiniões divergentes. Alguns avaliam-no comoadequado ao exercício de suas funções. Já outros referem que o Conselho ainda não possuiestrutura própria para funcionar. Alega-se também a ausência de procedimentos claros para a aplicação das suas orientações,

o que reduz drasticamente sua operacionalidade.Os procuradores também foram indagados acerca da possível interferência de indivíduos

ou grupos de poder nos processos judiciais. Em geral, alegam três pontos:1) O primeiro deles é que as tentativas de influência se dão em significativo maior pesoem Luanda que nas demais províncias. Isso porque é lá que está a maior concentraçãode indivíduos e grupos com grande poder financeiro, político e militar.

2) O segundo ponto respeita aos subornos que são mais frequentes no cível que nocrime e isto porque o poder aquisitivo dos réus de processos criminais é geralmentemuito mais baixo que o das partes nos processos cíveis.

3) O terceiro ponto apresenta uma dimensão temporal: afirmam em geral os procuradoresque os casos de tentativa de corrupção diminuíram sensivelmente a partir de2002, com o fim do conflito armado. Antes «as garantias jurídicas não eram umarealidade, a justiça era apenas formal. (...) Não se podia tocar em autoridade qualquerporque ele era general não sei de quê, membro do conselho tal etc».

Um dos procuradores afirmou que: «Isso existe em quase todos os sectores, a justiça nãoescapa! Já aconteceu aqui: actuando em crime grave que não admite liberdade provisória,recebi um envelope cheio de dinheiro».

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Ainda na questão das possíveis interferências de pessoas ou grupos nos processosjudiciais, notou-se que a mentalidade de alguns procuradores ainda se encontra moldadade acordo com padrões incompatíveis com o princípio do estado de direito democrático.Esse é o caso do procurador que, quando por nós perguntado se já havia sofrido interfe-rências de poderosos no curso dos processos, respondeu NÃO à pergunta, mas fez aseguinte ressalva: «Claro, há questões que eles procuram a todo momento saber. Há pessoasque não gostam de estar na cadeia, quando uma dessas pessoas é tocada, faz redemoinho emvolta do Procurador-Geral, que pergunta a nós o que se passa».

Quando o assunto era o Sindicato da Magistratura do Ministério Público, a decepçãoesteve presente na maioria dos depoimentos. Um dos procuradores afirmou que a insti-tuição funciona apenas em Luanda, não nas províncias. Já outro procurador revelou o seguinte:

«Tínhamos um camarada dinâmico e com coragem, mas quando veio o Procurador Geralda República, pegou no rapaz e disse ‘vem aqui, precisa estar mais no meu lado’, o trouxe paraa sede, encheu-o de incumbências. No ano seguinte, o rapaz disse que não queria mais participardo sindicato! Aquilo ficou com outros colegas e não funciona. Meteram lá a Procuradora Geralde Luanda, também activa, e depois a colocaram ligada ao gabinete da Procuradoria-Geral,lidando directamente com o chefe! Que sindicato é esse? Se você tem que chocar, como estarpróximo do chefe?».Outro procurador, ainda sobre o Sindicato, afirmou:“O Sindicatodo Ministério Público não funciona. Só com muita força. O Carneiro ameaçou até dissolvero sindicato. A partir dali os órgãos eleitos começaram a ter mais cautela. Sim, faz falta, há muitoproblema, muita coisa a ser resolvida. Problema de formação, de falta de condição de trabalho.”

A qualidade do pessoal de apoio ao trabalho dos procuradores é considerada aquémde razoável:

“O pessoal de assistência não é de boa qualidade, nossa rede escolar não está em boas condições.O colhimento é feito de forma genérica. A pessoa vem para nós e precisa de qualificação. Háa escola em Luanda, mas a formação é priorizada para os magistrados, a dos auxiliares nãoé priorizada. Sou chefe, professor, orientador, corrijo textos... Estão todos novos e de fato nãohá formação desejável. Qualidade não há.”

Quando se referem à advocacia, as opiniões dos magistrados do Ministério Públicodenotam muita insatisfação. A mais latente aparenta ser, sem dúvida, o facto de advogadosserem praticamente ausentes dos fóruns fora de Luanda:

“Não temos advogados aqui! Vêm de Luanda! A justiça não pode funcionar assim, não pode.A advocacia que temos em Angola é apenas virada aos aspectos comerciais, são profissionaisliberais. Quantos julgamentos fizemos aqui sem notificar advogado? Não há escritórios deadvogado.”

O principal problema dessa ausência de advogados nas províncias é a violação ao prin-cípio da defesa do réu. O instituto do Patrocínio Judiciário, da forma como foi desenhado,não atende às necessidades do sistema de justiça angolano, muito menos dos cida-

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dãos desprovidos de recursos financeiros envolvidos em processos judiciais. Esse assuntoserá retomado no item 3.3 deste relatório.

Qual a causa de tamanha ineficiência? Segundo um dos magistrados entrevistados: «Ostitulares, muitos deles não têm a coragem política de fazer nada: ‘deixa como está’. Creio queo presidente do Tribunal Supremo não terá a coragem de defender uma política diferente, ficaassim mesmo, a ‘Deus dará’, sem nenhuma orientação».

No que se refere ao relacionamento das Procuradorias Provinciais com as DPICs,algumas respostas obtidas indicam a necessidade imediata de sensibilização dos magis-trados do Ministério Público; principalmente em relação a algo que lhes deveria ser natural:o choque diante do incumprimento da lei quando se verificam agressões físicas ou qual-quer tipo de violação à dignidade humana. Um deles nos respondeu que: «Às vezes hásituações que violam a legalidade, mas não de forma assustadora, aí entro em contacto como comandante da polícia, quando há um cidadão detido, ou espancado».

Já outro procurador afirmou o seguinte:«A Lei da Prisão Preventiva diz que detidosdevem ser apresentados no mesmo dia ao procurador. O policial um dia levou um detido nacasa de um colega, na hora do almoço, domingo, no seu descanso! Por isso temos interpretadode forma não tão rígida esse artigo 5o da Lei de Instrução, no caso de ela não prejudicar o preso.Hoje a cultura dos magistrados é essa, há despachos do PGR para se cumprir rigorosamenteo que está previsto, mas há casos que às vezes levam a abrir pequena brecha, como nessasquestões que eu lhe disse há pouco».

Tais relatos manifestam as constantes violações da legalidade. O fato de um políciadesejar cumprir a lei e apresentar um detido ao procurador dentro do prazo de 24 horasda detenção, nos termos da lei da prisão preventiva, deveria ser motivo de elogio e nãode crítica. O Estado tem o dever de criar mecanismos para que não seja ultrapassado oprazo que a lei estabelece e os procuradores devem ser os primeiros a cumpri-lo.

Quando perguntados acerca das condições nas celas, muitos procuradores disseramque visitam as cadeias com frequência. Esse facto é razão para elogio, pois indica a preocu-pação dos procuradores em exercerem o seu dever fiscalizador nas cadeias. Por outro lado,os magistrados relatam que encontram situações lastimáveis, como o fato de não haverlocais adequados para os presos dormirem em uma das cadeias, tendo que pernoitar nopátio. Ou ainda, o seguinte relato: «Eventualmente há agressões físicas nas cadeias. Nointerrogatório, detido diz que foi agredido pelo agente tal, mostra os sinais. Chamamos o agente,que mostra sua justificação, ocorrem nas unidades policiais nos bairros».

A principal justificativa alegada para que se tolerem as condições terríveis de muitasdas celas das esquadras é a seguinte: ««Não podemos mandar fechar porque é cadeia transi-tória, preso vem de unidade prisional do bairro, detido tem que estar no local”. Ou então,dizem que “Na DPIC [as condições] não são muito boas, o quarto de banho é para os 2sexos. No comando da polícia é a mesma coisa, não há condições mínimas nem aconselháveis,mas são unidades prisionais de passagem».

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No entanto, tal resignação é inconsistente com as competências do Ministério Públicode zelar pela aplicação da lei; não basta o diagnóstico negativo, é necessário que asmedidas para que as situações diagnosticadas se corrijam. O relato do mau tratamentodos presos é apenas um passo para que seus direitos sejam respeitados, mas em si aindainsuficiente. A resignação dos procuradores em relação às más condições a que os presosestão submetidos deve ser substituída por uma pressão em relação às autoridadescompetentes para que o quadro se reverta.

As más condições de tratamento dos cidadãos fora ou dentro das cadeias tem uma razãode fundo histórico, tal ideia ficou incita nas palavras de um procurador: « O país em 1975 tevea independência. Todas as estruturas sofreram alterações, Poder Judicial não foi excepção; antes pelocontrário, deve ter sido a mais prejudicada. Antes da independência eram poucos os nacionais queocupavam o Poder Judicial; as vagas deixadas foram deixadas por quem não tinha qualificação. Issofoi se arrastando, juntaram-se às guerras. Há muita litigância hoje e poucos quadros. No crime asituação é mais gritante. A polícia ainda ficou com muitos quadros mesmo com a fuga dosportugueses, o efectivo da policia em relação ao do tribunal e da Procuradoria é algumas vezes maior».

A insuficiência de magistrados é outra das deficiências apontadas. Por mais quese empenhem não chegam para as necessidades.

Um último ponto negativo apontado pelos magistrados do Ministério Público respeitaao Conselho da Magistratura do Ministério Público. Alguns disseram que o Conselhonão tem funcionamento adequado e que o tráfico de influências é determinante de umasérie de decisões ali tomadas. Acerca do Conselho, disse um dos procuradores:

« Não cumpre suas responsabilidades, o Conselho Superior da Magistratura do MinistérioPúblico. É manipulado pelo presidente, que é o Procurador-Geral. Quando vai discutir umassunto que lhe interessa, convida já um determinado número de membros. Os magistradosestão em maior número. Muitos obedecem porque temem amanhã serem punidos. Acho quenão funciona devidamente. As promoções deviam ser por concurso, ele às vezes aparece nareunião com os nomes... A lei diz concurso...».

Mesmo diante de todas as dificuldades apontadas, é com esperança que observamosa resistência e o esforço de um significativo número de magistrados do MinistérioPúblico em combaterem os obstáculos à realização da justiça e exercerem sua criatividadeem prol dos cidadãos angolanos. Um dos procuradores, por exemplo, informou-nos que,devido à ausência de advogados na província em que está colocado, muitas vezes oscidadãos o consultam quando diante de uma querela.

Quando o procurador percebe que a questão é pequena e pode ser resolvida sem quese active o processo judicial, chama as partes envolvidas e age como um mediador,propondo que o problema seja resolvido de forma que agrade a ambas as partes.

Um magistrado de outra província falou que também procura incentivar mediaçãoentre as possíveis partes de um processo. Disse que muitas vezes é procurado paraa resolução de questões como saldar uma dívida, que se fossem levadas a tribunal

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custariam dinheiro e ocupariam tempo de ambas as partes. Nessas situações, o magistradoaconselha as partes conflituantes para procurarem resolver a situação amigavelmente.

Tais posturas são dignas de nota uma vez que economizam recursos de todos osenvolvidos no processo – os cidadãos e o Estado – além do desgaste emocional quepoupam. Enquanto a legislação nacional não consagra a medição como métodos deresolução de conflitos é interessante observar que, mesmo na informalidade, tal proce-dimento é capaz de diminuir a quantidade já demasiadamente elevada acções judiciais.

Também é com esperança que já se nota a mudança de mentalidade de algunsprocuradores, cuja sensibilização em relação aos direitos de cidadania é notória. Perguntadose acreditava ser sua função defender direitos humanos e de que forma o fazia, umprocurador nos deu a seguinte resposta:

«Sim! Um despacho infundado atinge os direitos humanos! Por exemplo: 2 pessoas con-tendem por um acto que não configura nenhum crime, apenas uma questão de naturezacível, caso de dívida, por exemplo, e o polícia entende botar um na cadeia. A violência contrao abandono do exercício da autoridade paternal também tem a ver com os direitos humanos.O MP é chamado para salvaguardar os direitos das crianças, abandonadas, sem alimentos,porque os progenitores se separaram e não sustentam as crianças, ou a mãe foi expulsa do lar.Do ponto de vista moral e social, isso também atinge os direitos da criança».

À Procuradoria é atribuída a competência, nos termos da alínea s) da Lei da Lei n.º5/90de 7 de Abril, de contribuir para a elevação da consciência jurídica do Povo e do respeitoda legalidade, promovendo e colaborando na divulgação das leis, decisões dos tribunais,textos e dados sobre a criminalidade e sua prevenção e todas as demais matérias queinteressam para aqueles fins, podendo servir-se dos órgãos de comunicação social e de editaras suas próprias publicações.

No entanto é quase nula esta função da procuradoria, apenas em algumas provínciassão promovidos programas radiofónicos com interacção entre os cidadãos e o procuradorcom perguntas e respostas. Geralmente essas acções limitam-se a algumas palestrasnas chamadas “semanas de legalidade”, no mês de Abril de cada ano.

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2.4 OS TRIBUNAIS«A actual Constituição Judicial define o poder judicial como o principal garante do Estado

de Direito democrático em Angola. Infelizmente, na prática, o poder judicial em Angola aindanão é, nem tem condições para ser, verdadeiramente, esse garante. Se isso não for resolvido o Estadode Direito democrático corre o sério risco de não passar de mera expectativa, de uma intençãoou de mera e frustrante ilusão». Rui Ferreira, in Seminário da Reforma da Justiça.1199

A situação dos juízes e demais oficiais de justiça foi alvo de uma série de críticas du-rante as entrevistas concedidas à equipe da AJPD, mas também assinaladas algumasiniciativas capazes de demonstrar que há magistrados de facto preocupados com a reali-zação da justiça nos tribunais.

Em relação às condições materiais, verificou-se que a situação tem melhorado nosúltimos anos. Muitos magistrados afirmaram que os tribunais têm sido apetrechadoscom equipamentos informáticos, mas a inexistência de condições materiais básicasimpossibilita muitas vezes que esses instrumentos sejam utilizados. Conforme revelou ummagistrado entrevistado:

«A energia eléctrica é ligada apenas à rede pública, a distribuição de energia é muito ruim,ficamos muito limitados, não temos gerador. Despachamos à mão porque às vezes começamosa trabalhar, cai a luz e perdemos todo o trabalho! Temos computadores na sala de audiênciamas não são usados, usamos as máquinas de escrever. Não são instalações próprias».

Ainda sobre a escassez de energia eléctrica, outro juiz revelou-nos de que forma a precarie-dade das condições materiais implica morosidade nos processos judiciais: «Infelizmente,a partir das 17 horas nesta sala – um anexo construído no quintal do tribunal – já não setrabalha devido à falta de luz. Há mais de 6 meses que não conheço uma lâmpada nessa sala,o que influencia na celeridade dos processos. A partir das 11 horas o calor é intenso».

Um juiz confidenciou-nos que: «Energia eléctrica contínua é necessária, às vezes fica-seum mês sem energia, porque o MJ, área do património, não paga a conta, ou porque acabao gasóleo para o gerador. É preciso aumentar a verba para o sector da justiça para que ele sejaoperante e célere.” Um terceiro magistrado disse-nos: “Continuamos a trabalhar commáquinas de dactilografia, em número indesejado, não temos nem uma por funcionário».

Já outro magistrado afirmou:

« O orçamento que temos não chega a fazer nem as despesas do tribunal, de papel etc. Averba não é suficiente. Não temos telefone nos gabinetes, não há rubricas no nosso orçamentopara isso. Fizemos passar os telefones do tribunal como despesas correntes. podemos passarpor indisciplinados se descobrirem isso!!»

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19 FERREIRA, Rui. Constituição Judicial (Presente e Futuro). In Seminário da Reforma da Justiça, Edijuris, Luanda,2006, p. 76.

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O juiz presidente do Tribunal de Luanda, em entrevista a Rádio Ecclésia, no dia 10 de Janeirode 2007, revelou que o Tribunal não estava a julgar processos por falta de corrente eléctrica.

E o quadro não é esperançoso. Segundo o depoimento de um magistrado, perguntadosobre a verba para despesas correntes, as condições não aparentam melhorar, mas piorar:«Temos recebido a verba mas não é suficiente, houve um corte na verba para manutenção daresidência; cada juiz recebia anualmente 4.000 dólares e agora recebemos 2.000».

Em relação ao número de magistrados judiciais, o quadro abaixo esclarece:

JJUUÍÍZZEESS 220000332200 DDeezzeemmbbrroo//220000882211

Conselheiros 09 15

Juízes de Direito 85 131

Juízes Municipais 17 76

Total 111 222

Outra preocupação frequente dos magistrados judiciais respeita aos edifícios que abri-gam os tribunais. Muitas das salas do civil e administrativo do Tribunal Provincial estãoalojadas em construções ainda do tempo colonial, o que acarreta em geral dois problemas.

O primeiro respeita aos edifícios que, apesar de seu tempo de existência, não passarampor reformas recentes. Assim, goteiras, assoalhos maltratados, paredes descascadas,mobílias estragadas acumuladas nos cantos, portas que não funcionam, entre outras marcasdo tempo, são a realidade de muitos dos tribunais visitados.

O segundo respeita à insuficiência das instalações. Um tribunal construído com umgabinete de juiz e uma sala de audiência não apresenta condições de abrigar dignamentetoda a estrutura exigida pela quantidade de casos levada aos tribunais nos dias de hoje.

As fotos (anexo1), tiradas num dos tribunais visitados, evidenciam a precariedade dascondições materiais em grande número dos tribunais angolanos.

Um dos magistrados entrevistados ilustra essa questão:

«À altura em que o tribunal começou a funcionar aqui as condições eram diferentes, não haviaguerras, havia menos crimes. Foram criadas [número omitido] salas para acomodar [omitido -o mesmo número] juízes. Depois da independência, houve degradação das condições sociais,aumento substancial dos crimes, o tribunal se tornou pequeno para atender a tanta demanda.

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20 Cf. MARQUES, Luís Paulo Monteiro, Labirinto do Sistema Judicial Angolano-Notas para a sua compreensão, Lou-res, 2004,pág 114ss, Lista de Dezembro de 2003.

21 Fonte: Relação Nominal dos Magistrados Judiciais, actualizada a 30 de Dezembro de 2008, Comissão Para Reformada Justiça e do Direito. Na lista dos 222 Juízes, apenas 209 estão no activo, dos restantes 10 são jubilados e outrospor outras situações.

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Necessitamos mais juízes, mas o edifício não tem condições de recebê-los. Hoje temos [omitido]juízes disputando apenas uma sala de audiência!». Um segundo magistrado disse o seguinte:

“Como vocês podem constatar, as condições são lamentáveis, trabalhamos em condiçõespenosas. Quando chove é impossível estar no interior da sala em que trabalhamos porque entraágua por todo o lado. Não podemos deixar documentos por cima da secretária quando vamospara casa, porque se chover molha tudo.”

Um grande número de salas de primeira instância em Luanda estão situadas emprédios que cuja titularidade se desconhece. Algumas salas estão localizadas no 7o andardo prédio sem elevador e sem condições de infra-estruturas dignas. Isso não é apenas umadificuldade para os magistrados que ali trabalham, mas viola sobretudo o acesso dosdeficientes físicos à justiça.

Em relação à frequência de cursos de superação, não costuma ser problema, uma vezque tem havido formações no Instituto Nacional de Estudos Judiciários (INEJ) e noestrangeiro. No entanto, duas outras questões foram apontadas nesse tópico. Em primeirolugar, está a qualidade dos cursos. É preciso que os cursos oferecidos estejam mais atentosà realidade da permanente transformação da sociedade, que se adaptem às necessidadesdo direito angolano. Um juiz, por exemplo, nos revelou que «É preciso que o Estadoangolano invista na superação contínua, temos que acompanhar a evolução, o direito evolui,a prática judicial evoluiu».

Em segundo lugar, no tocante à questão do aperfeiçoamento técnico, alguns juízesfalaram sobre a necessidade de se ter “conhecimento” para participar de algumas dasformações, especialmente daquelas que se dão fora do país. Alguns magistrados apontaramque é preciso ter boas relações com a estrutura central para se receber um desses convites.Nas palavras de um juiz: «Questionei os critérios de selecção para ir a esses cursos, deveria ha-ver um, eu nunca vi. Há pessoas que vão para lá e não vão às aulas, e quando voltam damosconta de que não trazem nada de novo, eu vi isso».Um outro juiz afirmou, referindo-se aoscursos de superação no Centro de Estudos Judiciários, em Portugal, que «Por ano, vai 1ou 2 juízes, e a selecção para ir é duvidosa, há tráfico de influências até na magistraturajudicial».

Segundo testemunho, os critérios de selecção para formação muitas vezes não são clarose não se tem em conta o mérito, a competência profissional e integridade pessoal.

A situação é muito complicada em relação ao material de pesquisa fornecido aosmagistrados. Apenas um magistrado entrevistado afirmou que o tribunal em que trabalharecebe os Diários da República regularmente. No mesmo sentido, nenhum magistradorevelou receber verbas para criar e/ou equipar bibliotecas nos tribunais.

Perguntados acerca de como actualizam seus estudos, a resposta unânime dos magis-trados foi a de que despendem dinheiro de seus próprios bolsos para a aquisição de obrasjurídicas. Como esperar que os magistrados judiciais exerçam a prática de julgar de forma

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qualificada se o Estado não lhes fornece meios para seu aperfeiçoamento técnico?Enquanto os tribunais não forem dotados de bibliotecas de qualidade, capazes defornecer aos juízes os conhecimentos que os cursos de direito do país não trabalham, etambém capazes de actualizá-los em relação ao que pesquisadores têm escrito sobre temasjurídicos, será uma grande hipocrisia esperar que a maioria dos juízes que ingressa namagistratura tenha alta competência técnica. Nem mesmo o Tribunal Provincial dacapital do país, Luanda, dispõe de uma biblioteca. Conforme o depoimento de ummagistrado:

«A biblioteca está inoperante. Nos relatórios que fazemos ao tribunal me refiro sempre aisso, ninguém nos manda livros, o que tem ali são aquelas colectâneas que antigamente sefazia. Hoje as gráficas funcionam de forma mais difícil. Não temos muito dinheiro, não sobrapara comprar livros para a biblioteca».

Um número razoável de magistrados lamentou a pouca ou nenhuma atenção voltadapara o aperfeiçoamento técnico do pessoal do cartório. Disseram que sofrem dificuldadescom o baixo nível de instrução dos profissionais que os auxiliam, que muitas vezes precisamsuspender seus trabalhos e se dedicar ao aperfeiçoamento dos auxiliares: «Em relação aopessoal do tribunal, eles precisam mesmo de um curso. Quando há concursos, pessoas sãonomeadas e vêm para cá, mal sabem escrever uma frase. Nos sobrecarrega em termos detrabalho».

Outro juiz revelou: «Eu corrijo textos quando recebo, sobretudo os processos que sobem.Ainda temos que dactilografar os acórdãos, eu corrijo normalmente. As actas não tanto, porqueisso rouba muito tempo». Outro depoimento, ainda, revelou: «Se eu lhe der uma acta, osenhor verá, é uma desgraça».

A principal questão relacionada com a má preparação técnica dos auxiliares dostribunais é a consequência para a própria realização da Justiça. Magistrados judiciais alegamque é fundamental que os auxiliares conheçam a legislação nacional, os códigos e que com-preendam a dinâmica do processo. De outra forma, as próprias partes da acção judicialpodem ser prejudicadas diante de erros em procedimentos ou morosidade nos julga-mentos, sendo necessário que os magistrados corrijam frequentemente a tramitaçãointerna dos processos.

A precariedade técnica dos funcionários dos tribunais resulta num outro problema:o acesso dos cidadãos à justiça. Segundo um juiz: «Também é preciso investir na superaçãotécnica dos funcionários de justiça, que nunca tiveram formação técnica ou científica, parapoderem esclarecer e auxiliar o cidadão que vem ao tribunal».

A equipe da AJPD presenciou um facto enquanto estava no Tribunal Provincial deLuanda, que ilustra esse ponto: uma senhora queria ir à sala de audiências de julgamentoonde seu sobrinho, réu, ia ser julgado, mas foi impedida de entrar no edifício pelo agenteda polícia que se encontrava na recepção porque ela não possuía o seu bilhete de identidade.

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Ora, a audiência é pública!2222 A nenhum cidadão pode ser vedado o direito de assistir auma audiência judicial, a não ser nos raríssimos casos em que o processo corra em segredode justiça.

Logo depois a equipa da AJPD alertou o agente no sentido de que se tratava de umdireito fundamental daquela senhora assistir à sessão de julgamento e então o polícia, deforma gentil, ordenou que um assistente conduzisse a senhora até à sala de audiências.

Isso significa que o agente policial apenas não sabia que é um direito fundamental dacidadã assistir a referida audiência, pois, depois de informado, não mostrou algumaresistência.

Talvez se houvesse formações dirigidas aos assistentes da justiça em matéria de direitoshumanos, uma série de direitos não seriam violados no momento em que os cidadãos seaproximam dos órgãos de justiça. Formar os assistentes da justiça também é garantir oacesso dos cidadãos aos direitos fundamentais.

Outro problema também está ligado ao número insuficiente dos auxiliares do cartório.A principal consequência desse problema é, sem dúvida, a morosidade na administraçãoda justiça. O depoimento seguinte ilustra a tentativa criativa de um juiz para resolver oproblema que, no fundo, revela o desespero dos magistrados que buscam o bom fun-cionamento do sistema de justiça e o impasse a que são submetidos: « Oficiais de diligênciastemos 1 apenas. Se hoje ainda estamos a trabalhar, é por isso: juízes tem direito a 2 empre-gadas domésticas mais um motorista, mas eu tive que, na selecção das empregadas, escolherjovens com algum estudo, que soubessem escrever, depois trouxe uma para o tribunal. Temosmotoristas de magistrados trabalhando como oficiais de diligência. Cada um faz sua ginástica,há alguma ilegalidade, vamos colocar algumas jovens como empregadas para trabalhar notribunal. Mas não decidir não podemos, não resolver não podemos!».

A situação dos oficiais de diligência também foi classificada como difícil por váriosmagistrados. Um magistrado entrevistado disse que não há viatura disponível para queos oficiais se desloquem até aos seus destinos; que os oficiais se deslocam de “táxi”,utilizando seus próprios recursos financeiros e que o dinheiro destacado para reembolsoé insuficiente para cobrir a totalidade das despesas. Segundo um oficial de diligênciaouvido pelo jornal “Angolense”:

«Enfrentamos todos os dias o problema das distâncias, pois não temos um carro que nosapóie. O problema maior é que nem todas as ruas e casas estão numeradas (...). Ganho oi-tenta mil Kwanzas, tenho três filhos por sustentar e sou estudante, mas posso dizer, sem medode errar, que 50% do meu salário vai para os táxis na procura dos declarantes e advogados.

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22 De acordo com o artigo 124.º da Lei Constitucional aprovada pela Lei n.º 23/92 de 16 de Setembro, “As audiên-cias de julgamento são públicas, excepto quando o próprio tribunal o não entenda, em despacho fundamentado,para a defesa da dignidade das pessoas ou da moral pública ou ainda para assegurar o seu funcionamento”.

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(...) Por isso, quando não tenho esse dinheiro, não notifico ninguém e o processo fica à espera(...) Isso é um roubo! Pagam-nos para depois receberem, depois querem falar em justiça». 2233

Segundo o artigo 35o do seu Estatuto, os Magistrados Judiciais e do Ministério Pú-blico“têm o direito à livre associação em sindicatos e outras formas associativas”.No entanto,os juízes foram quase unânimes em afirmar que o Sindicato dos Magistrados Judiciais nãofunciona. Nas palavras de um deles, “o sindicato nunca funcionou”. No tocante aoConselho Superior da Magistratura Judicial, um número significativo de juízes concordouque ele de facto é operante, mas muitos questionaram a qualidade de seus trabalhos.

Um magistrado detalhou a situação:«Muitos dos processos disciplinares não chegam aofim por caducidade. O prazo para o processo é de 90 dias. Mas há sobrecarga dos elementosque instruem os processos, não estão em tempo integral no Conselho. Deveria haver indivíduosno Conselho em tempo integral e também assistentes para eles. Deveria haver também maiseficiência e regularidade nas reuniões, muitas são adiadas por falta de quórum». Outro juiz,ainda em relação ao Conselho, disse que:« Para mim, não é o que deveria ser, a bem dajustiça, dos magistrados. Precisamos de reformular esse sistema tendo um Conselho transparente,cristalino. Ele está mais preocupado em sancionar as acções dos juízes que promover suasuperação contínua e constante. Em exigir quantidade que qualidade». Também um juizconselheiro de um dos tribunais superiores nos disse que: «O Conselho Superior daMagistratura deveria tratar os processos com mais celeridade. Pela forma lenta, parece que háuma atitude corporativista a tentar proteger os juízes»-

No tocante à morosidade dos julgamentos, os magistrados também concordaramao afirmar que a morosidade é de facto uma realidade em Angola. Juiz conselheiro de umtribunal superior revelou que: «É o cancro da justiça, a morosidade dos julgamentos. Àsvezes é fácil dizer que em todo mundo é assim, mas isso é uma forma de fugir dos problemas.No nosso caso a lentidão é assustadora».

Quais as causas deste problemas segundo os magistrados judiciais? Observamos duasrazões para isso:~

aa)) PPrroocceeddiimmeennttooss lloonnggooss nnoo pprroocceessssoo ppeennaall.. Segundo os magistrados, há uma série defases processuais que se estendem por muito tempo desnecessariamente. O resultadoé o alongamento da duração do processo. Conforme exemplifica um juiz entrevistado:«Noprocesso de furto qualificado, o réu pode ser preso preventivamente por 45 dias, quepodem ser prorrogados mais 2 vezes pelo MP. O MP pode pedir instrução preparatória,depois há as fases de instrução definitiva, acusação, contestação para saber se se mantéma acusação, despacho de pronúncia (que é praticamente a confirmação do juiz), depoisnotificação ao réu, depois, se MP não contestar, juiz marca o julgamento... Julgamentoleva no mínimo 6, 7 meses de acordo com todas as fases do CPP». Um juiz afirmouainda o seguinte: “O MP tem que ter o poder para negociar o que for possível negociar,

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23 ALEXANDRE, Elsa, « Processos encalham nos tribunais», Jornal Angolense, Luanda, 5 a 12 de Julho.2008, pag 3- 4.

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sobretudo criminalidade diminuta, ou económica; ou interesses individuais. Há crimesque podem ser resolvidos com negociação. Ex: burla – se o indivíduo estiver disponívela reparar o mal que causou, por que ficar na prisão? No nosso processo, mesmo comreparação, indivíduo ainda é mantido preso e ainda é levado a julgamento por contada ideia de que é crime público e crime público não admite reparação. Uma redefiniçãode crimes públicos e semi-públicos precisa ser feita».

bb)) AAuussêênncciiaa ddee óórrggããooss ddaa aaddmmiinniissttrraaççããoo ddaa jjuussttiiççaa aacceessssíívveeiiss aaooss cciiddaaddããooss eemm ttooddootteerrrriittóórriioo. Em alguns municípios distantes dos centros urbanos, os juízes ouprocuradores mais próximos estão a centenas de quilómetros. As populações têmproblemas de transporte e comunicação para continuarem as outras fasesprocessuais.«Há muitos problemas com relação a declarantes de municípios distantes.A população camponesa, de baixo nível de escolaridade, sem reunir condições financeiraspara vir ao tribunal, vem depois da data da audiência; se o juiz considerar imprescindívelo declarante, aí adia a audiência. Já teve situação em que tirei dinheiro do meu bolsopara trazer declarante, para poder fazer justiça, caso em que marido matou mulher».Outro juiz revelou-nos que: «Há uma comuna que me disseram em que vai carro acada 3 meses mais ou menos, leva-se uma hora para passar uma ponte. Se houver umcrime cometido nesta localidade, tem que ficar detido esses 3 meses? Esta situação é actual».

Em Luanda existem apenas três tribunais municipais (nos municípios da Ingombota,Cacuaco e Viana) com um total de 10 juízes e os municípios tidos como mais populosos,como Cazenga e Sambizanga, não têm tribunais.

A mentalidade deficitária em matéria de direitos humanos ainda está presente em muitosjuízes. Ainda que, quando perguntados directamente sobre os direitos humanos, todos osmagistrados perguntados tenham insistido em afirmar que os direitos humanos devam serrespeitados incondicionalmente, as respostas obtidas durante o inquérito mostram que umasérie de magistrados se revelou, na prática, avessa à garantia plena desses direitos.

Eis um exemplo: perguntado acerca da situação das cadeias, um juiz afirmou que «Ascadeias estão abarrotadas, os processos estão connosco, muitas vezes a gente solta a pessoa fogepara o Congo, então a gente evita soltar».

Tal magistrado revela inconscientemente a ideia de que, mesmo quando o reclusose encontra em condições legais de ser libertado, os procedimentos para tal nem sempresão respeitados. Tal pensamento é incompatível com o respeito dos direitos humanos!

Na mesma esteira, vale falar sobre o seguinte aviso, afixado no tribunal de uma dasprovíncias visitadas pela AJPD:

O aviso é datado de 19 de Agosto de 2008 e assinado pelo Presidente do Tribu-nal Provincial.

Tal aviso tem um papel simbólico: diz à população que os “dirigentes” têm o privilégionatural de serem ouvidos pelo juiz, enquanto o cidadão comum, desprovido desse

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privilégio, não pode falar pessoalmente com o juiz. Tal mensagem afirma no inconscientede cada cidadão que a lê que “dirigentes” são mais importantes que os demais cidadãos.Não basta que o discurso dos magistrados seja atinente ao direito humano à igualdade,é preciso que, na prática diária dos juízes, todos as pessoas sejam consideradas iguais.

Excluídos os juízes conselheiros dos tribunais superiores entrevistados, apenas ummagistrado judicial afirmou invocar os princípios dos documentos internacionais deDireitos Humanos em suas peças processuais. Um juiz, quando perguntado acerca dautilização desses documentos, respondeu que: “este documento me foi facultado há algunsdias, nunca tinha tido contacto com ele e ainda não o li.”. É de facto ilusório esperar umamínima garantia dos direitos humanos se os juízes nem mesmo conhecem os documentosque os consagram.

Os juízes ignoram as questões dos direitos humanos fundamentais em muitos casosconcretos como os das demolições e despejos sem respeito pelos procedimentos, torturasnas cadeias, detenções ilegais sem atender o pedido de habeas corpus.

Segundo um advogado, essas questões são simplesmente ignoradas pelos juízes:

«Quando clientes vão para as esquadras e são torturados, com sinais visíveis disso, não há in-vestigação em sede judicial. Os próprios tribunais não querem saber da questão da tortura».Alémdisso, a problemática das demolições ilegais e ilegítimas, sem mandados e contextossociais que as autorizem, não são tocadas pelos tribunais: «No caso das demolições ilegais,há grande violência por parte dos agentes da polícia. Pessoas são torturadas. Os tribunais nãovêm essas questões como prioritárias, quando há vitimas, quando há mortes.

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Os tribunais pura e simplesmente ignoram quando apresentamos essas questões em peti-ções. Sobretudo em casos de pessoas influentes».

Quando se trata da intromissão do tráfico de influência em decisões judiciais, verifi-cou-se que é de facto uma realidade presente no dia-a-dia dos tribunais. Conformenarrou o Presidente de um Tribunal Provincial: «Sim, há tentativas de suborno. Não só osgenerais e ministros. A razão é tanto falta de cultura jurídica quanto vontade de controlar asituação. Saímos há pouco de situação histórica em que o tráfico de influências era frequente».Já outro juiz municipal revelou-nos que o tráfico de influências na magistratura judicialé “prática comum”.

Um advogado revelou-nos o seguinte:

«É perfeitamente natural que exista a tentativa de influenciar o processo, num país comuma economia de mercado agressiva como Angola, em que a concorrência não é leal, emtodos os sectores tenta-se impor a lei do mais forte. Mas o Estado e as instituições precisam termecanismos de protecção! Em todas as áreas, grupos poderosos, de maior ou menor grau,influenciam. Determinados grupos pensam que são impunes: o Estado precisa aperfeiçoarmecanismos para que haja igualdade perante a lei. Sim, a forma como a administração dajustiça está organizada favorece a instalação da corrupção no poder judicial. Face o quadrodo país, tráfico de influência está em todos os sectores, os próprios clientes pressionam para veremseus problemas resolvidos. É uma questão de sobrevivência, acham que assim resolvem da formamais rápida seus problemas, atingem resultados. Por vezes o advogado é considerado formalistaquando não opta por esses caminhos».

Alguns magistrados foram corajosos o suficiente para narrarem histórias em que a práticase verificou. Um deles contou-nos o seguinte caso: «Uma vez o administrador municipalconvidou-me para um passeio, era a primeira vez que me convidava. E para um almoço. Jáno fim, disse-me: sei que o juiz está com processo de fulano do partido, injúrias ou difamação,pedimos ao juiz que seja leve na situação, sabemos que o julgamento está próximo. Eu ouvi,não disse nada, deixei passar».

Também ouvimos o seguinte relato:«Até com os funcionários acontece! Uns vêm mesmochorar, dizer que são seus parentes etc. As pessoas vêm, batem, falam. Preferi sempre dar umaresposta, dizer mesmo ‘estás a pedir isto por quê? A lei diz assim e não tem nenhum saída, voufazer o quê?’. E aqui a mensagem passa muito rápido, eles comentam. Sobretudo quando vêmcom algum valor, a tentação é maior com os investigadores e procuradores».

Já um terceiro juiz ilustrou de outra forma a ocorrência do tráfico de influências:“Podehaver uma certa resistência no cumprimento da sentença por parte de algumas entidades.Exemplo: processo em que filho de um general não quer assumir o filho. O oficial do justiçafoi à residência pessoal do réu, ele não o quis receber; foi ao escritório, não compareceram. Umajuíza telefonou ao menino e ele disse que tribunais não sabem trabalhar e que ele é filho degeneral.”

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A corrupção no sistema judicial parece estar de tal forma generalizada que a equipeda AJPD foi surpreendida pela seguinte pergunta de um dos funcionários do TribunalSupremo, quando visitava a instituição com o objectivo de agendar audiências com juízesconselheiros: “Não tem nada para nos dar não?”.

Um outro juiz detalhou a complexidade que a questão do tráfico de influências pode as-sumir. Segundo o magistrado, apenas uma empresa tem a autorização para fornecer viaturasaos magistrados e realizar a sua manutenção, nunca se tendo verificado um concurso pú-blico: O grupo empresarial Mbakassy e Filhos. O ex-bastonário da Ordem dos Advogadosde Angola, Raul Araújo, em entrevista à Rádio Nacional, em 2008, denunciou a existênciade corrupção e tráfico de influência na justiça como a existência de sentenças encomen-dadas e assessoria jurídica de juízes aos advogados envolvidos no mesmo caso.

Depois de alguma pressão dos médias e da sociedade civil, a PGR e a Ordem dosAdvogados de Angola instauraram inquérito com vista a apurar os casos. Até o momentoem que este relatório foi finalizado, não havia informações do resultado de tais investi-gações.2244

O tráfico de influência foi verificado até mesmo como elemento definidor em algunscasos de promoção dentro da magistratura judicial. Segundo os artigos 43o e 44o doEstatuto dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, Lei no 7/94, há requisitosmínimos de experiência como magistrado e de boa classificação em seu trabalho para quese dê a ascensão na carreira. No entanto, de acordo com alguns juízes, a experiência e acompetência técnica não são os principais critérios para uma promoção; pelo contrário,esses juízes apontaram como definidoras para a ascensão na carreira as boas relações comindivíduos que ocupam altos cargos na hierarquia da magistratura judicial. Um dos juízesrelatou-nos o seguinte:«Quando entrei na magistratura, em [data omitida], ascenderiam ajuízes conselheiros os que tivessem licenciatura em direito com 10 anos de trabalho; para o osTribunais Supremo, Constitucional, de Contas etc. Causou descontentamento, no entanto, quepessoas que estavam há 20 anos na carreira, com licenciatura, com avaliação de mérito bom,foram preteridos para porem 2 conselheiras com 7 anos na magistratura. Há tráfico deinfluências para ascender na carreira. Qual o critério adoptado para a tomada de posse parajuízes do Supremo? Avaliação de mérito? O quê».

A equipe da AJPD procurou investigar a presença do tráfico de influência na promoçãode juízes conselheiros. Em Dezembro de 2008, foi enviado ofício ao Presidente doTribunal Supremo, que é também o Presidente do CSMJ, solicitando uma audiência, masesse ofício nunca foi respondido. O ofício foi reenviado e insistentes contactos telefónicosforam mantidos com os atenciosos funcionários do gabinete do Presidente, mas nuncafoi fornecida uma resposta.

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24 TONET, Willian e SANTANA, A, «Juízes rompem com procuradoria», Semanário Folha8, Luanda, 24.01.2009,n.º 946, pp.6-7, cf. tb. Jornal Angolense, n.º 516; Semanário Agora, n.º 613 e Semanário Angolense, n.º 299.

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Diante disso, a equipe da AJPD dirigiu-se pessoalmente até às dependências doCSMJ. Quando perguntado acerca dos critérios que autorizariam a promoção, o fun-cionário nos disse que “deveria haver um estatuto jurídico esclarecendo a questão, masnão há, não sei quais são os critérios”.

Um activista de direitos humanos aprofundou a complexidade do assunto:«Não é qualquerjuiz que é nomeado. Tem que fazer parte do Comité da Especialidade – MPLA tem, nasvárias áreas do saber, um comité, como por exemplo o dos advogados e juristas. Dali sãoseleccionadas as pessoas que podem e devem ser nomeadas, as bem posicionadas no partido,em detrimento das pessoas competentes. Decisões são forjadas nos comités de especialidade, vãopara os órgãos superiores e essas pessoas são nomeadas».

Um dos problemas mais sérios apontados pelos juízes em relação ao sistema de justiçaparece ser a questão da subordinação administrativa ao Ministério da Justiça. De acordocom as informações colhidas, os tribunais não estão completamente independentes doPoder Executivo.

A transferência dos recursos do erário, a construção de novos edifícios para abrigaremtribunais - por exemplo em Luanda as obras dos tribunais municipais do Cazenga, Vianae Kilamba Kiaxi há 3 anos que não acabam, igual situação verifica-se também na cons-trução do palácio da justiça no município do Tombua, na província do Namibe - arealização dos concursos para ingresso de novos quadros na magistratura, para o aumentodo pessoal assistente dos tribunais como escrivãs, oficiais de diligência, e até mesmo a de-terminação dos períodos de férias dos juízes, são acometidas ao Ministério da Justiça.

Alguns juízes referiram-se a esse processo como “dupla subordinação dos tribunais”, umavez que os tribunais estão submetidos tanto ao controlo do Conselho Superior daMagistratura Judicial, quanto ao Ministério da Justiça. As implicações disso estendem-separa além de questões operacionais e vão até o cerne das principais dificuldades enfren-tadas pelo sistema de justiça hoje, como ilustra o depoimento de um juiz entrevistado.

Alguns tribunais têm recebido directamente a verba do Ministério da Justiça. No entanto,por motivos óbvios, o problema de subordinação permanece. Como esclareceu um dosjuízes, « O governo que decide atribuir a verba, sem nos consultar».

Nesses casos, o Juiz Presidente do Tribunal Provincial torna-se o gestor dos custos. Averdade é que tal prática foi observada como negativa por todos os juízes perguntadossobre essa questão. Disseram que as suas formações académicas são na área jurídica, nãona área administrativa ou de finanças. A consequência imediata desta situação é que osjuízes gastam muito do seu já escasso tempo com questões administrativas que poderiamser tratadas por funcionários burocráticos, enquanto as pilhas de processos a serem re-solvidos se continuam a acumular sobre as suas mesas. Como nos disse um dos magis-trados: «Mas essa gestão de dinheiros a cargo do juiz não é boa, deveria ser com alguém queentende de finanças, para desafogar o juiz e também para não reclamarem que fizeram algoerrado». Este tema será tratado com mais detalhes no capítulo seguinte deste relatório.

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Por outro lado, é louvável verificar o empenho de alguns juízes em combater aprática do compadrio, tão alastrada no País. Alguns juízes já começam a perceber aincompatibilidade entre a prática de favorecer parentes e conhecidos, por um lado, e orespeito da lei, por outro lado. É o que revela o depoimento de um juiz entrevistado,que, em conjunto com seus colegas, modificou a realidade da justiça da província em quetrabalha: «No princípio, 5 dos 6 juízes aqui são novos, muitas coisas não conhecíamos, quemjá estava aqui dizia ‘doutor, esse é o meu amigo, meu irmão’. Mas depois fomos vendo que alei é para todos, o pedido não podia ser feito nessas alturas, fomos mudando isso. Pedimos aopolícia que fica na entrada que não deixasse que em nenhum momento cidadão entrasse emcontacto com juiz. Se tiver algo a resolver vai ao cartório, não o contacto com o juiz».

Outro relato no mesmo sentido reforça o esforço de alguns magistrados em aplicarema lei, apesar de tentativas de constrangimentos. Narrando situação em que, recém-che-gado a uma província, notou que simplesmente não se aplicavam penas em casos decidadãos que conduziam viaturas sem a carta de condução, um magistrado referiu:

“Mas quando eu cheguei esta situação estava muito vulgarizada. Polícia também jáestava cansada com isso. Polícia mandava processos aqui e não eram julgados! Quando cheguei,chegaram outros procuradores, resolvemos parar com isso. Tivemos que lidar com a situação:por um tempo toleramos um pouco, começamos a dar penas de 30 dias para condução ilegal,para que a população se acostumasse! Porque eles estavam acostumados a não serem presos!Fomos subindo para 3 meses. Esta semana, não entrou nenhum processo de condução ilegal.Começaram a comprar motorizadas que, segundo a lei, não exigissem carta de condução.Cumprimos a nossa missão e até a polícia está satisfeita. Era um bocadinho de ‘deixa andar’dos magistrados anteriores, nem era influência dos grandes generais! Quem vem fazer pedidonão são os grandes, são os pequenos funcionários! Houve um desleixo. Isso também precisavapassar pela DPIC, precisava de uma mudança, isso é papel dos procuradores, que o deveriamexercer com mais rigor.”

Outro sinal positivo observado foi a consciencialização acerca da amplitude dosdireitos humanos. É esperançoso observar os magistrados reflectindo sobre o significadodos direitos humanos numa óptica que inclui não somente os direitos civis e políticos,mas também os económicos, sociais e culturais. Conforme um dos magistrados reflectiu,quando perguntado a respeito da presença de questões em direitos humanos no dia-a-diado tribunal: «Olha um indivíduo que vai ser julgado, está magro, doente, tem direito de viver,a comer, de ser tratado bem. Agora que estou a ver também na área do cível estou a reparar. Nocrime é mais evidente, mas no cível, o cidadão quer sua casa, foi despedido e quer o salário».

Diante da insuficiente atenção por parte do Estado em direcção ao sistema de justiçano País, foi estimulante observar as saídas encontradas por alguns magistrados parafornecerem melhores condições de trabalho aos funcionários. OOss jjuuíízzeess eenntteennddeemm qquueeppaarraa rreedduuzziirr aa ccoorrrruuppççããoo nnaa jjuussttiiççaa,, ooss ffuunncciioonnáárriiooss ddooss ttrriibbuunnaaiiss ddeevveemm sseerr ttrraattaaddooss ccoommddiiggnniiddaaddee ee ppoossssuuíírreemm bbooaass ccoonnddiiççõõeess ddee ttrraabbaallhhoo.. Nessa esteira, há uma série deiniciativas que podem ser tomadas por magistrados para levantarem o moral dos auxiliares

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que custarão pouco ou nada aos cofres públicos. Algumas delas são narradas por um juizcom quem conversamos: «Todos os funcionários têm cursos de informática, providenciamos,hoje é bonito ir à sala de audiência e ver todos com computador, não imagina a rapidez, aceleridade. Às vezes essa corrupção tem a ver com o problema social, então desde o anopassado que vemos que os bancos estão abertos a financiamentos para os funcionários do tribunal,dialogamos para eles darem alguma possibilidade de crédito aos nossos funcionários. O bancodeu crédito a todos, hoje me sinto satisfeito ao ver os carros dos funcionários; e tenho certezaque foi dinheiro justo. Nós que estamos à frente de instituição temos que olhar pelo aspectosocial de cada um, preciso saber se ele matabichou, almoçou, se quisermos bom trabalho, bomresultado de trabalho».

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3. PRINCÍPIOS E DIREITOS SISTEMATICAMENTEVIOLADOS: PRÁTICAS DE UMA JUSTIÇA PENAL EMCRISE

3.1 O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E A INDEPENDÊNCIA DO PODER JUDICIAL Não há dúvidas de que uma das principais preocupações que rondam o sistema

de administração de justiça em Angola – não só na área criminal, mas também nasdemais – é a separação dos poderes.

De acordo com a doutrina iluminista, a forma de evitar a tirania do soberano é dividiro poder do Estado em três esferas – o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e o PoderExecutivo. Cada um dos poderes seria soberano nas principais decisões relativas à suaespecialidade, de forma que a única interferência de um poder sobre o outro se daria como fim de evitar que um se sobrepusesse em relação aos demais. Da mesma forma, cadaum dos poderes deveria preservar para si a competência das actividades que, por natureza,garantissem a sua não submissão em relação aos demais poderes. A actual Lei Constitucionalprevê no n.º 2, alínea c), artigo 54.º o princípio da separação de poderes. Somente dessaforma o princípio democrático pode reinar. A soberania popular encontra-se em riscoquando a separação dos poderes está enfraquecida ou mitigada.

Qualquer interferência de um poder sobre o outro que represente uma intromissãona sua área de especialidade e seja responsável por uma submissão dessa esfera do Estadoviola o princípio da separação de poderes.

É de conhecimento público que o facto de Angola ter vivido um longo período desistema monopartidário e de guerra deixou marcas na forma de gestão política e económicado Estado até aos dias de hoje. Uma das principais marcas é justamente a preponderância doPoder Executivo sobre os outros órgãos durante muito tempo, sobretudo no período daguerra civil. No entanto, a realidade do País hoje é outra. Em tempos de paz, é precisoque os resquícios das estruturas do tempo de conflito e do monopartidarismo abram cadavez mais caminhos para a construção da democracia e do estado de direito.

Um número significativo de depoimentos colhidos revelou arranjos actuais dopoder estatal que privilegiam o Poder Executivo em relação ao judicial no que toca aocontrole administrativo do Ministério da Justiça sobre os tribunais.

Em princípio, é válido ressaltar que a Lei n.º 18/88, a Lei do “Sistema Unificado deJustiça”, em nenhuma de suas linhas reafirma o princípio da separação de poderes. É claro

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que se poderia argumentar que, uma vez que a Lei Constitucional já assegura o princípio,torna-se desnecessário que a legislação infraconstitucional o faça. No entanto, a “Lei sobrea Justiça Penal Militar”, Lei n.º 19/88, documento seguinte à publicação da Lei n.º 18/88,compartilhando ambas a mesma edição do Diário da República, traz já em seu artigoterceiro o seguinte artigo: “Artigo 3.o (independência no exercício das funções). No exercíciodas suas funções os Juízes dos Tribunais Militares são independentes de quaisquer ÓrgãosMilitares ou do Poder e da Administração do Estado devendo somente obediência à Lei”.

É no mínimo curioso que o legislador do mesmo período se tenha dispensado defazer menção à independência do Poder Judicial comum, mas o tenha o feito na esferamilitar.

O maior número de críticas em relação ao princípio da separação de poderes deu-seem relação à subordinação dos tribunais ao MJ numa série de questões administrativasque dizem respeito à natureza do Poder Judiciário. O artigo 79.º da Lei 18/88 – apontadocomo “inconstitucional” por um grande número de magistrados judiciais entrevistados– revela algumas dessas intromissões do Poder Executivo:

“Artigo 7.o (Direcção Orgânica dos Tribunais)

1. O Ministério da Justiça exerce a supervisão, coordenação e orientação metodológicasobre a actividade orgânica dos Tribunais Populares Provinciais e Municipais.

2. No âmbito desta competência e das demais que lhe são atribuídas na presente lei,compete ao Ministério da Justiça:

a) elaborar e propor normas jurídicas relativas à organização dos Tribunais;

b) apreciar a eficácia social da actividade dos Tribunais;

c) analisar as causas sociais das violações da lei e tomar ou propor a tomada de medidasvisando pôr fim às mesmas;

d) informar-se na base de processos julgados definitivamente, sobre a prática judiciáriatomando a iniciativa de propor ao Tribunal Popular Supremo a elaboração e emissãode resoluções e directivas sobre as questões mais importantes de aplicação do direito,cabendo-lhe comunicar a sua posição relativamente a decisões definitivas que atentemgravemente ao princípio da administração da Justiça;

e) acompanhar e apreciar a actividade dos Presidentes dos Tribunais PopularesProvinciais e dos Juízes Municipais;

f ) assegurar meios humanos e materiais necessários ao funcionamento dos TribunaisPopulares Provinciais e Tribunais Populares Municipais;

g) exercer as demais atribuições que lhe são cometidas por lei.”

O Decreto-Lei no 2/06, que estabelece o Estatuto Orgânico do Ministério da Justiça, trazdisposições de natureza semelhante:

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“Artigo2.º

O Ministério da Justiça tem as seguintes atribuições:

d) cuidar de todas as questões materiais relacionadas com os tribunais provinciais emunicipais;

e) recrutar, formar, promover, bem como exercer o poder disciplinar sobre os oficiais dejustiça e demais pessoal (sic) do regime geral;

(...)

m) tutelar o organismo que procede ao recrutamento e a formação dos juízes, magistradosdo Ministério Público e operadores judiciais, assumindo a responsabilidade pelasestratégias de formação e pela cultura nelas implementada e difundida.

(...)

Artigo 7o

No exercício das suas funções, compete ao Ministro da Justiça:

(...)

b) elaborar e propor normas jurídicas à organização dos Tribunais;

c) exercer a supervisão, coordenação e orientação metodológica sobre a actividadeorgânica dos Tribunais Provinciais e Municipais.”

(...)

k) assegurar, em estreita colaboração com o Conselho Superior da Magistratura Judicial,os meios humanos e materiais necessários ao funcionamento dos Tribunais Provinciaise Municipais.”

Além disso, o artigo 7.º alínea j) do Decreto n.º 2/06 transcreve integralmente a redacçãoda já citada disposição 79.º alínea d) da Lei n.º 18/08.

Se a relação que se espera entre os órgãos soberania é de harmonia e independência,o Poder Executivo não deve estar a supervisionar, coordenar e orientar os tribunais. OPoder Judicial, no âmbito de suas próprias instituições, deve organizar-se de forma a exercera coordenação e organização administrativa de suas próprias actividades. Se é o PoderExecutivo quem tem a competência de assegurar meios humanos e materiais ao funcionamentodos tribunais, o Poder Judicial não estará nem em condições de contrariar o Governo emacções judiciais: um preço muito alto estaria em jogo, o volume de recursos destinadosaos tribunais. Nessa esteira, pode-se abrir caminho a negociações ou acordos escusosextremamente daninhos à independência dos Poderes do Estado. Segundo um dosmagistrados entrevistados:« A Lei n.º 18/88 tem muito a ver com partido único, isso acabou.A separação de poderes não se verifica. Nossas férias solicito ao Ministério da Justiça! Façorequerimento! Apenas em [data – omitido] em [local – omitido] tivemos autonomia com salários,

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mas até então não. Há províncias que ainda têm tribunais sem autonomia. Até o fim de 2008,apenas 11 tribunais tinham autonomia financeira». A opinião de outro magistrado tambémmerece destaque:«Tribunais deveriam ter orçamento próprio. Juízes dependem do Ministérioda Justiça para receber salário. Hoje é dia 27 e ainda não recebemos nosso salário do mês! (…)».

Ainda que as reflexões do parágrafo acima sejam graves, o mais preocupante, noentanto, são as formas pelas quais o poder executivo usurpa competências que são pornatureza judiciais. O disposto na alínea d), n.º 2, do artigo 79.º reserva ao MJ a com-petência de propor resoluções e directivas relativas às questões mais importantes de aplicaçãodo direito. Eis um exemplo em que o poder executivo usurpa competências do poderjudicial e, ao fazê-lo, leva a uma submissão do Poder Judicial.

Como já dito, é preciso que se fortaleçam as frágeis estruturas dos Poderes Legislativoe Judiciário, desprivilegiadas durante o período de conflito armado. Se partimos doprincípio de que o Poder Judicial em Angola já é marcado por uma debilidade, comoesperar que essa esfera de poder se reerga de forma a assumir o papel que lhe cabe numademocracia se permanece submetida ao Poder Executivo, historicamente dominador?

O mesmo entendimento pode encontrar-se no Relatório Final do Seminário sobreReforma da Justiça:«O Ministério da Justiça assume particular lugar e papel na definição eexecução das políticas referentes à administração da justiça. O que parece não ser consentâneocom a Lei Constitucional é o exercício da tutela sobre os tribunais, conforme dispõe o estatutoorgânico do Ministério da Justiça, aprovado pelo Decreto Lei no 2/99, de 27 de Janeiro ou aelaboração de normas jurídicas relativas à organização dos tribunais; acompanhamento daactividade dos presidentes dos tribunais provinciais e municipais. Estes dispositivos obrigama um repensar do papel e lugar do Ministério da Justiça e adequação destes dispositivosnormativos ao Estado democrático de Direito e à lei constitucional.» 2255

Uma análise detalhada dos procedimentos de nomeação de juízes conselheiros emembros do Conselho da Magistratura Judicial também indica uma forte interferênciado Poder Executivo no Judiciário. O artigo 17o da Lei no 7/94, o Estatuto dos Magis-trados, reza que:

“1. Compõem o Plenário do Conselho Superior da Magistratura Judicial os SeguintesMembros:

a) Juiz Presidente do Tribunal Supremo;

b) dois Juízes Conselheiros;

c) seis Juízes de Direito;

d) dois Juízes Municipais;

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25 Relatório Final. In Seminário da Reforma da Justiça, Edijuris, Luanda, 2006, p. 293.

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e) três juristas designados pelo Presidente da República, sendo, pelo menos um deles,Magistrado Judicial;

f ) cinco juristas eleitos pela Assembleia Nacional.”

De acordo com os termos do artigo acima, o CSMJ é composto por 19 membros. Deforma a apresentarmos todos os subsídios para o nosso raciocínio, vale ainda citar outrasdisposições da mesma Lei:

Artigo 43.

1. Os juízes do Tribunal Supremo são nomeados pelo Presidente da República, medianteproposta do Conselho Superior da Magistratura, de entre os Adjuntos do Procurador Geralda República, Juízes dos Tribunais Provinciais e Procuradores Provinciais da República,licenciados em direito e com, pelo menos cinco a oito anos de experiência profissional eboa classificação.

(...)

Artigo 44.

1. Os juízes dos Tribunais Provinciais são nomeados pelo Conselho Superior da MagistraturaJudicial.”

Oferecidas essas informações, passamos à análise da forma ou modo como sãonomeados os membros do CSMJ:

No de Composição do Tribunal Supremo Indicação para integrar o membros Tribunal Supremo

1 a) Juiz Presidente do Tribunal Supremo Presidência da República,mediante proposta do CSMJ

2 b) Juízes Conselheiros Presidência da República, mediante proposta doCSMJ

6 c) Juízes de Direito CSMJ

2 d) Juízes Municipais CSMJ

3 e) juristas Presidência da República

5 f ) juristas eleitos pela Assembleia Nacional Assembleia Nacional

Uma análise cuidadosa da tabela acima revela a grande influência do Poder Executivono Tribunal angolano de maior hierarquia e no CSMJ, por 3 motivos:

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(a) Os Juízes Conselheiros do Tribunal Supremo são indicados pelo CSMJ.

(b) O CSMJ, por sua vez, de seus 19 membros, tem 3 indicados directamente pelaPresidência da República; e 3 nomeados pela Presidência da República a partirde indicação do próprio CSMJ. Como não há a exigência de que a Presidênciasiga a indicação do CSMJ neste último caso, a influência da Presidência é grandena nomeação.

(c) Dos 19 Juízes Conselheiros no CSMJ, 8 são indicados pelo próprio CSMJ.

Assim, observa-se a criação do seguinte ciclo: o Poder Executivo tem grande influênciana nomeação dos Juízes Conselheiros, que por sua vez ocuparão 3 cadeiras no CSMJ, semqualquer interferência de um órgão independente. Esta prática é também desaconselhadaà luz dos Princípios Básicos Relativos à independência da Magistratura recomendados pelasNações Unidas, de 1985.

O Presidente tem também uma grande influência na nomeação dos membros doCSMJ, que por sua vez estão envolvidos no processo de definição dos Juízes Conse-lheiros. Considerando que o CSMJ é o órgão máximo nas áreas de poder disciplinar ede gestão do Poder Judicial, vemos nessa estruturação uma perniciosa invasão do PoderExecutivo no Judiciário.

Nas palavras de um juiz conselheiro: «Há subordinação do Poder Judiciário em relaçãoao Poder Executivo. Enquanto não houver independência administrativa e financeira, nãohaverá independência definitiva. A Constituição diz que tribunais são órgãos soberanos eindependentes, não faz sentido que eles estejam submetidos. Defendo independência administrativae financeira a todos os tribunais. O primeiro passo é torná-los unidades orçamentais. O vínculocom o Ministério da Justiça (MJ) pode manter-se para a fiscalização dos recursos, mas somenteisso. Não faz sentido que tribunal queria comprar máquina de fotocópia e tenha que ir aoMJ, para dar férias a funcionário, que juiz se quiser se deslocar tenha que pedir autorizaçãoao MJ, são coisas de outros tempos».

Na maioria dos países onde a democracia é mais madura, mesmo quando os juízes dostribunais superiores são indicados pela Presidência da República, os candidatos sãosubmetidos a sabatinas pelos Parlamentos de modo a comprovar a sua competênciatécnica e isenção. Somente diante da aprovação, em muitos casos de maioria absoluta,por parte de pelo menos uma das Casas Legislativas, a nomeação para juiz de tribunalsuperior se dá. Nestes casos, há grande participação tanto do Poder Legislativo quantodo Poder Executivo na nomeação dos juízes que serão a mais alta hierarquia do PoderJudicial, mantendo-se, assim, o equilíbrio entre os 3 Poderes do Estado. Em Angola, pelocontrário, o Poder Executivo assume papel protagonista na definição dos quadros superioresdo Poder Judicial.

Além disso, há ainda previsão no sentido de que: “O Ministério da Justiça pode participarnas reuniões do Conselho Superior da Magistratura Judicial, sem direito a voto”, conforme

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a redacção do artigo 20.º da Lei no 7/94. No entanto, se o CSMJ é o órgão máximo paradiscussão de problemas e identificação de soluções no que tange à gestão e à disciplinado Poder Judicial, a presença do MJ nas reuniões do órgão repercute em subordinação dostribunais. O órgão não deve ser eivado de uma ainda maior presença do Poder Executivo.

Assegurar a independência do poder judiciário é um passo indispensável para a instau-ração do estado de direito democrático em construção em Angola.

Segue um exemplo, para que a ideia fique mais clara: como já citado no capítulo 2,quando um dos entrevistados alertou que, mesmo quando perante casos de tortura e agressõesfísicas, em situações de demolições de casas são levados aos tribunais, eles não sãosequer considerados pelos juízes. A independência do poder judiciário é uma tarefaurgente.

Por fim, vale citar as reflexões de Raúl Araújo sobre o tema:«Segundo o princípiodo Estado de Direito, os Tribunais são independentes dos órgãos do poder político e devem possuira sua autonomia funcional, administrativa e financeira. Mas, do ponto de vista prático,a situação manteve-se quase inalterável do que se passava na 1a República. Os Tribunaisnão têm autonomia financeira, garante da sua independência funcional, e continuam depen-dentes do Governo. Os seus orçamentos, com excepção do Tribunal Supremo, estão inseridosnos Orçamentos das Direcções Provinciais da Justiça e são geridos pelo governo Provincial.E a agravar esta situação as dotações orçamentais já de si pobres e magras nunca são cumpridasporque nunca há disponibilidade efectiva do OGE. Que autonomia e independência pode serpedida aos tribunais nestas condições? (...) Com todo este panorama envolvente o que esperar?Que não houvesse corrupção e que as decisões fossem sempre tomadas no estrito cumprimentoda lei?». 2266

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26 ARAÚJO, Raúl. Os custos com o acesso à Justiça. In Seminário da Reforma da Justiça, Edijuris, Luanda, 2006, pp.150-1.

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3.2 O DIREITO À INFORMAÇÃONeste item do relatório vamos abordar a dificuldade no acesso a informações de carác-

ter público por parte do cidadão comum. Em resumo, há um receio generalizado nasinstituições públicas de fornecer aos cidadãos informação relativa ao Estado, chegandoao extremo de até mesmo se impedir o acesso de cidadãos a prédios que abrigam instituiçõespúblicas. Isso significa que há uma prática de violação do direito à informação, garantido nosseguintes dispositivos: artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo19.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, artigo 9º da Carta Africanados Direitos Humanos e dos Povos e aarrttiiggoo 3322..ºº ddaa LLeeii CCoonnssttiittuucciioonnaall.

As reuniões e entrevistas organizadas pela equipe da AJPD, assim como a experiênciavivida durante os procedimentos requeridos para marcação de audiências, evidenciaramum grave problema que permeia toda a estrutura da administração de justiça, não somenteo sistema penal: a questão da transparência das informações públicas. Isso se torna umproblema à medida que enquadramos tal tendência no quadro das posturas gerais doEstado: a mensagem passada aos cidadãos é a de que os assuntos do Estado não devemser de conhecimento do público, mas apenas de funcionários públicos e agentes doEstado de alto escalão.

Essa questão é claramente uma consequência dos tempos de guerra: em períodos deconflito armado, as informações em geral tendem a ser ocultadas, pois há um inimigo quepode valer-se delas e, diante da posse de conteúdos valiosos, abrir uma vantagem tácticaem relação ao oponente.

Assim, por exemplo, num período de guerra, a facção A envidará todos os esforços aseu alcance para que a facção B não saiba o número de guerrilheiros que possui lutandoa seu favor. Da mesma forma, a facção B fará de tudo para que a facção A não descubraquais as tácticas que usa para garantir o fornecimento de água e comida à população queestá sob seu controle. Em situações de conflito há uma tendência ao “confidencialismo”,ou seja, a prática de se ocultar ou dificultar o acesso a informações.

No entanto, quando os ares da democracia se mostram, a situação, em princípio, é aoposta: a tendência é a publicação de informações. Considerando que, numa democracia,há leis regendo as condutas dos cidadãos e representantes eleitos de acordo com avontade da população, é indispensável que os agentes do Estado, em todas as esferas,forneçam o maior volume possível de informações a respeito da gestão da coisa pública.Somente dessa forma os cidadãos estarão aptos a avaliar o trabalho de seus representantes,responsabilizá-los quando for o caso e fazer escolhas prudentes no período seguinte deeleições.

Assim, na democracia, ao contrário dos tempos de guerra, os cidadãos precisam, porexemplo, saber qual o número de agentes da polícia nacional em serviço e em que áreas,de modo que possam avaliar se tal número é adequado e se uma melhoria necessária do

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serviço de segurança pública deve ou não passar pelo aumento do efectivo dos quadrosda polícia. Infelizmente, o confidencialismo ainda é uma tendência.

O problema da transparência das informações públicas torna-se complexo à medidaque se coaduna com uma questão já mencionada neste relatório: a confusão de priori-dades num sistema democrático, ou seja, a prática nociva de se conceder maior obediênciaa uma ordem de um superior hierárquico do que a uma norma, tenha esta status de leiordinária ou até de nível constitucional.

Assim, observamos, em uma série de instituições, não só o difícil acesso a informaçõespúblicas, mas também o facto de se atribuir a responsabilidade do fornecimento dos dadosaos “superiores hierárquicos”. Observa-se uma especial hierarquização da administraçãoda justiça penal, tendo em vista que grande parte do efectivo com ela relacionado é deorigem militar, onde a questão da obediência ao superior é mais evidente. Tal dinâmicadificulta a plena garantia dos direitos dos cidadãos, já que a responsabilidade de seconceder informações é com alta frequência atribuída ao superior hierárquico, o que, porsua vez, atrapalha ou, na maioria das vezes, impede que a sociedade esteja munida dasinformações de que precisa para exercer seu papel politicamente activo.

De acordo com o artigo 1.o da Lei n.º 1/2002, (Lei de Acesso aos DocumentosAdministrativo), « O acesso dos interessados aos documentos administrativos é assegurado pelaadministração pública de acordo com os princípios da publicidade, transparência, igualdade,justiça, imparcialidade, colaboração, participação, prossecução do interesse público e dorespeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos».

Adiante, a Lei esclarece a respeito do direito de acesso aos documentos produzidos e/oumantidos pela Administração Pública:

“Direito de Acesso

Artigo 7o.

1. Todos têm direito à informação mediante o acesso a documentos administrativos decarácter não nominativo. 2277

(...)

3. O direito de acesso aos documentos administrativos compreende não só o direito deobter a sua reprodução, bem como o direito de ser informado sobre a sua existência e conteúdo.”

Em seguida, a Lei regula as formas de acesso aos documentos administrativos. Noentanto, o facto é que tais disposições não são cumpridas pelas instituições públicas,especialmente daquelas relacionadas com a justiça criminal. Considerando que a tendênciaé o confidencialismo, uma série de empecilhos são impostos para que as informações sejamconseguidas.

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27 De acordo com o artigo 4,1,b da Lei mencionada, são documentos nominativos “quaisquer suportes de informa-ções que contenham dados pessoais”.

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Eis alguns exemplos:

(a)A equipe da AJPD enviou ofícios aos juízes conselheiros do Tribunal Supremona esperança de ser recebida por um número deles e dispor de dados e informaçõesmais precisas para a elaboração deste relatório. No entanto, não tivemos resposta.Diante disso, os ofícios foram novamente enviados. Após essa segunda tentativa,um secretário no Tribunal Supremo, ao telefone, depois de ser explicado arespeito do objectivo da audiência, respondeu da seguinte forma, em tom de vozgrosseiro: “Eu não sei nem com quem eu estou falando! Tem que vir aqui pessoalmente!”.

Tal comportamento, provindo de uma das instituições cujo papel na realização dajustiça no País é de protagonismo, indica como a postura confidencialista, que impedeou dificulta que o cidadão se aproxime da autoridade pública a fim de colher as informaçõesa que tem direito por lei, se espraia em técnicas que afastam o cidadão dos órgãospúblicos, quando, na verdade, uma postura de acolhimento do cidadão seria a mais indicada.As autoridades públicas devem estar próximas dos cidadãos e das organizações da sociedadecivil de forma a tornar mais transparentes suas actividades, decisões, projectos, objectivos;e, para isso, seus assessores devem estar preparados a receber o povo.

(b) A AJPD é parte em processo judicial interposto pela PGR. Próximo de 90%das vezes em que a nossa equipe tentou agendar audiências com membros dessainstituição, dizia-se que era necessário obter autorização do Procurador-Geralda República por conta da acção judicial, ou que a AJPD não seria recebida porconta desse mesmo processo. Felizmente muitos desses procuradores efuncionários estiveram abertos para ouvir as justificativas da AJPD e, depois delongos diálogos, telefonemas e trocas de ofícios, muitos nos receberam. O factode uma associação enfrentar processo judicial não é justificativo para que amesma não seja recebida pelo Poder Público, principalmente se o princípio dapresunção da inocência for obedecido. Dessa forma, tal atitude pode serinterpretada como uma tentativa de se impedir que a associação tivesse acessoa informações de carácter público em posse da PGR.

(c) O exemplo mais irónico da prática de se impor obstáculos ao fornecimento deinformações públicas aos cidadãos partiu de um magistrado judicial. Ele nosrecebeu em seu gabinete, mas disse que, por alguma falha técnica, o ofício daorganização solicitando a audiência não foi recebido. Em seguida, mesmo aequipe da AJPD já estando dentro do gabinete, o magistrado disse que, se oofício tivesse chegado, a entrevista ocorreria. Mas como o ofício não foi recebido,a audiência não ocorreu.

(d) A AJPD enviou ofícios à Procuradoria-Geral da República e ao Presidente doTribunal Supremo apontando a violação do artigo 131.º da Lei Constitucionalpelo facto de juízes exercerem funções na Comissão Nacional Eleitoral ao

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mesmo tempo nos tribunais. No entanto, nenhum esclarecimento ou justifi-cativa foram fornecidos até à data a associação.

Os oficiais do Estado, como os agentes de polícia, devem estar preparados a prestar infor-mações aos cidadãos, a esclarecê-los acerca dos seus direitos e deveres, principalmente dos seusdireitos fundamentais. A democracia é frágil em um Estado onde não há transparência.

3.3 O DIREITO À ASSISTÊNCIA E PATROCÍNIO JUDICIÁRIOSA assistência judiciária é o sistema criado com o escopo de garantir o acesso à justiça

àqueles que não dispõem de meios financeiros para arcar com os custos que envolvemum processo judicial, seja como autores, seja como réus. A assistência judiciária naverdade não é um favor prestado pelo Estado, mas um dever constitucional, de acordocom o artigo 36.º da Lei Constitucional:

“ 1. Nenhum cidadão pode ser preso ou submetido a julgamento, senão nos termos dalei, sendo garantido a todos os arguidos o direito de defesa e o direito à assistênciae patrocínio judiciário.

2. O Estado providencia para que a justiça não seja denegada por insuficiência de meioseconómicos.”

A questão da assistência judiciária deve merecer atenção especial por conta das dificul-dades que põe ao acesso à justiça. Os entrevistados foram unânimes em afirmar que háproblemas na área do patrocínio judiciário dos mais pobres, variando apenas o grauem que o problema foi reconhecido. A crítica mais comum admitiu a inviabilidade dosistema actual de patrocínio judiciário.

É obrigação do Estado organizar-se de forma a promover a gratuidade de justiça – sejaem termos de custas judiciais, seja em termos do fornecimento de advogados – aoscidadãos desprovidos de recursos materiais. O Decreto-Lei no 15/95, que dispõe sobrea “Assistência Judiciária”, regulamenta a disposição constitucional. Segundo o artigo 1odaquele Decreto-lei: “O sistema de Assistência Judiciária destina-se a providenciar para quea Justiça não seja denegada a ninguém por insuficiência de meios económicos.”

Nessa esteira, eis a forma como a assistência judiciária está estruturada hoje: um ci-dadão precisa levar uma questão para ser resolvida no tribunal, mas não tem dinheiro paraisso. Esse cidadão vai ao tribunal e comunica o facto. Pede-se que o cidadão obtenha umdocumento na administração local que ateste que ele de facto não está em condições dearcar com as exigências financeiras do processo judicial, o “atestado de pobreza”, nostermos do artigo 8.o do Decreto-lei 15/95. O juiz, deferindo o pedido de assistênciajudiciária, solicita a nomeação de um advogado à Ordem dos Advogados de Angola, deacordo com o artigo 21o do decreto-lei. O profissional então é constituído como advo-gado da causa.

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O sistema aparentemente seria capaz de atender às exigências constitucionais. Noentanto, quando examinamos a prática, observamos que o Estado está muito distante decumprir o seu dever constitucional.

A seguir, analisaremos as principais dificuldades do sistema. Os entrevistados pelaequipe da AJPD apontaram como principais factores das dificuldades e insuficiên-cias do instituto:

((aa)) RReemmuunneerraaççããoo íínnffiimmaa ppaarraa ooss aaddvvooggaaddooss iinnddiiccaaddooss. De acordo com o artigo 37o dodecreto-lei citado:

“1. Os advogados e os advogados estagiários têm direito, em qualquer caso de assistênciajudiciária, a receber honorários pelos serviços prestados, assim como a ser reembolsadosdas despesas realizadas que devidamente comprovem.

2. O pagamento dos honorários e o reembolso das despesas pelos serviços prestados nostermos do artigo 33o não aguardam o termo do processo.”

No entanto, o facto é que os advogados destacados para o patrocínio judiciárioreceberem uma remuneração extremamente baixa, quase insignificante, pelos serviçosprestados. Ouvimos depoimentos de advogados que nunca receberam a gratificação, oua receberam tardiamente, muitos meses depois do trabalho realizado. Isso significa quehá pouco ou nenhum estímulo para que os advogados se dediquem com qualidadee presteza à assistência judiciária.

Uma das piores consequências desse facto é que a assistência jurídica prestada no âmbitodo patrocínio judiciário acaba por ser de qualidade duvidosa. Alguns depoimentosrevelaram que, quando advogados de renome têm seus serviços solicitados pela OAA, enviamestagiários inexperientes em seu lugar.

Nas palavras de um activista social que trabalha com questões jurídicas:

“Mas mesmo que um cidadão tenha conhecimento e tenha um advogado, o advogadonão se engaja no processo porque sabe que não vai ter rendimento, muitas vezes o cidadãoperde a causa porque não houve empenho. Há grandes dificuldades do cidadão encontraresse patrocínio.”

Já um magistrado afirmou o seguinte acerca dos advogados da província: “Uns saemmuito, outros trabalham no [omitido – lugar]. Esse patrocínio judiciário... um advogadoquando não é pago nunca faz uma defesa decente.”

É facto que os advogados têm o dever de prestar assistência jurídica aos mais necessitados.No entanto, advogados são profissionais, têm suas famílias para sustentar, suas necessidadesfinanceiras a satisfazer. Parece inadequado concentrar sobre os advogados o peso daassistência judiciária quando é o Estado que tem o dever de providenciar as condiçõespara que todos os cidadãos tenham garantido o acesso à justiça. E o Estado tem cumpridomal sua responsabilidade ao não criar as tais condições.

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((bb)) EEssccaasssseezz ddee aaddvvooggaaddooss nnaass pprroovvíínncciiaass. Um outro problema comum a todasas províncias visitadas, com a única excepção de Luanda, é a escassez de advogados.Considerando a desigualdade de recursos financeiros que afecta o país, a maior parte dosindivíduos e empresas que levam aos tribunais causas mais lucrativas aos advogados estána capital. Como consequência, o resto do País não dispõe do número adequado deadvogados para atenderem às demandas locais. Dos quase 1300 advogados existentes emAngola, 80% encontra-se em Luanda.

Conforme relata um magistrado do MP indagado acerca da questão do patrocíniojudiciário:“Tem sido um Deus nos acuda. Dificuldades surgem quando as pessoas dirigem-se àadministração municipal, solicitam o atestado de pobreza e depois vêm para cá. O tribunal,para pedir à OAA a nomeação de um advogado, aí começa a dificuldade; cidadãos queremlogo de imediato. Muitas vezes nós mesmos fazemos de conta que somos advogados. Temosassistido cidadãos procurando nossos serviços como advogados. A nossa praça não tem advogados!A pessoa precisa ir até Luanda. O tribunal diz ainda que não é ele quem tem que accionara Ordem. O que nós fazemos é aconselhar os cidadãos como se nós fôssemos os advogados.Na província não há nenhum! O tribunal não manda às vezes o expediente solicitando oassistente.”

Estreitamente relacionada com a escassez de advogados nas províncias está a questãodas exigências inviáveis do sistema de patrocínio judiciário. Se um cidadão requereua assistência judiciária gratuita já se presume que se encontra em dificuldades financeiras.Entretanto, os depoimentos colhidos nas províncias nos demonstraram que a ela aindaé requerido que se desloque até Luanda de forma a tratar com a OAA a constituição deum advogado. Isso demonstra que o sistema de patrocínio judiciário vigente em Angolase baseia em premissas contraditórias, baseia-se no facto de que, ao mesmo tempo em queo cidadão deve apresentar um certificado de pobreza, deve dispor de recursos para sedeslocar da província onde se encontra até a capital do País! Conforme revelou um juizentrevistado:«Basta ver que não temos nenhum advogado aqui na província, com escritórioaqui, todos vêm de Luanda. Se alguém quiser assistência tem que ser a partir de Luanda! Apessoa que requer a assistência muitas vezes não tem recursos nem para vir ao tribunal,imagina para ir a Luanda? Não temos aqui uma representação da OAA».

A Segunda Conferência Nacional dos Advogados, realizada em Novembro de2007, recomendou a urgente revisão dos mecanismos de assistência judiciária em Angola.Segundo informações do Portal Angop, os advogados:

«Defendem ainda que o actual sistema de assistência judiciária do país não estimula a suaprestação por advogados, porquanto os honorários não representam qualquer benefícioeconómico, revelando-se, muitas vezes, a prestação desses serviços de assistência um verdadeiroencargo para os advogados. (...) ‘O Estado deve ser o primeiro ente a chamar a si a responsa-bilidade de garantir o acesso à justiça’. Por outro lado, informam que a inexistência de

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advogados em muitas das circunscrições geográficas de Angola concorre para a não realizaçãoplena e equilibrada da justiça».2288

Esses problemas levam a uma mínima activação do sistema de patrocínio judiciário.Um magistrado afirmou que, na província em que está locado, o tribunal contou como patrocínio judiciário em menos de 10 casos. Já um magistrado em outra província afir-mou que, no tribunal em que trabalha, nunca houve sequer um caso de assistênciajudiciária.

((cc)) DDeeffeennssoorreess ooffiicciioossooss sseemm qquuaalliiffiiccaaççããoo ppaarraa oo ttrraabbaallhhoo.. Um terceiro problemapermanentemente parte das preocupações dos entrevistados é a inexistente qualificaçãodos indivíduos destacados para representarem os cidadãos angolanos em sede de justiçaquando a parte do processo não constitui advogado.

De acordo com o discurso dos juízes, um julgamento não pode transcorrer sem que ambasas partes estejam representadas no processo. No entanto são imensas as dificuldades parase garantir um profissional do direito numa causa. Dessa forma, a alternativa encontradafoi a “nomeação oficiosa”, prevista na Lei N.º 1/95, que consiste na nomeação defuncionários do tribunal para representação de partes no processo judicial.

Essa alternativa, no entanto, é violadora do artigo 36.º da Lei Constitucional, umavez que não garante o “direito à defesa” ali consagrado. Isso se dá porque, na maioriadas vezes, os defensores oficiosos são funcionários do tribunal que possuem pouco ounenhum conhecimento jurídico. A consequência é que o direito à defesa não é garantido,já que o defensor oficioso não possui a técnica necessária para, por exemplo, solicitar umrecurso que caberia na acção, ou alertar que um procedimento ilegal está em curso. Umjuiz afirmou o seguinte sobre esta questão:

«Nomeamos oficiais de justiça, uma figura simbólica; quem de foro sabe defender seu cons-tituinte é o advogado, mas na falta de advogados... Às vezes nomeio senhora de limpeza, oucontínuo, mas eles não fazem nenhuma pergunta durante a audiência, por isso são figurasimbólica».

Um advogado entrevistado afirmou:

«Oferecem-se muitas vezes defensores oficiosos, os que estão disponíveis, às vezes até contínuos,só para assinar a folha no fim, né? Há estrondosa lacuna no nosso sistema. É humilhante, àsvezes o juiz chega a gritar para uma nomeada, “a senhora está a dormir?”. Nota-se que hámesmo omissão do sistema».

((dd)) CCoommpplleexxiiddaaddee ddoo ssiisstteemmaa // ppoouuccaa iinnffoorrmmaaççããoo ppoorr ppaarrttee ddaa ppooppuullaaççããoo.. Uma ques-tão também apontada como problemática é a complexidade do processo, que exige uma

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28 Portal Angop, em 16/11/2007, “Advogados recomendam revisão do mecanismo de assistência judiciária”, disponí-vel em www.portalangop.co.ao

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pró-actividade do cidadão que deseje recorrer ao patrocínio judiciário. Não se pode exigirde uma população com sérias lacunas de escolaridade e acesso à cultura que tantos passossejam percorridos para que um direito básico seja assegurado. Associado a isto está o factoda ausência de uma política que divulgue adequada e amplamente a existência dopatrocínio judiciário e os procedimentos para que ele se verifique. Nas palavras de umadvogado entrevistado, o patrocínio judiciário “É bastante discutível. Embora a lei ofereçaas condições, por não haver divulgação nem um mecanismo do próprio cidadão obter oconhecimento, o patrocínio não é tido como a lei prevê.”

Somados a esses factores principais, há ainda outras questões também levantadas pelosentrevistados, como a falsidade de alguns certificados de pobreza e o alto valor das custasjudiciais. Um magistrado judicial alertou-nos em relação a isto: «Peguei agora mesmoprocesso de pessoa que até tem advogado, mas se põe o problema das custas. O problema nãoé só quem não tem advogado! As custas são caríssimas! Vai pagar quase 10 mil dólares por umprocesso! Custas subiram assustadoramente, desde 2007».

Vale citar ainda o desabafo de um dos magistrados com quem conversamos:

« Faltam advogados, só deve haver 1. Se alguém tiver problema vai ter com um advogado,já não sobra advogado para o réu! Fazer o quê? Dar meses e meses para resolver? Aí dizem queprocesso não anda! Outra parte responde, pede que juiz indique advogado! Vai a Luanda,apanhar carro, gastos etc. O patrocínio judiciário é uma mentira, no fundo todos sabemos!».

O problema da assistência judiciária merece atenção prioritária pois, no momento,impede que direitos fundamentais dos cidadãos angolanos sejam respeitados. Se osconflitos não forem resolvidos pelo Poder Judicial, não teremos democracia, mas sim “alei do mais forte”. É nesse sentido a declaração do grupo de trabalho da ONU sobre adetenção arbitrária: « O direito a um advogado e a um sistema de assistência jurídica,garantidos pela Constituição, existe apenas em teoria. A assistência jurídica só é disponíveldurante a fase de julgamento e, por vezes, o réu não recebe assistência nenhuma de qualquerdefensor. Por falta de advogados de defesa qualificados, nomeadamente nas províncias, ostribunais designam funcionários do cartório, funcionários públicos, ou até mesmo responsáveisdos serviços prisionais ou agentes da polícia para actuarem como defensores públicos. O Grupode Trabalho é de opinião que a maioria destas pessoas não é idónea para defender o réu.Reitera a necessidade de resolver urgentemente esta situação através do estabelecimento delinhas directrizes para a sua selecção assim como critérios para avaliar o seu desempenho tendoem conta o facto que a maioria dos réus não tem condições para contratar o seu próprioadvogado, ficando a depender de um sistema ineficiente de assistência jurídica.» 2299

Enfim, Raul Araújo resume a problemática do patrocínio judiciário:

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29 African Press Organization, em 28/09/2007, “Nações Unidas : O grupo de trabalho sobre a detenção arbitrária vi-sitou Angola”, disponível em: http://appablog.wordpress.com/2007/09/28/nacoes-unidas-o-grupo-de-trabalho-sobre-a-detencao-arbitraria-visitou-angola/

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«Já anteriormente frisamos que um dos principais problemas com a prestação de assistênciajudiciária é a grande carência de advogados no interior do país. E a razão deve-se ao fracodesenvolvimento económico da maior parte do país e da quase impossibilidade dos advogados,enquanto profissionais liberais, não terem a possibilidade de aí se instalarem. Como resolver,então, a contradição resultante do facto de, por um lado, ser um dever do estado e dos advogadosgarantirem a assistência judiciária e do direito fundamental dos cidadãos à defesa e, poroutro lado, não haver disponibilidade humana e financeira para tal? À semelhança de váriospaíses julgo que teremos de avançar rapidamente para uma figura semelhante à dos advogadospúblicos em que, sob remuneração do Estado, há um corpo de advogados que assegura aassistência judiciária.» 3300

3.4 O DIREITO À VIDA E A PRÁTICA DAS EXECUÇÕES SUMÁRIASNum Estado Democrático de Direito há regras que orientam a conduta dos cidadãos,

inclusive daqueles que agem em nome do Estado. Trata-se da manifestação do princípioda legalidade. Algumas dessas regras, por protegerem valores e bens considerados os maisimportantes para a comunidade, inalienáveis e indisponíveis, requerem observaçãomáxima e aplicação imediata e inescusável. Trata-se dos direitos e garantias fundamentaisdos cidadãos ou direitos humanos.

Considerando que o Estado é a entidade responsável pela organização da vida emsociedade, os seus agentes devem ser exemplares na protecção de tais valores e bens.

Não há dúvidas de que a “vida” se enquadra no mencionado rol de valores e bens,sendo um direito garantido pelas seguintes disposições: artigo 3.º da Declaração Universaldos Direitos Humanos, artigo 4.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos,artigo 2.º das Directrizes e Medidas para a Proibição e Prevenção contra a Tortura e Penasou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes em África (Directrizes de RobbenIsland) e artigo 20.º da Lei Constitucional.

Resulta igualmente do Estatuto Orgânico da Polícia a competência para promovero respeito pelo regular exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

No entanto, diante da prática de muitos agentes da polícia angolana, concluiremosque existe uma prática da acção da polícia que resulta num desrespeito pela vida humana.Uma série de exemplos a seguir nos fornecerá matéria-prima para sustentarmos esta afir-mação: Em 29 de Março de 2008, o antigo prédio da Divisão Nacional de InvestigaçãoCriminal desmoronou. Os acontecimentos que rodearam a tragédia deixaram claro quenenhuma atenção foi concedida à tentativa de garantir que os presos que ocupavam ascadeias do prédio escapassem com vida. Segundo o depoimento de um dos sobreviventes,João Salgueiro, ao semanário “A Capital: « O sobrevivente que acompanhava apavorado o

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30 ARAÚJO, Raúl. Os custos com o acesso à Justiça. In Seminário da Reforma da Justiça, Edijuris, Luanda, 2006, p. 158.

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processo de desabamento do edifício, apercebeu-se de que, naquele instante, os funcionários daDNIC começaram a fugir em direcção ao quintalão da Cidadela desportiva. ‘Ainda pedimossocorro, mas o carcereiro meteu-se em fuga com as chaves. Se ele nos ajudasse, muita gentenão morreria’, disse, enquanto se contorcia com fortes dores.» 3311

Podemos observar ainda o facto de a obediência ao superior hierárquico se ter sobre-posto ao respeito aos direitos e liberdades fundamentais. Sob o título “Suposta escapadelade oficial impediu evacuação das celas”, o Semanário Angolense publicou o seguinte,retratando um dos motivos que levaram ao número de 30 detidos mortos:

«Os relatos dizem que naquela noite, o oficial de assistência ter-se-ia ausentado do seu postocom uma alegada companhia feminina (...). Com a sua suposta ausência, o oficial deassistência teria deixado o piquete impedido de tomar decisões cruciais, como seria a aberturadas celas para evacuar os detidos. (...) Depois de a uma da manhã de Sábado ter soado o maiordos ‘estalos’, com uma provável queda de pedaços de betão, aos gritos, os detidos alertaram parao perigo tanto aos carcereiros quanto ao restante do piquete, mas os oficiais ali presentes nuncaconseguiram contactar ninguém com autoridade para os retirar das celas.» 3322

Outros casos exemplificam o desrespeito do direito à vida por parte de muitos agentesda polícia nacional. As acusações da prática de execuções sumárias e de agressões físicaspor parte da polícia são recorrentes em Luanda.

(a) Segundo o Club-k reportou, um jovem de 18 anos foi morto em Luanda nacomuna de Ngola Kilunge por um oficial de polícia no dia 19/01/2009. O jovemassassinado e outros 4 amigos exigiam a recompensa de 500 kwanzas por teremremovido o carro de um polícia de um poço; o oficial negou-se a pagar a quantiae disparou à queima-roupa contra os jovens, ferindo um deles mortalmente.3333

(b) No dia 02/07/2008, Gilberto Welisses Neto Kiala, de 27 anos, foi executadosumariamente por Artur Paulo Chituambanda, agente da Polícia Nacionalcolocado na Divisão da Samba. Os factos deram-se no Morro Bento, emLuanda. Segundo o Jornal de Angola, a tragédia ocorreu “sem qualquer motivo”. 3344

(c) De acordo com “A Capital”, às 11 horas da manhã do dia 29 de Outubro de2008, no bairro dos Mulenvos, em Luanda, cinco jovens entre 26 e 33 anos –Saraiva, Domingos António, Infeliz António, Neloy e Wilson Mangongo –encontravam-se numa oficina de carros. Foram aí surpreendidos por indivíduosarmados com AKMs, que se identificaram como polícias da 12a esquadra doCazenga, e que retiraram os jovens do local. Posteriormente, os corpos de 4

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31 PAULO, Juvenis, reportagem in Semanário “A Capital”, Luanda, 05/04/2008, n.º299. 32 “Semanário Angolense”, em 05/04/2008.33 Club-K, em 20/02/2009, “Polícia volta a matar jovem em Luanda”, fonte “Apostolado”, disponível emhttp://www.club-k-angola.com/index.php/sociedade/2012-pola-volta-a-matar-jovem-em-luanda.html/

34 Jornal de Angola, «Polícia mata cidadão no Morro Bento»,Luanda, 03.07.2008, pág 30.

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desses jovens foram encontrados no chão da Morgue Central de Luanda,“crivados de balas e com fortes sinais de tortura”. O quinto jovem foi “abatido emhasta pública, algures no Sambizanga, sob o olhar incrédulo dos familiares”. 3355

(d) Francisco Levi da Costa, de 25 anos, foi espancado até a morte por policiaisem 02/02/2007, numa cela da IV Divisão. A vítima havia sido acusada de furtar3 caixas de peixe do armazém onde trabalhava, junto com 2 colegas. Segundoo “Angolense”:“Na unidade policial, Francisco e os acompanhantes foram, durante3 dias, espancados, sem que tivessem sido submetidos a qualquer interrogatório formal.Segundo a família, fruto da agressão e tendo em conta que grande parte dos golpesforam na cabeça, o jovem perdeu os sentidos”. 3366

(e) Um jovem de 23 anos de idade e sua mãe, de 47, foram mortos por umdisparo de arma de fogo protagonizado por um agente da Polícia Nacional. Atragédia se deu no bairro do Gamek, em Luanda, em Maio de 2007. De acordocom o depoimento de um dos familiares das vítimas, o acidente se deu pois:“houve alguém que namorava com a esposa do meu sobrinho e ele foi pedir satisfaçãoa essa pessoa que, por sua vez informou a polícia que ele era bandido e a políciaassim que chegou no terreno disparou logo contra as pessoas”. 3377

(f ) No dia 23 do mês de Julho do ano de 2008, no bairro da frescura, municípiodo Sambizanga, 8 jovens perderam a vida quando alguns agentes da polícia afectosà 4.ª esquadra atiraram neles sem dó nem piedade. O massacre aconteceu porvolta das 18h30m, quando os agentes da polícia se aproximaram do local ondese encontravam os 8 jovens a consumir cerveja. Os agentes ordenaram aos jovensque se deitassem no chão e dispararam à queima-roupa. Os agentes da políciajustificaram o acto dizendo que tinham recebido uma comunicação de que nolocal havia um grupo de marginais; assim, traçaram um plano para a eliminaçãodos supostos delinquentes. No dia 22 de Janeiro de 2009, a Rádio Ecclésia passouuma reportagem onde os familiares das vítimas falavam da morosidade noandamento do processo. O facto é que até a presente data, os acusados já estãoa ser julgados no Tribunal Provincial de Lunada.

(g) O subintendente da polícia nacional Resende, colocado na inspecção doComando Provincial de Luanda, matou a tiro um jovem de nome JoaquimManuel no bairro Petrangol a 17 de Janeiro de 2009. 3388

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35 BRÁS, Mariano, « Mais cinco jovens fuzilados por supostos policiais», Semanário A Capital, Luanda, 08 a 15. 2008,n.º 330, pag 34

36 JUNIOR, Correia, «Policiais exterminam cidadão por ter desviado três caixas de peixe», Jornal Angolense, 17 a 24.2007, pag 25.

37 Club-K, em 23/05/2007, “Polícia mata mãe e filho no Gamek”, disponível em http://www.club-k-angola.com/38 MAKUNGA, A e KAVENA, K, « Policia assassina…, » Semanário Folha 8, Luanda, 24.05.2009, n.º 946, pp.10-11/ cf. tb. Jornal Angolense, Luanda, n.º 516, p.15.

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(i) O jovem Hélder José Miranda foi morto a pancadas por vários agentes da polícianacional em Março de 2009. O infausto acontecimento deu-se no bairro daCamuxiba, município da Samba, na divisão de polícia nº 22. Pesava sobre avítima a acusação de haver furtado algumas motorizadas na zona onde vivia. 3399

(j) Uma operação policial, levada a cabo no Lubango, tendo como coordenador ooficial da polícia de nome Mateta, resultou nas mortes de Armando de Carvalho,Kossi Pedro Bula, David Paulo e Jerónimo de Miguel. O crime se deu às 21 horasdo dia 27 de Março de 2009.4400

(k) Agentes da polícia nacional mataram três indivíduos considerados delinquentesno bairro São Pedro da Barra, em 28 de Março de 2009. Tratavam-se de Isaac Joaquime dois outros indivíduos. De acordo com a notícia veiculada pelo Novo Jornal, ocrime teve requintes de crueldade: depois de serem mortos, a polícia colocou oscadáveres às portas das respectivas famílias.

Além desses casos publicados na comunicação social (sobretudo jornais), a AJPDreportou outros casos a partir de denúncias feitas pelos familiares das vítimas, queevidenciam que o Estado não tem assumido cabalmente a função de protecção da vidae da sua dignidade, aliada à impunidade dos agentes da polícia que assim procedendo,violam o mais importante dos direitos humanos.

ll)) TToorrttuurraa sseegguuiiddaa ddee eexxeeccuuççããoo ssuummáárriiaa ddee DDoommiinnggooss MMaauurríícciioo ((FFoottoo eemm aanneexxoo))

No dia 04 de Setembro do ano de 2005, o cidadão de nome Domingos Maurício, de37 anos de idade, perdeu a vida após ter sido arrancado de sua casa na madrugada do dia02 de Setembro sem sequer um mandato de captura, acusado de esconder armas em casa.

Depois de muito procurarem e não encontrarem nada, a polícia levou DomingosMaurício para uma esquadra onde, segundo os familiares, ficou sem comunicação coma família. O direito desse cidadão comunicar com os seus familiares, conforme o artigo40.º da Lei Constitucional Angolana, foi violado pelos agentes da polícia.

No fatídico dia 04, os agentes da polícia solicitaram a comparência na esquadra dosfamiliares de Domingos Maurício. Posto na esquadra, o irmão mais velho da vítima foiquestionado se Domingos Maurício sofria de tuberculose, a que este respondeu que não.Após a pergunta o agente informou o irmão que Domingos Maurício tinha passado anoite a bater com a cabeça na parede, o que lhe provocou a morte. E logo levaram oirmão de Domingos a ver o corpo do irmão que estava todo desnudado, cheio de veladerretida e sinais de que havia sido amarrado e torturado.

Insatisfeitos com as justificações da polícia, os familiares solicitaram uma autópsia, quefoi feita na Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC). O resultado contrariava

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39 (Lutukuta, A, policia acusada de matar…, F8, ed.955, 28.03.09, p.21)40 (Ibid. p.21, Cf. tb. S. Angolense, ed.313, 25.04.09, p.36).

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completamente a versão da polícia: o exame confirmou que Domingos Maurício tinhamorrido vítima de um choque traumático, causado por agressões com objectos contundentes.Mesmo perante o resultado médico a polícia manteve a sua versão dos factos.

Em busca de justiça, os familiares deslocaram-se à AJPD a pedir ajuda. No dia 09de Setembro de 2005, a AJPD redigiu uma carta ao então Comandante Geral da PolíciaNacional, Sr. Alfredo Ekuikui, com o conhecimento ao Dr. Augusto Carneiro, então Pro-curador-geral da República, e também uma carta aos deputados da 9.ª Comissão da As-sembleia Nacional, Comissão dos Direitos Humanos, Petições, Reclamações e Sugestões dosCidadãos, denunciando o crime e solicitando a constituição de uma comissão de inquéritoparlamentar para se investigar o grau de responsabilidade dos agentes envolvidos no caso.

Devido à morosidade da justiça em dar resposta ao caso que vitimou DomingosMaurício, em 24 de Maio de 2007, a AJPD redigiu uma carta ao Procurador da RepúblicaJunto da Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC) com o conhecimento aoProcurador-Geral da República, solicitando celeridade do processo, uma vez que ossupostos culpados continuavam impunes.

Em Setembro de 2005, após os órgãos de comunicação social retratarem o caso quevitimou Domingos Maurício, o Gabinete de Comunicação e Imagem do ComandoGeral da Polícia Nacional fez sair uma nota de imprensa dando conta da criação de umacomissão de inquérito que já se encontrava a trabalhar para averiguar as reais circunstanciasque provocaram a morte a Domingos Maurício. O processo ainda não chegou ao fim ejá lá vão quase quatro anos e os agentes da policia continuam impunes e os resultadosdo inquérito nunca foram publicados!

Por fim, o semanário “Folha 8” sintetiza a situação da polícia no quadro das condiçõesalarmantes que permitiram que a execução sumária se tornasse uma prática nefasta no país:

“No que diz respeito à polícia, ou melhor, ao desempenho dos agentes da Polícia Nacio-nal, pode-se dizer que em Angola não estamos muito longe duma situação catastrófica, com mortesperfeitamente evitáveis e inúteis, semana sim, semana sim, numa demonstração de facilidadeem apertar o gatilho que ultrapassa de muito os mais baixos níveis de sensatez e de sangue-frioque devem ser exigidos a gente que tem a responsabilidade de participar activamente namanutenção da ordem pública. O comandante geral da corporação, Ambrósio de Lemos, estápreocupado com a situação, mas parece ter poucos meios para as contornar. E se a situaçãoassim continuar, muito difícil será o controlo da ordem e segurança pública. Exemplos deexcessos andam por aí aos pontapés em quase todos os bairros de Luanda, com especialprotagonismo para o Bairro do Sambizanga, onde teve lugar essa cena de antologia, que ficarápara sempre na história do cinema angolano e da Polícia Nacional, em que agentes da dignaPN tomaram a ficção por realidade e entraram num verdadeiro filme a matar verdadeirosfalsos ladrões que mais não eram do que autênticos actores do dito filme.” 4411

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41 Folha 8, em 03/05/2008, William Tonet e Arlindo Santana.

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3.5 O DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA E MORALNos termos da actual Lei Constitucional no seu artigo 23.º «nenhum cidadão pode

ser submetido à tortura, nem a outros tratamentos ou punições cruéis, desumanosou degradantes». Esta norma deve ser interpretada, em conformidade com o artigo 21.ºda LC, em harmonia com os instrumentos jurídicos internacionais de protecção dos direitoshumanos. Nesta conformidade, o artigo 7.º do Pacto Internacional sobre os DireitosCivis e Políticos, dispõe que “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas outratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter umapessoa, sem seu livre consentimento, a experiências médicas ou científicas».

O Estado é entidade responsável pela organização da vida em sociedade. É a ele queincumbe a função de evitar que a integridade física e moral dos cidadãos e seus direitossejam violados. O órgão encarregue da protecção da integridade física dos cidadãos e decombater o crime é a Polícia. Tal conclusão pode ser aferida do disposto no artigo 1.º doEstatuto Orgânico da Polícia Nacional, segundo o qual compete à polícia «o respeito peloregular exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos (…) a prevenção àdelinquência e o combate à criminalidade».

Infelizmente, em todas as denúncias e práticas atentatórias contra a integridade físicade cidadãos detidos ou reclusos – como torturas, maus tratos, agressões, humilhações, etc.- estão envolvidos agentes da polícia nacional angolana.

Embora Angola não tenha ratificado ainda4422 a Convenção contra Tortura e ou-tros Tratamentos e Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes, das Nações Unidas,vale apenas recorrermos ao sentido que esta convenção nos oferece do termo ““ ttoorrttuurraa””..«(...) o termo ‘tortura’ designa qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físicoou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de umaterceira pessoa informações ou confissão; de puni-la por um ato que ela ou uma terceirapessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou umaterceira pessoa; ou por qualquer razão baseada em discriminação de qualquer espécie, quandotal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público ou por outra pessoa actuando noexercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento ou aquies-cência».

Dessa forma, não só a prática de se infligir dor ou sofrimento com o fim de se ter acessoa informações se enquadra no conceito de tortura, mas também o sofrimento e tratamentodegradante provocados por funcionários do Estado, quaisquer que sejam seus objectivos,caracterizam o conceito de tortura. Esta constitui uma forma mais agravada de tratamentocruel e desumano.

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42 Aquando da sua candidatura como membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Angola comprometeu-se em Maio de 2007, a ratificar várias convenções de direitos humanos, entre as quais a Convenção Contra Torturae outros Tratamentos e Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

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Por outro lado, o que se observa em Angola, por inúmeras vezes, é a inversão dos papéis:ao invés de proteger os cidadãos, a polícia torna-se a principal violadora dos seus direitos.

Nesses casos, quando tal prática de inversão de papéis é de tal forma frequente,a legitimidade e a confiança conferidas à corporação policial por parte dos cidadãos sãoameaçadas e vive-se numa situação de medo e insegurança, uma vez que o perigo podesurgir da conduta tanto de delinquentes, quanto de agentes do Estado.

As visitas da equipe da AJPD e as entrevistas realizadas demonstraram que a torturae os tratamentos desumanos e degradantes são uma realidade nas celas das esquadras eem muitas cadeias e, muitas vezes, no momento da detenção de presumíveis suspeitos.

O que acontece com os reclusos é mais um exemplo das violações correntes ao direitoà integridade física e moral de qualquer cidadão angolano. Várias dessas violações que setornaram práticas em prisões já foram citadas no capítulo 2 deste relatório – torturas, agressõesfísicas e verbais, superlotação de presos nas prisões e muitas vezes privados de água e comida.

De acordo com o Jornal “Agora”, as violações à integridade dos cidadãos presosforam uma das principais causas do motim que ocorreu na CCL em Outubro de 2007,aliadas ao excesso de prisão preventiva. Depois do motim, os presos (os que não foramassassinados) foram “punidos” com “muita surra, dois dias sem água nem comida e privadosde tratarem da higiene pessoal”. 4433

É válido chamar a atenção para o facto de que, ao mesmo tempo em que os políciassão acusados da prática dos actos descritos acima, os agentes não contam com condiçõesde trabalho que certamente estimulariam uma acção mais humana.

Como esperar que um polícia pergunte antes de atirar se ele não dispõe de um coleteà prova de balas, capaz de resguardar a sua vida no caso de um eventual conflito com umpotencial criminoso? Tal aconteceu no caso em que um polícia foi assassinado, comorevelou o semanário “A Capital”: “Especialistas na matéria defendem que neste segundo caso,o erro terá sido a falta de material como o colete anti-bala e de lanternas apropriadas, sobretudonuma zona desprovida de iluminação pública.” 4444

A questão da prática da tortura precisa ser enfrentada e combatida com seriedade, ouseja, no quadro mais amplo da escassez dos recursos materiais que são fornecidos aospoliciais como instrumentos de trabalho e no contexto da baixíssima remuneração quelhes é oferecida. No entanto, a falta de condições de trabalho não pode justificar os actosde tortura e tratamento degradantes ou desumanos.

Em seguida, apresentamos alguns exemplos reportados pela AJPD, que denotam que,assim como as execuções sumárias, a violação da integridade física do cidadão comrecurso à tortura também, infelizmente, se tornou uma prática em Angola.

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43 Agora, em 06/10/2007, “Comarca é varrida a ferro e fogo”, Paulo Sérgio.44 A Capital, em 16/09/2006, “Lei Mosaica na Polícia do Cazenga: ‘dente por dente, olho por olho’”, Mariano Brás.

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(a) A “Voz da América” denunciou a prática de agressão física como meio deextorsão de bens de cidadãos, no município do Cassongue, Kwanza Sul, de umasenhora grávida, de nome Delfina Maria. A senhora foi espancada por políciasdo sector do Cruzamento em Dezembro de 2007. O motivo é a fazenda de seumarido, capitão das ex-FALA, cobiçada pelo Comandante da polícia Julião André,ex-oficial das extintas FAPLA. Também foram agredidas a cunhada de Delfina,que por conta do espancamento não mais pode andar, e 2 cunhados seus queapresentam contusões na cabeça. Perguntada sobre os motivos de tamanhabrutalidade, Delfina falou: “É mesmo a fazenda, dizendo que vocês porque são daUNITA, não têm direito de ter a fazenda”. 4455

(b) Em Dezembro de 2007, em Benguela, a Voz da América denunciou quemoradores de rua são diariamente vítimas de inúmeros tipos de agressões pelapolícia, incluídos aí maus tratos, abusos sexuais e roubos de haveres. As queixasforam apresentadas à PGR. No entanto, segundo declarações do activistacívico José Patrocínio à Voz da América, “Não é apenas pedir à Procuradoria queveja a questão do dia da movimentação, mas que tome em conta que ene factos,ene violações são perpetradas constantemente contra essas mesmas pessoas por partede pessoas ligadas à Polícia, portanto por parte de agentes, significa dizer que hápessoas na instituição, na polícia que desenvolvem estas actividades”. 4466

(c) No dia 15/10/2007, no município do Cazenga, província de Luanda, o intendenteda Polícia de Intervenção Rápida, Conceição Pedro, disparou à queima-roupacontra a viatura de um taxista carregada de passageiros. De acordo com areportagem do Semanário “A Capital”: no trânsito, o taxista, sem alternativa,mas esboçando um sorriso irónico, abriu caminho a outro motorista que,mesmo sem ter direito à prioridade, forçava a passagem. O policial entendeuo sorriso do taxista como um profundo desrespeito, desceu imediatamente desua viatura e, já com o revólver na mão, exigiu explicações ao taxista. Este, commedo, fechou o vidro. Em seguida, o polícia abriu fogo, primeira contra ospneus do carro do taxista, depois contra os vidros, em direcção ao taxista. Porsorte o motorista não foi atingido. 4477

(d) De acordo com um comunicado da associação OMUNGA do início do ano de2009, a polícia nacional em Benguela dirigiu-se no centro de acampamento 16de Junho à procura de supostos criminosos. Chegando ao local, espancaram jovens,dando-lhes fortes coronhadas, tendo inclusive causado ferimentos a uma criança,dentre várias que estavam no local. Importa frisar que a população que se

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45 Voz da América, em 21/12/2007, “Polícia semeia terror em Cassongue e espanca mulher grávida”, disponível emhttp://www.voanews.com/portuguese/

46 Voz da América, em 21/09/2007, “Sem tecto processam polícia no Lobito”.47 A Capital, em 20/10/2007, “Porque sorriu à sua frente: Intendente da PIR dispara contra cidadão”.

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encontrava naquele local era vítima de um desalojamento forçado que a admi-nistração do Lobito havia conduzido sem a devida indemnização. 4488

Outra questão que precisa ser combatida fortemente pela Estado é a violação da integri-dade moral dos cidadãos ao serem interpelados pela polícia sem razões que o justificam.De acordo com o jornal “Angolense”, “Tem sido usual ver polícias mandarem parar oscidadãos sem boas maneiras, falarem como querem e até usando palavrões ao se dirigirem a umindivíduo. Empunhando armas de fogo, amedrontam aqueles a quem deviam transmitir umasensação de segurança.” 4499 De acordo com a mesma reportagem, o então porta-voz doComando Provincial de Luanda da Polícia Nacional, Divaldo Martins, afirma que é umdever do polícia e um direito do cidadão que seja informada a razão da interpelação.

De seguida, serão relatados dentre muitos, apenas casos de dois cidadãos que foramvítimas de torturas e outras violações dos seus direitos fundamentais, que diante daineficiência do Estado em julgar e punir os culpados, recorreram à AJPD na esperançade obter alguma ajuda.

CASO DOMINGOS MARTINS ((FFoottooss eemm aanneexxoo))

No dia treze de Maio do ano de 2006, o senhor Martins, chefe de segurança da empresaMaboque, e mais três colegas, foram acusados de ter roubado um cofre na tesouraria daempresa que pertence ao Grupo César e Filhos.

No dia 15 de Maio, o senhor Martins foi à 9.ª esquadra onde se encontravam os seuscolegas seguranças, prestou depoimento e foi mandado embora pelos polícias, que alegaramque o mesmo era inocente. No mesmo dia, pelas 23h 57min, o senhor Julião César,Director dos Transportes da Maboque, ligou para o senhor Martins dizendo que tinhauma pista sobre o assunto e queria um encontro àquela hora.

O senhor Martins, acompanhado de sua esposa, foi até a uma esquadra que fica a 200metros de sua residência, local onde acordaram se encontrar. Para seu espanto, o senhorJulião não estava sozinho, desceu de sua viatura um elemento que agarrou o senhorMartins pelos braços dizendo que era polícia e que o senhor Martins estava preso. Tudoisso aconteceu sem que fosse apresentado um mandado de captura.

Devido à situação, a esposa do senhor Martins reclamou do que se estava a passar efoi agredida por um dos agentes que acompanhavam o senhor Julião. O senhor Martinsfoi levado à uma subunidade (na Boa Vista) onde já se encontrava um dos seus colegas.Este estava totalmente inflamado e, devido às torturas a que havia sido submetidocom alicate, afirmou que o senhor Martins estava envolvido no roubo.

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48 (Marcos, J, Policia às avessas…, ed. 517, 31. 01 a 07. 02. 09, p.13)49 Angolense, em 12/05/2007, “Quando e como devem os polícias interpelar um cidadão?”, Elsa Alexandre.

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Os agentes da polícia penduraram o senhor Martins num gradeamento onde foitorturado, para que confessasse o roubo do cofre, violando-se, assim, o direito de não sersubmetido à tortura ou tratamento desumanos. Quando eram 3 horas da madrugada,os polícias levaram o senhor Martins até defronte da empresa.

De regresso à unidade, os polícias continuaram a torturar o senhor Martins ao pontodeste urinar nas calças; ele recorda que um dos polícias lhes disse que o patrão tinhamandado matá-los sem deixar rastos e que a família dos mesmos não saberia ondeencontrá-los. No dia 16 de Maio do corrente ano, por volta das 00 horas, os agentes dapolícia levaram um dos colegas do senhor Martins até a uma lixeira com o fim de oexecutarem, mas um dos agentes disse o que o trabalho não podia ser feito porque nãohavia dinheiro.

Após procurarem em quase todas esquadras e hospitais, no dia 17, os familiares dosenhor Martins deslocaram-se até à subunidade onde este se encontrava, mas o comandantedisse que não estavam detidos ali. O direito do senhor Martins de se comunicar com osfamiliares foi também violado.

Enquanto os colegas foram transferidos para outra esquadra, o senhor Martins ficouna mesma subunidade, onde os agentes continuaram a torturá-lo. Já no dia 18 de Maio,o senhor Martins foi levado para a 9.ª esquadra onde se encontravam os colegas. Foramouvidos pelo procurador no dia 19 e ali permaneceram durante uma semana. Na semanaseguinte, foram transferidos para a Direcção Nacional de Investigação Criminal, onde nãoforam ouvidos, e no dia 26 de Maio foram mandados para a Cadeia Central de Luanda,tendo sido libertados no dia 31 do mesmo mês.

Assim, no dia 1 do mês de Junho de 2006, o senhor Mateus Martins e os colegas apre-sentaram uma queixa-crime no guichet de reclamação do Comando Geral da PolíciaNacional contra os autores da tortura. No dia 5 de Junho de 2006, o senhor Martins eos colegas procuraram a AJPD no sentido de informar o sucedido e de obter umaorientação para que se fizesse justiça.

A AJPD redigiu uma carta no mesmo dia para o então Procurador-geral da República,Dr. Augusto Carneiro, com o conhecimento do Presidente da República e do Presidentedo Tribunal Supremo, e ainda para o então Comandante Geral da Polícia, ComissárioAlfredo Ekuiui, com o conhecimento do Ministro do Interior, senhor Roberto Leal Mon-teiro. Nestas cartas a AJPD denunciou as violações cometidas pelos agentes afectos à 6.ªesquadra de polícia e pediu a instauração de um inquérito para que os culpados fossemresponsabilizados disciplinar e criminalmente.

Através de notas de imprensa, a AJPD fez ainda uma denúncia pública aos órgãosde comunicação social. No dia 16 de Novembro de 2006, o senhor Mateus Martins redigiuuma carta para o senhor Provedor de Justiça e para a 9.ª Comissão da AssembleiaNacional (Comissão para os Direitos Humanos, Petições e Reclamações dos Cidadãos).

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Em Agosto do ano de 2008, o senhor Mateus Martins e um outro colega ganharamem tribunal o processo laboral em que a empresa deveria pagar-lhes uma indemnizaçãopela não reintegração dos mesmos na empresa, os salários desde o despedimento até a exe-cução da decisão e ainda os subsídios de férias não pagas e não gozadas. Em relação aoprocesso laboral, a empresa em questão interpôs recurso ao Tribunal Supremo, que atéagora ainda não tomou uma decisão.

No que se refere ao processo-crime, em Maio de 2006 estes cidadãos foram cruelmentetorturados e violados muitos dos seus direitos e até a presente data os culpados nãoforam punidos. Os fatos nem mesmo chegaram a tribunal. A AJPD teve conhecimentooficioso de que os agentes da polícia teriam sido expulsos da corporação.

UUmmaa ffaammíílliiaa ttoorrttuurraaddaa ppoorr aaggeenntteess ddaa ppoollíícciiaa.. ((FFoottooss eemm aanneexxoo))

No dia 07 de Dezembro de 2006, três cidadãs, Joana Agostinho, de 38 anos de idade,Marisa André Rodrigues, de 23 anos de idade e Inês Valentim Passos, de 20 anos de idade,membros da mesma família e residentes no município do Cazenga, em Luanda, virama sua casa invadida por agentes da polícia. Os agentes eram afectos à 12.ª esquadra e, porvolta das 5 horas e 40 minutos da madrugada, estavam em busca do jovem FranciscoAndré, de 17 anos de idade, acusado de se envolver em lutas no bairro.

Depois da busca sem êxito, os agentes da polícia exigiram que a senhora Joana Agostinhoe as duas filhas os acompanhassem até a esquadra. Já na esquadra, as três cidadãs forambrutalmente espancadas pelos agentes que teimavam em afirmar que as mesmas tinhamescondido o jovem que procuravam. Os agentes da polícia apoderaram-se dos bens dafamília, nomeadamente um aparelho DVD, uma mesa misturadora de som, uma televisãoe ainda um telemóvel, disse a senhora Joana.

Na esquadra, depois de estarem na cela, não faltaram abusos sexuais.

Em apoio às vitimas, a AJPD redigiu uma carta ao Comandante Mário Luís, comconhecimento do Comandante Provincial de Luanda, Pedro Candela, Comandante Geralda Polícia Nacional, Ambrósio de Lemos, e também para o Ministro do Interior, RobertoLeal Monteiro, para denunciar os actos que põem em causa a corporação toda e para quese instaurasse um inquérito a fim de se apurar a verdade e se responsabilizar os agentesenvolvidos.

A AJPD redigiu também uma carta ao então Procurador-Geral da República, Dr.Augusto Carneiro, com conhecimento do Presidente da República e do Presidente doTribunal supremo. A AJPD nunca teve resposta das cartas que remeteu às autoridades.E o caso não foi resolvido e os agentes da polícia continuam impunes.

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3.6 A SITUAÇÃO PARTICULAR DA PROVÍNCIA DE CABINDAA situação do sistema de administração da justiça penal em Cabinda, tão eivada de

complicações, merece um capítulo à parte neste relatório. Aqui já foi dito que as situações dascelas das esquadras são, em geral, preocupantes pela falta de condições de habitabilidade. Noentanto, a situação encontrada em Cabinda pela equipe da AJPD foi ainda mais chocante.Em termos gerais, há três justificativas para essa impressão: (a) as condições desumanas dasesquadras, incluindo o tratamento que os detidos recebem; (b) a alta incidência depresos políticos na região; (c) o desrespeito das regras básicas do direito processual penal.

((aa)) AAss ccoonnddiiççõõeess ddeessuummaannaass ddee hhaabbiittaabbiilliiddaaddee ee ttrraattaammeennttoo ddooss pprreessooss.. De acordo comum activista de direitos humanos:

« As condições das prisões em Cabinda são péssimas. Não têm os requisitos mínimosexigidos às instalações penitenciárias. Não têm camas nem instalações sanitárias ou higiénicas.Os detidos deitam-se no chão, ali fazem as necessidades fisiológicas e ali passam todo o seutempo».

O Voz da América noticiou que, segundo Eusébio Rangel, advogado, ex-assessordo bastonário da OAA o seguinte:

« O Ministério Público deverá averiguar as várias denúncias e torturas e outros métodosreprováveis utilizados pelo comando da segunda região militar de Cabinda contra civis. Eusébiosustenta a sua preocupação com base em denúncias e factos por ele vividos em arguidos queforam vítimas de torturas e obrigados a confessarem supostos crimes sob ameaça de armas defogo e baleamentos. (...) Eusébio Rangel lamenta o facto de ao longo de 30 dias os co-arguidosdo processo Fernando Lelo terem sido submetidos, no quartel general da segunda região militarde Cabinda, a torturas enormes e que custou a um deles a perda de uma perna». 5500

A prática da tortura, segundo entrevistados, representa um instrumento de obtençãode confissões por parte de agentes do Estado em Cabinda. Vários entrevistados nosfalaram sobre o “buraco”, um local subterrâneo utilizado como “masmorra” onde presossão mantidos por dias ou meses e submetidos a toda sorte de tratamentos degradantes. O“buraco” é o maior pesadelo dos presos em Cabinda. De acordo com um entrevistado:« Já viram o sangue sai dos tímpanos, depois não tem provas? Há torturas no comando militar,pessoas ficam 2, 3, 4 meses no comando da religião militar, há buraco onde as pessoasficam, algemadas, 3 dias sem fazer necessidades maiores».

AA aallttaa iinncciiddêênncciiaa ddee pprreessooss ppoollííttiiccooss.. Sabe-se que existem conflitos de natureza inde-pendentistas na província de Cabinda. Neste relatório não entraremos na discussão acercada legitimidade da luta dos grupos independentistas, pois tal avaliação exigiria um estudopróprio e aprofundado.

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50 Voz da América, em 09/04/2008, “Advogado Eusébio Rangel constata casos de tortura na prisão do Yabi em Ca-binda”, disponível em http://www.voanews.com/portuguese/

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No entanto, a preocupação do Estado em evitar que o conflito se estenda por todoterritório não deve servir de desculpa para que direitos fundamentais da pessoa sejamdesrespeitados. Segundo um activista cívico da província:

«Há pessoas presas por razões políticas, mas que são acusados de crimes de delito comum(homicídio, ofensas corporais) ou de crimes contra a segurança do estado. Mas não têm oestatuto de prisioneiros políticos: são tratadas como presos de delito comum. No passado,algumas pessoas eram presas pela sua postura de defesa dos direitos humanos. Hoje, há pessoaspresas por causa dos ataques da FLEC. Os factos (praticados ou reivindicados pela Flec) sãoimputados a esses aldeões e eles são julgados por crimes contra a segurança de Estado. Mas todaa gente sabe que essas pessoas são inocentes. Lá fora, são considerados como presos políticos. É,por exemplo, o caso do jornalista Fernando Lelo, do ex-regedor Luís Geraldo Barros e demuitos outros. Nos últimos tempos, essas pessoas são presas pela segurança (inteligência oucontra-inteligência militar), são torturados e interrogados por eles, mantidos sob detenção noquartel-general durante algumas semanas e depois entregues ao procurador provincial daRepública, que legaliza as detenções, os indicia e os entrega à Direcção Provincial da InvestigaçãoCriminal para efeitos de instrução processual».

No entanto, de acordo com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos,ratificado por Angola, no seu artigo 18.º « 1. Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdadede pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptaruma religião ou uma convicção da sua escolha, bem como a liberdade de manifestar a suareligião ou a sua convicção, individualmente ou conjuntamente com outros, tanto em públicocomo em privado, pelo culto, cumprimento dos ritos, as práticas e o ensino.2. Ninguém seráobjecto de pressões que atentem à sua liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou umaconvicção da sua escolha.3. A liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções sópode ser objecto de restrições previstas na lei e que sejam necessárias à protecção da segurança,da ordem e da saúde públicas ou da moral e das liberdades e direitos fundamentais de outrem».

O artigo acima transcrito significa que nenhum indivíduo pode ser vítima de tratamentocruel por causa da sua linha de pensamentos, nem ser privado de um julgamento em con-formidade com as leis processuais vigentes e de todas as garantias delas decorrentes. No en-tanto, tais disposições não são levadas em conta na sua integralidade pelas autoridades queintervêm na administração da justiça em Cabinda. Além de indivíduos ligados aosmovimentos políticos contrários ao governo estarem na prisão mesmo sem o cometimentode nenhum crime, há também aqueles que foram vítimas do rigor de sectores da polícia que,restringindo a liberdade de consciência dos indivíduos, e diante do afastamento das garantiasconstitucionais, acabaram por prender indivíduos que não cometeram qualquer crime.

De acordo com reportagem do Club-K:«O Governo há muito que vem utilizando preocu-pações com a segurança nacional como pretexto para reprimir a dissidência política pacífica erestringir o escrutínio dos direitos humanos independentes em Cabinda. Em 2006, o Governobaniu uma associação civil local, Mplabanda, que desde 2003 tinha documentado violações

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dos direitos humanos relacionadas com a guerra, assim como outros abusos. O Governo afir-mou então que Mplabanda realizava actividades políticas ilegais e incitava à violência» 5511

Em seguida, eis uma lista de alguns reclusos e detidos, que foram sujeitos a violaçãodos direitos humanos em Cabinda:

aa)) OOss iirrmmããooss PPaauulloo MMaavvuunnggoo ee CClleemmeennttee JJooããoo MMaavvuunnggoo,, detidos desde07/01/2009, em Buco Zau. Paulo é professor. Paulo foi agarrado, sofreu agressãofísica – bateram-lhe com o cornador e sofreu muitas sevícias.Acusaram-lhe deque havia sido preso por ter atacado um carro. Mas nunca foi provado o seuenvolvimento com a FLEC.

bb)) PPrróóssppeerroo BBiiaannggaa, detido no dia 07/10/2008, na RDC, ex-militar da FLEC. Disseque não sabe qual crime cometeu, ainda não tinha recebido a notificação da PGRaté ao momento que elaborávamos o relatório. Está a ser acusado de ter cometido“crime de sabotagem e contra a segurança do Estado”.

cc)) JJooããoo ddee DDeeuuss MMuuaannddaa,, detido no dia 14/10/2008, na RDC, ex-militar da FLEC.Alega que “nunca me mostraram nenhum processo”. E somente foi ouvido emLuanda, mas nunca foi informado acerca de qual crime teria cometido.

dd)) OOrrnnéélliioo MMaabbiiaallaa,, detido no 28/08/2008, em sua casa em Cabinda e com eleoutro 34 elementos. Afirmou que a polícia lhe perguntou onde estava o armamentoe lhe ameaçou de morte.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos também faz menção à liberdadede expressão e de imprensa:

“Artigo 19.º

1. Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões.

2. Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende aliberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, semconsideração de fronteiras, sob forma oral ou escrita, impressa ou artística, ou porqualquer outro meio à sua escolha.”

Tais liberdades também são garantidas pela legislação interna. A Lei Constitu-cional, no n.º1 do artigo 32.º dispõe que: ««São garantidas as liberdades de expressão, de reunião,de manifestação, de associação, e de todas as demais formas de expressão». Já a Lei deImprensa, Lei n.º 07/06, afirma no n.º 1 do artigo 5.º que «A liberdade de imprensatraduz-se no direito de informar, de se informar e ser informado através do livre exercícioda actividade de imprensa e de empresa, sem impedimentos nem discriminações».

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51 Club-K, em 16/01/2009, “Relatório Internacional aconselha Angola a pôr fim à tortura e aos julgamentos injus-tos em Cabinda”, disponível em http://www.club-k-angola.com/index.php/politica/1988-relat-internacional-aconselha-angola-a-pim-ortura-e-aos-julgamentos-injustos-em-cabinda.html.

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No entanto, foi relatado por activistas sociais e cívicos em Cabinda que essas dispo-sições não são respeitadas pelas autoridades da província. Os semanários independentesdo Governo, um pouco mais críticos, chegam com dificuldade à província de Cabinda.

Um exemplo do desrespeito em relação à liberdade de expressão e opinião é o caso doex-correspondente da Voz de América, Fernando Lelo. Lelo foi detido no dia 11 deNovembro de 2007, no acampamento da Cabinda Golf em Malongo, por indivíduosfardados e em posse de mandado de captura.

O processo que conduziu o julgamento de Fernando Lelo, hoje já solto, foi eivadode ilegalidades ou irregularidades. A mais evidente delas é o facto de, apesar de Lelo nuncater sido militar, o processo ter sido conduzido no Tribunal Militar. A acusação atribuídaao jornalista foi a de instigar a rebelião em Cabinda e recrutar militares, dando-lhesdinheiro e material bélico.

Lelo foi vítima de coação psicológica. Foi colocado na cela por metade de um dia semreceber comida ou água. Seu advogado encontrava-se no mesmo local, mas não permitiramque os dois se falassem ou vissem. Quando foi transferido em 30/05/2008, nem seusadvogados ou sua família foram notificados. Nunca foi dispensando para visitar sua casa,apesar das inúmeras solicitações.

Apesar de civil, Fernando Lelo foi condenado pelo Tribunal Militar no dia 16 deSetembro de 2008, considerava-se um preso político.

Lelo afirma não ter cometido nenhuma das acções que lhe foram atribuídas, nemmesmo esteve no sítio onde se alega que os crimes tenham sido cometidos. Comojornalista, havia defendido a independência de Cabinda através de suas opiniões, masnunca participou de qualquer movimento armado nessa direcção. Alega-se que Lelotivesse estado no local dos acontecimentos em 12/07/2007, no entanto ele alega possuirregisto informatizado do sítio em que de facto esteve, seu local de trabalho, que comprovaque tal alegação é falsa.

Fernando Lelo acabou por ser posto em liberdade no mês de Agosto de 2009.

De acordo com o jornal Semanário “Folha 8”:« Pior, mas muito pior do que se passacom agentes nervosos da PN, é o que se vem repetindo até ficarmos enjoados, no exercícioda justiça. (...) Não vamos relembrar aqui os ‘Circos’ que foram os julgamentos e/ou as sentençasque se abateram sobre homens como Miala (e seus três adjuntos), Raúl Danda, Sarah Wikes,Fernando Lello, Graça Campos». 5522

((cc)) AAss pprrááttiiccaass iilleeggaaiiss ee aa jjuussttiiççaa cciivviill nnaass mmããooss ddee mmiilliittaarreess:: Pressupostos básicosdo Estado de Direito são frequentemente deixados de lado em Cabinda, inclusive atolerância em relação à tortura.

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52 TONET, Willian e SANTANA, Arlindo, Semanário Folha 8, Luanda 03.05.2008.

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Em 2006, houve uma mudança significativa nos quadros da administração da justiça,em Cabinda. Os três magistrados judiciais do Tribunal Provincial de Cabinda (João daCruz Pitra, Manuel António de Morais e Ana Maria Diogo de Almeida) foram substi-tuídos. De acordo com um entrevistado, ao falar do quadro de magistrados anteriora essa mudança, “a justiça já funcionava muito mal com eles”.

Segundo um entrevistado, à época havia muitas detenções arbitrárias feitas por polícias.Como as prisões não obedeciam aos pressupostos de legalidade, absolviam os réus. Noentanto, “O Governo entendeu que os juízes compactuavam com os criminosos, pareciaanormal e manchava a honra do governo da província”. Como consequência, os magistradosjudiciais foram transferidos para outras províncias.

O resultado disso é que, segundo um entrevistado, “não há provas para manterem pessoasna prisão”. E muitas das provas apresentadas pela defesa não são tidas em conta duranteos processos judiciais.

Com a chegada dos novos magistrados judiciais, no entanto, a situação piorou. Deacordo com um entrevistado:“A verdade é que eles foram substituídos por juízes milita-res sem a mínima experiência na área da justiça cível, de tal maneira inexperientes que oestado da justiça piorou. Fazem algum trabalho em matéria de processos-crime, mas as outrasquestões não merecem qualquer atenção. Há muitos processos que estão no tribunal há 10, 9,8, 7, 6 ou 5 anos e que se encontram ainda na fase inicial. Praticamente não há julgamentosde casos cíveis. Os pedidos de providências cautelares ficam 8, 10 ou 12 meses parados.Depois desse longo tempo de espera, se o juiz toma conhecimento deles, ficam ainda longo tempoà espera duma decisão (decretamento ou rejeição da providência)”.

Houve também mudança na PGR da província. O procurador provincial que subs-tituiu o antigo é “curiosamente também militar”. Conforme um advogado, com o novoquadro, pós 2006, tem-se que “em Cabinda, a justiça está nas mãos de militares”.

De acordo com um entrevistado:«As leis não são respeitadas. Falo sobretudo dos ‘presospolíticos’. O procurador legaliza automaticamente as prisões preventivas, embora sejamobjectivamente ilegais (ordenadas e efectuadas por pessoas sem competência legal e em violaçãodas formalidades legais prescritas sob pena de nulidade ou ilegalidade), e uma vez validadas,são automática e indefinidamente prorrogadas. A despeito da ausência ou insuficiência de provas,são acusados e, apesar de tudo, o juiz recebe a acusação e pronuncia-os. Prazos processuaisparecem não existir».

Num Estado de Direito, a lei deve ser aplicada com imparcialidade e objectividade. Alémdisso, os funcionários públicos, especialmente aqueles ligados à administração da justiça, de-vem ser cumpridores da lei, e não estar acima dela, conforme reza o artigo 3o do Decreto--Lei no 16-A/95, o Diploma sobre Normas do Procedimento e da Actividade Administrativa.

Em resumo, o comunicado da “Casa de Cabinda”, publicado no sítio electrónicoClub-K em Março deste ano, lamenta as condições relativas aos direitos civis e políticos

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Page 83: Relatório sobre os Direitos Humanos e a Administração da Justiça Penal em Angola 2006 - 2009

na província:“A situação dos DH em Cabinda é deveras preocupante. As Perseguições eDetenções Arbitrárias com recurso à Tortura atingem níveis dramáticos; as Intimidaçõese Restrições à Liberdade de Expressão e Reunião são uma constante, tendo-se agravado desdea assinatura do chamado Memorando de Entendimento. Neste momento há cerca de 2dezenas de detidos sem mandatos, sujeitos a torturas e acusados de “crimes contra a segu-rança de estado”, na sua grande maioria civis, conforme consta dos Relatórios de váriasOng’s já publicados. Há denúncias de execuções sumárias, tanto em Cabinda como nosvizinhos Congos (RD Congo e Congo Brazzaville), bem como queixas de repatriamentosforçados de Refugiados Cabindas nos 2 Congos. O catequista católico Leão Gime, de 59anos de idade, foi encontrado morto, (decapitado), na aldeia de Seva, em Cabinda, a 30 deJaneiro último.»5533

É urgente que o Estado reveja a postura da polícia e dos órgãos de administração dejustiça penal em Cabinda. Tais afrontas à legalidade devem ser combatidas vigorosamentede forma que o Estado de Direito de facto se estabeleça na província.

3.7 DIREITO À LIBERDADE: a problemática do excesso de prisãopreventiva e a morosidade nos julgamentos A liberdade individual é um dos princípios fundamentais do Estado angolano (artigo

2.º da Lei Constitucional). O direito à liberdade só pode ser limitado nos termos da leie por certas entidades.

A Procuradoria-Geral da República é a entidade responsável pelo exercício da acçãopenal e competente para decidir sobre a aplicação ou não das medidas privativas daliberdade, como o caso da prisão preventiva. (artigo 36.º da LC, n.º2 do artigo 2.º daLei 5/90; artigo 9.º e 14.º da Lei 18-A/92).

Já foi dito que a Lei da Prisão Preventiva possui normas que são desajustadas aosactuais princípios do estado de direito democrático, e respeitador dos direitos, liberdadese garantias dos arguidos.

E ainda assim, muitos procuradores aplicam a lei sem as devidas adaptações e sem terem em contao princípio da presunção de inocência, o direito de acesso aos tribunais e o direito à defesa.

Durante as nossas constatações, verificamos ainda que o Ministério Público continuaa violar os prazos de prisão preventiva na instrução preparatória; os prazos são prorrogadossem a justa fundamentação e sem os detidos tomarem conhecimento. O princípio dapresunção da inocência do arguido sujeito a prisão preventiva não pode ser afectado pelalentidão da justiça. É frequente ainda a velha prática de «prender para investigar e nãoinvestigar para prender».

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53 Club-K, em 10/03/2009, “Comunicado da Casa de Cabinda, sobre a Visita de JES a Portugal”, disponível emhttp://www.club-k-angola.com/index.php/politica/2287-comunicado-da-casa-de-cabinda-sobre-a-visita-de-jes-a-portugal.html/

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Sobre a problemática da prisão preventiva discorremos bastante no primeiro relatório.Importa, porém, dizer ainda que, apesar de reduzir o número de casos de excesso deprisão preventiva, é uma realidade, especialmente em Luanda. Tal afirmação pode serfundamentada a partir das constantes preocupações dos órgãos que intervêm na admi-nistração da justiça, nomeadamente os Ministérios do Interior e Justiça, Procuradoria daRepública, o representante da Ordem dos Advogados e o Tribunal Supremo. A questãodo excesso de prisão preventiva é sempre abordada nestas reuniões. Numa reunião, diasdepois do desmoronamento do edifício da DNIC, o Juiz Conselheiro do TribunalSupremo, Simão Victor, disse: « Foi concebido um plano de emergência, sobretudo paraacelerar os julgamentos. Pensou-se mesmo em criar-se determinados juízes para poderem julgar ra-pidamente aqueles casos de excessos de prisão preventiva, alguns dos quais vão de dois a quatro anos»5544

O Juiz Presidente do Tribunal Provincial de Luanda, Augusto Escrivão, reconheceuem entrevista ao Jornal de Angola, na sua edição de 26 de Maio de 2009, que «em relaçãoao excesso de prisão preventiva que os organismos competentes estão a trabalhar arduamentepara a sua diminuição. (…) que em Luanda o excesso de prisão preventiva está controladouma vez que existem 9 casos com mais de 3 anos e 90 casos com mais de dois anos (…)».

Do excesso de prisão preventiva resulta também a superlotação nas cadeias. Por exemplo,aquando do motim na CCL, apenas cerca de 120 dos 3.570 presos eram condenados poralgum tribunal, segundo o Semanário Angolense. Todos os demais aguardavam julgamento.

O excesso de prisão preventiva teria sido uma das principais causas do motim. Deacordo com o jornal, um dos grandes problemas da prisão preventiva no País é justamenteo convívio de jovens e criminosos primários com indivíduos altamente perigosos o quetorna as cadeias potenciais “viveiros de autênticos criminosos”.

Sobre a questão da prisão preventiva podemos tirar a seguinte conclusão:

Que a PGR, embora não assuma, é a entidade responsável pelas violações dos prazosde prisão preventiva na fase de instrução preparatória. Acresce-se ao facto de não existirum sistema informático integral de gestão dos dados respeitantes à situação de cada recluso.

Constatamos ainda que quer a PGR, quer o Ministério do Interior não accionam comodevem os mecanismos de protecção dos arguidos, nomeadamente instaurando os necessáriosprocessos disciplinares aos magistrados e/ou funcionários responsáveis por eventuais violações.

a) Que muitas afirmações na imprensa, no sentido de fazer crer que o excesso deprisão preventiva já não constitui problema, não passa de uma acção de pro-paganda mediática.

b) Que os tribunais têm também responsabilidade pela gravidade do excesso deprisão preventiva, na fase de instrução contraditória, a que muitos detidosestão sujeitos nas cadeias angolanas.

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54 Jornal de Angola, 21 de Maio de 2008.

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Segundo Leïla Zerrougui, Presidente-Relatora do Grupo de Trabalho sobre a Deten-ção Arbitrária do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas:«A lei angolana rezaque as pessoas detidas e suspeitas de terem cometido um crime devem ser presentes ao procuradornum prazo de 24 horas no máximo após sua captura. O Grupo de Trabalho recebeuinformações que indicam que esta regra praticamente nunca é respeitada. A lei ainda determinaque o primeiro interrogatório após a detenção deve ser feito pelo procurador do MinistérioPúblico na presença de um advogado. No entanto, o Grupo de Trabalho tomou nota do factoque é frequente que sejam os investigadores da polícia a serem os primeiros a interrogar osuspeito e que fazem-no sem a presença de um procurador ou de um advogado. A maioria dosmunicípios não tem procuradores nem advogados, de tal forma que a polícia tem a responsabilidadeexclusiva da investigação criminal» 5555

Quanto à morosidade nos julgamentos, a AJPD tem constatado ao longo destes anosde monitoria do funcionamento da administração da justiça em Angola, que resultamdos seguintes factores:

1) O desajustamento das leis penais em vigor, os prazos processuais demasiadosdilatados e a escassez de recursos humanos (magistrados judiciais e do ministériopúblico, oficiais de diligência, escrivão, oficiais de registo e do notário).

2) A organização antiquada das Secretarias Judiciais, aliada à fraca capacitação dopessoal auxiliar e à falta de regulamentação específica sobre conservação ouprotecção dos processos nos cartórios;

3) A falta de condições de comunicação e de transporte, quer da Polícia de Inves-tigação Criminal, quer dos estabelecimentos prisionais, quer nos tribunais.Este facto, às vezes torna-se tão grave, ao ponto de serem adiados julgamen-tos por falta de carros para transportarem os arguidos da Cadeia para o Tri-bunal;

4) A falta de condições de trabalho adequadas à investigação criminal (meios detransportes modernos, laboratórios de análises criminal modernos), falta decondições de trabalho e remuneratórias para oficiais de justiça como sejam ossecretários judiciais, escrivão de direito, oficiais de diligência, ajudantes de escrivão.Tem-se criado as melhores condições de trabalho e remuneratórias para osjuízes e procuradores e os oficiais de justiça caem no total esquecimento.

Com vista a exemplificar as teses que vimos defendendo, eis alguns exemplos decasos de morosidade nos julgamentos. Estes casos são apenas alguns de uma esmagadoramaioria de arguidos que ficam à espera de julgamentos fora dos prazos legais e razoáveis.

8844 Os Progressos e os Retrocessos de uma Justiça Penal em Crise

Relatório Sobre os Direitos Humanos e a Administração da Justiça Penal em Angola 2006 - 2009

55 African Press Organization, em 28/09/2007, “Nações Unidas : O grupo de trabalho sobre a detenção arbitrária vi-sitou Angola”, disponível em: http://appablog.wordpress.com/2007/09/28/nacoes-unidas-o-grupo-de-trabalho-sobre-a-detencao-arbitraria-visitou-angola/

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Esclarecemos que estes dados foram recolhidos no ano de 2008 pela AJPD juntode algumas cadeias em Angola e alguns actualizados em 2009. Não temos conhecimentode que os arguidos já tenham sido julgados.

11.. CCuussttóóddiioo NNeettoo RRaammooss: Foi detido no dia 9 de Outubro de 2007, em sua casa nummunicípio da província de Malange, acusado do crime de ofensas corporais. AtéJulho de 2008, ainda não tinha sido presente ao juiz.

22.. MMaannuueell AAddrriiaannoo JJooããoo:: Foi detido no dia 1 de Agosto de 2007, acusado de crimede furto, e até Julho de 2008 ainda não tinha sido presente ao juiz.

De acordo com uma carta que os magistrados dirigiram ao Presidente da República,publicada no F8, os juízes falam das suas insuficientes condições de trabalho e sociais.Por outro lado, levantam o velho problema do excesso de prisão preventiva e de outrosaspectos de que enferma a justiça em Angola.5566

3.8 DIREITO A PROVIDÊNCIA DO «HABEAS CORPUS». O instituto de “Habeas Corpus” está consagrado na Constituição angolana no artigo

42.º como uma garantia de protecção dos cidadãos contra o abuso de poder, por virtudede prisão ou detenção ilegal. E no Código de Processo Penal nos artigos 315.º a 325.º .

Muitos juízes desconhecem o alcance deste instituto, ignorando inclusivamente quese trata de uma garantia constitucional. Outros há que apenas se furtam à sua aplicaçãopor desconhecerem a respectiva tramitação processual. Em todos os são sempre osarguidos que são os prejudicados.

O jurista Sérgio Raimundo, professor de Direito Penal, aquando do Seminário sobre aAdministração da Justiça e o Sistema Penal5577, organizado pela AJPD, em Outubro de 2008,apresentou as seguintes razões que impedem a aplicação prática do instituto do «habeas corpus».

1) Existência de um regime jurídico difuso, porque desajustado com a realidadesócio-politica e judiciária do País;

2) Falta de cultura na utilização deste instituto por parte da sociedade em geral, e emparticular dos operadores do direito, incluindo advogados e magistrados judiciaise do Ministério Público;

3) Ausência de debate entre os vários operadores do direito e a sociedade civil paradivulgação da existência, importância, utilidade, necessidade e eficácia do habeascorpus.

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Relatório Sobre os Direitos Humanos e a Administração da Justiça Penal em Angola 2006 - 2009

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56 TONET, Willian, «Magistrados reconhecem injustiça…», Semanário Folha 8, Luanda, 24.04.2004, n.º 959, pág 6-757 RAIMUNDO, Sérgio, palestra subordinada «« RReeggiimmee JJuurrííddiiccoo ddoo iinnssttiittuuttoo ddoo hhaabbeeaass ccoorrppuuss nnoo DDiirreeiittoo PPoossiittiivvooAAnnggoollaannoo.. VVaannttaaggeennss ee CCoonnssttrraannggiimmeennttooss nnoo eexxeerrccíícciioo ddoo ddiirreeiittoo ddee hhaabbeeaass ccoorrppuuss nnoo aaccttuuaall ccoonntteexxttoo ddee AAnnggoollaa,,proferida no Seminário Sobre a Administração da Justiça e o Sistema Penitenciário, sobre tema principal “HabeasCorpus”, Luanda, Outubro, 2008, pag 4ss

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Acresce-se a estas razões o argumento segundo o qual não se pode aplicar o institutode “ Habeas Corpus” por falta de regulamentação, segundo muitos juízes e procuradores,em virtude de o n.º 2 do artigo 43.º da Lei Constitucional dispor que a «a lei regula oexercício do direito a habeas corpus». No entanto, tratando de um direito fundamental,o habeas corpus tem aplicação directa e imediata.

Até ao momento em que escrevíamos este relatório não tínhamos registo da existênciade que dos vários pedidos de habeas corpus algum tenha merecido provimento!

Para concluir este capítulo, vale citar novamente as propostas apresentadas pelo juristaSérgio Raimundo no seminário acima referido para se acabar com a violação do direitoa habeas corpus.

Para o efeito «devem ser realizadas as seguintes acções:

a) elaboração de uma lei ordinária para clarificação do órgão competente naapreciação e concessão do habeas corpus;

b) simplificação dos procedimentos de apreciação e decisão;

c) redefinição dos prazos de apreciação e decisão, que no nosso entender devem terum mínimo de 2 dias e um máximo de 5 dias já que se trata de uma prisãoilegal, efectiva e actual;

d) reordenação das decisões a tomar como consequência da apreciação do pedidode habeas corpus; harmonização do licere do actual preceito do artigo 316.º ,do CPP com o preceito do artigo 42.º n.º 1, da Lei Constitucional, atendendoa hierarquia das normas para facilitar a tarefa dos operadores do direito nainterpretação e aplicação destas normas, dentre outras situações que reclamamactualização a serem consideradas na devida altura em sede própria».5588

8866 Os Progressos e os Retrocessos de uma Justiça Penal em Crise

Relatório Sobre os Direitos Humanos e a Administração da Justiça Penal em Angola 2006 - 2009

58 Sérgio Raimundo, op cit, pag 8ss

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4. ALGUNS SINAIS POSITIVOS

As entrevistas e pesquisas realizadas pela equipe da AJPD não mostraram apenasas tendências negativas da justiça penal angolana. Felizmente, uma série de mudançaspositivas foram identificadas. Este capítulo do relatório será dedicado a essas característicaspositivas, no sentido de relatarmos as consequências favoráveis dos esforços dos órgãosdo Estado na busca de solução para os problemas mencionados neste relatório.

É facto que um olhar crítico também apontará limitações a essas conquistas. Considerandoo papel da sociedade civil de apontar as falhas para que o Estado possa aperfeiçoar as suasdinâmicas institucionais de materialização dos direitos fundamentais, também serãoapresentadas críticas às melhorias identificadas. No entanto, tal contraste nãodeve subestimar o valor e o desenvolvimento social que as melhorias mencionadasa seguir trouxeram, trazem ou trarão para o País.

4.1 As reuniões de coordenação da justiçaDe acordo com o artigo 82.º e seguintes da Lei n.º 18/88, Lei do Sistema Unificado

de Justiça, deve haver uma coordenação entre os trabalhos dos órgãos que administrama justiça. Segundo os artigos 83.º e 84.º da mencionada lei:

“Artigo 83.º

1. O Presidente do Tribunal Popular Supremo deverá promover reuniões periódicas com osMinistros da Justiça, da Segurança do Estado e do Interior e com o Procurador-Geral daRepública, tendo em vista a coordenação da actividade comum e especificamente para:

a) elaboração do plano anual de tarefas comuns;

b) realização anual do balanço de actividade desenvolvida;

c) adopção de medidas para o progresso dos trabalhos.

2. Poderão ser convocados para assistir às reuniões outros órgãos estatais ou entidades cujapresença se considere necessária.

Artigo 84.º

O Presidente do Tribunal Popular Provincial deve com a mesma finalidade e pela forma cons-tante do artigo anterior promover idênticas reuniões com os responsáveis dos referidos órgãosestatais a nível da Província.”

O artigo 85.º da mesma lei seguinte estabelece as mencionadas reuniões a nível mu-nicipal.

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Um número significativo de magistrados judiciais, procuradores e investigadores daDNIC entrevistados mencionaram tais reuniões. Elas foram citadas, na maior parte dasvezes, quando os entrevistados eram perguntados acerca da relação com os demaissectores da justiça.

Em todas as vezes foi mencionado que tais reuniões se realizaram com espíritode resolução de problemas e aprimoramento de dinâmicas internas. Por isso cada insti-tuição apresenta suas dificuldades, principalmente aquelas que exigem uma maior dedi-cação das instituições parceiras. Como muitos problemas podem ser simplesmenteresolvidos através de uma coordenação de actividades, troca de ideias ou uma maiorcomunicação entre as instituições que administram a justiça, um número significativode dificuldades são solucionadas de forma fácil nessas reuniões. Na maioria dos relatos,a periodicidade das reuniões era trimestral.

De acordo com o depoimento de um dos entrevistados:“Até porque há reuniõesde coordenação dos órgãos de intervenção na administração da justiça, quem preside é o juizpresidente. São trimestrais, na época do processo eleitoral elas falhavam um bocadinho, maspelo menos 3 anuais. Agora vamos poder fazer pontualmente e com regularidade. Levamos aestas reuniões todos esses problemas. A prisão preventiva é ponto permanente na agenda. Muitasvezes há falta de informação, as pessoas só reclamam do tribunal, mas muitas vezes o processojá chega ao juiz com atraso na instrução”.

Além disso, tais reuniões permitem que uma certa fiscalização aconteça quando sãoapresentados dados de forma que as actividades dos diferentes órgãos, no que cabe, sejamcomparadas. Assim, por exemplo, se há um x número de casos que são apresentados àpolícia, mas somente um número bastante reduzido destes chegam aos tribunais, esseíndice desproporcional pode indicar que há algum problema na produção dos processosjudiciais criminais. De acordo com um entrevistado: “A cada 3 meses há uma reunião dosórgãos de intervenção na administração da justiça em Luanda. Nessas reuniões é feito o balanço dacriminalidade pela DNIC, depois o tribunal diz quantos casos foram instruídos e quantos nãoforam, etc”.

A coordenação entre os órgãos também pode dar-se no sentido de se combater um problemagrave que atinja a todos, mas de diferentes formas. Assim, se cada instituição fizer a sua partede forma sincronizada com as demais, até mesmo problemas sérios, como o alto índice deprisão preventiva, podem ser resolvidos:“Temos as reuniões de coordenação dos órgãos queinterferem na administração da justiça, representados o Ministério da Justiça, o Ministériodo Interior, a Procuradoria-Geral da República, a Ordem dos Advogados de Angola. Temostrabalhado no sentido de fazer com que os julgamentos, pelo menos de réus presos, cumpram alei da prisão preventiva, sejam menos morosos”.

Também tem havido reuniões a nível nacional, em Luanda, em que participam oMINJUST, representantes do Tribunal Supremo, DNIC, PGR e Ordem dos Advogados.

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Num Estado onde os recursos dedicados à justiça são escassos, soluções que não oneremsignificativamente os cofres públicos são sempre bem vindas. No entanto, deve-se evitara ideia de que estas reuniões se transformem, por solidariedade institucional, num meiode interprotecção de cada órgão.

4.2 Entrosamento dos tribunais com a sociedade civilHá uma série de organizações da sociedade civil que elegeram o Poder Judicial como

um dos focos de seu trabalho, seja de forma primária ou secundária. Assim, enquantoalgumas organizações levam ao tribunal casos que violam direitos humanos comoestratégia de acção principal, outras apoiam e dão sustentação quando pleitos relativos aseus objectos de trabalho são levados à justiça.

Dessa forma, a seguinte pergunta se coloca: como se dá o entrosamento dos tribunaiscom as ONGs em ambas as situações? E a resposta representa os primeiros passos de umaconsciência cívica nos tribunais: Quando as ONGS estão presentes nas audiências, ouquando os advogados patrocinados pelas ONGs representam uma das partes no processo,a tendência dos juízes tem sido uma maior preocupação com o processo em causa, umcuidado maior com o rigor que os procedimentos legais exigem.

Muitas vezes se observa mesmo um maior comprometimento na administração dajustiça quando parte da sociedade civil está sentada nos bancos da sala de audiência.Esse é o caso, por exemplo, dos corajosos juiz e procurador do Bengo que, em Novembrode 2008, absolveram um grupo de professores que haviam sido presos ilegal e injustamentepelo facto de estarem a fazer greve. Diante da presença de várias organizações da sociedadecivil na audiência de julgamento, demonstrando o seu apoio aos professores injustiçados,os magistrados se posicionaram contra a elite política local e, à revelia da vontade deadministradores locais, aplicaram a lei e absolveram os professores. Muitas vezes, emconsequência de todos os constrangimentos que o Poder Judicial sofre no país, nemsempre o magistrado se sente seguro para tomar uma decisão que, apesar de represen-tar apenas a aplicação da lei, contraria interesses de elites locais ou até nacionais. A presençae o suporte da sociedade civil, como demonstrado no exemplo do Bengo, são deter-minantes para que os magistrados tenham a segurança de que a estrita aplicação dalei deve ser observada, em detrimento da realização de caprichos arbitrários de poderososlocais.

Em alguns casos, foi-nos dito que os juízes até mesmo recomendam aos cidadãosa procura de organizações da sociedade civil se quiserem levar casos sobre direitos humanosaos tribunais.

É positivo observamos que um sector do Estado, nomeadamente o Poder Judicial,já começa a reconhecer o papel da sociedade civil como parceira nos processos dedesenvolvimento e aprofundamento da democracia em Angola.

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4.3 Criação do Tribunal ConstitucionalEm 2008 foi criado o Tribunal Constitucional. De acordo com o artigo 134° da Lei

Constitucional:

“Ao Tribunal Constitucional compete em geral administrar a justiça em matérias denatureza jurídico-constitucional, nomeadamente:

a) apreciar preventivamente a inconstitucionalidade nos termos previstos no artigo 154°; 5599

b) apreciar a inconstitucionalidade das leis, dos decretos-lei, dos tratados internacionaisratificados e de quaisquer normas, nos termos previstos no artigo 155°;

c) verificar e apreciar o não cumprimento da Lei Constitucional por omissão dasmedidas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais;

d) apreciar em recurso, a constitucionalidade de todas as decisões dos demais tribunaisque recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitu-cionalidade.

e) apreciar em recurso, a constitucionalidade de todas as decisões dos demais tribunaisque apliquem norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.”

A criação do Tribunal Constitucional foi positiva em uma série de aspectos. O prin-cipal é que, num País cuja estabilidade democrática ainda está sendo assentada, háuma estrutura independente formada exclusivamente para discutir pretensões constitu-cionais. Isso demonstra uma vontade política no sentido da criação de instituições quefortaleçam o exame adequado, minucioso e com qualidade de questões relativas a direi-tos fundamentais, respeito às competências institucionais, obediência à Lei Maior e aoprincípio da separação de poderes e demais querelas de nível constitucional.

Até o momento, as principais questões que já chegaram ao Tribunal Constitucionalrelacionam-se com eleições, sobretudo o processo de legalização dos partidos políticos bemcomo o seu processo de extinção. Há também alguns conflitos intrapartidários. Algunsrecursos interpostos de sentenças de tribunais comuns também têm começado a chegarao Tribunal Constitucional.

A alínea (d) do Artigo 134o, transcrita acima, merece uma especial atenção, pois taldispositivo, a partir da criação do Tribunal Constitucional, trouxe à justiça angolana apossibilidade de um cidadão insistir em seu pleito caso algum tribunal inferior tenha incorridoem violação de direito fundamental. De acordo com um juiz conselheiro entrevistado:

“A criação deste tribunal trouxe ao nosso sistema jurídico um elemento novo: qualquercidadão ou instituição que julgue que, nas decisões proferidas por qualquer tribunal, tenham

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59 O artigo 154o trata da “apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma sujeita à promulgação, as-sinatura e ratificação do Presidente da República”.

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sido atropelados princípios que a constituição estabelece, ou violados direitos que a consti-tuição reconhece, pode apresentar ao tribunal constitucional recurso de inconstitucionalidadedessa medida judicial”.

Não há dúvida de que tal recurso, agora tornado viável com a criação do TribunalConstitucional, exigirá uma maior atenção e dedicação dos magistrados judiciais quandose trata do respeito, garantia e aplicação de direitos fundamentais, o que é um pontopositivo para a estabilização da democracia angolana.

O Tribunal Constitucional encontra-se adequadamente apetrechado. Foi instalado comceleridade, de modo que pudesse dar conta das questões relativas às eleições legislativasde 2008. Equipamentos informáticos foram fornecidos e uma organização de trabalhofoi desenvolvida para que as tarefas à época pudessem ser realizadas adequadamente. Alémdisso, a maioria dos assistentes contratados para auxiliar os juízes conselheiros sãolicenciados em direito.

Em homenagem ao princípio da publicidade e ao direito à informação todos osacórdãos são publicados no sítio electrónico do tribunal6600.

Por fim, é digno de nota que, até agora, não houve dissenso em nenhum acórdãoproferido pelo Tribunal Constitucional. Até o fim do mês de Abril de 2009, 106 acórdãosjá haviam sido proferidos pela Tribunal, e, em todos eles, os 7 juízes concordaram porunanimidade em relação a todas as decisões e a todos os argumentos utilizados parasustentar tais decisões. Segundo um juiz conselheiro entrevistado, a falta de dissensos:“Nãoé negativa. Para todos os assuntos que discutimos, nem sempre opiniões foram convergentes.Mas quando isso acontece, aprofundamos as discussões, já aconteceu que acabamos por ficarconvencidos por argumentos contrários. Até este momento ainda não houve declaração de votocontrário à decisão da maioria, mas acredito que vai haver”.

Historicamente, os dissensos sempre foram os responsáveis pela actualização e adaptaçãodas normas jurídicas às novas exigências democráticas da sociedade. Além disso, o conflitode ideias permite que questões periféricas num determinado julgamento, mas protagonistas emoutros casos, comecem a ser trabalhadas pelo tribunal, de forma que menos surpresas atinjamos cidadãos que recorrerem ao Tribunal em momentos futuros.

Por fim, os conflitos nas decisões indicam também uma independência do órgão ju-diciário e dos juízes conselheiros, principalmente em relação às estruturas que apoiaramsua promoção ao Tribunal. É no mínimo estranho que não tenha havido sequer umadiscordância depois de mais de 100 acórdãos já proferidos. Talvez esta questão estejarelacionada com o processo de nomeação dos juízes conselheiros: a despeito do que sedá na maioria dos países em que a democracia está assentada há mais tempo, 3 dos juí-zes conselheiros do Tribunal Constitucional são directamente indicados pelo Presidente.

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60 As decisões podem ser visitadas em http://www.tribunalconstitucional.ao/, no menu “acórdãos”.

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Em democracias mais estabilizadas, mesmo quando indicados pelo Presidente, os juí-zes conselheiros somente são nomeados após sabatina onde o notável saber jurídico e as in-clinações políticas do candidato são apuradas com seriedade pelo Parlamento.

Independentemente das críticas que podem ser apresentadas à estruturação do TribunalConstitucional, o facto é que a institucionalização da democracia deu um passo positivocom a sua criação. Espera-se que os cidadãos angolanos reconheçam a importânciadesse foro e o utilizem incansavelmente de forma a garantir a aplicação dos direitosfundamentais em todo o país.

4.4 CUMPRINDO OBRIGAÇÕES INTERNACIONAIS: A Elaboraçãode relatórios exigidos por Pactos Internacionais ratificados peloEstado Angolano.O Estado angolano ratificou uma série de tratados internacionais sobre direitos

humanos que exigem a elaboração periódica de relatórios. No entanto, tal procedi-mento de produção e envio de relatórios sobre os direitos humanos pelo Estado angolanonão tem sido cumprido. Além da vontade política, faltava também o conhecimento datécnica utilizada para redigir tais textos.

De acordo com o artigo 15.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos,Sociais e Culturais, os Estados parte devem submeter relatórios periódicos ao Ecosoc – Con-selho Económico e Social das Nações Unidas – com respeito às medidas tomadas paraa materialização dos direitos assegurados pelo documento. No entanto, apesar de haverassinado o Pacto em 1992, o Estado angolano nunca havia apresentado um relatório atéo ano de 2008.

Felizmente, foi criada pelo Ministério das Relações Exteriores uma comissão como objectivo de enfrentar as dificuldades técnicas relacionadas com o processo de produçãode relatórios para organismos internacionais de direitos humanos. Como consequência,em 2008 o Estado Angolano apresentou o seu primeiro relatório ao Ecosoc. De acordocom o Ministério da Justiça, a própria ONU deu conta das dificuldades do País emredigir relatórios e propôs uma elaboração faseada. Os resultados são positivos!

Da mesma forma, de acordo com o artigo 62.º da Carta Africana sobre os Direitosdo Homem e dos Povos, cada Estado parte deve enviar à Comissão Africana, a cada doisanos, relatórios concernentes às medidas legislativas e de outra natureza tomadas como objectivo de concretizar os direitos e garantias assegurados na Carta. Angola ratificoua Carta em 1990, mas somente enviou um relatório em 1998, combinando os anos de1992-1998. Esse foi o único relatório enviado à Comissão Africana até à data da elaboraçãodeste relatório.

Note-se que no âmbito da mesma comissão criada pelo Ministério das RelaçõesExteriores, um outro relatório já foi enviado à União Africana em Outubro de 2008.

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O Estado está apenas à espera de ser notificado para defendê-lo diante da ComissãoAfricana dos Direitos Humanos e dos Povos.

Segundo o Ministério da Justiça, já há outro relatório em fase de elaboração: o relatóriosobre direitos civis e políticos, com base nas obrigações de envio periódico de informaçõesassumidas pelo Estado angolano quando da assinatura do Pacto de Direitos Civis ePolíticos das Nações Unidas.

É positivo que o Estado angolano esteja reconhecendo os erros do passado e traba-lhando para que o tempo perdido, o tempo em que Angola era indiferente à imagem inter-nacional de violadora dos direitos humanos, chegue ao fim.

4.5 Criação da Provedoria de Justiça.A Provedoria de Justiça foi institucionalizada em 2005. De acordo com o artigo 142o

da Lei Constitucional, “A Provedoria de Justiça é um órgão público independente que tempor objectivo a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, assegurando-lhes, atravésde meios informais, a justiça e a legalidade da Administração Pública.

Nesse sentido, a instituição recebe reclamações dos cidadãos em relação a acções ouomissões das várias esferas do Poder público. A Provedoria se encarregará de fazer chegaras queixas aos órgãos competentes, dirigindo-lhes recomendações para que as injustiçassejam reparadas e prevenidas. Dentre as instituições que podem ser fiscalizadas pelaProvedoria, encontram-se aquelas “no âmbito dos serviços da administração pública, centrale local, dos institutos públicos, empresas públicas ou de capitais maioritariamente públicos, conces-sionárias de serviços públicos ou de exploração de bens de domínio público”, de acordo como artigo 2o da Lei n.º 4/06, do Estatuto do Provedor de Justiça.

Vale dizer que são ainda competências da Provedoria de Justiça, segundo o artigo 18.ºda Lei n.º 4/06:

(a) divulgar o significado e a importância dos direitos fundamentais e a finalidadeda Provedoria de Justiça de defender e garantir tais direitos;

(b) tutelar os interesses colectivos e difusos quando estão em causa órgãos ou agentesda Administração Pública;

(c) vistoriar as condições de internamento dos reclusos e recomendar a supressãoimediata de práticas desumanas;

(d) instruir processos de averiguação de queixas de actos praticados por agentes daAdministração Pública;

(e) acompanhar o cumprimento das recomendações realizadas.

Nota-se que as possibilidades de actuação da Provedoria da Justiça são bastante limi-tadas, ou seja, tudo que a instituição está autorizada a fazer diante da constatação de vio-

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lações a direitos é emitir recomendações. Não há previsão de qualquer consequência parao órgão que recebeu a recomendação mas não a implementou ou ao menos se pronunciouem relação a ela. Este ano a Assembleia Nacional reelegeu o senhor Paulo Tjipilica paramais uma mandato de 4 anos. A Provedoria também está a estender os seus serviços paraoutras províncias entre as quais as províncias do Huambo e Kunene.

Independentemente disso, ao atribuir a um órgão público a função de defender osdireitos e liberdades dos cidadãos, o Estado dá um importante passo na estabilização da de-mocracia no país. Se a instituição for dotada de independência em relação ao poder políticoe de capacidade para influenciar os outros órgãos do Poder Público para tutela de direitos,os cidadãos ganharão uma grande aliada com a criação da Provedoria de Justiça.

4.6 Projecto de Reforma da Justiça e do DireitoDevido ao passado de guerra civil, houve um longo período em que a produção

legislativa ou a adaptação dos diplomas já existentes não constitua prioridade para aslideranças em Angola. Diante disso, percebeu-se uma gritante necessidade de reformalegislativa com o objectivo de actualizar o ordenamento jurídico do país ao contextodemocrático presente.

Data de 2003, a primeira iniciativa de reforma da justiça em Angola. Ela se deu coma criação de uma comissão pela Presidência da República que era coordenada pelo en-tão chefe da casa civil, Carlos Feijó. Catorze membros integravam o grupo; dentre eles,além do chefe da Casa Civil, estavam também o Vice-Ministro da Justiça, 2 juízes doTribunal Supremo e procuradores.

A comissão tinha como objectivo efectuar um diagnóstico institucional, legislativoe jurídico/sociológico da administração da justiça em Angola, incluindo uma avaliaçãodos recursos humanos e da infra-estrutura material. Para concluir os trabalhos, em Maiode 2004 realizou-se um seminário da reforma da justiça. Participaram dos debates diversosactores sociais, tendo sido publicado um livro com o relatório final do seminário. Dessaforma encerrou-se a primeira fase do projecto.

Em seguida, no ano de 2005, iniciou-se a fase de prognóstico, onde seriam apontadas assoluções para resolução dos problemas. Nesse momento, Manuel Aragão se tornou Ministroda Justiça e também o novo coordenador da comissão. Os trabalhos contaram com apoiotécnico e financeiro do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

Na fase de prognóstico foram elaborados diplomas que já seguiram os trâmites normaisde aprovação, ou seja, o MJ já encaminhou documentos aos órgãos competentes rumoà promulgação.

De acordo com um juiz conselheiro, “Foram preparados muitos diplomas legais, incluídoo novo código penal. O pacote não foi aprovado no passado por conta das eleições, mas esteano irá ser encaminhado”.

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Por outro lado, o trabalho do projecto poderia estar a caminhar com mais celeridadecaso houvesse maior empenho por parte de algumas autoridades políticas e fosse atribuídoum carácter mais técnico e menos político às actividades. Desde as eleições legislativasde Setembro 2008, até pelo menos Março de 2009, os trabalhos ainda não haviam sidoretomados. De acordo com um dos entrevistados:

“Mas havia da parte de quem coordenava falta de vontade política, o Dr. Tjipilika. Podiater sido feito mais, houve pouco empenho das instituições na realização das actividades quelhes cabia. Muitas das pessoas indicadas para trabalhar eram extremamente ocupadas.Éramos obrigados a devolver grande parte dos valores por não os terem usado, o que geravafrustração grande. O resultado do primeiro trabalho não foi muito bom, a avaliação do PNUDdisse que houve pouco empenho. Isso é gritante: há comissão no MJ que tem trabalho adiantado,trabalha com técnicos, não com advogado prestigiado ou com juiz conselheiro do Supremo;portanto, não deixa de se reunir. O despacho da CNE de nomeação tirou logo 3 ou 4 membrosda comissão! Nas eleições, não havia como trabalhar: cadeiras vazias...”

Os dois quadros abaixo demonstram a pertinência dos argumentos do parágrafo anterior.Eles tratam das conclusões do projecto em 2005, que identificou 4 tipos de prazos paraa realização das tarefas destacadas: (a) “acções imediatas”, ou seja, aquelas “integrando,essencialmente, acções exequíveis no quadro actual do sistema, independentemente dequaisquer inovações legislativas”; (b) “acções de curto prazo, aquelas a serem materializadasaté Agosto de 2006; (c) as acções de “médio prazo”, até Agosto de 2006; e as “acções delongo prazo”, aquelas a serem concretizadas “até ao fim da legislatura resultante das eleiçõesde 2006”.

Para este relatório examinou-se apenas as acções de período mais curto, as acçõesimediatas e de curto prazo, de forma a atestar se elas foram de facto materializadas.Segundo informação do Ministério da Justiça, temos os 2 quadros abaixo:

AAccççããoo ddee ccoonnccrreettiizzaaççããoo iimmeeddiiaattaa ((eemm 22000055)) RReeaalliizzaaddaa??

Tomada de posse do Conselho Superior da Magistratura Judicial Sim

Legislação para criar sala de contencioso fiscal e aduaneiro Não

Revisão da legislação do contencioso fiscal e aduaneiro Não

Programa de emergência para melhoria das condições dos tribunais de todo o País Somente em Luanda

Início de informatização do Tribunal Provincial de Luanda Sim

Rotação de Juízes de Direito que se encontram no mesmo tribunal há mais de 5 anos Sim

Criação de sistemas de fiscalização Sim, mas não da forma da actividade judicial e do MP desejada

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Avaliação da filosofia e legislação reguladora do Tribunal de Contas Não

Revisão do sistema de distribuição dos processos Não

Criação de sistema estatístico para os tribunais Não

Estudar possibilidade de legislação Projecto no Conselho de so-bre a violência doméstica Ministros

AAccççããoo ddee ccoonnccrreettiizzaaççããoo aa ccuurrttoo pprraazzoo ((aattéé JJuullhhoo ddee 22000055)) RReeaalliizzaaddaa??

Rever a Lei do Sistema Unificado de Justiça Não *

Revisão da Lei Orgânica dos Magistrados Judiciais Não *

Elaboração da Lei Orgânica dos Magistrados do MP Não

Revisão da Lei Orgânica da PGR Não *

Adaptação do Estatuto da Polícia Judiciária Não

Revisão da Lei da Prisão Preventiva Não *

Revisão da Lei das Revistas, Buscas e Apreensões Não *

Revisão do Estatuto Remuneratório dos Magistrados Não

Revisão da Lei Orgânica das Secretarias Judiciais Não

Elaboração da Lei sobre a regularização jurídica dos imóveis Há comissão a tratar

Elaboração da Lei sobre o Acesso à Justiça Não

Revisão da Lei sobre a Assistência Judiciária Não *

Criação do Instituto de Assistência Judiciária Não

Aprovação da Lei de Alteração de Custas Judiciais Sim *2

Análise e Revisão da Tabela de Honorários de Advogados Não

Elaboração da Lei sobre sistemas alternativos de justiça Não

Elaboração e aprovação da Lei sobre a Mediação e Conciliação Não

Revisão do Decreto de Criação dos Centros de Arbitragem Não

Elaboração de Lei sobre o ensino profissionalizante Não (INEJ já funciona, do sistema de Justiça (INEJ – Instituto Nacional no entanto)de Estudos Judiciários)

Revisão da Lei sobre Registos e Notariado Não *3

Revisão da Tabela de Emolumentos Não

Revisão do anteprojecto do Código Penal Projecto no Conselho de Ministros

Revisão do anteprojecto de Lei das Sociedades de Advogados Não *

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É facto que ambas as categorias de acções relacionadas com o Projecto Reformada Justiça – acções imediatas e de curto prazo – não foram minimamente realizadas,embora o prazo já se tenha esgotado em de Julho de 2005. É necessário um empenhoorientado e incansável para que o tempo perdido seja recuperado e todo o trabalho jáproduzido pelas comissões de reforma da justiça não seja desperdiçados.

Além disso, de forma a legitimar os trabalhos da comissão, organizações da sociedade civildeveriam ser convidadas a trabalhar em conjunto, de forma a que não apenas elementosindicados pelo poder político central influenciem a estruturação do sistema de justiça angolano.

4.7 O Gabinete de Direitos Humanos do Ministério da JustiçaEm 2006, foi criado o Gabinete de Direitos Humanos do Ministério da Justiça.

Conforme um dos entrevistados afirmou: “Até certo ponto, devido à guerra os direitoshumanos não se observavam. O governo teve que assumir a questão dos direitos humanos,mesmo com poucas condições, como número reduzido de técnicos”.

Apesar das restrições materiais, o gabinete tem conseguido realizar trabalhos interessantesna arena dos direitos humanos. Em algumas províncias, quando há denúncias de violaçõesdos direitos humanos, o caso é analisado, há preocupação em constituir advogado paraproporcionar o patrocínio judiciário. Há articulação com a OAA de forma que sepossibilite um acompanhamento jurídico da situação.

Nos casos em que a questão apresentada ao gabinete trata de conflitos com entespúblicos, o gabinete procura o sector jurídico das instituições para tentar resolver acontenda. Nos casos em que entes públicos estão envolvidos, segundo um entrevis-tado:“Quando há violação grave de direitos humanos, por exemplo, ofensas corporais por partedos agentes, retirada de bens de ambulantes, e o governo não tem iniciativa contra, é o Estadoque viola. O Estado é o maior violador de direitos humanos. Somos informados pelas ONGs.Muitas vezes pedimos contas ao Minint, porque as queixas são normalmente da polícia nacio-nal. Também têm surgido queixas do sector de fiscalização a nível provincial de Luanda.Formulam-se ‘pedidos de esclarecimento’ em relação às instituições. Em muitas das questões,no entanto, ficamos sem esclarecimento lógico. Damos um tempo e mandamos alguém parater contacto directo com a instituição violadora. Infelizmente há casos em que o tempo já é tãogrande que acaba ficando assim. Mas muitos agentes foram punidos, da polícia, por terem vio-lado direitos em público. Temos tido resposta nesse aspecto”.

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* O asterisco indica que, apesar da acção não ter sido realizada, a sua concretização está prevista no pro-grama de elaboração legislativa do ano de 2009 do MJ.*2 Um dos entrevistados revelou-nos que, ainda que a Lei de Alteração de Custas Judiciais tenha sido apro-vada pela Assembleia Nacional, ela o foi de forma contrastante com os objectivos do Projecto de Reformada Justiça, já que as custas foram aumentadas, não diminuídas. Segundo o entrevistado, essa foi uma saídapara desestimular que os cidadãos recorressem aos tribunais, já que os tribunais não estavam dando contada demanda da população.

*3 O Primeiro Encontro Nacional sobre Registos e Notariado, no entanto, já ocorreu, em Junho de 2005,com a cooperação do PNUD.

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As violações levadas ao Gabinete de Direitos Humanos que normalmente encontrammais resposta as relacionadas com a venda ambulante e que têm bens aprendidos ecidadãos corporalmente molestados. Por outro lado, mesmo que frequentes, os casos deviolações do direito ao trabalho violado, tanto pelo Estado quanto por particulares, têmsido de difícil desfecho: enviam-se ofícios, elaboram-se memorandos, mas, no fim, hápouco desenvolvimento da situação.

Além disso, o gabinete tem estado limitado a realizar seminários, palestras e outrasacções formativas. Isso pois, segundo um entrevistado, “nossos cidadãos ainda não têm culturajurídica que permitam que eles reivindiquem seus direitos nesta ou naquela área”.

Neste momento, um dos principais projectos do gabinete é a formação de activistase conselheiros de direitos humanos. A função principal dos conselheiros será orientar oscidadãos e encaminhá-los às autoridades públicas. Um dos principais objectivos éatingir sobas e autoridades tradicionais, pois, nas comunas e municípios sob a jurisdiçãoinformal destes elementos, há lacuna de informação sobre a questão dos direitos humanos.De acordo com um entrevistado:

“Nas comunas e municípios muitas informações chegam distorcidas. Se não tiverem forma-ção, a tendência é fazer justiça com as próprias mãos. As autoridades tradicionais não têmo costume de recorrer à lei, mas à tradição, que, até um certo ponto, se contradiz com a lei.Assim, são ainda mais direitos violados do cidadão que já tem seus direitos violados! Porque o sobae o regedor não têm conhecimento da matéria. As autoridades tradicionais, quer queiramos, quernão, estão à frente de determinados grupos de cidadãos. Para que eles possam entender precisamter formação. Mesmo em seminários eles trazem-nos questões locais que muitas vezes são discuti-das no momento. Demos conta de que eles traziam questões em que o próprio formador teveque buscar livros e fazer análises de determinados casos. Há questões em que notamos que hárelação entre a solução que o direito e a tradição vão dar, mas em outras é uma violação

Lamenta-se que o gabinete tenha restritas condições de trabalho e uma subordinaçãoorçamental insuficiente para o planeamento de actividades de médio e longo prazo, umavez que cada necessidade financeira precisa ser pleiteada junto da Ministra da Justiça, ouseja, o gabinete não possui orçamento próprio.

Deve-se dizer, ainda, que a presença do Gabinete de Direitos Humanos nas provínciasé incipiente. É garantida uma representação do gabinete nas províncias por meio dasDelegações Provinciais de Justiça, nos chamados Comités de Direitos Humanos. Oscomités foram criados pelo Ministério da Justiça em cada província, com o apoio doEscritório de Direitos Humanos das Nações Unidas em Angola. Nesta conformidade, oscomités são uma emanação do Gabinete de Direitos Humanos, Serviços de ApoioInstrumental do Ministério, e dependem metodologicamente deste. No entanto, alémde apenas parte das províncias contar com um Comité em sua região, em sua maior partecontinuam praticamente inoperantes e trabalham com muita deficiência.

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Os comités são constituídos pelos representantes da procuradoria provincial, tribunais,comandos provinciais de polícia, organizações da sociedade civil, pessoas singulares,autoridades tradicionais, igrejas e delegados provinciais de alguns ministérios. Sendocoordenados, por inerência de funções, pelo delegado da justiça de cada província, econsiderando o funcionamento centralizado e concentrado da administração do Estado,as acções dos comités não atraem a participação dos cidadãos.

Além do mais, a natureza deste Comité não está em sintonia com o disposto nos Prin-cípios de Paris em relação à natureza das instituições nacionais de direitos humanos (Reso-lução 1992154 de 3.3.92 da Comissão de Direitos Humanos da ONU), uma vez que:

(a) Os comités não têm fundos próprios e maior parte deles têm dificuldade deinstalações. Muitos funcionam deficientemente na estrutura das delegações doMinistério da Justiça. Além do mais, na generalidade, os comités limitam-se areceber casos e a acompanhar delegações de organizações internacionais ounacionais que se deslocam à respectiva província para tratar de questões ligadasaos direitos humanos.

(b) Compete ao Gabinete de Direitos Humanos “apoiar o Ministério da Justiça naformulação e concretização de políticas relativas à preservação dos direitoshumanos e acompanhar a execução das medidas delas decorrentes”, segundoo artigo 17.o, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei 02/06, o Estatuto Orgânico doMinistério da Justiça. No entanto, muitos dos casos que alcançam os Comitésnão são apropriadamente investigados.

Independentemente de tais lástimas, a criação do Gabinete de Direitos Humanosdo Ministério da Justiça em si já indica uma vontade política em relação a uma maioratenção e materialização dos direitos fundamentais. É necessário que o gabinete sejaapetrechado adequadamente, dotado dos recursos financeiros e humanos necessários eque adquira a legitimidade suficiente dos poderes centrais para realizar seu trabalho dedefesa dos direitos humanos em Angola.

4.8 Aprovação de uma Nova Lei PenitenciáriaEm Agosto de 2008, foi promulgada a Lei Penitenciária, a Lei no 8/08. O preâmbulo

do documento já esclarece os motivos pelos quais a sua promulgação foi celebrada pelasociedade civil:

“O Sistema Prisional é de grande importância social, indispensável à organização política,sócio-económica universal, porque executor das medidas de liberdade aplicadas pelas entidadeslegalmente competentes, visando a reeducação e reintegração dos reclusos na sociedade.

A necessidade de introdução de doutrinas penitenciárias universais e modernas, bemcomo os princípios contidos nos instrumentos jurídicos internacionais, ratificados pelo País,nomeadamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações

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Unidas (ONU) de 1948, as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos da ONU de1955 e o Pacto dos Direitos Civis e Políticos da ONU de 1977”.

Tal preâmbulo indica que começa a haver uma preocupação maior tanto com a res-socialização do recluso, quanto com o respeito dos seus direitos fundamentais. Talorientação está expressa no artigo 3o da Lei, que trata dos princípios que guiarão aimplementação da pena, e também no artigo 6o, que traduz os direitos fundamentaisdo recluso. Dessa forma, a mentalidade de que o principal objectivo da pena privativade liberdade é a punição do preso começa a ceder espaço para a noção de que o reclusoé um cidadão titular de direitos e deveres que deve ser reeducado pelo sistema prisional.

Lamentamos que documentos mais actualizados e afinados com o aperfeiçoamentodo sistema penitenciário no tocante ao tratamento de presos, como “ As Directrizese Medidas para a Proibição e Prevenção da Tortura e Tratamentos ou Punições Cruéis,Desumanos ou Degradantes na África”, conhecidas como as Directrizes de Robben Island,aprovada pela Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos em 2002, nãotenham sido considerados na elaboração da Lei.

De qualquer forma, a Lei Penitenciária é um passo significativo do Estado com vistaao tratamento digno dos cidadãos mantidos sob sua custódia pelo sistema prisional. Es-pera-se que ela seja amplamente divulgada entre os órgãos de administração da justiça,especialmente aqueles que lidam directamente com os detidos, de forma que a letra eespírito da lei se materialize na prática quotidiana dos agentes do Estado.Também é dignode realce a aprovação do Decreto n.º 64/04 de 1 de Outubro que regula o trabalhoprisional.

4.9 A construção de novas cadeias e formação de profissionaisSegundo informação fornecida pelos Serviços Prisionais, desde 2006, construíram-se

7 estabelecimentos prisionais de raiz e ampliou-se o pavilhão em 1 estabelecimento, deacordo com o quadro abaixo:

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CONSTRUÇÃO DE CADEIAS DE RAIZ DESDE 2006Localidade Província Estabelecimento prisional (EP) Capacidade de presos

ou pavilhão (P)?

Yabi Cabinda EP 600

Kacanda Lunda Norte EP (ver foto em anexo) 500

Caxito Bengo EP 600

Kakila Luanda EP (em construção) 600

Viana (feminino) Luanda EP 450

Mbanga Congo Zaire EP 250

Soyo Zaire EP 250

Damba Malange P 600

Viana Luanda P 600

TTOOTTAALL 44445500

Fonte: Departamento de Reeducação Penal dos Serviços Prisionais, Junho de 2009.Cf também a Revista de Informação Geral doMinistério do Interior, Out-Nov, Dez, 2008.

Os Serviços Prisionais, segundo informações do seu Departamento de ReeducaçãoPenal, também têm procurado formar os agentes prisionais a partir da Escola NacionalTécnica Prisional, cujo currículo traz as disciplinas Noções de Direito e Educação Morale Cívica. Além disso, periodicamente os Serviços Prisionais recorrem a parcerias comorganizações da sociedade civil para a formação dos seus quadros em matérias de direitoshumanos, nomeadamente no que respeita a regras mínimas de tratamento dos presos.

44..1100 Também é digno de realce o facto de, ao abrigo do Acordo Celebrado entrea AJPD e o Comando Geral da Polícia Nacional, terem sido ministrados seminários emmatérias de direitos humanos e acção policial, Lei da Prisão Preventiva, e cidadania, hámais de 2000 polícias incluindo comandantes das esquadras, chefes de divisões, instrutorese investigadores.

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5. Conclusões e Recomendações

As pesquisas efectuadas, as audiências realizadas e as informações obtidas duranteo processo de elaboração deste relatório levaram-nos a algumas conclusões a respeito dascondições dos direitos humanos e do Sistema Penal em Angola e a formular sugestões nosentido de que as dificuldades e obstáculos sejam ultrapassados da melhor forma possível,considerando o bem-estar, o desenvolvimento sustentável e a estabilização da democraciae da paz para toda a população angolana.

O destinatário primário destas conclusões e recomendações é o Estado, visto que lhecompete o desenvolvimento institucional e a revisão, criação e implementação de políticaspúblicas. No entanto, talvez a destinatária que exercerá o protagonismo na renovaçãoinstitucional da justiça criminal em Angola seja a sociedade civil. Sabemos que a pressãopopular, a mobilização da sociedade, a exigência dos cidadãos serão as principais responsáveispara que as sugestões aqui dadas não morram no papel.

Felizmente, há uma série de órgãos públicos que já reconhecem as vantagens daparceria com a sociedade civil. Espera-se que estes órgãos exerçam a liderança em estudaras informações aqui fornecidas, reflectir sobre as conclusões construídas e avaliara implementação das recomendações apresentadas

5.1 CONCLUSÕESApós a análise exaustiva dos dados, análises e impressões com que a equipe da AJPD

teve contacto durante a elaboração deste documento, as conclusões abaixo. No entanto,precisam ser feitas duas observações:

(a) O primeiro passo para que a Justiça criminal angolana visualize uma luz deesperança perante a crise que enfrenta é o reconhecimento das violações aosdireitos, liberdades e garantias fundamentais por parte do Estado. Permanecernegando as violações citadas neste relatório e tantas outras, é afirmar que oEstado angolano vive criando e vivendo com a sua versão dos factos, ao invésde compartilhar da realidade vivida diariamente por milhões de cidadãos. Talpostura apenas dificulta que o problema seja atacado.

É preciso que o Estado assuma a ocorrência das práticas nocivas. É preciso que se ge-rem dados, estatísticas, estudos a respeito de quais são as tendências dos crimes, em quaisáreas eles incidem mais, quais os sectores da população que costumam ser alvo dasviolações, quais agentes do Estado são os protagonistas no desrespeito dos direitoshumanos. Somente após esses passos será possível enfrentar as violações de direitoshumanos em Angola de forma madura e eficaz.

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(b) A alta incidência de criminalidade está intimamente relacionada com a situaçãode miséria e desespero de 40% da população angolana, que vive abaixo dalinha de pobreza, e outros 28% que vive em situação ainda pior, de extremapobreza. 6611 Enfrentar o problema da justiça penal em Angola sem relacioná-lacom a extrema distribuição desigual da renda do País é fazê-lo de forma parcial,ineficaz e apenas paliativa. Somente no momento em que a riqueza gerada apartir da abundância de recursos naturais do País for equitativamente distribuídapela população, principalmente através do fornecimento de serviços públicosde alta qualidade pelo Estado, se poderá dizer que a questão da justiça criminalestará sendo enfrentada com a seriedade que a problemática merece e requer.Enquanto o sistema de distribuição de renda do país, que privilegia as empresasestrangeiras e poucas famílias nacionais ligadas ao centro do poder político, nãofor profundamente revisto e corrigido haverá poucas esperanças de melhoria dasituação da justiça criminal no País.

FFEEIITTAASS EESSTTAASS CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS IINNIICCIIAAIISS,, SSEEGGUUEEMM AASS CCOONNCCLLUUSSÕÕEESSDDEESSTTEE RREELLAATTÓÓRRIIOO::

• Que a mentalidade confidencialista e de excessiva hierarquização ainda está presentede forma perniciosa nos órgãos do Estado que lidam com a administração da justiça,constituindo uma das marcas herdadas de décadas de conflitos armado em Angola.

• Que ainda que um comportamento historicamente plasmado, como é o caso damentalidade confidencialista e de excessiva hierarquização dos agentes do Estado,não possa ser ultrapassada da noite para o dia, o Estado é responsável pelasconsequências daninhas desses comportamentos se não envidar os esforços necessáriose permanentes para desestimular estas práticas.

• Que a corrupção, principalmente através do tráfico de influências e do suborno, aindaé prática nos sectores de administração da justiça, em suas variadas instâncias ediferentes escalões.

• Que as condições de trabalho nas províncias – nomeadamente o passado histórico,a disponibilidade de funcionários qualificados e a distribuição de recursos materiais– são diferentes das de Luanda. Dessa forma, políticas públicas específicas precisamser delineadas para realidades tão diferentes, de forma que os problemas específicosde cada localidade sejam enfrentados adequadamente.

• Que o facto do Estado ter encerrado o escritório do Alto Comissariado das NaçõesUnidas para os Direitos Humanos em Maio de 2008, demonstra uma resistênciaà garantia, protecção e efectivação desses direitos no País.

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61 Dados do “Programa Mundial de Alimentação”, agência das Nações Unidas. Disponível em:http://www.wfp.org/countries/angola. Cf. também o recente Relatório de Desenvolvimento Humano de 2009,PNUD, disponível na internet

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• Que a maior parte dos funcionários da justiça fora de Luanda não estão familiarizadoscom a legislação nacional, principalmente porque ela não é disponibilizada pelosórgãos centrais.

• Que são raros os magistrados judiciais e do Ministério Público que conhecem os siste-mas internacionais de protecção aos direitos humanos, ou mesmo os documentosque garantem esses direitos, seja a nível da ONU, seja a nível da União Africana.

• Que há excessiva burocratização nas instituições públicas, o que dificulta atransparência e a fiscalização das actividades do Estado e a circulação da informaçãode natureza pública.

• Que as DPICs contam com graves deficiências de recursos materiais, financeirose humanos que permitam um trabalho de qualidade e celeridade na investigaçãodos crimes. O mesmo problema afecta alguns Tribunais Provinciais e as algumasProcuradorias Provinciais.

• Que as condições de comunicação dos órgãos de administração da justiça são muitodébeis. Poucos dispõem de aparelhos de fax e raros de meios de acesso à internet.Raríssimos estabelecimentos possuem telefones fixos, de modo que os funcionáriosutilizam com muita frequência os seus telemóveis pessoais para o trabalho.

• Que as condições de transporte são insuficientes para que os processos judiciais sedêem de forma célere e dentro da legalidade. Nas províncias, devido à escassez demagistrados, há dificuldades na legalização de prisões e realização de audiências.Dessa forma, os prazos dos códigos penal e de processo penal e previstos na Lei dePrisão Preventiva são frequentemente desrespeitados.

• Que as condições urbanas caóticas em Luanda influenciam a morosidade na justiça,com frequência as audiências precisam ser postergadas porque os presos e testemunhasnão conseguem chegar a tempo aos tribunais e os réus não podem ser localizadosdevido a identificação incorrecta dos endereços.

• Que inexiste um tratamento psiquiátrico com a mínima qualidade para os presosque necessitam desse suporte.

• Que muitos presos são submetidos a torturas e tratamentos desumanos, cruéis, edegradantes, incluindo agressões físicas e morais e abusos sexuais.

• Que muitos agentes de Estado que trabalham na Polícia Nacional continuam a acreditarque o principal objectivo da pena de prisão é a punição de criminosos e não a suareabilitação e que a polícia deve ser essencialmente um órgão de repressão.

• Que a dependência e submissão administrativa dos tribunais ao MJ representa umaviolação ao princípio constitucional da separação de poderes.

• Que o sistema de patrocínio judiciário é ineficaz, principalmente porque: aremuneração atribuída aos advogados é mínima ou nem sequer é atribuída.

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Acresce que há pouquíssimos advogados nas províncias e os defensores oficiososdestacados para o trabalho não possuem as qualificações mínimas indispensáveise ainda que grande parte da população não conhece ou não sabe activar o sistemade assistência judiciária.

• As execuções sumárias e torturas continuam a ser práticas frequentes por parte deum número de agentes da Polícia Nacional, muitos dos quais permanecem impunes.

• Que apesar da sua redução, continuam a existir casos de excesso de prisão preventiva;

• Que existem ilegalidades e arbitrariedades abundantes na administração dajustiça penal em Cabinda.

• Que apesar de estar legislado, o instituto do habeas corpus não é aplicado emAngola por responsabilidade dos juízes.

5.2 RecomendaçõesDos estudos e reflexões realizados pela equipe da AJPD resultaram nas seguintes

recomendações ao Estado angolano:

5.2.1 Ao Poder Executivo- Que os cidadãos que precisem de patrocínio judiciário, devido à ineficiência doEstado, sejam estimulados a procurar as organizações da sociedade civil que prestamassistência jurídica através de contratação de advogados de forma que se garantao direito de defesa dos cidadãos e o acesso à justiça.

- Que se crie um sistema de advocacia de qualidade, na categoria de funcionáriospúblicos, com a competência de lidarem com a assistência judiciária, semelhanteao sistema de Defensoria Pública existente em alguns países, substituindo-se o actualsistema ineficaz de patrocínio judiciário.

- Que sejam fornecidas condições materiais adequadas a um trabalho de qualidadeaos magistrados, polícias, investigadores, instrutores, escrivães, oficiais de diligênciase demais agentes do Estado que lidam com a justiça criminal, melhores condiçõessalariais.

- Que sejam ministrados formações e seminários em direitos humanos na perspectivadas convenções internacionais aos agentes do Estado que lidam com o direitopenal e que os mesmos sejam documentos internacionais em especial aquelesratificados por Angola, sejam ensinados e distribuídos aos funcionários do Estado.

- Que os polícias e demais funcionários do Estado da área da justiça penal tenham fácile permanente acesso a todas as leis, regulamentos, decretos e demais normasrelacionadas com o tema, sejam de origem nacional, sejam de origem internacional.

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- Que os assistentes que trabalham nos tribunais recebam formação técnica econdições de trabalho adequadas.

- Reconhecendo-se os vícios do Estado relacionados com a inexistente ou limitadadivulgação de informações, que as instituições públicas se pautem pelo princípioda transparência. Que dados, relatórios, actas e qualquer outra sorte de fonte deinformações públicas sejam divulgados e publicados, inclusive através de meioselectrónicos.

- Que a prática do policiamento comunitário seja incentivada, ou seja, que asestratégias de políticas públicas envolvendo a polícia se direccionem a umaaproximação entre cidadão e policia que incentive o diálogo e a resolução dosproblemas que aflijam aquela comunidade específica, de forma a mitigar aimagem do outro como “inimigo”.

- Que seja criada uma Comissão Nacional de Direitos Humanos, independente,que de entre outras competências a responsabilidade de promover, divulgar,criar politicas de consolidação e defesa dos direitos, liberdades e garantias doscidadãos;

- Que a legalidade seja instaurada urgentemente na província de Cabinda, reite-rando-se a supremacia da lei em relação a qualquer vontade particular, especial-mente no que toca à obediência dos dispositivos legais referentes à justiça criminale aos procedimentos judiciais.

- Que haja estrito cumprimento da lei, ou seja, investigação e, se for o caso,punição, em relação aos agentes policiais envolvidos em crimes de execuçãosumária e/ou de tortura.

- Que seja criada uma comissão no âmbito da Polícia Nacional para investigar oscasos de execução sumária e tortura cometidos por agentes da Polícia Nacionale aplicação das sanções adequadas, afastando-se o fantasma da impunidade, deforma a desincentivar a prática de tais crimes.

- Considerando a importância e aprimoramento dos guardas e demais funcionáriosprisionais, quer no sector do controlo penal, quer no sector da reeducação,propomos que a Direcção Nacional elabore e adopte um programa de formaçãoe actualização contínua, a nível nacional, para os referidos agentes, nas áreas dosdireitos humanos, educação moral e cívica e outras que julguem relevantes.

5.2.2. Ao Poder Judiciário e seus Agentes: Tribunais, ProcuradoriaGeral da República e a Ordem dos Advogados - Que a competência do Tribunal Constitucional (alínea m) do artigo 16.º) paraapreciar os recursos de constitucionalidade de decisões judiciais e demais actos do

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Estado que violem direitos e liberdades fundamentais seja divulgada nos variadosmeios de comunicação de forma que os cidadãos tomem consciência de que podecontar com essa ferramenta jurídica.

- Que o Sindicato de Magistrados Judiciais seja revitalizado, mais dinâmico eactivo reforçando-se a sua independência, de forma a que os fundamentais interessesda classe dos juízes sejam defendidos.

- Que o Conselho Superior da Magistratura Judicial seja capaz de divulgar todosos anos o número de processos remetidos aos tribunais no país e número deprocesso julgados e não julgados em cada tribunal e secções.

- Que seja incentivado e estimulado a constituição de associações dos funcionáriosadministrativos dos tribunais tais como secretários judiciais, escrivães de direitoe seus ajudantes; e oficiais de diligências com vista a defesa dos seus interessesincluindo a criação de melhores condições de trabalho e salariais.

- Que haja clareza e transparência em relação à selecção e promoção de magistrados,ou seja, que as regras de realização de concursos públicos e os critérios de promoçãoe acesso às formações de actualização de conhecimentos sejam claramente regu-lamentados e que os concursos e as promoções sejam conduzidos por instituiçõesindependentes através de procedimentos tornados públicos.

- Que o Tribunal Supremo se paute pela transparência de suas decisões e procedimentose que os acórdãos sejam publicados através de livros e da internet, seguindo-se ospassos do Tribunal Constitucional.

- Que os órgãos de administração da justiça envidem sérios esforços para que seobservem sem excepção as disposições constitucionais que obrigam a publicidadedas decisões dos tribunais e que permitem a presença dos cidadãos em audiênciascujos processos não sejam sujeitos a segredo de justiça.

- Que as instituições do Estado relacionadas com a justiça criminal angolanafirmem parcerias substanciais em maior número com organizações da sociedadecivil, as quais, por trabalharem de forma próxima à população, estão em condiçõesde apontar medidas eficazes e eficientes quando se trata do aperfeiçoamento dajustiça criminal.

- Que os magistrados judiciais e do MP tenham fácil e permanente acesso a todasas leis, regulamentos, decretos e demais normas jurídicas em vigor sejam deorigem nacional, sejam de origem internacional.

- Que a Procuradoria Geral da República, em respeito à Constituição, ao Estado deDireito e à separação de poderes deva pugnar e contribuir para a aprovação urgentede uma nova lei da Procuradoria que deverá ter atenção o seguinte: clarificar acompetência para a aplicação ou não das medidas de coacção, o caso da prisão

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preventiva, e definir com precisão que há apenas dependência formal desta entidadeem relação ao Presidente da República, que o nomeia, e não havendo dependênciade qualquer outra espécie em relação ao executivo.

- Que a ProcuradoriaGeral da República adopte acções com vista a criação demelhores condições materiais de trabalho para os procuradores destacados nosmunicípios,

-Que a Ordem dos Advogados, em articulação com as magistraturas e com oGoverno, promova e impulsione com maior dinamismo a elaboração de uma novaLei do acesso à Justiça patrocínio judicial; e do direito a habeas corpus.

- Que as Resoluções n.º 27/06 de 14 de Agosto, que ratifica a Convenção da UniãoAfricana sobre Prevenção e o Combate à Corrupção; n.º 20/06 de 23 de Junho,que ratifica a adesão de Angola a Convenção das Nações Unidas Contra aCorrupção, seja observadas, promovidas e aplicadas por todos os magistrados,quer os do Ministério Público quer os Judiciais.

5.2.3 Ao Poder Legislativo: Assembleia Nacional. - Que haja redefinição das metas e do quadro de integrantes da Comissão daReforma da Justiça para que os objectivos ainda não alcançados o sejam com aurgência que o tema exige.

- Que a Lei n.º 18/88, sobre o sistema unificado de justiça, seja reformada urgentementeno sentido de garantir a independência administrativa e financeira aos tribunais,em respeito ao princípio da separação de poderes.

- Os deputados, nomeadamente os da 9.ª e 6.ª Comissões, não se limitem a visitaros estabelecimentos prisionais e fazerem meros pronunciamentos, é preciso quechamem à responsabilidade política as entidades responsáveis e, quando neces-sário constituir comissões de inquérito parlamentar competentes;

- Que os Deputados no quadro das competências constitucionais visitem ostribunais, as esquadras, as DPICs para constatarem, in loco, as condições e osmétodos de trabalho, que dizem respeito às responsabilidades do executivo.

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ANEXOS

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Fotos sobre o Estado de um dos Tribunais de Angola

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Fotos que ilustram casos de torturas e violação à integridade física dos cidadãos por agentes da Polícia Nacional

Caso da família torturada Caso Domingo Maurício

Caso Domingos Martins Caso Domingos Martins

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Caso Domingos Martins

Caso da família torturada

Caso Domingos Martins

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Caso Domingos Martins

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Fotos da Construção da Cadeia da Lunda Norte (quando) estava em obras. 26/10/2007

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Relatório Sobre os Direitos Humanos e a Administração da Justiça Penal em Angola 2006 - 2009

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