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A “maldição das freiras”: a construção da memória coletiva de uma lenda urbana
RENAN BAPTISTIN DANTAS1
Resumo: O presente trabalho observa uma lenda popular existente na cidade de Ribeirão
Preto (SP), chamada localmente de “maldição das freiras”. A lenda surgiu entre 1996 e
1999, quando o prédio do antigo “Colégio Santa Úrsula” – primeiro colégio católico da
cidade construído em 1912 pelas irmãs ursulinas – foi demolido e se iniciaram as
construções do “Shopping Santa Úrsula”, empreendimento comercial que manteve parte
da memória histórica do lugar primeiro por meio de seu nome, da exposição de fotografias
do antigo prédio em sua parte externa e da instalação de uma capela dedicada a Santa.
Segundo boatos, durante a construção foram encontradas ossadas de recém-nascidos,
supostamente enterrados por freiras que haviam quebrado o voto de castidade,
engravidado, e temendo as represálias teriam agido dessa forma. De tal forma, observa-
se a maneira como é construída e vivida a memória coletiva desta lenda urbana pelos
habitantes do lugar, assim como sua relação com o passado do mesmo. Passado, em parte
formado por uma controvérsia coletivamente ignorada, mas publicamente materializada
na manchete da Revista Revide de maio de 1997: “Cidade dever perder patrimônio
histórico”.
Introdução
Esta comunicação é resultado de uma pesquisa realizada no final de 2018, e teve
como foco etnográfico um shopping center da cidade de Ribeirão Preto (interior de São
Paulo), chamado Santa Úrsula. A motivação inicial desta pesquisa voltava-se a analisar o
contexto que circunda a “Capela de Santa Úrsula”, espaço religioso dedicado a Santa
Úrsula localizado dentro do shopping.2 A localização daquele espaço dentro de um lugar
que, apesar de ser gerenciado por uma empresa privada, pode ser considerado um espaço
público, causava um certo estranhamento. Ao pensarmos no cenário tradicional que
compõe a imagem que temos de um “shopping center” é bem provável que um espaço
religioso fique de fora, porém empiricamente este casamento é uma tendência
consolidada em diferentes locais do mundo. Capelas, igrejas e espaços ecumênicos dentro
de shopping centers são encontrados em diferentes lugares do mundo, como nos Estados
1 UNICAMP, mestrando em Antropologia Social. 2 Parte das considerações referentes a esta pesquisa foram apresentadas sob o título de “O Shopping da
Santa” durante a 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, no Grupo de Trabalho: Performances e marcas
da religião na cidade (2018).
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Unidos e Canadá. No Brasil, a propagação de capelas ou centros ecumênicos em shopping
centers trata-se de um fenômeno já identificado por outros autores como Emerson
Giumbelli (2013) e Marcelo Camurça (2016), mas que carece de um mapeamento
sistemático.
Esse estranhamento teria a ver, dentre outras coisas, com a questão da laicidade.
Mas mais ainda pois, diferente de outras experiencias compostas pela construção de
espaços religiosos em instituições públicas que seguem um processo de
“descatolicização” do espaço público, operado na chave do ecumenismo e dos “espaços
de espiritualidade”, como observado por Emerson Giumbelli (2013) na cidade de Porto
Alegre (RS), na capela do Shopping Santa Úrsula, o apelo ao cristianismo e a suas
imagens é o que reina. formada por com um quadro em uma das paredes com uma imagem
de Santa Úrsula, uma placa a baixo com uma breve biografia de Santa Ângela Mérici –
fundadora em 1535 na Ítalia da primeira ordem de “irmãs usulinas”, da UROSU (União
Romana da Ordem Santa Úrsula) – dois bancos e a frente ainda uma imagem de Nossa
Senhora Aparecida à cima de flores ornamentais. Assim, discutindo a questão da laicidade
e o espaço público a partir do caso e dos agentes envolvidos que por ali transitam, acentua-
se o caráter especial de "catolicização do espaço público”, ou melhor de permanência
católica no espaço público brasileiro. Nada de novo sob o sol deste país.
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Foto da “Capela Santa Úrsula”
Falar em permanência do catolicismo, em especial neste caso, não é banal. Já que
o passado histórico deste lugar (o shopping) de fato foi marcado pela presença de uma
instituição católica. Como será abordado mais à frente, antes de vir a ser habitado por um
shopping center, o lugar, endereçado no centro da cidade de Ribeirão Preto, rua São José,
número 933, era de 1914 a 1996, habitado por um colégio católico, comandado pelas
irmãs ursulinas.
Durante as incursões etnográficas feitas no lugar, buscou-se vivenciar e refletir
um pouco sobre a dinâmica de seu fluxo de seres, buscando questionar e interrogar quem
ou o que pudesse informar sobre as impressões e memórias dos habitantes quanto aos
aspectos religiosos envolvidos ali: a história do lugar – seu passado como colégio católico
de freiras – e sua herança, o seu atual nome (Shopping Santa Úrsula) e a “Capela Santa
Úrsula”. Algumas das pessoas foram formalmente abordadas – aquelas as quais quem vos
escreve apresentou-se como pesquisador. Outras foram apenas observadas em suas trilhas
sem de fato serem interceptadas. Foram cerca de 15 pessoas interceptadas. Na maior parte
das abordagens buscou-se seguir um roteiro de questionamentos:1º questionando qual a
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frequência do habitante naquele lugar, 2º questionando se já havia notado a presença da
capela ali naquele shopping, 3º se tinha alguma religião e 4º o que pensava a respeito da
capela ali localizada. Geralmente os diálogos seguiam outros rumos e outras questões não
programadas se sobressaiam.
Destas observações destacou-se o já citado tema da laicidade, aqui entendida
segundo um duplo viés, tanto como posicionamento quanto configuração (GIUMBELLI,
2013). De tal forma, através das questões indicadas a cima, pode-se investigar como os
agentes envolvidos com o lugar (a instituição corporativa, funcionários de lojas,
seguranças, clientes, os “peregrinos”3, etc) compreendiam a presença do espaço religioso
dentro do shopping, em termos de percepção, frequência e opinião. Em síntese,
despontou-se no material coletado (observações e curtas entrevistas dirigidas) uma dupla
pluralidade quanto a posturas e valores referentes a laicidade e a presença do religioso
católico no espaço público: tanto por parte dos grupos institucionais, quanto dos
peregrinos habitantes do espaço público dirigido pela instituição. Assim, confirmando
que encontramos “configurações diferenciadas que expressam situações de laicidade
desiguais, mas convivendo entre si no país” (CAMURÇA, 2017), na mesma cidade, no
mesmo lugar, para diferentes pessoas.
Assim, notou-se que, se para alguns o aspecto religioso católico é quase que
“invisível”, passando desapercebido, sem estranhamento ou é visto positivamente; para
outros – geralmente informados pela fórmula do “Estado laico” – o aspecto religioso é
estranho. Institucionalmente, como já dito, seguir uma tendência oposta à observada
“descatolicização do espaço público” (GIUMBELLI, 2013), o caso comprova certa
primazia católica estruturalmente construída no imaginário e espaço público nacional
(MONTERO, 2009) ainda reinante em certos contextos sociais brasileiros.
Além desta questão mais civil, ligada a regulação do religioso dentro do shopping,
a vivencia etnográfica do lugar, observadora das linhas e movimentos imbricados em seu
contexto, conduziu a identificação de uma lenda urbana viva na memória coletiva do
3 Conceituação inspirada no antropólogo Tim Ingold (2015), que também mais à frente terá parte de sua
perspectiva teórica antropológica discutida neste trabalho. Trabalho que por sua vez, muito se inspira em
suas noções.
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lugar, e que foi caracterizada pelo Portal Revide, site virtual da Revista Revide, revista
de circulação municipal em Ribeirão Preto, como uma das sete lendas urbanas da cidade:
a da “maldição das freiras”. Esta lenda, notada no discurso popular sobre o espaço (no
discurso dos consumidores, lojistas e seguranças) nos faz pensar que, se o lugar não
reconhece a diversidade religiosa – ou seja, seja habitado predominantemente por
materiais católicos, não abarcando os símbolos de outras tradições religiosas e espirituais,
como das religiões mediúnicas: espiritismo, candomblé e umbanda – , a diversidade
religiosa, presente nos sistemas de crenças dos peregrinos reconhece o lugar. Neste
sentido, a presente comunicação visa pensar a construção da memória coletiva que
sustenta esta lenda, apelando centralmente para as contribuições teóricas de Maurice
Halbwachs (1990) e Tim Ingold (2015). O primeiro para pensar especificamente sobre a
memória coletiva e o segundo para pensarmos o lugar como sendo formado não apenas
por suas dimensões materiais atuais, mas também pelas histórias de vida que ali viveram
e passaram.
O “shopping da santa”: de colégio à shoppping
A história do shopping center localizado no centro da cidade de Ribeirão Preto
cunhado com o nome de “Santa Úrsula” remonta os primórdios do desenvolvimento
estrutural, hierárquico e burocrático da Igreja Católica na região. Ribeirão Preto foi
fundada por fazendeiros em 1856. Tornou-se paróquia em 1870. O bom clima e solo da
cidade contribuiriam para a plantação de café e incentivaram a construção de ferrovias.
Em 1883 foram construídos os trilhos da Companhia Mogiana de Estrada de Ferro,
responsável pela forte transformação da cidade, que se torna a maior produtora de café
do mundo até os efeitos do crash da bolsa de Nova York em 1929.
Neste contexto de expansão, a província administrativa eclesiástica da cidade seria
elevado ao grau de Diocese anos mais tarde quando o então Papa Pio X cria de uma só
vez em 1908, através da bula "Dioecesium Nimiam Amplitudinem", mais cinco Dioceses
no estado de São Paulo além da única até então existente localizada na capital paulista:
em Botucatu, Campinas, São Carlos, Taubaté e Ribeirão Preto. Quatro anos mais tarde o
então primeiro bispo de Ribeirão, Dom Alberto José Gonçalves, que tomaria posse de seu
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cargo em 1909, com o intuito de estabelecer na cidade seu primeiro colégio católico,
convidou irmãs ursulinas da UROSU (União Romana da Ordem Santa Úrsula), fundada
em 1535 por Santa Ângela Mérici na Ítalia, para realizar tal feito.
Assim em fevereiro de 1912, nascia o Colégio Progresso, gerado inicialmente por
quatro irmãs: uma brasileira, duas portuguesas e uma italiana, num pequeno chalé na rua
São Sebastião. O colégio só viria a se chamar Santa Úrsula dois anos depois quando da
inauguração de um prédio novo na rua São José. A escola ali residiria até 1996 quando
foi transferida para um terreno maior na Zona Sul de Ribeirão Preto, dando lugar ao
“Shopping Santa Úrsula”, que após a demolição do antigo colégio e sua construção viria
a ser inaugurado em 1999.
A partir da trajetória deste lugar – o terreno da rua São José, 933, habitação do
atual shopping – e do depoimento de uma das irmãs ursulinas a respeito do nascimento
da escola e sua posterior mudança de endereço, vemos se delinear transformações que a
partir das reflexões que empreitamos, estariam ligadas sócio historicamente à processos
de urbanização e expansão da cidade, à “romanização” do catolicismo brasileiro
(OLIVEIRA, 1985) e a permanência simbólica e material do catolicismo na esfera pública
nacional – sendo que este último ponto será melhor discutido no próximo tópico
Segundo a irmã, ao habitarem a cidade de Ribeirão Preto a partir de 1912 as irmãs
ursulinas tiveram “muita visão de futuro”, pois naquela época Ribeirão ainda era uma
cidade muito pequena, mas devido à expansão cafeeira a cidade estava fadada ao
crescimento. De tal maneira que, intuindo este futuro, as irmãs da ordem decidiram
comprar terrenos, alguns muito distantes do centro da cidade, quando “tudo era estrada
de terra”, formando ao fim uma posse que contabilizava cerca de trezentos e oitenta e dois
mil metros quadrados.
Para sobreviver sem o apoio do Estado era indispensável ao aparelho religioso
reestruturar-se, restabelecendo a ligação entre a Igreja e as grandes massas. Pedro Ribeiro
(1985) ressalta que os principais líderes eclesiásticos da época colocam em evidencia o
tema da ignorância religiosa doutrinal do povo, que passa a ser combatida pelo aparelho
eclesiástico. Ainda segundo esse autor, os pontos de reforma apontados por D. Macedo
Costa seriam como a súmula do processo de romanização da Igreja brasileira.
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Imagem do antigo prédio do Colégio Santa Úrsula construído em 1914 e do Shopping Santa
Úrsula construído em 1999.
Se observa portanto a história do antigo Colégio Santa Úrsula, comandado pelas
irmãs freiras ursulinas, se desenvolver como parte deste processo de romanização,
empreitado pela Igreja Católica, no sentido de se realinhar com a burguesia nacional, no
caso com a burguesia paulista, principalmente ligada ao setor cafeeiro em ascendente
expansão no início do século XX.
Os anos passaram e o colégio, que fica a poucas quadras de outro colégio católico
da cidade, dirigido pelos Irmãos Marista, começou a ficar pequeno demais para a
quantidade de alunos, o que por sua vez contribuía com constantes engarrafamentos do
trânsito de carros nos horários de saída e chegada dos alunos. Tudo isso é o que é contado
pelas freiras ursulinas que viveram este período4.
Segundo a dissertação de mestrado na área de arquitetura, defendida na
Universidade de São Paulo (USP) em 2002, escrita por Fernando Garrefa, sobre a
arquitetura do comércio varejista ribeirão-pretano, em especial sobre a expansão dos
shopping centers, o Shopping Santa Úrsula foi fruto de uma permuta entre o “tradicional”
Colégio Santa Úrsula e o Grupo Empresarial Almeida Jr. Ele aponta para algo que talvez
tende a se esquecer cada vez mais, quando se pensa em termos de memória coletiva da
cidade, que seria a polêmica causada pela implantação do shopping na cidade, já que seu
edifício foi construído às custas da demolição do antigo colégio, cujo prédio era tido como
um dos marcos históricos e arquitetônicos da cidade de Ribeirão Preto – primeiro colégio
4 Seus depoimentos estão disponíveis no site do colégio:< www.colegiosantaursula.com.br/fundacao>.
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católico da cidade, erigido em 1914. Apesar disso, segundo Garrefa (2002) comenta, sua
demolição teria passado praticamente desapercebido pela sociedade ribeirão-pretana,
com exceção de um grupo de ex-alunas pertencentes a uma das quatro gerações formadas
pelo colégio das Irmãs Ursulinas e da revista Revide, de abrangência municipal, que
praticamente um ano após o início da demolição fez uma matéria abordando o assunto5.
Dentre os aspectos arquitetônicos que chamam atenção no edifício do shopping,
destaca-se sua verticalidade. Que por sua vez, infelizmente facilitou uma série de
suicídios – cinco desde a fundação do shopping – naquele lugar. Esta sequência de
suicídios é um ponto que, devido às limitações momentâneas deste trabalho, não será
explorada no momento. Por hora, vale ressaltar sua contribuição para formação da
memória coletiva da cidade, em especial sobre a memória formada sobre o lugar. Esta
recorrência de suicídios irá se somar com a lenda urbana da “maldição das freiras”, para
compor uma espécie de “mística sombria” do lugar, um espectro de sentimentos que
impacta a vida, o corpo e os sentimentos de seus habitantes.
Mas afinal de contas, o que diz essa lenda urbana? Segundo boatos, durante a
construção do shopping foram encontradas ossadas de recém-nascidos, supostamente
enterrados por freiras que haviam quebrado o voto de castidade, engravidado, e temendo
as represálias teriam agido dessa forma, enterrando os corpos de seus bebês no subsolo
do colégio. Este boato é reafirmado até hoje entre os habitantes do shopping. Das
observações etnográficas ali realizadas, uma interlocutora privilegiada, funcionária em
uma loja de sapatos no shopping, relatou como estes rumores vieram à tona entre os que
ali habitam, após o último suicídio realizado no local, no ano passado. Segundo ela, os
5Fazendo um paralelo com outro shopping inaugurado no mesmo ano que o Santa Úrsula, Garrefa diz que:
“Ao contrário do Ribeirão Shopping e do Novoshopping, que possuem localização periférica, o Santa
Úrsula apostou no centro da cidade, especialmente na população de alta renda que vive no entorno do
empreendimento. Nesse sentido, nasceu como um shopping de vizinhança. O sistema viário estreito e o
tráfego constantemente lento em seu entorno, confirmam seu direcionamento primordialmente voltado à
sua vizinhança, uma vez que a acessibilidade a seus espaços não encoraja a ida de consumidores de bairros
mais distantes e mesmo de outras cidades. As opções de acesso passam sempre pelas avenidas
Independência, Nove de Julho ou Francisco Junqueira, e em todas elas o consumidor motorizado não
encontra caminho livre de descomplicações” (GARREFA, 2002, p. 135-136).
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principais agentes propagadores da lenda são os seguranças noturnos, que em seus turnos
de trabalho, dizem ouvir o choro dos bebês e o vulto dos fantasmas das freiras.6
Outro aspecto observado em campo, se refere aos impactos físicos, corporais e
afetivos causados por toda a “mística” que envolve o lugar – formada por seu passado
religioso, a lenda urbana e a recorrência de suicídios. Cita-se dois exemplos: primeiro
uma mulher interpelada se dizia católica, porém com uma “fé ampla”, e que gostava de
“tudo que tem de bom nas outras religiões”. Segundo ela, ao visitar aquele shopping, ela
seguia um ritual pessoal de rezar quando entra e de rezar quando vai sair do
estabelecimento. Ainda mais devido aos “acidentes estranhos” que ali aconteciam, que
chocam a sociedade ribeirão-pretana principalmente através da divulgação da mídia.
O segundo, um caso interessante de contato, se deu com uma mulher adulta, que
se demonstrou apressada de início, um pouco nervosa inclusive, dizendo que aguardava
seu marido que já estava pra chegar após comprar um presente de natal para seu filho.
Porém no decorrer da interlocução revelou que sofria de síndrome do pânico e
claustrofobia e que estar ali naquele espaço lhe era incomodo, por isso vinha pouco ao
shopping, principalmente devido ao histórico do lugar. Quando lhe questionei se ela já
havia notado a existência da capela no interior do shopping, a interlocutora rapidamente
se emocionou, vindo a cair lágrimas de seu rosto. Se disse “arrepiada” e mostrou com
orgulho a correntinha de Nossa Senhora que carregava no pescoço. Caracterizou-se como
“super católica” e disse que a capela descoberta iria motiva-la a frequentar o shopping
mais vezes.
Noção ingoldiana de lugar
Tim Ingold conduz a antropologia a uma discussão epistemológica ao mesmo
tempo que a uma auto-critica. Cada vez mais fragmentada em subáreas (como
“antropologia da religião”, “antropologia médica”, “antropologia econômica”,
6Por ser um lugar onde predomina a circulação, pergunta-se em que medida ela auxilia na propagação de
boatos.
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“antropologia política”, etc)7, Ingold convida a antropologia de volta “à vida” e as grandes
questões, ao concebe-la como uma indagação sobre as formas e possibilidades de vida no
mundo. Seu trabalho, assim como a de outros antropólogos ligados a chamada “virada
material”, se contrapõe a uma tradição antropológica interpretativista e simbólica,
encabeçada por Clifford Geertz (1989), para quem a cultura é uma “rede de significados
e sentidos” que precisam ser interpretados. Tal visão hermenêutica se esquece do humano,
pois presa na busca do que “está sendo dito” e do que “significa”, não é pragmática a
ponto levar em conta os materiais e suas conexões por trás do “texto”, essa teia de
significados que só tem sentido à medida em que é comunicável e comunicada.
Na virada epistemológica operada por Ingold, a agenda antropológica se dirige a
compreensão dos materiais e correntes de consciência sensorial nos quais ideias e coisas
tomam forma. E o conjunto de relações entre os materiais é chamado de malha
(meshwork) “linhas emaranhadas de vida, crescimento e movimento” (INGOLD, 2015,
p. 111). Ele ainda conclui “este é mundo que habitamos” (Idem). Assim, a vida dos
organismos se estende ao longo de várias trilhas, saídas de uma mesma fonte. Avançando,
crescendo e se desenvolvendo por diferentes lugares. Nós em um tecido de nós, cujos fios
que os constituem se entrelaçam a outros fios, a outros nós, compondo a malha.
Tendo em vista esta perspectiva da malha, que metaforicamente, se assemelha a
uma teia de aranha, Ingold concebe a ideia de lugar como algo não formado por seu limite
externo, mas sim pelo movimento que o delineia, através da ação dos que ali habitam.
Essa habitação é linear, o oposto de ocupação, leva a pessoa ao longo dos caminhos entre
um lugar e outro. Por vezes, os movimentos dos agentes, das “coisas” (INGOLD, 2008),
formam emaranhados de linhas de vida. Um lugar, seguindo essa perspectiva seria um
“nó”, formado pelo feixe de relações que o habitam e habitaram, deixando ali seus rastros,
por mais que não se possa ver.
Memória coletiva para Halbawchs
7 “Hoje, a maioria dos antropólogos escolheu reorientar seus trabalhos na direção de uma pluralidade de
problemas fragmentados – políticos, econômicos, domésticos, rituais, etc. – em contextos de “pequena
escala”, encontrando nesse estado de fragmentação o sentido de direção intelectual oferecido por
‘disciplinas cognatas’” (ASAD, 2017, p. 319).
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Maurice Halbawchs é um dos principais autores que trabalha com a noção de
memória coletiva. Recorre-se a ele pois dentre outras coisas ele aponta que um dos pontos
de referência estruturantes da memória, são os monumentos e suas dimensões
arquitetônicas, não isentas de significados e símbolos. Assim como as lendas populares,
o folclore, as trajetórias nacionais, etc. Estes pontos seriam indicadores empíricos da
memória coletiva. São fundamentais e fundantes na formação de sentimentos de pertença.
Halbawchs também enfatiza os aspectos positivos da memória, que contribuem para a
“coesão social”, não pela coerção, mas pela adesão afetiva. De tal forma que, as memorias
sociais estão atreladas às emoções, geralmente compartilhadas pela comunidade.
“Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos
tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de
concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída sobre
um fundamento comum. Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem
de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É necessário
que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de noções comuns que se
encontram tanto no nosso espírito como no dos outros, porque elas passam
incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se
fizeram e continuam a fazer parte de uma mesma sociedade” (HALBWACHS,
1990, p. 34)
Como pode se ver, para este autor, a memória coletiva só se viabiliza a partir do
compartilhamento de noções comuns, encontradas no “espírito”. Ele ressalta ainda a
seletividade de toda memória, assim como o processo de negociação entre memórias
individuais e coletivas. Ambas só coincidem quando o elemento afetivo se faz presente
no interior das individualidades pessoais.
Considerações
Como considerações finais desta comunicação, pontua-se algumas coisas.
Primeiro quanto ao aspecto relacional da lenda urbana, que se entrelaça a outros pontos
estruturantes da memória do lugar – seu passado histórico e arquitetônico gravado no
nome do shopping, na capela que permaneceu ali devido à antiga função do lugar, as fotos
do antigo colégio expostas nas paredes externas do shopping, à lenda das freiras
compartilhada por seus habitantes e peregrinos, os casos de suicídio, a repercussão
midiática, etc.
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Tudo isso, segundo uma visão ingoldiana, pode ser considerado como linhas,
trajetórias de vida, gravadas em distintos materiais e que compõem o lugar, que de tal
forma não se limita a seus limites físicos e contornos externos. Ou ainda em uma
linguagem arquitetônica, não se limita a seus “equipamentos”. São fontes, materiais que
contribuem para a manutenção de uma memória coletiva sobre o passado do lugar,
absorvidas pela diversidade religiosa da sociedade, que aciona uma linguagem comum
composta por uma outra “dimensão encantada”, de seres sobrenaturais que interferem a
todo momento na realidade. Para tanto, contribuem os sentimentos e afetividades dos
habitantes que ali vivem e viveram, deixaram marcas, ao mesmo tempo em que foram
marcados, em seus corpos, gestos, sentimentos e memórias.
Bibliografia
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e arena de controvérsias. HORIZONTE-Revista de Estudos de Teologia e Ciências da
Religião, v. 15, n. 47, p. 855-886, 2017.
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religiosos em instituições públicas. Cultura y Religión. Chile. Vol. 7, n. 2 (2013), p. 32-
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