REMINISCÊNCIAS ÁRABES NA DOÇARIA PORTUGUESA · PDF fileque hoje constituem...

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    REMINISCNCIAS RABES NADOARIA PORTUGUESA

    as alcomonias

    porMaria da Conceio Vilhena*

    1 - Falar de alcomonias penetrar no mundo das nossas origens,recordando culturas que se cruzaram com a nossa; falar de alcomonias informar o resto do pas de uma tradio dele quase desconhecida, que semanteve escondida num lugarzinho do litoral alentejano. Reminiscnciasde uma prtica doceira que a conseguiu no s conservar a sua especifi-cidade, como manter ainda hoje uma surpreendente vitalidade.

    Um toque especial de sabor mourisco, sem requintes de exibicio-nismos, s marcas de antiguidade. Sabores da tradio, de origem caseira,de confeco limitada, no tempo e no espao: sazonal e regional. Um ele-mento histrico e cultural que encerra segredos da sabedoria femininarabe e alentejana, a no deixar morrer.

    2 - Fala-se frequentemente das tradies da doaria portuguesa,mergulhando as suas razes na gastronomia conventual. So os papos deanjo, o toucinho e queijinhos do cu, suspiros, barrigas e maminhas de frei-ra, pitos de Santa Luzia, pastis de Santa Clara, talhadas de Santa Teresa...

    Espcimes que continham em si pequenos segredos transportadosde gerao em gerao, de convento em convento, atravs dos sculos; eque hoje constituem um aprecivel patrimnio da cozinha portuguesa.

    * Departamento de Lnguas e Literaturas Modernas, Universidade dos Aores.

    ARQUIPLAGO HISTRIA, 2 srie, IV - N. 2 (2000) 625-634

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    Arte requintada, de reis, nobreza e prelados; arte dos ovos, acare especiarias, com os seus sabores especiais e o seu custo elevado.

    Todavia, a doaria uma arte tpica e varivel de regio para regio,cujas diferenas so impostas pela histria e pela geografia. a invasoestrangeira, e o convvio social, levando ao cruzamento de culturas; mas tambm a diversidade de produtos naturais, permitindo diferentes expe-rincias e combinaes, que conduzem descoberta de novas receitas.

    3 - No mundo da cultura, a cozinha encontra hoje um lugar de rele-vo, no s pelas suas conotaes sociais, mas tambm por nelas se man-terem traos peculiares identificadores de grupos; alm disso, com a cozi-nha se ligam as novas tcnicas, as cincias, a superstio, a medicina e,sobretudo, a pesquisa relativa s tradies.

    Foi precisamente neste domnio que as alcomonias despertaram anossa curiosidade. Em primeiro lugar porque o nome nos remete imedia-tamente para a histria: as palavras comeadas por al-, de origem rabe,falam-nos da presena destes povos em terras da Pennsula Ibrica, influ-ncias da sua cultura, reminiscncias chegadas at aos nossos dias...

    E demais conhecemos as alcomonias desde a nossa infncia, comoalgo de raro e nico, vendidas apenas uma vez por ano e apenas num lugar,onde s a feira anual atraa as gentes dos arredores: no Baixo Alentejo, pr-ximo de Santiago do Cacm, mais precisamente na aldeia de Santo Andr.

    Trata-se de um doce de recomendvel memria, alheio a salvas deprata e luxos exuberantes. Era preparado pelas mulheres da aldeia, na altu-ra da feira; e ainda estou a v-las sentadas alinhadas, de um e de outro ladoda rua que descia a partir da igreja. Gente simples, do campo, analfabetafrequentemente, mas que se impunha pela sua correco e asseio. Lenoflorido na cabea, avental claro com folhos e rendas; e, sobre os joelhos,tabuleiros, aafates, forrados de panos branquinhos ou naperons de papelde seda (branco, rosa, azul claro), artisticamente recortados, com abertos,a imitar rendas de variados feitios. Guarnecidos por vistosas franjas depapel frisado, neles se dispunham cuidadosamente esses losangos doces,ao lado de rebuados da mesma massa, envolvidos em igual papel de seda.Ao lado de cada mulher, uma cestinha vermelha, com duas asas, onde seencontrava o grosso da mercadoria, para o preenchimento das vagas nostabuleiros:

    MARIA DA CONCEIO VILHENA

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    V l fregus, venha s alcomonias, olhe que so boas e baratas.Era uma indstria caseira que fazia a delcia dos forasteiros; que continua

    a ser hoje confeccionada e vendida na feira de Santo Andr, a 30 de Novembro,segundo a tradio, tendo como nica modernizao o facto de a sua venda serfeita, actualmente, tambm noutras datas e j em pastelarias da redondeza.

    4 - Santo Andr uma pequena aldeia do Concelho de Santiago doCacm, distrito de Setbal e diocese de Beja. Fica situada a uns escassos qui-lmetros do Atlntico, bem prxima da lagoa do mesmo nome, e domina aextensa praia que vai de Tria a Sines. Existe hoje, na sua vizinhana, a VilaNova de Santo Andr, que, como o prprio nome indica , uma vila fundadarecentemente e com rapidez, haver duas a trs dezenas de anos, para a se alo-jarem as pessoas necessrias construo do complexo industrial de Sines.

    Esta moderna povoao no tem qualquer semelhana com a pequenae antiga aldeia de Santo Andr, de casinhas baixas, de telhado vermelho eparedes brancas, com barras azuis. porta, um canteiro com flores, frequen-temente perfumadas pela presena de plantas odorferas: alecrim, hortel,orgos, cidreira, poejos, funcho, mentrastos, estevas... Ao redor, o montadoe o pinhal, com os seus enormes pinheiros mansos, carregados de pinhas, deonde todos os anos, pela aco do calor da fogueira, se tiram os pinhes.

    5 - Pesquisando em dicionrios, encontrmos esta palavra registadacom algumas variantes: alm da forma alcomonia, figuram alquemonia,alcamonia, alcamuni, alcomenia, alcominia e acamonia, todas elas comigual contedo semntico.

    O Vocabulrio de Bluteau, de 1721 (suplemento), regista a formaalcomonia e a sua variante acamonia, como vocbulos utilizados noMinho, com significado de doaria preparada com mel. Somos assimlevados a crer que as alcomonias tero sido, em tempos recuados, um doceque no se confinava apenas s regies do Alentejo.

    Antnio de Morais Silva (1756-1824) na edio do seu dicionriode 1818, diz ser a alcomonia uma massa feita de melao com farinha egengibre ou outra especiaria; e informa que, no Brasil, essa massa feitacom mandioca.

    6 - Segundo Corominas, o vocbulo alcomonia j se encontra regis-tado em documentos do sc. XV, para designar um bolo ou doce romboidal,

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    composto por linhaa, cominho ou gergelim e mel, de origem judaco-espa-nhol-marroquina. Vem do rabe Kammunya, com o significado de parecidocom o cominho, o qual em rabe se dizia Kammn, termo derivado do grego.

    A silaba al- , obviamente, o artigo rabe, que os povos daPennsula consideravam como fazendo parte do substantivo, e que seencontra nas vrias centenas de palavras de origem rabe, tal como almo-fada, alface, alvar, alcatifa, alcatro, almude, alccer..

    Temos, pois, a seguinte evoluo:al + Kammunya > alcominia, alcamonia, alcomeniaNo primeiro documento do sc. XV, a forma assinalada alcomi-

    nia; mas, no sculo seguinte, j se encontram outras formas.O cominho, de que deriva a palavra alcomonia, uma planta de cor

    parda, umbelfera, cujos gros, aromticos e de sabor acre, sao utilizadosna medicina e na cozinha. Pelas suas inflorescncias, em forma de umbe-la, e pelo seu odor, o cominho assemelha-se s plantas do aniz e do fun-cho. originria e cultivada no Mediterrneo Oriental.

    7 - Passemos agora em revista os mais antigos livros de cozinhaportugueses, a fim de verificarmos em que medida est representada adoaria rabe.

    No Livro de Cozinha de D.Maria, de meados do sc. XVI, encontramosas almojvenas e as alfloas. Os cominhos entram apenas na receita da desfei-ta da galinha, juntamente com pimenta, cravo e aafro; e, por cima, canela.

    Mestre Domingos Rodrigues, autor da Arte de Cozinha (1683),declara que a maior parte dos suas receitas so tradicionais, de influnciarabe, e constituem um incentivo gula. Emprega abundncia de amn-doas, canela, cravo, mel... Porm, com designaes rabes, encontramosapenas as almnjavas, de requeijo, com ovos e acar, feitas num tacho,como sucedia com as alcomonias.

    Posterior de um sculo Arte Nova para Confeiteiros...(1788). Temum nmero grande de receitas, de entre as quais destacamos, como de ori-gem rabe, as almonjvonas de ovos moles e os canudos de alfitetes (ale-tria). De notar que h muitos outros doces em cuja preparao entram con-dimentos orientais: cravo, canela, gergelim, erva doce, gengibre, benjoim,almscar, ambar, esturaque, algalia, etc.

    Nestes livros figuram termos como albardado, alcachofra,almndegas, alumelas, que nos remetem para a cozinha rabe.

    MARIA DA CONCEIO VILHENA

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    Todavia, por mais estranho que parea, em nenhum deles figura areceita das alcomonias. Se ainda hoje so confeccionadas e apreciadas,porque no seriam referenciadas?

    Reflectindo um pouco sobre a sua composio, as razes destaausncia parecem-nos evidentes. que as colectneas de receitas destina-vam-se cozinha dos grandes senhores, onde a doaria constitua umaarte requintada e dispendiosa. Era a arte de combinar sabores, associada auma esttica de apresentao.

    Ora a alcomonia um doce modesto e tmido perante o sofistica-do da pastelaria oficial, ostensiva nos seus cremes, cores e formas capri-chosas.

    8 - Do que se precisa para fazer as alcomonias?Nos modernos livros de cozinha, s Manuel Fialho, em Cozinha,

    Regional do Alentejo (s/d, 1989 ?) nos d a composio deste doce.At Maria de Lurdes Modesto, na Grande Enciclopdia da Cozinha

    ignora as alcomonias, apesar de se referir aos cominhos. Mais surpreen-dente ainda a ausncia das alcomonias no catlogo da Exposio deDoaria Alentejana, realizada em vora, em 1938.

    Nem to pouco Castro e Brito, na sua obra A Doaria de Beja naTradio Provincial (Apontamentos de Etnografia, Lisboa 1946) se refe-re a esta arte culinria alentejana. E, numa data prxima da nossa, 1991,Mathilde Guimares, em Comeres Alentejanos, ignora igualmente a exis-tncia das alcomonias.

    Segundo Miguel Fialho, esta a receita das alcomonias:

    -Composio:1 litro de mel, 1 litro de pin